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Rafael Sales Pimenta

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Rafael Sales Pimenta

Entrevistado por Helena da Motta Salles e Cristina Guerra

Juiz de Fora, 26 de agosto de 2014

Entrevista 011

Transcrito por: Giulia Fardim

Revisão Final: Ramsés Albertoni (05/10/2016)

 

Helena: Rafael, você podia começar falando assim seu nome completo, onde que você nasceu, onde você mora agora e falar um pouco a respeito da sua família, seu pai e depois seu irmão, que sua família tem uma história aí a ser contada nesse período aí da ditadura.

Rafael: Meu nome é Rafael Sales Pimenta, eu moro em Juiz de Fora, sou advogado. A Comissão me convidou para vir aqui para contar alguma coisa para contribuir nesse acervo aí sobre a participação do meu pai, Geraldo Gomes Pimenta, nesse processo de redemocratização na luta contra a ditadura e na redemocratização do Brasil, como também contar alguma coisa sobre a atividade do Gabriel Sales Pimenta, que foi um advogado formado aqui na UFJF, na Faculdade de Direito, meu irmão, também na luta pela defesa dos trabalhadores do campo, quando foi assassinado em 1982, no Pará.

Helena: Você podia começar pela história do senhor Geraldo, seu pai, do envolvimento político dele. Isso que você tava falando para a gente agora a pouco. A amizade com o Riani… Fazer um histórico da atuação dele…

Cristina: Se você tiver algum nome que você possa citar, porque o Riani ainda está vivo, né? Que a gente possa pontuar… Porque enriquece inclusive o nosso trabalho, né?

Rafael: Certo. O que eu posso trazer quanto à atuação do seu Geraldo… (choro) Bom, o que eu identifico é que ele sempre atuou no movimento sindical. Ele trabalhou em vários bancos, o Banco da Lavoura, depois eu acho que o Lavoura virou Credireal, e ele, se não me engano, foi começar a militar no PTB, no PTB ali na década de 1950, meados da década de 1950. Então, o que aconteceu? Ele ficou muito amigo do senhor Riani e outros líderes sindicais importantes aqui na cidade… Líderes sindicais que sempre se destacaram na atividade sindical aqui em Juiz de Fora, e eles formaram um grupo do PTB de sindicalistas.

Helena: Ele era, então, presidente do sindicato?

Rafael: Ele virou presidente do Sindicato dos Bancários de Juiz de Fora no meio da década de 1950, não sei se 1954, 1955. E foi reeleito presidente do sindicato para um segundo mandato. Não era comum isso aqui no movimento sindical, segundo ele me contou, parece que ele foi o primeiro presidente do sindicato reeleito aqui na região. E ele era um parceiro do Riani, o Riani viajava pro país inteiro e o papai fazia o papel do companheiro da cidade do PTB, junto com outros companheiros. Segundo ele me contava, eles estavam sempre em contato e o Riani fazia as atividades fora e o papai auxiliava aqui na cidade. Este trabalho nacional fez com que fosse criado o Comando Geral dos Trabalhadores que o Seu Riani assumiu a presidência, ali em 1962. Com a renúncia do Jânio e a entrada do Jango no governo, o Comando Geral dos Trabalhadores subiu, em termos de importância no país. Teve alguns movimentos de greve importantes e o Comando Geral dos Trabalhadores, o seu Riani negociava diretamente com o presidente da república, que era o Jango. Então, nesse processo, quando vem o Golpe de 1964… Eu tava vendo outro dia em um documento da época, o seu Riani está no décimo primeiro lugar entre as pessoas que vão ser cassadas no dia 1º de abril de 1964. Então, ele tava entre as destacadas pessoas, no meu modo de ver na defesa da democracia… (choro) Então, o Riani vai preso, ficou preso alguns anos, e o meu pai aqui em Juiz de Fora. As nossas famílias se aproximaram porque a gente ia sempre visitar a esposa do seu Riani, os seus filhos dele lá em Santa Terezinha na casa deles, e acontece que, então, nesse processo era pro meu pai ter sido preso aqui. Teve o processo na Auditoria Militar contra várias pessoas, inclusive ele, e o Comando do Exército acusava meu pai de ter uma gráfica clandestina no porão de nossa casa na Rua Oscar Vidal. Nossa casa, a Helena conheceu, tinha um porão em baixo, aquelas casas antigas, com dois andares, embaixo tinha a garagem e tinha dois quartos, e no quartinho do fundo o papai emprestou para o movimento social se reunir, então, tinha algumas reuniões lá. E os militares acharam um panfleto ou um jornal do movimento do movimento de resistência, já da ditadura, isso já 68 aproximadamente, 69, por aí. Chamaram ele lá no Quartel General para ele prestar depoimento sobre a gráfica clandestina que eles alegavam que existia no quintal de casa…

Cristina: Ele tinha uma gráfica?

Rafael: Não, não tinha, nunca existiu isso.

Cristina: Era um cômodo que ele emprestava para reuniões.

Rafael: Isso… era um cômodo que ele emprestava para a reunião do movimento. Ele contava que o general… Porque meu pai tinha servido na guerra no Quartel General do Exército. Ele ficou cinco anos e saiu como sargento. Então, ele conhecia os generais, os coronéis, e os generais em 1964 eram os colegas dele na época da guerra. Então, o general, que era conhecido dele, dizia “Vai Pimenta, aí o jornal que foi feito na sua casa aí”. Aí ele falou assim “Não sei de nada”, o general falou “Pode pegar”, ele disse “Não vou pegar nada. Você quer que minha impressão fique aí”. Essa era a conversa dele com o general. Acabou que ele não foi preso, a gente especula porque o papai era muito católico. Ele participava era da coordenação nacional, com a minha mãe, Dona Glória, da Coordenação Nacional do Movimento Familiar Cristão no país inteiro, viajava o país inteiro para se reunir com o Movimento Familiar Cristão, e ia na missa todo domingo, levava a filharada para a missa toda, nós éramos sete filhos homens e ia todo mundo pra missa. Então, avalia-se que o exército não teve uma justificativa para prender o meu pai em vista da atuação dele junto ao movimento de igreja, apesar que outras pessoas não tinham motivo nenhum e foram presas, torturadas e assassinadas. Como aquele padre dominicano que se suicidou na França, o Frei Tito. Quer dizer, não haveria um motivo para isso, mas de fato o que ocorreu é que meu pai foi incluído no processo na Auditoria Militar, teve que responder o processo, foi absolvido no processo, da gráfica clandestina… Mas disso ele não conseguiu se desvencilhar o resto da vida… (choro)

Cristina: Os militares chamaram ele de novo?

Rafael: Não, não, é que ele tenha sido chamado outras vezes não. Mas é porque ele ficava numa tensão danada, nos fins de semana ele achava que ia ser preso. Todo fim de semana ele sumia de casa, passava o sábado e o domingo sumido numa vã esperança que se quisessem prendê-lo não iam achá-lo em casa porque era bobagem, porque se fossem prendê-lo, iam prendê-lo dentro da sala de aula, dando aula na Faculdade, não iam esperar o fim de semana para prender. Mas, ele ficou nessa tensão muitos anos, e o que ocorreu é que neste processo está sendo fundada a Universidade Federal de Juiz de Fora. Na década de 1960, de 1970, está sendo criada a universidade, os institutos tão sendo criados, as faculdades da cidade estão sendo reunidas para se transformarem na UFJF. O meu pai foi um dos primeiros professores da Faculdade de Economia, que ele e o professor Virgílio, cada um dava dez disciplinas para o curso de economia começar, os dois sustentaram nas mãos o curso, com outros professores que eu não saberia citar. Sei do professor Helion, que ele era muito amigo do professor Hélion que já faleceu. Era muito companheiro do professor Hargreaves, que também era professor nessa época, professor Itamar Bonfatti que também era professor nessa época. E ele participou da fundação da Faculdade de Filosofia e Letras, participou dos primeiros movimentos de federalização da economia. Deu aula também nas ciências sociais, era jornalista, deu aula no jornalismo também. Ele, por conta dessa atuação política dele, o seu Riani foi preso e cassado seus direitos políticos, outros companheiros de PTB também foram, mas no caso do meu pai, ele já estava dando aula na universidade, o que fizeram com ele, foi que ele não evoluiu na carreira, ele começou como professor T20 e se aposentou como professor T20. Foi a maior tristeza dele, porque ele considerava que tinha contribuído de uma maneira positiva para a criação dessas unidades da universidade, e foi assim que transcorreu a vida do seu Geraldo, passando muito aperto financeiro para criar toda família e não conseguindo trabalho, porque as portas iam sendo fechadas, ele foi absolvido no processo, mas a articulação por trás do processo pra que ele não progredisse nem profissionalmente, nem financeiramente, foi feita de uma tal maneira que se aposentou como professor iniciante, que é o regime de 20 horas, os professores universitários sabem o que é isso. Mas, pelo menos, inicialmente, é essa atividade do seu Geraldo Pimenta.

Cristina: Então, ele não chegou a ser preso?

Rafael: Não, ele foi chamado junto ao Quartel General Militar junto com a minha mãe, os dois tiveram que prestar depoimento, o general ficou tentando tirar da minha mãe coisas que pudessem incriminar o seu Geraldo, mas eles não tinham conhecimento que algum dia pudesse ter entrado um mimeógrafo, na época era um mimeógrafo a álcool que se tinha em cima da mesa. Não tínhamos notícia disso, a gente circulava por ali tudo, era uma armação para ver se conseguiam prendê-lo.

Cristina: Porque que ele tinha tanto medo de ser preso?

Rafael: Era o medo que qualquer brasileiro tinha de ser preso, ser preso e não voltar pra casa porque a tortura era muito pesada nessa época, a impunidade dos militares era muito grande. A arrogância deles em chegar e prender sem qualquer… sem qualquer aparato que fosse, todos à paisana e a pessoa tava indo ou pra polícia civil ou pra polícia do exército, e o meu pai teve muitos amigos que foram presos, torturados e o próprio seu Riani passou anos na Ilha Grande, como muitas outras pessoas, muitos conhecidos nossos aqui de Juiz de Fora passaram por isso… Outros foram assassinados nas guerrilhas. Então, se sabia o que se esperava se se fosse preso.

Cristina: Você podia falar um pouco agora, da história do Gabriel, da história do seu irmão alguns anos depois.

Rafael: Bom, só ainda um pouquinho, só para fechar essa parte do seu Geraldo. Foi um período em que essas coisas aconteceram, mas foi um período também em que havia uma constante preocupação, um medo constante das represálias que podiam surgir a qualquer instante porque ele estava numa atividade visível, ele não estava em uma atividade clandestina, na atividade clandestina tinha um certo grau de proteção, de defesa, mas a atividade institucional, que ele era professor em vários lugares da cidade, na Faculdade Cândido Tostes, na UFJF, em colégio de segundo grau, até de primeiro grau, ele tava em sala de aula. Então, ele tinha que prestar horário em sala de aula, e essa era uma grande tensão. Mas isso não o intimidou, nem a ele, nem a Dona Glória, (choro) nem aos amigos, esses que eu citei aqui e muitos outros porque eu não me lembro do Movimento Familiar Cristão, então do movimento que o Marcos Pimenta, meu irmão participou da juventude, JEC, Juventude Estudantil Católica. Não intimidou a esse pessoal e eles continuaram a atividade sempre, meu pai e minha mãe nunca pararam a atividade social e política que eles tiveram até o final da vida deles.

Cristina: Então só para concluir o seu pai, que você falou do senhor Itamar Bonfatti e ele esteve aqui com a gente. Ele falou que abrigava muita gente que fazia parte do movimento contra a ditadura, o pessoal do PCdoB, do MR-8, e ele recebia, a casa parecia um albergue. Vocês nesse porão também recebiam pessoas?

Rafael: Não, a gente não recebia no porão não. A gente recebia… Cristina: Não, para dormir que você falou que dormiam e eram abrigadas… Rafael: Não, a gente recebia… A gente dava as nossas camas (choro).

Cristina: Então, vocês também passaram pelo mesmo… As pessoas dormiam, jantavam, sem nome, pessoas fugindo mesmo da ditadura.

Rafael: Não, nessa época, Cristina… (choro). Eu tenho um problema nessa parte lagrimal aqui (risos). Tenho um defeito… Nessa época, todas as pessoas que participavam desses movimentos davam sua contribuição como pudessem, um ia distribuir um panfleto que o outro não podia distribuir. Outro participava (choro) dando um pouco de comida para o outro que não podia comprar (choro). Então tinha muitos amigos presos que a gente ia levar comida para eles (choro), ou seja, apertava aqui, porque lá tava mais apertado ainda… (choro) é assim que é a luta pela democracia em qualquer lugar, em qualquer país. Então, seu Itamar era nosso vizinho, na nossa rua, éramos vizinhos de casa, então a gente ajudava eles e eles ajudavam a gente, uma pessoa ficava lá, buscava comida na minha casa, ou chegavam. Na época da reconstrução da UNE, em 1979, 1977, 1978, 1979, nos Encontros Nacionais dos Estudantes, primeiro, segundo e terceiro ENE, dormiam lá em casa trinta pessoas, quarenta pessoas. Eu lembro que o Gabriel chegou uma noite e a casa tava tomada de gente, não tinha absolutamente nenhum lugar para dormir, tinha gente dormindo dentro do banheiro, e o Gabriel teve que dormir em cima da mesa da copa, que era o último lugar que tinha sobrado, ele foi o último a chegar e era o último lugar que tinha sobrado. E a minha mãe não tinha comida para esse tanto de gente, então, os vizinhos ajudavam, assim como a gente ajudava quando precisava os outros vizinhos (choro), e foi sempre com muita…

Cristina: Solidariedade, né? Você comentou também, antes, que os sete filhos foram criados com os pais atuantes, participativos. Você e o José Pimenta, seu irmão, vocês passaram por umas prisões rápidas, né? Foram presos e liberados, né? Tanto você quanto o Zé Pimenta foram presos algumas vezes…

Rafael: Mas aí já na redemocratização, no movimento pela redemocratização, é outra fase, né? Porque essa fase aí era uma fase mais dura, porque o carro da Polícia Federal ficava na porta da nossa casa e fotografava todo mundo que entrava e saía, era um fusquinha e os caras com umas lentes objetivas, sei lá como chama isso, umas lentes grandes. Eles não faziam o menor esforço para se esconder, eles estavam era registrando quem estava ali mesmo, então, a gente estava em constante tensão.

Cristina: Por isso que seu pai tinha medo de ser preso…

Rafael: Era muito complicado. Era uma época em que o AI-5 determinou que mais de três pessoas reunidas era proibido e elas seriam presas. Era proibida reunião. Então, você imagina como era a reunião com 40, com 50, porque, na verdade, as pessoas iam dormir lá, mas é porque foram fazer a reunião. Então, não era meramente dormir, aproveitavam a hora da refeição e estavam fazendo a reunião que não podiam fazer em outro lugar que a polícia ia lá e ia fechar como aconteceu várias vezes. Mas você está perguntando sobre… Aí, a gente foi entrando, cada um de nós foi entrando. Era a época em que se lia, eu lia todas as linhas do movimento do Pasquim toda semana, eu lia tudo, até hoje, adoro, não consigo viver sem saber das notícias. A gente lia tudo, sabia de tudo, participava de tudo, ia a todas as discussões. Eu era muito pequenininho, mas eu participava das reuniões que meus irmãos faziam, porque as pessoas deixavam eu participar, porque eu era garotinho e eu fui vendo aquilo, fui aprendendo, fui gostando e a gente foi entrando. Todo mundo lá em casa foi entrando na política, quase todo mundo entrou, nem todos tiveram o interesse, mas foram vários que tiveram. O Gabriel contribuiu na reconstrução da UNE, com a eleição do Zé para presidente, do Zé Pimenta, meu irmão, para presidente do DCE daqui da UFJF, o Zé participou da primeira diretoria da UNE reconstruída, em 1979, no congresso de Salvador, cujo prefeito era o Antonio Carlos Magalhães, que cedeu a cidade de Salvador para o encontro, que autorizou. Então, o Zé foi das duas, três primeiras diretorias da UNE, aí eu entrei para o movimento estudantil também. Fui presidente do DCE daqui de Juiz de Fora em 1983, em 1985 eu fui presidente da UEE, fui embora para Belo Horizonte. E nesse período lá, voltando ao que você perguntou, tinha umas prisões, mas não eram prisões, eram detenções, porque eles nos detinham mais para nos atrapalhar, nos incomodar, mas jovem de 19, 20 e 21 não tem medo de nada não (choro). No dia seguinte, estávamos fazendo as mesmas atividades que tínhamos feito nas vésperas. Então, tinham umas prisõesinhas, mas não foi nada como isso que a gente está falando aqui, pelo menos em Juiz de Fora, que é uma cidade mais próxima dos grandes centros, para a atividade que a gente fazia, que era a organização do movimento estudantil popular e a distribuição de panfletos contra a ditadura e tal, a gente não chegou a sofrer nenhuma repressão.

Cristina: Então, a gente podia começar a falar do Gabriel…

Rafael: O que a gente vai dizer do Gabriel?

Cristina: Aí, o seu irmão formou aqui em direito…

Rafael: O Gabriel, então, ele formou em direito aos 22 anos de idade (choro), era um rapaz muito estudioso, muito brilhante durante toda a vida foi sempre dos primeiros alunos…

Cristina: Ele era mais velho do que você?

Rafael: Ele era cinco anos mais velho que eu, o Zé Pimenta era três anos mais velho do que eu, apesar de que não parece, engana muita gente, porque o Zé não tem cabelo branco e os cabelos brancos vieram todos pra mim. Mas o que aconteceu? O Gabriel vinha se destacando desde o ginásio no João XXIII, estudou no João XXIII, primeiro aluno da turma, passou no vestibular em primeiro lugar. Passou no concurso do Banco do Brasil em quarto ou quinto lugar no país inteiro e foi pra Brasília. Não como advogado, como funcionário do Banco do Brasil e lá ele conheceu o pessoal da Comissão Pastoral da Terra da CPT, ligada à Igreja Católica, eles convidaram ele para ser advogado da Comissão Pastoral da Terra em Conceição do Araguaia, e ele topou. Tendo ficado uns dois ou três anos em Brasília, lá pelos 25, 26, ele foi para Conceição do Araguaia, ficou lá um ano e meio, mais ou menos, cerca de um ano, e pediram que ele mudasse para Marabá, porque Marabá tinha Serra Pelada que estava em profunda agitação porque estavam extraindo ouro, e a violência era enorme, a invasão de terra do pobre pelos garimpeiros e por quem queria ganhar dinheiro era muito grande, uma violência enorme. E aí, ele mudou pra lá. Mudou pra lá, ele chegou a morar lá um ano e meio a dois até ele ser assassinado em 29 de julho de 1982, porque ele tinha assumido a defesa dos trabalhadores rurais, dos trabalhadores da construção civil (choro), dos trabalhadores arrumadores de carga no porto. Ele, nesse período de um ano e meio, criou lá três ou quatro sindicatos, que se você for lá em Marabá, você vai ver foto do Gabriel e nome dele em uma porção de coisa na cidade, tal a importância que ele teve para aquela população pobre que nunca teve apoio nenhum, né? A população do país como um todo continua do mesmo jeito, mas, no campo, o abandono das populações é um troço fora do comum. E quase quarenta anos atrás muito pior, né, trinta anos atrás muito pior. Então, ele começou a defender os trabalhadores, e começou a ficar visado pelo sistema de poder lá. Tanto que surgiu uma porção de dúvidas sobre quem tinha sido o mandante do assassinato dele, porque era uma coisa que interessava até ao Curió, ao Curió, que era o comandante de Serra Pelada, nomeado pelo governo militar. Era um major, depois virou coronel, bandoleiro do exército brasileiro, que mora até hoje nessa região. E era um cara muito violento, que inclusive ampliou e institucionalizou a violência, o assassinato, a prisão, tortura. E o Gabriel entrou nessa confusão. Ao escolher entrar no trabalho de defesa dessas populações, ele bateu de frente com o sistema de poder que havia lá. Teve o processo, 180 famílias invadiram uma fazenda que tava praticamente abandonada e os grileiros compraram a terra da fazendeira e conseguiram uma liminar de reintegração de posse para tirar as famílias da fazenda e o Gabriel montou um mandato de segurança que eu tenho a cópia dele, até com a letra dele, comigo (choro). E conseguiu uma liminar suspensiva da liminar de reintegração de posse do tribunal. E quando ia ser julgado o mérito, em agosto, os mandantes articularam que ele não podia chegar ao julgamento, inclusive um dos mandantes virou e falou que ele não podia ir até lá. Outras pessoas ouviram que ele não podia ir ao julgamento, e o assassinaram três semanas antes do julgamento do mandato de segurança. O que não os favoreceu, porque o mandato de segurança foi confirmado na sentença e as famílias moram lá até hoje, de vez em quando nós vamos lá visitar e as pessoas gostam muito quando a gente vai lá.

Cristina: Como que foi o assassinato dele?

Rafael: Como eu te falei, o Gabriel tinha nesse um ano e meio, ele tinha criado três ou quatro sindicatos de trabalhadores e ele montou um PMDB lá, só existia ARENA 1 e 2 lá nesse momento em Marabá. Ele funda o PMDB, convence as pessoas, o que não era fácil, a entrarem na chapa dos vereadores, porque as pessoas morriam de medo de entrarem nas chapas e serem assassinadas. No norte do Brasil isso é super comum. O que você está vendo nas favelas do Rio hoje, a banalidade da morte, isso no norte do Brasil, isso é extremamente normal, corriqueiro. Ele conseguiu, no final das contas, ele conseguiu montar a chapa dos vereadores, acho que podia montar vinte e poucos, ele conseguiu montar um com 16 ou 17. E na noite da convenção do PMDB, que aprovou essa chapa, e se não me engano ia ter um candidato a prefeito também, na festa da comemoração, ele foi assassinado com três tiros pelas costas e os mandantes foram presos no dia seguinte, um, dois dias depois. O executor foi preso um mês e meio depois, ou seja, você tinha clareza sobre o crime como um todo, com trinta dias e a sentença de primeiro grau levou 21 anos para ser feita. Com o envolvimento da pior espécie do judiciário do Pará no crime, ter encoberto um crime que está esclarecido com trinta dias e leva 21 anos para ter uma sentença de primeiro grau? É conivente. Além de que, para espanto de que um dia poder assistir a esse vídeo, a diretora de secretaria do fórum, de onde ficava o processo, era casada com um dos mandantes e era comadre da juíza, que então nós consideramos que ela foi conivente, não, ela agiu no sentido que o processo chegasse ao ponto que não se pudesse por na cadeia os mandantes. O executor foi assassinado com vários tiros menos de um ano depois, para sumir…

Helena: Queima de arquivo, né?

Rafael: Queima de arquivo. E um dos dois mandantes foi assassinado uns dez anos depois com vários tiros na cara. Sobrou que aquele que é irmão do Newton Cardoso, aquele político de Minas Gerais. Quando ele foi preso, agora poucos anos atrás, o crime estava prescrito porque ele tinha atingido a idade de 75 anos e não podia mais ser preso. E esse crime acabou ficando impune. O que nós fizemos foi que fizemos tudo o que havia ao nosso alcance a fazer. Nós entramos com uma ação judicial contra o governo do estado do Pará, por negligência, omissão e conivência, numa ação de indenização contra o governo do estado. Entramos com uma representação contra o judiciário do Pará, a Justiça Estadual do Pará no Conselho Nacional da Justiça, no CNJ, e entramos com uma ação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, contra o governo brasileiro, contra a conivência do poder judiciário brasileiro com essa situação. O processo da OEA segue, o governo do Brasil já foi notificado do processo e esperamos que o governo seja condenado por essa omissão (choro). E o processo na justiça estadual do Pará continua também, está em andamento. A representação dentro do CNJ, por incrível que pareça, foi arquivada, mas os dois processos judiciais continuam em andamento. Quer dizer, o processo judicial na justiça do Pará e da Comissão Interamericana continuam em frente e esperamos que o governo Brasileiro seja condenado.

Helena: É o Estado brasileiro, né?

Rafael: O Estado brasileiro. O governo nesse sentido, não importa a estrutura, é isso mesmo.

Helena: Alguma coisa a mais Cristina?

Cristina: Não, eu acho que, no balanço, assim, desses exemplos todos o que ficou pra você do seu irmão, do seu pai, da sua mãe, que você tava contando pra gente antes… porque tem que ser muito valente, com sete filhos e receber as pessoas todas e abrigar e deixar filho ir pra…

Rafael: É, dona Glória Pimenta (choro), ela está hoje com 90 anos, seu Geraldo faleceu aos 80 anos. A dona Glória formou em Filosofia (choro) com 83 anos (choro) feliz da vida. Então, acho que é esse o exemplo (choro). Eu estou com cinquenta e poucos caminhando. Terminei o mestrado, vou caminhando para o doutorado porque a gente lá acha (choro) que a vida é para isso, é para a gente sempre ir para frente.

Cristina: É luta, né? (palmas). Obrigada, a Comissão agradece.

Rafael: Desculpa a emoção.

Helena: Rafael, muito obrigada pelo seu depoimento, foi muito importante para a gente você vir aqui e a gente sabe que é difícil.