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Renê Gonçalves de Matos

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Renê Gonçalves de Matos

Entrevistado por Comitê pela Memória, Verdade e Justiça Juiz de Fora

Transcrito por: Sabrina Carter

Revisão Final: Ramsés Albertoni (30/03/2017)

 

Renê: Meu nome é Renê Gonçalves de Matos, sou farmacêutico e bioquímico, tenho sessenta e seis anos hoje. Sou professor na Universidade Federal de Juiz de Fora, e em 1965, 1966, eu estava na universidade e… eu tenho uma origem na verdade, é muito ligada aos padres dominicanos. Eu estudei no seminário dominicano de 1955 a 1958. E pela vida afora a gente foi se ligando a pessoas que tinham uma participação ativa na sociedade. A partir do momento que eu entro na universidade é… a gente começa a… tendo a sensibilidade das questões políticas e o momento difícil que o país passava, na época da ditadura, é… a gente começou a participar do grupo, que depois veio no final dos anos 1960, início dos anos 1970, ser preso. Durante o meu período de universidade eu participava do movimento estudantil, eu fui presidente do D.A. do meu curso, farmácia, minha faculdade era farmácia e odontologia. Fui presidente do D.A., depois, na sequência, fui presidente do DCE. Nesses momentos, várias lutas foram encetadas, tipo os congressos da UNE, os congressos da UEE. Na UEE nós tivemos a oportunidade de, participando do congresso, ser presos, dentro da faculdade de filosofia, na Fafile de Belo Horizonte. E lá rolou muito susto, muito medo, muito cachorro, muita gente ameaçando a gente. Naquele tempo o governador Magalhães Pinto veio ao socorro da gente e nós acabamos sendo soltos, mas foi um momento muito tenso. Logo em seguida teve o congresso da UNE que foi o de Ibiúna, muita gente presa, eu não estava lá. Mas teve uns momentos que depois na prisão isso vai aparecer que é quando a gente foi para as ruas vender bônus, na verdade, isso era muito mais um artifício que a gente estava utilizando para poder dizer para o pessoal que tinha havido prisão, que o congresso da UNE tinha caído, que as pessoas estavam presas, e mobilizar a sociedade. A gente já estava a tantos anos vendendo bônus para contratar advogados, na verdade não aconteceu nada disso, porque o pessoal foi solto logo em seguida. Mas de qualquer jeito foi uma tensão imensa, por quê? Porque o regime era muito duro. Felizmente, nesse momento ainda não foi o momento mais duro do processo da ditadura. Isto por volta, não, isso no ano de 1968. Anteriormente, na morte do Edson Luís no calabouço no Rio, ouve em Juiz de Fora muita manifestação, os estudantes foram para a rua, nós fizemos uma missa. Aliás, foi mais de uma missa na Glória que ficou muito cheia, muita gente participando, manifestação dos padres que estavam celebrando a missa, e isso é muito importante no momento. Porque mostrava bastante da opção que um grupo grande de pessoas na sociedade, mas especialmente liderados pelos estudantes estavam levando como luta contra a ditadura. Na sequência, então, é… já depois de Ibiúna, o nosso movimento diminuiu um pouco a sua participação, mas nós continuamos fazendo manifestações dentro da universidade e isso foi muito importante. Pelo menos na minha avaliação. Na sequência eu termino meu curso e fui embora de Juiz de Fora. Logo na sequência, logo nesse momento que eu tinha me desligado da universidade, pessoas que tinham uma ligação muito forte comigo, foram presas em Belo Horizonte. Alguns sofreram torturas muito violentas, muito violentas mesmo. E eu estava terminando um processo lá em Teófilo Otoni e estava retornando para Juiz de Fora. Chegamos em Juiz de Fora, o pessoal tendo sido preso então em Belo Horizonte, pessoas que tinham ligação comigo. Eu fui preso também em Juiz de Fora, fiquei durante vinte dias reclusos, dez dias incomunicáveis. É uma tensão imensa porque você realmente não sabe do que está se tratando, você não tinha muita informação do que se passava. Fico imaginando os outros que foram presos antes de mim, qual que era a situação deles. A minha realmente a gente vivia numa tensão só. Lembrar que as famílias que não têm informação, não têm essa participação que a gente tinha na política, você lá preso, você na cadeia, você sendo, assim por todos os constrangimentos, você fica imaginando o que que sua família que não tem esse envolvimento, não tem essa percepção da coisa, família muito humilde de cidade muito pequena, a tensão que isso traz para eles; e a outra, minha família, minha noiva e a família da minha noiva. Pessoas que também não eram politizadas no sentido de ter uma opção ideológica, passavam por preocupações, constrangimentos muito fortes, por sorte essas pessoas me deram muito apoio. Eu consegui, logo depois que terminou o período que a gente não conseguia se comunicar, essas pessoas foram à prisão, ao quartel general onde eu estava detido e… é consegui, logo em seguida, vinte e quatro dias depois ser solto. Mas é interessante eu contar que no dia que eu estava sendo solto o responsável pelo inquérito, o major responsável pelo inquérito, chegou onde eu estava e disse que ia me soltar e prender um amigo meu. Você muitas vezes perde o rumo, você perde a noção do que de fato estava acontecendo, o que que você falou, o que você não disse e a sua preocupação é não entregar as outras pessoas. Isso é muito preocupante e quando ele me disse que ia me soltar e prender um amigo meu, eu pensei “E agora, o que eu fiz?”. Na sequência, quando ele me disse o nome da pessoa, falei assim “”Ah major, não faz isso não, essa pessoa é completamente louca, ela não tem noção nenhuma, ela não tem participação de nada, ela não tem. É uma pessoa bastante desligada do processo social, não passa por aí não”. Mas mesmo assim, ele respondeu “Eu quero dar um susto nele, vou prendê-lo assim mesmo”. E prendeu. Saí da prisão e essa pessoa foi presa.

Comitê: E o senhor poderia citar o nome dessa pessoa?

Renê: Posso. João Ronaldo e eu não vou lembrar o sobrenome dele, é João Ronaldo, não lembro.

Comitê: Era individual quando soltava? Soltava em grupo ou era individual, ou era diferente o processo?

Renê: A minha situação foi um pouquinho diferente, porque o grupo que tinha sido preso, foi preso em Belo Horizonte. Em Juiz de Fora, se eu não me engano, eu não tenho certeza disso, só eu fui preso. Nesse processo que eu estava colocado que era de APML, em Juiz de Fora, tivemos mais de… com certeza, mais de 150 pessoas foram envolvidas no processo. Então, todo mundo que a gente conhecia eles mandavam prender, ou pelo menos deter e levar para até lá para ser sacaneado, para conversar. Pessoas que não tinham nada a ver com nada, muito muito desgastante. Então, eu fui preso só eu, solitariamente, porque o outro pessoal alguns já tinham sido soltos e outros se mantiveram detidos em Belo Horizonte. E várias pessoas que depois vieram a responder ao mesmo processo no final, que foi pagar no Superior Tribunal Militar, algumas pessoas nem detidas foram, agora eu fiquei vinte e quatro dias. Nos documentos que eu disponibilizei para a Comissão eu relato uma série de coisas. No documento está bem claro quando eu digo que eu não passei por nenhum processo de tortura física, mas lembrem-se que isso foi no ano de 1972, início do ano de 1972. Você estar preso já era, ou é, ainda hoje, muito desgastante. Naquele momento você sabia que tinha toda uma sociedade em tese contra você, pelo menos o statu quo era todo contra aquilo que de fato a gente estava lutando. Nós estávamos lutando em defesa do país, em defesa de uma sociedade, em defesa de um projeto político. Mas a sociedade não percebia isso, por quê? O massacre da mídia, o que era dito todo dia, via imprensa, é que nós éramos criminosos, isso era terrível. E repito, você imaginar o que que seus pais, o que que seus parentes, o que que a minha noiva, o que que a família da minha noiva estavam sofrendo, isso era muito desgastante para a gente. Então, eu não sofria tortura física, mas tortura moral todos nós que estamos naquele processo, naquele processo que eu quero dizer, no projeto maior, foi realmente muito desgastante para a gente.

Comitê: Na sua avaliação, Renê, qual a importância de revelar esses documentos secretos?

Renê: Bom, antes disso quero dizer que eu estou disponibilizando o que eu tenho, não é muita, mas é o que a gente tem. Aliás, lembrar de uma coisa que depois talvez a Regina fale mais claramente do que eu. Naquele tempo o medo era tão grande que a gente tinha bastante material, inclusive cartas minha e dela a gente se correspondendo. E que tinha muito da história do movimento, muita coisa da história de Juiz de Fora, muita coisa da história da universidade, e tudo isso foi queimado por ela com toda razão e toda consciência de uma pessoa que está passando por um processo e sabe o risco que corre à frente. Então, eu acho que isso é essencial. Tanto era essencial ter preservado aquilo que, infelizmente, não tivemos como preservar, como hoje é preciso que venha à luz tudo aquilo que aconteceu. Eu estava brincando com você antes, falando sobre o ridículo que é uma série de acusações, uma série de coisas que estão dentro do processo. Eu quero só relembrar, estava falando agora com o Luís Carlos… Eu sofri uma pressão imensa para esclarecer porque que eu, uma grande liderança, segundo eles, do movimento estudantil combatendo a TFP e… eu dizendo que não tinha nada disso. A gente ficava em Juiz de Fora, uma cidade pequena na época, duzentos e poucos mil habitantes, e tudo que acontecia, acontecia no Centro da cidade, mais especificamente na Rua Halfeld e você estava lá e… acontecia a TFP estava fazendo as suas manifestações na rua. E nós fazíamos a outra manifestação. E eu fui acusado de ser líder contra uma entidade que tem um cunho político que estava de acordo com o regime e que era de princípios cristãos. Ora bolas, eu estava exercendo um direito meu do mesmo jeito que era um direito deles manifestar, mas que também não houve essa liderança, não houve essa manifestação minha nesse sentido. Mas repito, para contrapor a essas coisas, essas acusações que eu vou chamar de idiotas, porque muitas delas eram idiotas mesmo. Aliás, o processo todo pelo qual nós respondemos era de uma simploriedade, de uma incompetência, de uma… É o que realmente não tem nem termos para poder dizer o tão medíocre que é um processo desses que cria, além de toda uma questão de desgaste emocional, também custo financeiro para o país e para a gente. Porque você teve que montar toda uma parafernália e muitos de nós não conseguíamos sequer ter emprego direito. Eu não me esqueço de quando eu comecei a dar aula na universidade, eu fui perguntar o então reitor se tinha alguma coisa contra a minha pessoa, ele disse “Nem aqui, nem na 4ª Região Militar”. Em suma, ele foi pedir a bênção do general se podiam me contratar. Era mais ou menos a situação. Então, é preciso que isso tudo venha à luz, é preciso que todos aqueles documentos que existem sobre o que que foi aquele momento, um momento difícil para a vida do país. E que é importante dizer isso, não éramos só nós que passamos pelo processo que sofremos isso. Mas no entorno da gente todos sofreram demais, amigos e parentes, todos essas pessoas sofreram muito. E pessoas que de fato nem conhecia a gente, mas que eram solidários conosco, é… nesse processo todo, que a gente passou. É importante dizer, que esse processo nosso que teve momento que tinha cento e tantas pessoas comprometidas no processo, que na verdade não era nada disso. Mas que foi construído dessa forma é… por eles. Em algum momento é… tinha tanta gente que eles mesmos caíram na real e viram que tinha que controlar isso aí. No final do processo nós fomos acusados, se eu não me engano, doze pessoas, e quando nós fomos a julgamento, fomos todos absolvidos por unanimidade em Juiz de Fora, por um corpo que sofria uma pressão imensa do sistema do… a promotoria era violentamente, fazia uma pressão imensa sobre isso, sobre o quadro dos juízes que estavam julgando. E esse foi… tinha a legislação, obrigava, isso foi parar no Superior Tribunal Militar. No Superior Tribunal Militar novamente todos nós fomos absolvidos e que tinha que ser isso mesmo, não tinha outra lógica que não fosse dessa forma, mas isso criou todo um processo, eu repito, de insegurança na sociedade. E o importante que eu acho que tinha muito a ver, isso a gente quase nunca fala muito sobre isso, você tinha uma espada sobre a sua cabeça. Você já não era primário, você passou por um processo que você foi a julgamento, então, você deixava de ser primário. E eles usavam isto daí de montão para fazer pressão sobre a gente. E nós, a maioria de nós chegou, eu inclusive estou me colocando nessa posição, em vários momentos a gente tentava inclusive não desconhecer as pessoas porque, repito, Juiz de Fora não era uma cidade grande na época então, você encontrava com as pessoas necessariamente, mas a gente encontrava no mínimo receosos, eu diria até a maioria de nós com medo. Por quê? Porque era um momento muito difícil. E eu disse que eu não passei por nenhum processo de sofrer tortura física. Eu quero lembrar que no grupo ao qual eu me ligava, eu tinha pessoas que eu tinha um afeto muito grande que conviveram comigo durante a minha vida de política estudantil, pessoas que sofreram demais. Pessoal em Juiz de Fora, em geral, não era torturado, apesar de em vários momentos é… o major, que era o condutor do processo, e o promotor que o acompanhava em vários momentos, ameaçaram a gente de levar-nos, voltar conosco para Belo Horizonte. E diziam “Aqui vocês não sofrem torturas, mas em Belo Horizonte serão torturados”. Então, isso é importante dizer, e repito algumas, especialmente as mulheres, que participaram do processo, sofreram muito. Lembrar que o Ricardo Cintra, em uma manifestação que ele fez no dia do lançamento da Comissão, ele falou sobre as torturas que ele sofreu, especialmente dizendo que ele teria que dedurar, que era o termo que a gente utilizava, o Afonsinho que era jogador de futebol para desestruturar. Quer dizer, em suma, o Afonsinho era contra um sistema, um sistema na verdade desportivo, eles misturavam com política para criar esse mal-estar. É… algumas pessoas então, repito, foram muito torturadas. Eu tenho um amigo, que é o Domingos Sávio, que ele tem uma doença que não foi causada por isso, mas com certeza ela progrediu muito, ela avançou muito por causa desse processo. Lembrar que o Domingos era meu irmão, nós morávamos juntos no mesmo quarto e eu sofro muito assim, afetivamente, pelo problema do Domingos. Que eu tenho uma noção de que tem muito a ver com aquele processo que ele passou de torturas em 1972.