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José Luiz Guedes e Nair Guedes

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimentos de José Luiz Guedes e Nair Guedes

Entrevistados por Comitê pela Memória, Verdade e Justiça Juiz de Fora

Transcrito por: Bárbara Rodrigues Nunes

Revisão Final: Ramsés Albertoni (25/03/2017)

 

José: Eu sou José Luiz Moreira Guedes, tenho quase 70 anos… Vou fazer dia 10 de março, no próximo ano. Vivi em função da luta conta o autoritarismo, pela liberdade e, em decorrência dessa luta, tenho questões a levantar para a Comissão da Verdade.

Nair: Eu sou Nair Barbosa Guedes, tenho 66 anos, sou natural de Araguari no triângulo mineiro. Desde muito cedo eu tive a oportunidade de me preocupar com meu semelhante… através da igreja católica, de onde eu venho. E a partir daí, então, eu fui me engajando na Juventude Estudantil Católica, Juventude Universitária Católica, depois Ação Popular, PCdoB… E estou aqui para participar e contribuir com a Comissão da Verdade.

José: Bem, a nossa luta política, ela se inicia antes de 1964. E por isso… eu faço uma referência a 1964 como uma muralha se interpôs a um processo político que vem desde o final da década de 1950… Processo político do qual participei de forma consciente… a partir de 1958, final do secundário. Estudei na Academia de Comércio… E os episódios dessa época não têm uma relevância ao contexto atual, porque o que marca é isso… 1964 aparece como uma muralha, impedindo a sociedade brasileira, a juventude de alcançar seus ideais, a sua realização enquanto juventude, enquanto sociedade. E essa muralha, ela se manifestou para nós com toda a sua crueza desde o primeiro momento. Eu já era estudante de medicina, em Belo Horizonte. Para aqui voltei para contribuir com vários perseguidos que não tinham alternativas de permanência na cidade… Um deles foi o Arnaldo Pena, que foi presidente do Diretório Central dos Estudantes, era presidente nesse momento… natural de Lafaiete. E assim estava na época, protegido no Seminário de Santo Antônio… Mas, na realidade, vivia num cerco policial, e nós tivemos que montar toda uma estratégia para que essas pessoas… Eu tô dando o Arnaldo como exemplo, muito seguramente o Arnaldo terá dado entrevista lá em Lafaiete, onde ele vive, sobre essas questões, sobre essa vivência… E assim foi durante um largo período… Eu pude ver o sofrimento, a perseguição contra vários camaradas, companheiros… E senti na pele o que isso significava quando fui eleito presidente da União Estadual dos Estudantes em Minas Gerais… Eu vivia numa república. Nesse momento, o DOPS utilizou contra nós uma forma de repressão que muitos não conhecem… E eu vejo que não vai terminar esse processo de descoberta… Agora, com a notícia da injeção letal de guerrilheiros do Araguaia… Vocês seguramente leram… Eu pensei, não vai terminar… Esse conjunto de descobertas das formas de repressão. No caso da repressão do DOPS em Belo Horizonte, foi a tentativa de atropelamento… Muitos de nós, eu inclusive, só não fomos atropelados, porque nos preparamos para essa luta. Nós não entramos nessa luta a partir de 1966 de forma ingênua… Nós entramos  com  a  certeza  de  onde  ela  chegaria…  Conscientes  da  escalada repressiva… E fomos nos preparando. A nossa república era uma república de estudantes de medicina, ao lado tinha uma república de estudantes de engenharia. As duas eram trincheira da luta. A faculdade era uma trincheira da luta. O anatômico… O laboratório de histologia, de fisiologia… Tanto eu quanto o Gilney vivemos isso na UFMG, na Alfredo Balena… E o que eu acho de mais importante, não é você descrever sofrimentos, isso aí é um lugar comum na humanidade… Que não leva a lugar nenhum. Ficar pegando o lado negativo, o sofrimento… Eu me concentro e considero o melhor caminho, mas evidente que essa é uma opção de cada um… Em revelar que espírito me dominou, que vontade de destruir essa muralha, que desejo e que lutas travei… para dar a minha contribuição e de todos os companheiros que estiveram ao meu lado. Foi realmente um luta da qual me orgulho… Falarei sobre ela quantas vezes puder, dias e dias… Falarei como Fidel Castro, de forma eterna… Não pararei de falar, com prazer. Falando do que fiz e do que considero importante, como exemplo para que essa luta… Eu me espelhei no exemplo desses companheiros que eu pude ajudar a tirar de Juiz de Fora, a evitar que fossem presos, que fossem torturados, eu me espelhei neles. E quero… digo isso com muita clareza, que toda a juventude, que todas as pessoas me vejam como um exemplo. Exemplo de luta, não exemplo de sofrimento. Então, fomos travando essa luta nas trincheiras da cidade de Belo Horizonte. Ali se aprofundou, ali a luta deixou de ser pacífica, porque pacíficos não eram os nossos algozes… Se os nossos algozes, que tomaram a iniciativa, não eram pacíficos, não nos cabia uma postura pacifista. Nos cabia a trincheira, a luta, a luta como uma arma para destruir essa muralha. Essa muralha traz infelicidade a todos os lugares do mundo ainda hoje, então, nós continuamos essa batalha… Em seguida, fui eleito presidente da UNE, num congresso também em Belo Horizonte, sofrendo todos os tipos de atentados. Atentados, por exemplo, o Tarcir e os repressores da… Aí vocês poderão pegar o nome e tudo… O Tarcir era um dos expoentes do DOPS. Os atentados contra nós eram assim, atentados com ácido, ácido que foi jogado contra o congresso da… no teatro Francisco Nunes, em Belo Horizonte, ali no Parque Municipal… Nós sofremos esse atentado. Como sofremos esse atentado, o que nós fizemos? Se não é possível decidir a diretoria da …e o programa dela, em função desses atentados, fomos para as eleições diretas. A… de Minas nunca tinha sido utilizado a eleição direta como método de escolha. Era um método congressual. Então, nós soubemos caminhar e resolver os problemas… Eu e Nair que fomos candidatos na mesma diretoria, percorremos o estado todo. Faculdade por faculdade, sala de aula por sala de aula. Em Juiz de Fora, em Belo Horizonte, em Uberlândia, em Uberaba, em todas as cidades do estado. As faculdade particulares de Belo Horizonte ainda não eram essa selva de faculdades particulares, mas já tinha. Fomos em todas. Então, usamos o caminho de acordo com as condições, de acordo com a exigência do momento. Depois de eleito presidente da UNE… Eu sempre contei com a minha família, com meu pai, com a minha mãe. Eu não vou relatar todos os episódios, mas são episódios belíssimos de solidariedade. Vou citar apenas um… Quando fui para a clandestinidade, era Isaac Andrade Mendonça, ceramista da Cerâmica Sociedade Anônima, no interior do Ceará, no município de Barbalha. A minha mãe adotou o nome de Guiomar, ela chamava Risoleta e foi nos ajudar, nos proteger, criar condições para que não nos destoássemos dentro da realidade que vivíamos ali, que era uma realidade operária e camponesa. Você tinha usinas de cana e tinha fábricas, só a fábrica tinha 600 operários. A mamãe passou a visitar a fábrica, isso é um exemplo. O papai, no auge dessa luta… Eu vivi duas prisões, das duas prisões eu fugi. A primeira em Belo Horizonte, no DOPS, em 1966, a segunda em 1968. Nunca tive ingenuidade. Quando fui preso, no congresso de Ibiúna, o meu nome não era José Luiz Moreira Guedes, era José Diniz Moreira, ainda não era Isaac. E fugi. E fiz tudo pensando, não é. Esperei a hora certa. Eu, Jarbas, o Ronald, que deve tá dando entrevista em Belo Horizonte, sobre a mesma matéria… Fugimos da prisão depois do congresso de Ibiúna. Em Belo Horizonte, quando fui preso, foi uma circunstância que foi o seguinte… Nós estávamos vendendo bônus pro congresso da UNE, o pessoal decidiu que eu não podia vender, porque eu era candidato à presidência, não podia vender. Estávamos ali no Centro de Belo Horizonte, observando que o pessoal todo estava sendo preso e desanimando, criando uma situação de desânimo. Aí eu falei com a Nair “Nair, vai lá para cima no DCE”. Era de comum acordo com ela, aí eu estabeleci isso com ela, “Vai lá para cima no DCE e observa a minha prisão”. E me incorporei no primeiro grupo, disse pra ela “Vou ser preso e vou fugir, você me espera em tal lugar que eu vou chegar lá”. E assim aconteceu. Eu fui preso logo em seguida. Na madrugada, os presos que eram muitos dominaram os guardas que estavam ali e fugiram. E eu fugi junto. E… a mesma coisa, em… quando eu fui preso, eu também já fui com tudo preparado. Primeiro me desfiz de todos os meus documentos, fossem falsos, fossem o que fossem… Ainda me lembro do João Batista… O ônibus do qual fugimos era um ônibus escoltado, íamos pro DOPS de Belo Horizonte, ali eu sabia que se chegasse eu não ia sair. Aí eu já tinha uma fuga anterior, então, eu fugi no município de Atibaia. De dentro do ônibus nós preparamos, tinha um ônibus das meninas e tinha um ônibus dos marmanjos. Nas meninas eles passaram creme Nívea, com o creme Nívea eu abri o ferrolho da porta de emergência, que não abria, fui untando e abrindo… e na hora certa, eu me lembro como se fosse hoje… eu pulando do ônibus e atrás de mim o Jarbas, que era presidente da… e o Ronald… Eu batendo com a cabeça no chão, porque o ônibus tava em movimento, pulando e correndo entre os dois ônibus, o ônibus dos marmanjos e o ônibus das meninas. As meninas gritando, uma coisa impressionante, nós caímos em um abismo. Felizmente tinha um abismo… O que nos possibilitou uma velocidade muito grande na queda, e com isso, o perigo maior que nós corremos foi o de estourar a cabeça em um dos eucaliptos plantados… Mas aí, em função disso, eu vou chegar ao ponto nodal… A morte e a prisão dos meus companheiros da Ação Popular… a morte, as prisões e as torturas dos meus camaradas do PCdoB… Essas são conhecidas. Essas, no próprio momento que fui anistiado, pude viver com os companheiros do Araguaia, com os companheiros do Tocantins, a família do… todos os familiares do… sobreviventes, presentes… Todos esses companheiros e camaradas, eu já li, já ouvi relatos que deixa claro o que precisa ser feito no Brasil, para que isso nunca mais ocorra. A morte do meu camarada João Batista Drummond, o meu melhor amigo, o meu mais fraterno amigo, eu não tenho contribuição necessária para o esclarecimento. A família, o irmão, o Augusto, a viúva, Maria Ester Drummond, que encontrei recentemente em São Paulo, mas que vive em Paris… A Teinha que é a viúva do… que recentemente foi anistiada e, portanto, teve a oportunidade de relatar todas as coisas. Então, eu não sei número. Eu já trabalhei inúmeras vezes em São Paulo, na Comissão da Anistia… Isso é de uma força, testemunho… Testemunho gravado, testemunho escrito. Eu não tenho, nesse momento, contribuição singular, eu apenas posso assinar embaixo, posso assinar embaixo. Eu assino embaixo de todas as conclusões que a Comissão da Verdade trouxer a público ou que tenha necessidade. Agora, me resta uma questão que tem sido muito difícil tratar. Esses pais valorosos que me acompanharam na luta, essa mãe valorosa que mudou até de nome para viver lá no sertão, esse pai valoroso que abandonou o trabalho e que pode me tirar do Brasil, juntamente com minha esposa Nair, pela fronteira sul, num carro que ele comprou pra essa missão e no qual ele veio a morrer de forma não muito clara… Luiz Gonzaga Guedes e Risoleta Moreira Guedes, exemplos fortes como foi João Batista Drummond, como foi o de Guilhardine, como foram Daniele, Elenira Rezende. Meus pais estavam nesse universo… Por quê? Não só porque viveram na luta, solidários, mas porque, depois de tirarem meus filhos do Brasil, primeiro eles nos tiraram, depois tiraram meus filhos, foram pro exílio, viveram conosco quatro meses… Luiz Gonzaga Guedes e Risoleta Moreira Guedes voltaram pro Brasil, começaram a receber ameaça de morte, foram levados para um quartel em Juiz de Fora, ali sofreram ameaças… E na véspera de uma viagem a São Paulo, receberam uma ameaça de morte por telefone. E morreram, nesse contexto, em um acidente, naquela região de Resende. Um acidente que só vai ficar claro se o país viver na sua plenitude a sua democracia. Eu não vou sofrer mais do que sofri se souber coisas que me entristeçam, que me façam sentir a dor infinita das pernas, as pernas são sempre muito difíceis. E eu não quero, me policio agora… Eu não quero mergulhar na dor, eu quero e… é isso que eu peço à Comissão da Verdade, que seja esclarecido. Porque quando passei pela Argentina, recebi das pessoas…

Nair: Bem, eu queria começar essa minha fala relembrando de uma revolucionária muito importante na minha vida, aqui no Brasil, e que eu gostaria de render uma homenagem para ela, que é a Gilce Consenza, que foi minha colega de faculdade e… Fizemos serviço social em 1964 e Gilce sofreu muito, foi muito torturada, e é uma combatente que continua até hoje, ela é militante do Partido Comunista do Brasil e está aí na luta. E homenageando a Gilce eu quero também me lembrar e homenagear a todos os meus camaradas, homens e mulheres que participaram e que ou morreram… foram assassinados, presos e aqueles que continuam. E também gostaria de agradecer e homenagear o meu irmão, José Barbosa, como um comunista, meu irmão mais velho que foi um pouco também como um segundo pai, e que já se foi, mas que teve uma importância muito grande e que sempre esteve conosco nos momentos de dificuldade, nas prisões, sempre nos dando apoio… E então, na figura do meu irmão José Barbosa, eu estendo a todos os meus familiares e homenagear também a Dona Risoleta, a mãe do José Luiz, que foi como ele colocou. É… Guiomar, quando eu ia ter meus filhos, na clandestinidade, ela ia nos ajudar. E aí eu estendo a todos os familiares do Guedes que foram também pessoas muito importantes na nossa vida, além das organizações, dos camaradas, as famílias tiveram um papel muito importante para que pudesse estar aqui hoje contando essa história. E vou começar também falando um pouco, que a Gilce Consenza… é mineira, hoje ela mora em Belo Horizonte, ela é do sul de Minas e ela, no tempo da clandestinidade, ela foi pro Ceará. E ela uma vez, dando depoimento aqui em Juiz de Fora, na universidade, ela disse o seguinte, que lá no Ceará ela participava de muitos debates, de palestras e ela ia então falar pros jovens, ela falava sobre o tempo da ditadura que ela trabalhou muito nessa questão dos direitos humanos… Falando um pouco de forma geral sobre a questão da ditadura, das prisões, das torturas… Aí, um rapaz jovem que estava na plateia falou assim “Olha você ta falando isso, mas eu não posso acreditar que isso pode ter acontecido, não posso acreditar”. Aí ela disse que na hora assim ficou até um pouco com certa raiva e tal, depois ela percebeu e ela falou um pouco mais e falou dela. Aí, a partir desse momento, a Gilce disse que ela passou a fazer as palestras, mas se colocando, como ex-presa política, o que ela sofreu nas torturas, nas dificuldades… Então, aí, ela sentiu que surtia muito mais efeito. E é isso que eu acho que a Comissão da Verdade vai fazer com a sociedade brasileira… É como o José Luiz bem colocou, no nosso caso nós temos um grande privilégio de estar aqui hoje falando, porque nós podíamos ter desaparecido como assim desapareceram outros camaradas, outros companheiros, mas alguma coisa nos trouxe até aqui… Tivemos muitos momentos que assim, que a gente não sabia… Às vezes o José Luiz saia à noite para uma reunião, e eu não sabia se ele ia voltar ou acontecer comigo… Então, a gente sempre viveu, desde 1964, grandes tensões… Então, assim, a nossa saúde, digamos física e emocional, ela tem todos esses componentes desse período que a gente viveu. Eu costumo dizer o seguinte, que hoje como o amigo estava dizendo a pouco tempo “Ah, que bom que hoje a gente pode falar, pode protestar, fazer as coisas sem ter muita preocupação”. E nós justamente, eu costumo dizer o seguinte… Eu, uma jovem do interior de Minas, era assim de certa forma ingênua, mas com muito desejo de participar, de ser, digamos, de mudar esse país, de mudar a vida das pessoas… Então, eu me encaminhei para Belo Horizonte. Normalmente as mulheres naquela época, em 1964, não saíam muito de casa para estudar fora, e lá em casa os meus irmãos todos saíram pro Rio para estudar. Foram seguindo… Quando chegou a minha vez, porque nós éramos dez… Aí, quando chegou a minha vez e eu era menina, e naquela época as moças ficavam em casa, e se casavam e iam ter os filhos… Então, eu, como eu já tinha uma abertura, uma vontade de seguir em frente, de conhecer o mundo, de liberdade… Isso é muito importante na minha vida e na vida de todos nós, era a liberdade… Então, eu fui para Belo Horizonte com aquele desejo de participação no movimento estudantil, de contribuir, fui fazer serviço social, porque na minha ideia serviço social era uma profissão que permitia mais contato com o povo e toda aquela… Nós estávamos em 1963, aquele momento de efervescência no Brasil, nos sindicatos, estudantes, aquela movimentação… Então, eu fui nesse embalo muito feliz, conheci pessoas maravilhosas, e em 1964, então, vem o golpe. Então, eu costumo dizer o seguinte, foi assim realmente, como disse o José Juiz, ou muralha que se estabeleceu na frente dos estudantes… É como se eles dissessem assim “Olha, vocês puderam fazer muita coisa até agora, a partir de agora acabou”. Então, aí, nós lá na faculdade de serviço social, que tinha todo um engajamento contra as… amigos e companheiros e tal… Então, realmente foi um choque muito grande, foi realmente uma interrupção de um sonho muito grande que nós estávamos. Então, eu digo que foi o que há de pior para a juventude, ela perceber que ela não pode mais, que ela está sendo cortada, que ela está sendo podada. Foi por isso que, inicialmente, nós não aceitamos isso, fomos para a rua, continuamos indo, jogar bola de gude na polícia, nos cavalos para eles caírem. E aí fomos numa luta muito intensa, até que chegou o AI-5, em 1968. Foi quando justamente nós percebemos que a situação estava muito mais endurecida e que a gente precisava montar outras estratégias e outros caminhos. E nesse intervalo, aliás, nesse processo em que nós nos conhecemos, eu e o Guedes nos conhecemos em Belo Horizonte, ele saindo de Juiz de Fora e eu saindo de Araguari, foi aí que nós nos conhecemos… E nós temos uma grande alegria hoje de no dia 20 de agosto estarmos completando 45 anos de vida em comum, de casamento. Essa vida em comum, que normalmente as pessoas se casam e vão para a igreja e mandam os convites… Nós não podemos fazer isso, porque já estávamos na semiclandestinidade, nós nos casamos no Rio, não pude casar nem em Araguari nem aqui em Juiz de Fora, porque nós já estávamos sendo perseguidos. Então, vocês vejam bem, as nossas vidas, a vida dos militantes, dos revolucionários, das pessoas que estavam engajadas nessa luta, ela foi sendo cortada e muitas alegrias que podiam ter acontecido. Às vezes, por exemplo, um rapaz podia te olhar achando que podia ser seu namorado, mas aquele também podia ser um perseguidor, um cara da polícia. Então, assim, nós tivemos que aos poucos ir convivendo, durante todo esse período, e cada vez mais, com os cuidados e com os medos, porque não dizer… Nós vivemos sob a égide do medo. Então, por exemplo, muitos dos camaradas nossos decidiram não ter filhos… Eu e José Luiz nos casamos e nós quisemos constituir uma família, a gente entendia que era um direito nosso… Então, vieram os filhos, primeiro veio a Maíra, que nasceu no Rio, ela nasceu em 1967, então, o José Luiz era até presidente da UNE na época, eu era da JUC, da Juventude Universitária Católica, lá no Rio… E depois, então foi um nascimento assim mais tranquilo, digamos assim. Agora os outros filhos, o segundo filho, por exemplo, o Luiz Francisco que nós perdemos, perdemos por causa dessas condições difíceis, em função do nosso engajamento político e das nossas orientações, da nossa organização política, na época era a Ação Popular… eu fui trabalhar na fábrica como operária, muitos dos outros companheiros, camaradas também fizeram… E então, inclusive, quando eu estava na fábrica, foi quando o José Luiz foi preso em Ibiúna, e nós marcamos um encontro, e quando ele saiu para o congresso em função de algumas questões, a gente pensava que esse congresso tem tudo para não dar certo, mas ai nós marcamos, quando você estiver saindo da fábrica, eu trabalhei na Philco, em São Paulo… Cinco mil mulheres… Foi um período muito rico para mim enquanto aprendizado, enquanto participação política… Aí nós combinamos tal dia nós nos encontramos e foi realmente isso que aconteceu. Ele fugiu… Quer dizer, não foi tal dia, todos os dias eu passava e olhava em tal lugar para que a gente… Porque nós tínhamos que viver em códigos, né… Nós tínhamos que ter muitos códigos, seja para encontrar os companheiros e camaradas, nós tínhamos que marcar o ponto tudo direitinho, não podia atrasar… Enfim, tudo muito… E nomes, nós tínhamos outros nomes. No caso, quando eu trabalhei na Philco, meu nome era Norma, então eu sou conhecida lá como Norma. E depois então, nós saímos de São Paulo, fomos encaminhados para Goiás, onde nós trabalhamos como camponeses, mais o José Luiz, eu, digamos que era uma camponesa que cuidava mais das lidas da casa, e trabalhava mais com a mulheres. E foi numa região muito importante, na região onde houve aquela luta entre o José Porfírio, que conseguiram conquistar a posse da terra e nós trabalhamos muito ali com as pessoas… E eu nessa época estava grávida do meu segundo filho, do Luiz Francisco, e ele veio a nascer em Belo Horizonte. E nessa época, justamente, eu me lembro muito, não me esqueço… O Guedes não pode vir comigo, eu vim sozinha, com um camarada e a família, mas foi uma situação muito difícil porque o nosso filho teve um problema muito sério e que veio a falecer aos seis meses. E nessa época, eu estou me lembrando, a Gilce Consenza também estava no hospital com duas filhas, ela teve gêmeas… Então, era assim aquele clima de muita dificuldade, porque nós podíamos ser presos ali, estávamos no hospital, mas era muito complicado. E depois dali, nós fomos encaminhados, quer dizer, nós tivemos que ir para o Nordeste, porque aqui no sul nós já éramos suficientemente procurados e conhecidos e fomos para o Nordeste. Fomos então para Recife, e lá em Recife, alguns companheiros estavam presos sendo muito torturados… Helenaldo… Então, nós estávamos distribuindo panfletos à noite, denunciando essa situação, foi aí que eu fui presa, juntamente com o pessoal do Helder Câmara, os seminaristas e pessoas que estavam… Então, eu tive presa, não foi muito tempo, mas foi um período muito complicado, muito difícil… onde eu passei por umas situações assim bem constrangedoras, não foi assim, digamos uma tortura física, mas foi um tortura psicológica muito grande porque eu já estava grávida da Gilce, o nosso filho já tinha falecido e eu estava grávida da Gilce, que é a minha filha que hoje está morando no Rio, ela… O meu medo era justamente…