Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora
Depoimento de Maria Andrea Loyola
Entrevistada por Cristina Couto Guerra e Helena da Motta Salles
Juiz de Fora, 05 de dezembro de 2014
Entrevista 022
Transcrito por: Bárbara Rodrigues Nunes
Revisão Final: Ramsés Albertoni (12/11/2016)
Helena: Maria Andrea, em primeiro lugar eu queria muito agradecer o fato de você ter vindo do Rio aqui para prestar esse depoimento, e gostaria que você começasse fazendo um breve relato da sua vida para, em seguida, contar pra gente os fatos acontecidos com você no período do regime militar.
Maria Andrea: Falar da minha vida é um negócio complicado, né. Na minha idade tem muita vida por trás, é difícil resumir. Vou falar, então, bem rapidamente, para me concentrar nessa fase, que eu acho que é a que interessa para vocês, que é a minha fase na universidade. Eu nasci no sul de Minas, em Pouso Alegre, perdi minha mãe com 4 anos de idade. Meu pai era militar e foi transferido para Juiz de Fora. Nós viemos e um ano depois ela morreu aqui e nós nunca mais saímos daqui. Então, eu fiz primário, ginásio e faculdade aqui em Juiz de Fora. É… logo quando eu terminei a faculdade, na época licenciatura era junto com o curso de graduação, né… se você fazia graduação tinha licenciatura naquelas matérias, aí eles separaram o curso. Mas antes de separar eles deram um prazo, assim, para pessoas que tinham feito e deixado a faculdade, voltar e fazer. Eu tinha deixado a faculdade, porque eu fui selecionada numa bolsa para fazer um curso de especialização no Museu Nacional do Rio de Janeiro. E… foi muito engraçado a história dessa bolsa, porque eu fiquei sabendo …os meus avós moravam em Pouso Alegre e eu sempre ia passar natal lá, tinha primos, muitos conhecidos. E dançando com um amigo meu, ele falou que o Museu Nacional estava abrindo um concurso para selecionar alguns bolsistas que ele ia começar um curso especial, de especialização em antropologia. Aí, eu vi naquilo uma oportunidade para ir para o Rio, porque eu queria mesmo era fazer belas-artes, eu tenho ainda muito jeito para desenho e pintura. E… já fiz há pouco tempo uma exposição lá na UERJ e, provavelmente, vou fazer uma aqui no MAMM em 2016. Porque só depois que aposentei e diminuí minhas atividades acadêmicas é que eu pude retomar essa parte. Mas, ai, o curso é… eu não tinha a menor noção do que se tratava, a verdade é essa. O curso constava de uma prova e uma entrevista, e a prova eu me lembro que o tema era assim… a diferença entre duas gerações e eu fiquei pensando em mim própria e na minha mãe e fiz uma prova baseada nisso. E, aí, depois tinha uma entrevista e nessa entrevista eles perguntaram “Conhece o Durkheim? Não. Conhece o Weber? Não.”. E, aí, foram listando um monte de antropólogos e sociólogos e eu não conhecia ninguém. Por que que eu não conhecia? Porque a faculdade aqui era uma faculdade católica, fundada por pessoas católicas e autodidatas. Então, o que a gente estudava em matéria de sociologia era Jacques Maritain, Thomás de Aquino… eram figuras desse tipo. Mas eu fui selecionada, porque eles consideraram o meu trabalho sensível, porque eu tinha sensibilidade sociológica e porque eu era um livro em branco, então, era muito fácil para eles me formarem, uma coisa positiva… isso foi visto como uma coisa positiva para os objetivos do curso. E… passaram só três pessoas e foi um curso excelente, porque começava às oito da manhã, eram assim 5, 6 professores para três alunos e terminava cinco horas da tarde. Tinha uma carga maciça de leitura, foi um curso muito bom.. Então, eu comecei a me interessar por antropologia, não tinha a menor noção do que se tratava, né… Mas aí… estourou a revolução e eu voltei para Juiz de Fora para fazer licenciatura, porque era a última oportunidade que eu tinha para fazer o curso de licenciatura. Então, eu voltei… e nesse meio tempo, em 1964, já tinha começado a repressão. E eu tinha um colega, que era comunista, o Marcos Rubinger e era adorado pelos alunos lá na UFMG, e eu fui escalada para substituí-lo. Foi a primeira aula que eu dei, era um negócio impressionante; eu era jovem, bonita, né…e as galerias tinham portas de vidro assim, ficava cheio de rapazes assistindo minha aula, minhas pernas tremiam assim…E eu ter que substituir um cara que era super adorado, né… E ele falava, ele pregava, enfim, a crítica social dele era muito forte, ele falava abertamente. E… não era o meu caso, eu era uma profissional, eu dava aula de antropologia, o que eu gostava era antropologia e era o que eu lecionava, né?
Helena: Com licença, só um pouquinho, então, do Rio você foi para Belo Horizonte?
Maria Andrea: É, eu vim para cá para fazer licenciatura e fui lecionar em Belo Horizonte. Eu ia de ônibus, eu ia e voltava, né? Porque eu estava fazendo curso aqui e porque também não queria me mudar para Belo Horizonte. E foi aqui, na universidade, que depois eu fui convidada pelo meu professor, meu catedrático, era catedrático de sociologia naquela época, que me achava uma líder natural, me achava maravilhosa etc. e tal… e que passou a cadeira dele para mim. E, aí, depois eu comecei a acumular com a antropologia e neste momento veio o Alexis, de São Paulo, que era um sociólogo. E a gente começou a fazer o maior sucesso na universidade, porque a gente começou a ensinar sociologia e antropologia para os alunos.
Helena: Alexis Stepanenko?
Maria Andrea: É, Alexis Stepanenko. E aqui, dois jovens, na maior animação, então, isso foi provocando muita “ciumera” no pessoal. Até que um dia, eu me lembro até hoje, eu dei uma aula que… uma aula de antropologia, eu adotava um manual de antropologia que era do Kingsley Davis, que falava tudo assim… manual, né… dava um panorama geral da antropologia. E eu… eu, quando dei aula sobre evolução, eu senti que tinham dois alunos, lá, um até hoje eu me lembro o nome… Fernando Rainho, né, e o outro era um padre, que tinha acabado de chegar em Juiz de Fora, padre Cruz, que eu acho que até hoje ele deve dar aula na universidade, porque ele acabou ficando com o meu lugar.
Helena: Ele se aposentou.
Maria Andrea: Sim. Já se aposentou, né. Dei outras aulas, etc… Aí, um belo dia, o Alexis me chamou e disse “Olha aqui, Andrea, a próxima reunião do colegiado, olha o que que eles vão apresentar lá…”. Então, tinha um… eles inventaram um dossiê contra a gente e… não era nem contra a gente, era contra mim, especificamente. E… eles me acusaram primeiro, que eu pregava que o homem vinha do macaco, segundo, que eu pregava o tabu do incesto, tudo que aparecia no livro de antropologia eles descontextualizaram e me acusavam. Terceiro, que eu pregava o infanticídio como forma de controle da natalidade (risos). Quarto, que eu pregava o amor livre, isso eu não sei de onde eles tiraram. E cinco, que eu pregava o tecnicismo. Quer dizer, um samba do crioulo doido total, né… só maluco pra… Enfim, eu não vou usar essas palavras, porque isso está sendo gravado, mas só gente com muito pouco informação pra acreditar num negócio desse, né… Eu só sei que como tinham vários outros professores lá, os outros professores aprovaram. E o negócio era contra mim e o Alexis, ou seja, contra os jovens que estavam ameaçando os outros professores, mas ameaçando coisa nenhuma, estavam ameaçando porque os alunos gostavam das nossas aulas. Eu fui logo paraninfa de uma turma, entendeu?
Helena: E esse dossiê, essas críticas foram levantadas na reunião pelos alunos ou pelos professores?
Maria Andrea: Por professores. E a maioria dos professores… é uma pena a mãe da Heleninha não está viva, porque foi a única professora que ficou do nosso lado.
Helena: Dona Maria do Céu.
Maria Andrea: Dona Maria do Céu. Tinha uma professora, a Celina Viegas, que era professora de antropologia que ficou especialmente contra a gente; a professora de antropologia basicamente e o pessoal que pretendia entrar na sociologia… um deles, o padre Cruz, entendeu? E… esses Rainhos. Os outros professores apenas seguiram o Hargreaves. Eu acho muito estranho porque o irmão do Fernando Rainho, um outro Rainho que estudava lá, depois ele fez uma tese com o Octavio Ianni. Eu encontrei com ele em São Paulo e o Octavio Ianni é totalmente… além de marxista radical, ele era como é que se diz, não tinha religião não, ele era agnóstico. Ele era declaradamente agnóstico. Então, voltando, fizeram esse processo, aí, a gente ficou sabendo, fizemos… uma resposta e aquilo ficou naquela discussão pra lá e pra cá. E… eu não me lembro direito das datas assim das coisas… Mas aí, teve o seguinte, antes disso tudo também… antes de ir pro Rio, não, foi depois que eu voltei, em 1964, eu trabalhei na Industrial Mineira, fazia uma pesquisa sobre operários, foi a primeira pesquisa feita em Minas dentro de uma fábrica, estudando o trabalho operário e depois, aí já tava exilada, aí eu voltei e foi complicado. A primeira vez que eu voltei ao Brasil eu entrevistei os sindicalistas, tudo na clandestinidade, porque a revolução já tava comendo solta. Mas eu consegui, eu escrevi um livro, “Os Sindicatos e o PTB”, a tese foi sobre os operários daqui de Juiz de Fora. E… minha tese de mestrado foi sobre trabalho industrial e minha tese de doutorado foi sobre os operários, e eu analisei o movimentosindical em Minas Gerais, notadamente em Juiz de Fora em relação com o Partido dos Trabalhadores. E pra isso, eu tive que, como é que se diz, talvez eu tenha sido a primeira também a fazer, a escrever alguma coisa sobre a industrialização de Juiz de Fora. E consta nesse livro. Porque, pra fazer esse trabalho, eu tive que estudar a industrialização da cidade porque não tinha nenhuma… nada disponível. Então, eu fui para bibliotecas, pros jornais e descobri coisas interessantíssimas sobre Juiz de Fora.
Cristina: Mas isso que a senhora falou de exílio…
Maria Andrea: Esse exílio isso foi depois. Então…
Cristina: Pois é, acho que podia era voltar e…
Maria Andrea: Eu tô fazendo meio que fora de cronologia.
Cristina: Então, aí a senhora respondeu um processo administrativo aqui na UFJF.
Maria Andrea: É, mais aí eu já estava exilada. Então, quer dizer, eu não sei precisar os dados, mas foi um conjunto de coisas acontecendo. O primeiro conjunto é que antes de 1964, antes d’eu voltar pra Juiz de Fora, quando fui fazer esse curso de especialização no Museu Nacional, eu morei na Federação das Bandeirantes, tinham muitas moças morando lá. Depois, a gente até alugou um apartamento, fizemos uma república em Copacabana, que vivia faltando água lá dentro, e já tinha pessoas dessa época que participavam de alguns movimentos, por exemplo, da POLOP, da A… O pessoal de Belo Horizonte era sobretudo da AP, junto com o Betinho, que era tido como o máximo, o Aldo Rebelo, que era tido também, outro líder do Partido Comunista. Então, eu conheci essas pessoas, e eu tinha… eu nunca pertenci a partido político nenhum, porque eu não tenho temperamento para ser militante. Meu temperamento… quer dizer, eu gosto de militar na universidade, certo, não na política… porque você tem… eu sou muito independente, e num partido você tem que fazer o que a cúpula do partido decide, sem te dar nenhuma explicação; e isso realmente não era comigo. Você até me perguntou sobre minha trajetória política. Se eu tiver que falar sobre isso, eu particularmente, eu tenho uma definição sociológica da política. Então, para mim, mais ou menos tudo é político, o pensamento, o conhecimento, são políticos, mas política formal, essas que vocês tão pensando, eu nunca… de jeito nenhum, tive carreira política. Nunca pertenci ao Partido Comunista, ao contrário, não tinha grande simpatia com o Partido Comunista, porque achava tudo muito autoritário. É… e nem pelos outros partidos, porque eu os achava muito radicais. É… digamos assim… eu era mais aquele intelectual que ia no botequim, entendeu? Que ia no botequim, discutia as teorias e não era propriamente uma pessoa de esquerda. Mas eu sempre tive ideias, como tenho até hoje, que podem ser consideradas de esquerda, você sempre quer lutar pela igualdade, lutar pela liberdade, lutar em favor da emancipação das mulheres. São coisas que hoje são mais ou menos comuns, mas que naquela época eram muito difíceis, entendeu?
Helena: Maria Andrea, só um instantinho, voltando à reunião em que essas acusações contra você foram feitas… só pra gente não perder o fio, o que aconteceu a partir dessa reunião em que houve essas acusações contra você e sua disciplina? E nessa ocasião você já tinha feito essas atividades aí, a sua dissertação de mestrado… alguma pesquisa com operário, isso veio depois?
Maria Andrea: Não. Eu estava fazendo esse trabalho com os operários aqui em Juiz de Fora que eu retomei depois que eu fui pro exílio. Eu fiz as minhas teses, tanto de mestrado como doutorado, eu fiz lá fora, porque eu fui, digamos assim, fui pega no meio do meu mestrado.
Helena: Ah, sim…
Maria Andrea: Mas nesse período, tem outra coisa também, eu agora não tenho uma memória muito clara pra te dizer exatamente as datas. Eu sei que esse processo correu, foi parar na reitoria e… neste meio tempo é… agora nem sei se foi antes ou depois, talvez tenha sido até antes do que eu vou contar agora… Eu e o Alexis , quando o Itamar foi candidato, sob a liderança do Alexis, ele contratou uns caminhões, pegamos nossos alunos e fomos para a periferia fazer pesquisa de opinião, acho que a primeira pesquisa de opinião feita no Brasil. E aí, o Itamar perdia em tudo quanto era lugar. E aí, eu me lembro que um amigo… o Hygino Côrtes, perguntou assim “O que a gente faz, publica ou não publica?”. Ninguém queria publicar, e aí o Hygino falou assim “Publica, porque aí eles vão saber que estão perdendo e a gente vai fazer campanha lá”. E não deu outra, Itamar ganhou. Ganhou e não tinha com quem governar. Tinha um senhor de 70 anos que era diretor de administração, entre o resto a pessoa mais velha era o Itamar que tinha 32 anos. Eu, por exemplo, tinha 26 e assumi a chefia de gabinete e só fiquei sabendo que era a segunda autoridade da cidade, quando declararam o impeachment do Itamar. E o Itamar viajou pra Alemanha e era uma coisa horrorosa porque tinha toda a direita em cima da gente e tinha também os militares, porque a ditadura já estava implantada. Depois de 1968 começou a perseguição e foram pegando aos pouquinhos, até que chegou na junta militar. Porque também, dentro do próprio sistema, as coisas foram mudando, né. Então, eu tinha todas essas coisas, eu, uma mulher jovem, mulher, certo… segunda autoridade da prefeitura municipal, né… fazendo sucesso na política, fazendo sucesso na universidade… isso, realmente, criava problema para as pessoas, né. E… mas foi uma fase muito difícil, eu estou contando aqui hoje assim, mas foi uma fase muito difícil, porque eu fiquei muito estigmatizada. Tinha gente que quando eu passava, atravessava a rua para as filhas não passarem perto de mim, porque eu… imagina, o monstro que eu era. Pregava o tabu de incesto, infanticídio como forma de controle da natalidade, né? E… isso tudo saiu nos jornais, os jornais locais publicaram isso aí, e foi parar até no JB, naquela coluna do JB, foi parar lá também. Porque tem um caso nos Estados Unidos que foi um caso parecido, um cara foi preso por pregar a evolução, que o homem vinha do macaco, né? E… me lembro até que quando eu vinha à cidade, voltava a Juiz de Fora, o único lugar que o pessoal me recebia bem era nos botequins. É… que eu também sempre fui muito boêmia, frequentava muito botequim e isso também era outra coisa, numa cidade que as moças só saiam acompanhadas dos pais, eu e uma amiga tínhamos turma de rapazes que ia pros botequins, entrava no carro de rapazes, coisas assim tidas como de moças largadas, éramos vistas como moças largadas, embora fôssemos de excelente família. Ninguém podia falar mal da família, mas a gente era vista dessa maneira. A gente também não estava nem aí mesmo, era um absurdo, ainda mais meu pai e minha mãe, que não iam pra baile, pra canto nenhum, se eu esperasse eles me levarem, não ia sair de casa. Não podia ter amigo, não podia levar amigo em casa, então, realmente, era uma prisão. Então, teve outra coisa importante também na minha biografia, que não mencionei, que com 12 anos de idade eu fui internada, fui interna do Stella Matutina, que ficava em frente à minha casa. Eu subia subia lá, numa janela do sótão, pra olhar a minha casa… Eu era uma pessoa muito tímida, sabe, com uma auto estima muito baixa, mas, no internato, por incrível que pareça, acabou acontecendo uma coisa positiva pra mim, porque eu descobri minha liderança, as pessoas me adoravam, entendeu? E eu sempre fui assim, muito brincalhona, se você vir meu trabalho artístico, é todo em cima do humor, eu levo a vida, sabe, assim, brincando. Não acho que a vida tenha que se levar muito a sério. Tenho, ao contrário… eu ganhei muita confiança. E eu aprontava no internato. Uma vez, tentaram me expulsar, fizeram um abaixo-assinado que até as irmãs assinaram. Então, eu fiquei muito mais confiante em mim mesma e… quando eu saí de lá ninguém me segurava. Minha família não me segurava mais. Eu tinha 15 anos, e aos 17, na época de faculdade, a gente, enfim… meio que… ganhamos não, forçamos uma liberdade no tempo de faculdade. A gente criou o DA de filosofia, trazíamos artista de fora, a gente vivia aprontando. Até que teve a eleição do Itamar e o Itamar ganhou a eleição e eu fui parar na chefia de seu gabinete. Me lembro que, no primeiro dia, me entregaram um molho de chaves e disseram “Aqui a chave do seu carro e dos carros da prefeitura”, e que eu era responsável por todos os carros da prefeitura, inclusive, era eu que tinha que distribuir entre os vereadores, já imaginou a situação? O impeachment do Itamar, inclusive, foi declarado porque… na minha cabeça você estava lá pra resolver o problema dos pobres, não dos abastados. E quando você subia aquela escada da prefeitura, só tinha pobre dos dois lados e o Itamar não recebia ninguém, só recebia o pessoal endinheirado… e os vereadores tomavam conta da sala o tempo todo, porque achavam que o Itamar tinha que atender à clientela deles. Então, o Itamar não conseguia trabalhar desse jeito. Aí, eu fiz um calendário, calendário não, tem outro nome…
Cristina: Agenda?
Maria Andrea: É, uma agenda, hoje em dia a gente chama de agenda, mas tinha outro nome na época. Segunda-feira, terça, quarta, quinta… então, tinha o horário marcado para o Itamar receber os vereadores. Nossa Senhora, foi um deus nos acuda, os vereadores achavam que eles tinham entrada livre; que podiam chegar a qualquer hora. Aí, a primeira vez que o Itamar viajou resolveram fazer, pedir o impeachment do Itamar. E… naquela época, eu tinha um namorado que vinha do Rio e estava me preparando para sair com ele, quando me chamaram lá na prefeitura. Foi aí que eu fiquei sabendo que eu era a segunda autoridade da cidade. Mas aí, a gente chamou o José Carlos Lery Guimarães, que vocês devem conhecer, que era jornalista, né, e a gente saiu pro ataque, inverteu a situação. Falou, o que eles estavam fazendo aqui, porque a gente estava tentando organizar a prefeitura, pro Itamar poder trabalhar e poder receber as pessoas. Mas de qualquer jeito, eu, nesse período… teve coisas muito interessantes que eu posso ficar horas contando aqui, coisas muito engraçadas, inclusive, e eu descobri que não era minha vocação, entendeu? É… e em parte, porque isso quer dizer, em vez de você atender os pobres, você tinha que atender os ricos para poder atender aos pobres, uma sociedade assim… que passava um pouco por aí. E nesse meio tempo, abriu o mestrado no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Eu me lembro que eu tinha oito pedidos de demissões na prefeitura e não conseguia sair, porque precisava de uma pessoa de confiança e eu era de confiança. E era uma fase muito difícil, foi uma fase muito difícil pro Itamar. Porque tinha gente puxando o tapete dele de tudo quanto é canto. Não era brincadeira. Mas eu acabei saindo e quem entrou no meu lugar foi o Mauro Durante que era meu secretário, meu datilógrafo, não era nem secretário, era datilógrafo, que vocês devem conhecer, que acabou indo com o Itamar até pra Brasília, né, mas que desempenhou muito bem o seu papel. Mas, voltando um pouco à fase que interessa mais a vocês, que é da minha aposentadoria. Eu estava fazendo curso no Museu Nacional, fazendo curso de mestrado em antropologia. A gente, como todo jovem idealista, a gente acreditava que essa cidade ia mudar, que precisava desenvolver o Brasil, que o desenvolvimento ia trazer… ia diminuir a desigualdade, eu acho… que a gente acreditava que era capaz de construir uma sociedade sem classes. Quando o Jango fez aquele comício na praça treze, eu não estava nem no Rio. Mas achei… eu tava convencida que aquilo era necessário para você conseguir mudar o Brasil, do contrário, não mudaria, entendeu? Mas eu nunca na minha vida pensei em comunismo. Me pede uma definição que eu tinha do comunismo naquela época, não podia definir com tanta certeza como posso definir hoje. Mas se me perguntar a minha posição política, sempre foi mais ou menos essa, eu sou socióloga democrata e republicana. Agora, eu simpatizava… aí, teve o seguinte… e isso aí foi importante. Quando eu voltei para o Rio, eu voltei em 1968, teve aquele episódio que deram um aperto fundamental na ditadura, vocês lembram daquilo, né. Foi com… AI-5, dezembro de 68, é… aí começou o AI-5 e aí começou a apertar. E, de repente, assim, os nossos amigos começaram a cair, cair assim… a polícia prendia e levava, né. E a gente não tinha noção de tortura, de prisão, sabe? A gente era bem ingênuo mesmo. A gente acreditava que íamos fazer mudanças sociais importantes sob a nossa vontade. Dizem que as pessoas que dão depoimento reconstroem suas próprias histórias e sempre reconstroem positivamente. Eu acho que eu não estou fazendo isso (risos). Mas eu estou dizendo mais ou menos o que eu achava… vagamente, porque a gente não lembra direito, né. Ao mesmo tempo, eu ia a muitos museus, lia Marx, eu tinha uma cultura política muito… bem razoável. Que, aliás, a universidade naquela época, tirando aqui Juiz de Fora e a faculdade de filosofia, se você fosse lá pra UFRJ, basicamente… o autor que dominava era o Marx, era Lênin, eram os acadêmicos de esquerda. É… então, eu participava dessa cultura, mas, voltando a nosso assunto, aí… as pessoas começaram a cair e, de repente, veio a minha aposentadoria. Quem ficou sabendo foi o Alexis. Ele falou assim “Andrea, escutei na Voz do Brasil que você foi aposentada”, falei “Aposentada?”.
Helena: Pelo 477?
Maria Andrea: Pelo 477. Aposentada? Porque muita gente… eu fui junto com o pessoal da UFMG, os professores. Mas, antes disso, tinham alguns que já tinham sido, o pessoal da USP já tinha sido pego, eles começaram… depois foram ampliando, pessoal da UFRJ, aí pegou Minas, e aqui em Juiz de Fora fui eu.
Helena: Isso foi em 1969?
Maria Andrea: 1969. E aí foi muito engraçado, porque… e eu era muito amiga do Gabeira e o Gabeira também foi pro Rio, éramos vizinhos no Rio. E coincidiu quando eu fui aposentada, o Gabeira tinha participado daquele grupo que raptou o embaixador. Então, aqui em Juiz de Fora tinha um alto-falante que ficava na rua Halfeld e dava notícia o tempo todo. E como eu fui a única professora aposentada aqui da cidade, então, a cidade toda ficou sabendo por conta disso… e eu e o Gabeira éramos vizinhos num prédio no Leblon, na João Lira. E o Gabeira já estava na clandestinidade, já tinha sumido de circulação, mas eu não tinha, até porque eu nem tinha porque ficar na clandestinidade, não era o meu caso, né. Aí, eu levei o maior susto, mais aí eu já estava… Aí o meu professor, nesse ponto eu fui privilegiada entre os exilados, ele me chamou e disse assim “Oh Andrea, você tá chamando muita atenção pro curso. Então, você tem duas opções, você vai…”, tinha uma linha de pesquisa no interior do nordeste, “Vai para o interior do nordeste, ou…”, os quatro melhores alunos tinham uma bolsa da Fundação Ford, porque o curso era financiado pela Fundação Ford, “Ou, então, você pega uma bolsa e você vai para os Estados Unidos”. Eu pensei comigo “Eu, ir pro interior do nordeste? Nem pensar. Morar nos Estados Unidos? Nem pensar”. Naquela época toda a bibliografia do meu curso era em inglês, falava inglês direitinho, lia corretamente, mas morar pro resto da vida nos Estados Unidos, nem pensar. Eu vou para a Europa. Aí, a situação era meio complicada, difícil, mas ele conseguiu. A Fundação Ford disse tudo bem, ele insistiu e eu fui. Eu saí do país em quinze dias. Aí, como bolsista, eu tinha direito a passaporte diplomático e foi aí que eu percebi a minha situação. Tendo direito a passaporte diplomático eu fui lá no Itamaraty tirar o passaporte. O passaporte foi negado, e o cara falou comigo de uma maneira grosseira e acusativa. Eles já sabiam que eu estava aposentada. Foi uma coisa que eu saí de lá com o rabo entre as pernas. Isso em 1969. Mas aí, tinha uma pessoa que conhecia alguém dentro do judiciário, onde emitia passaporte, que tirava ficha… porque eu já estava fichada, embora eu também não saiba até hoje porque fui fichada. Quando eu etava aqui na prefeitura, eu notava que tinha um carro preto que de vez em quando me seguia, parava em frente à minha porta, ficava… sabe? Que era gente do exército que já estava meio de olho. E aí, com isso eu consegui passaporte e com quinze dias eu etava fora do Brasil. Para sair da beira da praia para um país, que eu me lembro que eu olhei de cima, aquilo tudo preto, tudo escuro, num inverno que era o mais forte desde 1930.
Cristina: Na França, né?
Maria Andrea: Na França. Sem dinheiro nenhum. Ficava num colchão no chão. Mas teve dois fatos curiosos. Eu já estava aposentada e pouco antes de viajar, quando me chamaram na universidade, para depor, e esse processo eu não tenho acesso e gostaria de ter.
Helena: Foi chamada aqui em Juiz de Fora?
Maria Andrea: É, em Juiz de Fora, pela universidade. Aí, tinham três professores, me lembro que um da medicina, eles começaram a me interrogar. E teve um professor que perguntou assim pra mim “O incesto é um tabu? O que que é isso? O incesto é um tabu?”. E tudo… é por isso que eles tem o processo, foi tudo registrado, datilografado. Fizeram perguntas absurdas, entendeu? Depois, o pessoal da própria universidade disse que eu fiquei com fama, de que eu não neguei nada, que eu assumi tudo, sabe? Mas não tinha como não assumir um negócio desse. Que era uma coisa que eu acreditava, não que eu pregava. Não no infanticídio como forma de controle da natalidade, mas que algumas tribos faziam isso. E que o incesto era um tabu, né. E que a teoria do evolucionismo também existia, com provas e tudo. Mas eu sei que eu fui, eu me lembro direitinho da minha última declaração. Que eu sentia muito orgulho de ser aposentada de uma universidade que perdia tempo com um inquérito daquele tipo. E nesse meio tempo, no Rio, o que caía de gente… eu fazia uma análise de grupo, mas eu não podia ir na análise de grupo porque eu não podia falar. Inclusive, eu já estava de passagem comprada. Um dos chefes da POLOP, aqui no Brasil, ele fugiu da prisão por corda. O coronel França que era o chefe lá da polícia, do quartel onde ele estava preso, da polícia civil, que era o chefe, ele pediu demissão por causa dessa fuga. Foi ele e também um outro operário que fugiu. E às seis horas da manhã, bate na minha casa. Eu pensei “Então agora quem vai cair sou eu, chegou a minha vez, seis horas da manhã, tem um homem aí”. O homem era ele, tava com a mão toda ferida. Falei “Meu deus do céu, o que que você está fazendo aqui fora?”, “Eu não podia ir para casa de ninguém, tinha que ser de uma pessoa que realmente estava fora, de ninguém conhecido”. E o trabalho que eu tive para articular a saída dele, levar ele pra um… ele foi para um consulado que eu tinha um amigo… da Colômbia. Que era colombiano. Depois ele acabou no México. Tive que levá-lo para a casa de amigos também, gente que não tinha nada a ver com isso. E ficar neutralizando, certo? Porque a coisa estava preta.
Cristina: Então, a sua casa funcionou como um aparelho? Você acolhia outras pessoas?
Maria Andrea: Não, minha casa não era um aparelho. Não tinha isso. Minha casa era como outra qualquer. Esse rapaz foi para lá, exatamente porque ele não podia ir para os aparelhos porque se fosse pros aparelhos ele ia… as pessoas que estavam sendo torturadas iam falar, entendeu?
Cristina: Mas você tinha contato com as pessoas que estavam sendo torturadas…
Maria Andrea: Não, eu tinha contato com algumas pessoas que eu te disse que moraram comigo uma época, né. Mas, também, não tinha ninguém assim, sabe, que eles falam, não tinha ninguém muito envolvido. Era um bando de jovens idealistas…
Cristina: Você lembra o nome de quem morava com você? Quem eram as pessoas?
Maria Andrea: Eu me lembro vagamente, faz tanto tempo isso, entendeu? Eu me lembro o nome desse senhor, por exemplo, porque ele… Nós ficamos meio que amigos. A gente escutava música na casa dele, ele era uma pessoa muito culta. Mas eu não participava de nenhuma… e a gente nem conversava sobre política. E ele foi parar na minha casa exatamente porque eu não tinha nenhum envolvimento. E eu tive que fazer uma rede com pessoas que também não tinham envolvimento, que era para ninguém dedurar ninguém.
Helena: Maria Andrea, só um minutinho… nesse momento, só para entender a questão da universidade, quando você veio para cá, que respondeu esse inquérito com esses três professores e tal, que você terminou desse jeito aí que você relatou. Isso daí está relacionado diretamente com aquela reunião lá atrás em que você sofreu aquelas acusações? Foi uma sequência… Aquelas acusações feitas pelo colegiado, depois aquilo foi para a universidade e virou um inquérito. Então, isso foi uma sequência de acontecimentos, até culminar com…
Maria Andrea: Isso. Agora, não posso te dizer, entendeu, que foi isto que fez com que eu fosse aposentada. Eu acho que isso contribuiu de alguma maneira. E tinha gente nitidamente que não gostava de mim, que achava que eu era, sabe, que eu estava aprontando demais pro padrão cultural da época, da moral cultural da época, entendeu?
Helena: Mas quando você foi aposentada, só para entender, essa confusão toda, foi aqui na UFJF? Mas quando você foi aposentada pelo decreto 477, você já não era professora aqui?
Maria Andrea: Não, eu era professora licenciada, eu estava fazendo meu mestrado no Rio.
Helena: Ah, foi aposentada da UFJF? Estava no Rio, mas era vinculada à UFJF?
Maria Andrea: Fui aposentada da UFJF, exatamente. Estava fazendo mestrado, mas era vinculada à UFJF. E foi daqui que eu fui aposentada. Já tava aposentada quando eu tive que responder, digamos, depor nessa sessão desse inquérito. Porque o outro está à disposição. Quando vocês quiserem… o Alexis conseguiu reunir toda a documentação dessa…
Cristina: Mas existe também um processo na auditoria militar, ou não existe?
Maria Andrea: Não sei. O meu pai que era general, na época, para você ter ideia, ele tentou saber, mas não conseguiu.
Helena: Nem ele conseguiu?
Maria Andrea: Nem ele conseguiu. E por que eu fui de fato aposentada, eu não sei até hoje. Eu sei que esse processo deve ter contribuído, e que algumas pessoas, daqui de Juiz de Fora, estavam a fim de alguma maneira de se livrar de mim… Contribuiu, entendeu? Porque tinha muita denúncia. E claro que isso casou com… Porque boato cresce, tem gente daqui de Juiz de Fora, gente boa, que acha que eu sou comunista até hoje. Então, é difícil dizer, porque as pessoas subversivas, o que é subversiva? Não se sabe até hoje. Tem vários níveis de subversivos. Não se sabe o que era, se era comunista…
Cristina: Então, desde a época do Itamar a senhora era uma pessoa discriminada em Juiz de Fora? Sofreu uma discriminação… Um preconceito…
Maria Andrea: É, discriminada, assim… discriminada em termos, porque ao mesmo tempo eu estava no poder aqui, certo? Mas… discriminada pelo pessoal da população, assim, sabe?
Cristina: Mesmo tendo um pai general?
Maria Andrea: Mesmo tendo um pai general. E eu estava até dizendo que quando eu vinha a Juiz de Fora, o pessoal que me recebia bem era o pessoal dos botequins. O Damásio, aquele pianista, eu entrava e logo ele começava a tocar a minha música predileta, entendeu? Porque o resto da cidade, assim, comum da cidade, me hostilizava. Porque eles fizeram muita publicidade. Esses alto-falantes da rua Halfeld não paravam de tocar, falar sobre isso. Era um grande assunto, entendeu?
Helena: E quando saiu a aposentadoria, pelo decreto 477, foi uma coisa sumária, não tinha nenhuma explicação?
Maria Andrea: Nenhuma, tudo sumário. Aliás, todos os processos foram sumários. Em algum ou em nenhum lugar deve existir isso. Por que me aposentaram? Acho que quando alguém conseguir chegar no 477 vai conseguir ter acesso a isso. Porque não pode ter sido só por esse processo daqui da universidade. O rapaz que me entrevistou para fazer esse número especial da revista da universidade, ele insistiu em dizer que eu fui aposentada por isso. E eu falei “Não é verdade, quem fez esse processo não foram os militares, foram os meus colegas de universidade”. Os militares podem ter se aproveitado disso, mas a gente não sabe. E eu tanto insisti e insisti que ele acabou, certo… falando, enfim, parando de culpar os militares por isso.
Helena: Entendi. Quem era o reitor na época, você se lembra?
Maria Andrea: Era… Agora você me pegou… Não era o Gilson. Era depois do Gilson Salomão ou antes. É só ver lá em 1969.
Helena: O ano é certo?
Maria Andrea: É, 1969. Porque eu fui aposentada em setembro de 1969.
Helena: Sim. E aí você foi para a França e por lá ficou quanto tempo?
Maria Andrea: Pois é. Aí eu cheguei na França, e foi também uma coisa difícil, porque eu não conhecia ninguém. Cheguei em pleno inverno. Mas aí eu tinha um namorado no Rio que era amigo da Aspásia e do Sérgio Camargo, vocês devem saber quem são. Então, eu levei uma carta de apresentação e fiquei muito amiga da Aspásia. Inclusive, ela estava se separando do Sérgio e nós alugamos um apartamento juntas. E tinha um primo meu que era empresário, cheio da grana etc. e tal… e estava lá em Paris nesse momento… Foi até fiador desse apartamento. Mas a gente não tinha dinheiro para mobiliar o apartamento. Então, era colchão no chão, era um rez-de-chaussée, que era o mais barato. A gente não via o dia, nem a diferença do dia para a noite. A gente trabalhava até meio dia, trocava o dia pela noite, porque… era tudo… Acordava como se estivesse anoitecendo. Foi uma fase difícil, mas, por outro lado, eu acho que acabou sendo extremamente positivo. Por várias razões… É… E foi aí que o Alain Touraine me aceitou, apesar de meio fora das normas, porque os franceses deram muito apoio aos exilados nessa época. Me aceitou para fazer o doutorado com ele na École des Hautes Études. Ele tinha muito interesse em América Latina. E foi aí que eu mandei vir aquele meu material todo sobre operários, que deu minha tese de doutorado… Já tinha feito a tese de mestrado com uma parte sobre a industrialização e o trabalho operário e fiz o doutourado com a parte política… que deu origem ao livro “Os Sindicatos e o PTB”, que eu não sei se vocês conhecem… E que na introdução eu tive que fazer um estudo sobre a industrialização de Juiz de Fora, em Minas e em Juiz de Fora. E que eu mesma fiquei conhecendo a história de Juiz de Fora, para você ver. Na biblioteca daqui tinha produção de matemática, de biologia, produção erudita sobre a cidade. Tinha cinco teatros, né. A primeira usina de eletricidade que aconteceu no Brasil foi feita aqui em Juiz de Fora. Eu peguei correspondência dos Mascarenhas, por exemplo, do pessoal, era tudo diretamente com a Inglaterra, publicava em inglês. E não é a toa que Juiz de Fora ficou conhecida como a Manchester Mineira, né. Porque era inspirada na cidade Manchester da Inglaterra. Tudo aquilo com tijolinhos, que foi uma cidade muito interessante. Depois, com Belo Horizonte, começou a… O investimento passou todo para Belo Horizonte e começou a decadência. Porque a União Indústria ela vinha até Juiz de Fora. Era uma cidade extremamente importante culturalmente, industrialmente… Geralmente andam juntas, né. Depois, na França, eu comecei a conhecer os meus colegas exilados. E vi também que, na esquerda, se tinha muita diferença. O pessoal de 1964, o pessoal de 1965, tinha os radicais de esquerda, dos movimentos, tinha os menos radicais, entendeu? E as reuniões lá aconteciam na casa da Violeta Arraes, que era casada com um francês. Tinha uma casa grande, lá… Então, a esquerda se reunia lá. E… a tortura, eu fiquei sabendo pelo pessoal que chegava lá e contava. Era uma coisa horrível. Eu tenho um amigo, que a gente… o Sartre resolveu fazer uma homenagem pro Marighella, quando o Marighella morreu. Tinham alguns que davam apoio direto, o Sartre, o Yves Montand, o Theodorakis, Costa-Gavras… eram pessoas que faziam parte de um grupo de esquerda da França, eram mais artistas do que intelectuais. Artistas de cinema e artistas plásticos. Então, eles resolveram… tem um lugar na França, não sei se vocês conhecem, que chama Mutualité, que era um prédio exclusivo para fazer manifestações. Agora, já mudou, manifestação política de tudo quanto é jeito. Uma das primeiras coisas que eu estranhei na França foi ver, na televisão, os comunistas discutindo, todo mundo… aquela liberdade política que a gente não tinha aqui. Então, um amigo meu ficou encarregado pra essa homenagem de traduzir o depoimento dos presos políticos que tinham chegado na França. Ele vomitava, vomitava… de ver o que as pessoas passaram e a gente que estava lá via do que escapou, né. Porque eu tenho plena consciência que eu escapei de sorte, por pouco. Porque eu já estava numa ficha, para você ver. E a ditadura foi também se modernizando, foram centralizando as informações.
Cristina: Você, então, nunca foi presa aqui no Brasil?
Maria Andrea: Não, nunca fui presa, graças a deus, nunca fui torturada. E saí logo, depois que eu fui aposentada, eu saí. Até porque, as pessoas que eram aposentadas começavam a ser presas, né.
Helena: E assim mesmo conseguiu sair por esse expediente lá no Itamarati, do contrário não teria conseguido…
Maria Andrea: É, senão eu não teria conseguido sair. Mas não foi do Itamarati, ao contrário, como eu disse, o Itamarati negou meu passaporte.
Helena: E aí você fez o seu doutorado lá com o Alain Touraine e depois continuou lá na França…
Maria Andrea: É, eu continuei, nessa primeira etapa, 4 anos. Depois eu voltei para fazer, porque tinha esgotado o prazo pra eu terminar o mestrado, porque eu não tinha terminado. E eu vim para colher material. Consegui entrar, porque eu… tinha que depor na polícia, tinha escrito no meu passaporte que eu só podia entrar e sair com ordem da justiça. E consegui ficar aqui sem ser incomodada, e como a minha tese era sobre classe operária, eu fiz… o meu orientador era o Leôncio Martins Rodrigues, de São Paulo. Então, eu fiquei esse tempo em São Paulo e foi quando eu conheci esse pessoal do CEBRAP lá, já tinham aberto o CEBRAP. Fernando Henrique já tinha voltado do exílio, já estava lá. E aí eu voltei para a França e fiquei mais um ano, defendi minha tese de doutorado. E aí foi que eu me casei e depois voltei pro Brasil já com o meu marido. E aqui chegando, eu ainda estava… Eu só fui liberada depois da anistia, né. Não podia trabalhar, como é que se diz, em universidade pública, mas a PUC estava recrutando, a PUC, muito inteligentemente, estava recrutando pessoal. Eu tive o Florestan Fernandes como colega, o Octavio Ianni, o Bolivar Lamounier, o Wilmar Farias… e… só podia trabalhar na PUC e no CEBRAP, o que me permitiu também trabalhar com o Fernando Henrique, com o Weffort, com todos esses intelectuais de esquerda da época. Chico de Oliveira… Eu participei da fundação do PT, embora não tenha feito parte do PT, enfim, formalmente. Também acompanhei, tudo da mesma época, a formação do PSDB, primeiro foi o PMDB, o PSDB foi uma dissidência depois, né. Toda aquela movimentação das Diretas Já foi um período muito interessante no Brasil e eu acompanhei todos aqueles movimentos. E… o exílio para mim foi uma coisa muito dolorosa no começo, entendeu? Uma coisa que realmente me separou da minha família, mudou o curso da minha história, não sei se pra pior ou pra melhor. Mas teve, por um lado, umas coisas positivas. Eu não virei artista, como eu queria, mas eu virei uma socióloga com uma belíssima formação, porque na França eu segui o seminário dos sociólogos, filósofos e outros intelectuais mais importantes, tipo… Alain Touraine, o Bourdieu, o Lévi Strauss, Foucault… nem me lembro o nome de todos. E por outro lado, eu estava no centro do mundo, nas férias dava para viajar, mochila nas costas e ia para tudo quanto é lugar. Então, foi assim uma coisa muito rica. Eu conheci pessoas muito importantes também, culturalmente, profissionalmente, politicamente importantes do Brasil, que depois voltaram e continuaram atuando aqui. Mas a minha carreira não era política, eu sempre soube disso. Eu nunca quis me candidatar, coisa nenhuma, sei lá, eu fiz aquilo porque eu tinha um idealismo, acreditava que a gente realmente ia construir uma sociedade melhor, uma sociedade sem classes e que para isso precisava desenvolver… toda aquela historia. E é por isso que eu nunca procurei ser ressarcida pela minha participação. Porque eu achava que, de certa forma, era comercializar o meu ideal. E eu fiz aquilo por ideal, porque se eu tivesse processo dentro do exército, que dissesse que fiz isso, isso aquilo… Você não sabe porque, não consegue se defender, eu me encaixava muito bem na categoria subversiva.
Helena: Depois desse período na França, foram quatro anos, depois você voltou, ficou mais um ano lá e depois voltou. Aí você não voltou a morar na França não, continuou aqui no Brasil…
Maria Andrea: Não, voltei. Eu passo todo ano na França. Até hoje eu tenho convênios de cooperação com o pessoal, com os professores franceses. Eu passei dois anos depois trabalhando com Pierre Bourdieu e, depois, já morei dois anos direto na França. E, atualmente, nós temos essa amiga minha que esta aí, atualmente ela é coordenadora, antigamente era eu, que nós temos convênio de pesquisa e a gente vai todo ano, passa dois meses lá, o pessoal vem pra cá. A relação com a França ficou forte e permanente. Eu até adquiri a nacionalidade francesa, por causa do casamento.
Helena: Agora, do ponto de vista de perseguição, você não voltou a ter problemas assim… algum tipo de discriminação ou perseguição… Na vida profissional…
Maria Andrea: Não, aqui no Brasil tinha, né. Mas eu estava no meio dos perseguidos, se você quiser, porque eu estava no meio dos perseguidos. Eu só podia trabalhar na PUC e no CEBRAP, e lá todo mundo era perseguido. Então, eu não tive esse problema, eu tive aqui em Juiz de Fora, antes d’eu sair daqui.
Helena: Então quer dizer que, depois, aí, com a redemocratização…
Maria Andrea: Não, não tive problema nenhum.
Cristina: Mas o seu pai como general, não sofreu nenhum tipo de problema?
Maria Andrea: Não, ele sofreu muito, ele sofreu pessoalmente, por causa da minha situação. Porque ele apoiou a revolução, todo mundo apoiava, né… Era chamada de revolução entre aspas. Depois que ele começou, até por minha causa, quando ele viu que eu fui aposentada, que eu fui perseguida e ele sequer… porque ele me conhecia, sabia que eu não era uma pessoa… eu não etava clandestina, não estava aprontando nada demais. E ele não conseguiu saber coisa nenhuma. Então, eu posso dizer o seguinte, eu sei que eu tive muita sorte, mais um pouquinho eu talvez estivesse no meio do pessoal, talvez não tivesse nem sobrevivido. Porque as pessoas morriam, né. Não era brincadeira aquele negócio. As pessoas chegavam lá contando… Deus me livre, de arrepiar o cabelo!
Helena: Mas o seu pai, diretamente, não teve nenhum problema de ser perseguido…
Maria Andrea: Não, não, e ele se afastou. Ele ficou tão desiludido que ele se afastou. Mas ele não teve problema não. Minha família não foi perseguida por causa disso. Não, o pessoal ficou mal, entendeu? Inclusive, aqui em Juiz de Fora… aqui em Juiz de Fora, vocês sabem como é… um dia, alguém falou “Ah, o Loyola tá fazendo passaporte pra filha fugir pra França”. Aí, na cidade onde ia tinha o comentário, sabe? Filha de comunista, não sei mais o que…
Cristina: Só para tirar uma única dúvida. Você voltou para Juiz de Fora em 1964. No dia do golpe, onde é que você estava?
Maria Andrea: Estava no Rio.
Cristina: É, naquela praça? Você foi?
Maria Andrea: Não, não… de jeito nenhum.
Cristina: Então, não tinha nenhum envolvimento.
Maria Andrea: Não, não tinha não. Eu fui na passeata dos Cem Mil, dos Cem Mil eu fui, claro que fui. Depois eu voltei e depois saí daqui de Juiz de Fora, né… Fui fazer esse mestrado no Rio, fui aposentada lá. Isso me levou para uma vida fora de Juiz de Fora. Mas, quando o Itamar foi… quando ele assumiu o lugar do Collor… ele me chamou novamente para Brasília… Aí eu fui presidente da CAPES, depois o Weffort queria que eu continuasse com ele no Ministério da Cultura, mas realmente não é a minha, entendeu? Poder é um negócio maravilhoso e é maravilhoso, sobretudo, porque como dizia Weber, você olha para o topo das árvores. Você vê o país, consegue ver o conjunto do país e consegue fazer coisas que sabe que os seus atos têm consequências, têm repercussão. Isso é muito legal. Mas nem todo mundo faz isso, é muito difícil fazer isso, porque as pessoas que estão lá, geralmente, têm outros interesses, entendeu? Então…
Helena: Maria Andrea, tem mais alguma coisa que você gostaria de acrescentar… De lembrar… Alguma coisa que você queria lembrar agora no final…
Maria Andrea: Que eu me lembre, assim, não. Eu não sei assim, porque é muita coisa. Pra eu te dizer, assim… é pouco tempo.
Helena: Não, mas foi um depoimento excelente.
Cristina: Tem muita gente hoje, pedindo a volta do regime militar. Você, como professora, como estudiosa, que sofreu no regime… O que você poderia dizer…
Maria Andrea: Eu acho isso um horror. Não só porque eu sofri, mas a ditadura foi uma coisa horrorosa. Eu acho que a democracia não tem preço, mesmo que funcione mal, é melhor a democracia do que a ditadura. A ditadura é um horror.
Helena: Quem sofreu na pele sabe disso…
Maria Andrea: É, mas não é só por isso… Eu sempre achei que a ditadura sempre foi um péssimo regime.
Cristina: Quem tá pedindo não tem a consciência do que é uma ditadura…
Maria Andrea: Não, não tem. E é um movimento engraçado, porque foi meio parecido com 1964, né. Começou com aquela turma de famílias, de propriedade, não sei mais o que… Aquelas marchas, daquelas mulheres com terço, não sei mais o que… E de um lado, o pessoal lá… Os PTBistas, Jango, aquela turma toda querendo fazer reformas. E a desculpa do comunismo, que o Brasil ia se tornar um país comunista… Gente, se reunir todos que foram torturados, todos que eles mataram… Não tinha a menor condição. Esse pessoal não tinha a menor condição de… de tomar o poder do Brasil, com a força política que esse pessoal da direita tinha e tem até hoje. Você pega hoje, aqui no Brasil, os bancos tem monopólio, capitalismo tá aí bem instalado. Não vai sair. Só maluco para acreditar que pode romper isso de alguma maneira. Você pode resistir, né. E mesmo quando eu cheguei na França, a esquerda não é uma coisa homogênea. Tinha gente de um radicalismo que eu falei assim “Se esse pessoal tomar o poder no Brasil, nós estamos fritos”. Tinha uma turma que diz que… Sartre, por exemplo, não podia falar nessa homenagem se não falasse do imperialismo. Você imagina, o pessoal queria mandar no Sartre! O Sartre oferecendo pra falar contra a ditadura no Brasil… Então, tem muita maluquice, entendeu? E isso aí foi a direita, foram os militares que usaram isso pra justificar. E, como sempre, tem a cúpula esperta lá em cima e tem os cachorros bravos, a matilha, que o pessoal põe na rua pra fazer o trabalho sujo. Que era o pessoal do exército, que torturava, que fazia… E o pessoal acreditava piamente. E a gente sabe hoje, né. Por exemplo, o Rio Centro foi uma coisa montada. E esse pessoal montava pra poder colocar a culpa nesse pessoal de esquerda.
Helena: Foi acidente de trabalho, né.
Maria Andrea: É, acidente de trabalho. Isso é coisa da direitona, mesmo. Tem ditadura de esquerda também. Mas eu acho que… eu acho que isso não volta, posso estar sendo muito otimista, sabe? Mas é muito difícil, você chega no Brasil hoje e querer propor uma ditadura. Eu acho que nem o impeachment da Dilma, que estão querendo propor, passa, entendeu?
Helena: Bom, acho que é isso. Mais uma vez muito obrigada por sua disponibilidade de vir aqui… Nós agradecemos muito. É importantíssimo pro nosso trabalho.
Maria Andrea: O prazer foi meu. E depois se vocês quiserem, eu posso dar acesso a vocês a esses documentos. E eu vou insistir porque eu acho que é muito importante, porque é muito rico. Pode até conversar com a Heleninha (Helena Meirelles), ela sabe. Como o Alexis juntou tudo, eu acho que as informações estão recolhidas, aproveitar que ainda tem gente viva, que pode ser entrevistada. Fazer um livro ou uma tese, alguma coisa que deixe registrado. Porque realmente é inacreditável o que fizeram comigo aqui, dentro desta universidade, naquela época. É inacreditável!
Helena: Nós vamos tentar… recuperar esses documentos.
Maria Andrea: E não é por mim não, porque eu acho que o meu nome… Podia ser qualquer uma pessoa. É a história… a história que é incrível.
Cristina: Para que não aconteça de novo, né…
Maria Andrea: Eu acho muito difícil acontecer de novo…
Cristina: Não, mas é por que… Tem que ser mostrado.
Maria Andrea: É… e, depois, eu queria escutar um pouco sobre o trabalho de vocês, o que pretendem fazer…
Helena: Então, a gente termina aqui a gravação e conversa um pouquinho.
PAUSA – Maria Andrea pede para explicar melhor alguns pontos que não ficaram claros e a entrevista é finalizada.
Helena: Maria Andrea, você podia explicar um pouquinho melhor a questão do seu retorno, quando você cumpriu o doutorado na França. Essa história do doutorado com o mestrado. Depois, explicar, também, como foi a sua vida acadêmica, sua vida profissional depois que você retorna, depois do exílio.
Maria Andrea: É, eu acho que essa parte ficou meio confusa mesmo. Então, é o seguinte… Eu saí de Juiz de Fora pela primeira vez pra fazer esse curso de especialização no Museu Nacional. Terminando o curso, eu voltei para Juiz de Fora, coincidiu… Não, primeiro eu fiz esse curso de especialização, depois eu fiz outro curso em arqueologia. E, em 1964, coincidentemente com o golpe militar, eu voltei para Juiz de fora, porque era o último ano que você podia fazer licenciatura separada, depois juntaram. Então, eu vim pra cá, e foi aí que eu comecei a trabalhar na universidade, e eu trabalhava na universidade aqui e trabalhava na UFMG, dando aula de antropologia. Depois, aí, eu assumi a prefeitura, teve todo esse episódio político aí, minha participação na prefeitura. Quando abriu o mestrado em antropologia, no Museu Nacional, porque antes foi especialização. Quando abriu o mestrado, aí eu fui pro Rio, pedi licença para a universidade, saí com licença, com vencimentos. Fui para o Rio, fazer mestrado. E foi lá que eu fui aposentada, nesse meio tempo. Aí que eu voltei pra aqui, e o inquérito que a gente tinha sofrido já estava na reitoria. Aí, depois disso, eu já tinha feito os créditos do mestrado, quando eu fui aposentada, eu já tinha feito os créditos do mestrado, mas não tinha feito a tese, estava começando a tese. Aí, eu fui para a França, fiz minha tese de doutorado sem terminar o mestrado. Voltei para o Brasil, no final de 1972. Vim defender o mestrado e coletar material para o doutorado. Voltei para a França. Quando eu voltei da França, já de volta do exílio, eu trabalhei na PUC e no CEBRAP, em São Paulo, durante muito tempo. Depois trabalhei também na UNICAMP, ajudando a fundar o núcleo de estudos de população da UNICAMP. Aí, depois de ter morado um período na França, foi esse período que eu trabalhei com o Bourdieu, fiquei dois anos lá. Aí eles me ofereceram para ir pro Rio, trabalhar na UERJ, para fundar… fui convidada por um sociólogo também, que era ex-aluno do Weffort, um gaúcho, pra fundar o Instituto de Medicina Social, e o que mais me interessou, que eu achei estimulante, foi fundar uma disciplina. Coisa que até hoje a gente fica tentando fundar e não consegue, que é a saúde coletiva. E aí eu fiquei trabalhando na UERJ até a minha aposentadoria compulsória, e lá fui diretora do Instituto de Medicina Social e fui também pró-reitora… sub-reitora de pós-graduação e pesquisa. Isso depois de já ter… neste meio tempo, dessas duas coisas, eu estive em Brasília presidindo a CAPES no governo Itamar.
Helena: E depois veio a se aposentar na UERJ?
Maria Andrea: Depois vim me aposentar no Rio, na UERJ. E continuo na UERJ como professora emérita.
Helena: Ah sim, aposentada, mas trabalhando?
Maria Andrea: É, trabalhando ainda, sobretudo com esses convênios com a França.
Helena: Tá ótimo. Muito obrigada, agora ficou mais claro mesmo.