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Ricardo Fontes Cintra

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Ricardo Fontes Cintra

Entrevistado por Cristina Guerra e Helena da Motta Salles

Juiz de Fora, 29 de julho de 2014

Entrevista 004

Transcrito por: Mariana Meirelles de Azevedo e Luanda Garcia

Revisão Final: Ramsés Albertoni (24/09/2016)

 

Helena Salles: Ricardo, você podia nos contar onde você mora, alguns dados básicos da sua vida, onde você nasceu e falar o motivo pelo qual você está dando esse depoimento, o que justifica você estar aqui.

Ricardo Cintra: Bom, eu sou nascido e criado em Juiz de Fora, no Bairro Vitorino Braga, mas eu costumo dizer que eu tenho mais tempo de Rio de Janeiro do que de Juiz de fora, e isso um pouco devido à ditadura, porque, depois que eu fui preso eles me proibiram de dar aula e eu tive que sair da cidade. Agora, eu gosto de dizer, a primeira coisa, que é importante a gente denunciar sempre a tortura, eu sou professor de história e a história do Brasil é cheia de períodos autoritários com pequenos intervalos de democracia, então, é sempre necessário denunciar todo abuso, todo autoritarismo, pra evitar que a gente volte a passar por isso, que as novas gerações não voltem a passar por isso. A obrigação da gente é denunciar isso. Não só para que as pessoas sejam punidas, isso pra mim hoje é irrelevante, os torturadores devem estar velhos e carcomidos. Eu costumo dizer outra coisa, eu tenho orgulho do meu passado, eu posso conversar do meu passado com meus filhos com a maior tranquilidade, e dizer tudo o que eu fiz, e eu duvido que os torturadores possam ter a mesma coragem. Agora, a minha formação aqui em história é diferente, porque eu saí de Juiz de Fora, eu estava fazendo o curso de Técnico em Contabilidade, no São Luís, e meu pai foi contra a minha saída de Juiz de Fora, porque eu resolvi sair, aventura, eu era garoto, eu quis ir pra trabalhar na Usiminas que estava começando. E meu pai falou que eu não ia ficar três meses. Eu fiquei nove, mas aí, pra não dar o braço a torcer eu fui pro Rio, e no Rio eu fiz o curso de Técnico em Contabilidade, e o Beto, meu irmão, estava fazendo Ciências Sociais aqui e perguntou porque eu não fazia, aí eu falei “’Não, se eu for fazer vou fazer história’’. E ele falou “Mas história, você que faz contabilidade, não tem nada ver”, aí eu falei “Mas é o que eu gosto’’. E eu fiz vestibular pra história e, em 1967, eu comecei a fazer o curso de história. Eu trabalhei no Rio, logo que eu cheguei no Rio eu trabalhei no estaleiro, e fui operário naval, então eu vivi toda aquela efervescência de greves, antes de 64, quer dizer, eu fiz um depoimento uma vez, na livraria Liberdade, um debate, uma das meninas uma vez achou que eu tinha sido líder sindical, eu não fui líder sindical, eu parava quando os lideres sindicais determinavam, “Hoje nós estamos de greve”. Quer dizer, eu acompanhei todas as greves, mas eu senti o que o golpe militar mudou a vida dos trabalhadores. Nós tínhamos acabado de fazer um acordo que reduzia nossa carga horária em uma hora por semana, isso sem nenhuma nova reunião, sem nada, dia 2 de abril, porque dia 1º de abril nós paramos o estaleiro. No dia 2 de abril já estava lá escrito que aquele acordo não valia mais e…

Helena Salles: Dois de abril de que ano?

Ricardo Cintra: 1964, logo depois do golpe, eu estou falando dia 2 de abril porque pra mim o golpe foi dia 1º de abril, e a partir daí, eu tinha uma certa consciência politica, quer dizer, eu era conduzido, não conduzia nada, assim “’Vamos fazer greve?”.

Helena Salles: Nessa época você não pertencia a nenhum partido, né?

Ricardo Cintra: Não, não. Não tinha nenhum partido, não tinha… Eu fui um dos poucos da minha geração que conseguiu votar pra presidente, porque eu nasci em 1942, mas eu nasci em junho, acho que quem nasceu em agosto já não votou mais, não sei, agosto ou setembro, porque já não podia mais tirar título de eleitor. E eu não me envergonho de dizer isso, mas eu andei com aquela espadinha que era o símbolo do Lott, Marechal Lott, e votei no Lott. Agora, quando eu vim pra Juiz de Fora, e acho que meu irmão fazia reuniões com a AP, e eu acabei entrando.

Helena Salles: Enquanto isso você estava na faculdade?

Ricardo Cintra: Na faculdade, em 1967, primeiro ano meu de faculdade, e aí eles tiraram, em uma das reuniões, a posição de que como eu falava com certa facilidade, que eu devia ser candidato, não a presidente, porque na época acho que nem podia, na época daquele estatuto do diretório acadêmico, mas a vice-presidente, eu esqueci o sobrenome dele, mas o Rômulo fazia Letras, era o candidato a presidente, que na época era a Fafile (Faculdade de Filosofia e Letras), e eu fui candidato a vice, e a partir daí eu passei a participar efetivamente de reuniões do início da AP que, no início, porque era só Ação Popular, e em uma das reuniões, e eu participei dessa reunião também e nós nos transformamos em Ação Popular Marxista Leninista (APML). Bom, isso é, inicialmente. Quando chegou a época do congresso em 1968, a posição da AP, é que os delegados deveriam sair de um consenso e que eles deveriam passar nas salas e representar a faculdade.

Helena Salles: Os delegados que iriam representar Juiz de Fora?

Ricardo Cintra: Que eles deveriam passar nas salas e falar que eles iam representar e tudo. Então, quer dizer, foi muito aberto esse, foi o primeiro congresso aberto e por isso ele caiu. Então, eu fui de sala em sala, defendendo algumas posições que eu defenderia no congresso da UNE, a gente não sabia que seria em Ibiúna. Naquela época a gente tinha que sair escondido, e eu fui pra Belo Horizonte, de Belo Horizonte é que eu fui pra São Paulo. Eu acho que o congresso foi feito de uma forma tão absurda que era pra cair mesmo, tanto que encontrei com um grupo de Juiz de Fora que tinha marcado ponto na Fernão Dias, nunca vi marcar ponto em estrada. E eu não sei se eu devo falar nome, mas eu acho que não tem problema nenhum, mas o Rafael, que era da engenharia, estava fazendo um comício na estrada, aí, eu cheguei e falei “Rafael, o que você está fazendo?”, ele disse “Eu estou denunciando”, eu falei “Denunciando o quê, denunciando pra quem?”, “Pra quem eles deixaram na estrada, porque eles deixaram muita gente na estrada”. Foi muito difícil chegar ao congresso de Ibiúna, porque os pontos eram furados, nós acabamos indo parar em Campinas, quando chegamos, nosso ponto de Campinas falou assim “Pelo amor de Deus, some daqui porque eles estão pegando todo mundo”. Nós voltamos pra São Paulo e eu lembro que eu estava com a Bete Schmidt e com o Rafael, e nós tínhamos combinado uma história de que a Bete seria minha noiva e tal, e quando nós descemos do ponto tinha uns policiais pedindo identificação, nós passamos, eles não pegaram não. Entramos em um táxi e falamos para ir pra USP, que era onde era o outro ponto. Aí o taxista falou: “Não, vou perguntar aqueles caras ali porque eu não sei ir pra lá não”, falei “Pode ficar tranquilo que eu conheço isso aqui muito bem”. Conhecia nada, mas nós paramos depois no meio do caminho e falamos “Não, não vamos mais pra USP não”. Porque eu desconfiei até do cara. E nós chegamos na USP, pegamos um contato, eles levaram a gente pra uma casa pela primeira vez, com um capuz que era usado pelos torturadores, um negócio assim, que eu achei estranhíssimo. Na reunião que eles fizeram com a gente, que a gente ainda não estava no ponto que seria, foi num sítio, eles falaram que quem tentasse sair poderia ser baleado, quem tentasse… Aí, ele perguntou “Alguém tem alguma pergunta?”, falei “Pô, quando a repressão vai chegar aqui pra salvar a gente, porque isso está pior que repressão?”. Mas é claro que nós chegamos ao congresso. No congresso não tinha comida, não tinha nada, eu não sei…

Cristina Guerra: Tinham quantas pessoas? Muita gente?

Ricardo Cintra: Olha, depois do depoimento, quer dizer, do depoimento… Quando eu fiquei preso aqui no QG…

Cristina Guerra: O senhor tinha sido preso antes disso ou não?

Ricardo Cintra: Não, a primeira prisão minha foi em Ibiúna. Quando eu fiquei preso no QG me deixaram numa sala com ordens de não sair, mas com um livrão aberto assim, com uma curiosidade enorme de ver o que estava, aí eu vi que, acho que foram 996 estudantes presos em Ibiúna. Mas antes eu fui interrogado em Ibiúna, várias pessoas foram interrogadas, e nós ficamos pouco tempo. Nós fizemos greve de fome lá no presídio Tiradentes.

Helena Salles: Você foi preso em Ibiúna e muitos outros…

Ricardo Cintra: Muitos outros…

Helena Salles: E de lá vocês foram para o presídio Tiradentes…

Ricardo Cintra: E fomos interrogados no DOPS lá, né? E resolvemos fazer uma greve de fome. Fica engraçado a gente falar isso, mas dois companheiros da Paraíba… porque normalmente o meu voto decidia a greve de fome, se continuava ou não. E dois companheiros da Paraíba, eles ficavam assim “Moço, nós saímos da Paraíba já sem comida, sem dinheiro, sem não sei o quê, já passamos tanta fome, isso não resolve, isso é coisa de…” por causa do Gandhi, “isso é coisa de indiano, não é coisa nossa”, e tudo. Mas eu acabava votando pela manutenção da greve. Bom, nesse congresso de Ibiúna nós tínhamos que fazer revezamento pra dormir, porque as celas ficavam entupidas e as pessoas mais visadas ficaram presas. O Valdo, bom que eu me lembrei, foi o Valdo. Tivemos outros, mas a gente usava o nome de guerra e tudo. Aliás, aqui em Juiz de Fora era uma imbecilidade, porque meu nome de guerra era Miguel, ainda bem que ninguém lembrou lá na hora de abrir nos depoimentos, porque nome de guerra em Juiz de Fora, onde todo mundo conhecia todo mundo, é claro que quando pegaram, vou falar nome porque não tem problema, ele sabe disso. O Dominguinhos, por exemplo, ele falou Ricardo, nem lembrava de Miguel. Quando eu fui em Itajubá fazer um serviço de contatos eu usei o nome de Miguel, até aí tudo bem porque…

Helena Salles: Você fala que era sem sentido aqui…

Ricardo Cintra: Quando a gente tinha nomes de guerra aqui em Juiz de Fora a gente tinha coisas que eram cópia de movimentos externos que não tinham nada a ver.

Cristina Guerra: E quanto tempo você ficou preso em Ibiúna?

Ricardo Cintra: Em Ibiúna não passou de uma semana.

Cristina Guerra: E mesmo assim vocês fizeram uma greve de fome? De quantos dias então?

Ricardo Cintra: Foi de 48 horas. Agora, quando eles soltaram a gente, o Jean Marc, talvez você não o conheça, mas o Jean Marc era uma figura procurada. Ele deu um nome diferente, e o Guedes, José Luís Moreira Guedes, deu o nome de José Diniz. Então eles não foram presos. Então, eles pegaram a gente, e botaram num ônibus pra largar em Belo Horizonte. Então, nós mandamos o motorista parar no meio do caminho pro Guedes e o… não, o Jean Marc não estava, ele estava indo pro Rio, e o Jarbas, que era representante da Oclae1, saíram no meio do caminho pra não chegar a Belo Horizonte, que lá eles seriam identificados, possivelmente. Quer dizer, nós combinamos que íamos pegar um motorista e tudo, aí ele mesmo viu e disse “Gente, onde vocês mandarem parar eu paro, eu só estou contratado pra levar, eu não faço parte disso não”. E o José Luiz fugiu no meio da estrada junto com o Jarbas. Eu sabia, Jarbas da Oclae, porque ele era da organização latino-americana. Mas, chegando em Belo Horizonte, eles soltaram a gente, não teve grandes coisas, não era interrogatório…

Helena Salles: Eles levaram vocês pra onde?

Ricardo Cintra: Muito pouco conhecido, foi solto eu, a Bete Schmidt e, daqui de Juiz de Fora, acho que eram só os três que estavam, e o Rafael Arcuri. Mas a partir daí, a organização tomou uma posição.

Helena Salles: AP.

Ricardo Cintra: AP. Não, aí já era APML. Aí, tomaram a posição que eu deveria ser candidato ao D.A. da faculdade, nós tínhamos acabado de destituir um D.A. de milico. Nós destituímos mesmo. E que eu seria candidato e que não importava ganhar, importava marcar todas as posições, denunciar tortura, essas coisas assim. E eu acho que por isso que eu fiquei muito mais visado que o normal. Porque eu fui realmente de sala em sala marcando posição. Eu fui candidato a presidente, e o Luizinho Grunewald era o candidato a vice. E o outro candidato era o Romão, que era muito meu amigo, e que se eu pudesse eu queria agradecê-lo por que eu acho que se eu fosse presidente do D.A., quando eu fui preso da segunda vez, eu acho que eu ainda teria sofrido muito mais do que eu sofri.

Helena Salles: Então você participou da campanha, mas não se elegeu presidente?

Ricardo Cintra: Não, não me elegi, mas a gente já sabia que não ia eleger, porque era marcar posições assim, muito radicais na época, e denunciando tudo mesmo. Então, eu entrava de sala em sala pra marcar posição. E aí, nisso eu acho que eu fiquei muito mais conhecido, e eu acho que a repressão deu um valor maior, eles subavaliaram a minha participação que não era tão grande assim. Mas nesse meio termo também, nós começamos a preparar um mini congresso, porque como nós não conseguimos fazer eleição do presidente da UNE, porque fomos presos, nós viemos fazer agora em mini congressos. E eu participei. Bom, mini congressos em Juiz de Fora era feito dentro de uma kombi.

Cristina Guerra: Era mini mesmo

Ricardo Cintra: Era mini mesmo, e acho que o único voto que foi contra o Travassos, que era o candidato, o nosso candidato, eu posso falar o nome, era do Bichão, eu esqueci o nome dele, mas era porque já morreu, era médico, era de medicina e morreu. Eu esqueci o nome dele, mas foi o único que votou no outro candidato. Mas aí, depois eu fui enviado a um sítio em Cachoeira de Macacu, onde ia ter um congresso ampliado desse mini congresso. Mas em Cachoeira de Macacu, acho que o local caiu, e o Gildo, você conheceu o Gildo…

Helena Salles: Não me lembro dele, mas lembro do nome.

Ricardo Cintra: O Gildo, eu já escondi o Gildo lá em casa muito tempo. Aliás, outra loucura. Eu escondia lá em casa muita gente que eu acho que a gente subavaliava o que podia acontecer, é porque eu era um cara visado, mas Gildo entrou no sítio pra avisar que o local tinha caído, que a gente tinha que sair imediatamente. E cada um saiu por uma rota diferente. Eu saí com ele.

Helena Salles: Isso foi em que ano, Ricardo?

Ricardo Cintra: Olha, 69 ou 70, eu não sei mais não, porque eu acho que já tinha o Ato Institucional número 5 não, não tinha o ato ainda não, então foi finalzinho de 68, e como o Gildo era muito mais visado do que eu, nós combinamos de… nós andamos a pé de um sitio em Cachoeira de Macacu, que estava fazendo divisa com Friburgo, até a rodoviária de Friburgo. Lá, nós combinamos que, como ele era mais visado, ele pegava o ônibus pra Niterói, que seria menos procurado, e eu iria pro Rio. Marcamos um encontro na Rua Farani. Foi a última vez que eu vi o Gildo vivo, porque depois assassinaram ele em Recife. Bem, depois, muito tempo depois, eu lembro que eu nem tinha mais contato com ele. Eu lembro que quando assassinaram ele, eu já tinha sido preso, já tinha sido torturado e eu estava dando aula no Colégio Batista, lá no Rio. Peguei o ônibus pra ir dar aulae quando eu peguei o jornal, e li o assassinato dele, eu voltei pra casa, não tinha condições nem para chegar para dar aula.

Helena Salles: O Gildo era da AP também, né?

Ricardo Cintra: Da AP.

Helena Salles: E você falou da sua segunda prisão, foi quando?

Ricardo Cintra: Foi bem depois. Aconteceram algumas prisões minhas absurdas.

Cristina Guerra: Algumas quantas?

Ricardo Cintra: Não, olha eu fui preso em Ibiúna, depois eu fui preso… eu fui detido três vezes. Duas vezes eu falo que foi um negócio tão absurdo, porque uma foi quando eles descobriram que o Gabeira tinha sequestrado o embaixador americano, eu sou nascido e criado no Vitorino Braga, e o Gabeira eu conheci como moleque de rua. Assim, moleque de rua mesmo. Não tinha nenhum contato com o Gabeira depois disso. E quando eles descobriram que o Gabeira tinha participado do sequestro me prenderam.

Cristina Guerra: Aqui em Juiz de Fora?

Ricardo Cintra: Aqui em Juiz de Fora. E o cara virava pra mim e falava “Não adianta negar porque nós temos uma fotografia sua tirada há oito dias atrás com o Gabeira”. Aí eu ri. “Ah, você está rindo de quê?”, falei “Se vocês tivessem jeito de tirar uma fotografia do Gabeira com alguém, vocês não tiravam fotografia, vocês prendiam o Gabeira e a pessoa que estava com ele. Eu não vejo o Gabeira desde os tempos de garoto, de moleque, no máximo eu tinha dezoito anos a última vez que eu vi o Gabeira”. E essa foi uma das vezes.

Helena Salles: E essa prisão foi onde, essa do Gabeira?

Ricardo Cintra: Essa foi na Polícia Federal, aqui em Juiz de Fora. Eu fiquei uma noite só sendo interrogado.

Cristina Guerra: Sendo interrogado. E tortura?

Ricardo Cintra: Não. Aqui não, só pergunta. Bom, quando eu fui ao Rio, fazer um contato, isso eu não me lembro bem o que foi. Era um contato no Rio, era na Praça Sans Peña. Eu sou Botafogo. Aproveitei, depois do contato, pra assistir um jogo do Botafogo e América. Eu vi que o cara estava me seguindo. O cara estava perto de mim, foi no mesmo ônibus, no mesmo jogo comigo, enfim. E aí aconteceu o seguinte. Na segunda ou na terça , não lembro, prenderam o meu irmão.

Cristina Guerra: Aqui?

Ricardo Cintra: Aqui. E eu já estava de volta também. Chegavam procurando Ricardo Cintra, mas prenderam Roberto Cintra. E começaram a fazer uma porção de perguntas pra ele e ele negando. E falaram “É, daqui a pouco você vai negar que foi preso em Ibiúna”, ele falou “Claro que eu vou negar, eu não fui preso em Ibiúna. Eu acho que vocês estão enganados, vocês estão me confundindo com o meu irmão”. Mas com isso eles soltaram o Beto, e o Roberto falou comigo mais ou menos o que eles tinham perguntado sobre a minha ida ao Rio. Aí, eu falei que fui ver o jogo do Botafogo. Como o cara me seguiu até o Maracanã, eu tinha detalhes do jogo e tudo. Essa vez também eles me soltaram.

Helena Salles: Isso depois da prisão por causa do Gabeira?

Ricardo Cintra: Isso, depois. E a terceira vez foi quando mataram o Marighella. Porque eu esqueci. Eu não sei se era o Lomar que foi preso lá em São Paulo. Ele tinha sido presidente aqui do DCE. Eu esqueci o nome, eu faço uma confusão entre os dois, era Lomar, acho que era Lomar. E perguntaram “Conhece Ricardo Cintra?”, ele respondeu “Conheço”. Aí me prenderam, como se eu tivesse alguma coisa a ver com o grupo do Marighella. E aí, eu acho que fiquei também uma noite sendo interrogado, mas também sem tortura.

Helena Salles: Aqui?

Ricardo Cintra: Aqui. E eu simplesmente falei “Olha, eu não tenho nada a ver com o grupo do Marighella, não conheço ninguém que tem”. E depois, assim, passou um certo tempo, a única coisa que eu estava fazendo era assim, de vez em quando eu recebia alguém que precisava ficar, o Gildásio, algumas pessoas da AP lá em casa. Mas eu tinha até pedido uma licença na organização, assim, e não quero viajar mais, preciso terminar a faculdade porque com a prisão de Ibiúna eu perdi um ano, fiquei um ano atrás. Porque eu fui reprovado em frequência em matérias que eu tinha nota. Em frequência em matérias de professores completamente despreparados e reacionários. Um deles foi o Wilson de Lima Bastos, que eu tinha nove e meio de média e ele me reprovou em frequência. Depois eu agradeci a ele porque no ano seguinte, foi o Márcio, chama de Márcio Careca, que foi dar aula de História das ideias políticas e o Márcio deu aula realmente, e as aulas do Márcio eram maravilhosas. Então agradeci ao Wilson por ele me reprovar, porque aí eu tive um professor de História. Mas assim, eu estava fora, eles fizeram uma reunião da AP aqui em Juiz de Fora, e vieram algumas pessoas da AP, e a pessoa que estava dirigindo chegou perto de mim e falou “Eu não tenho ordem de dar nem meu nome de guerra pra você porque você está meio afastado e tudo”, e eu já tinha feito várias reuniões com ela, que foi a Jussara, eu ri, falei “Ah, tudo bem”. Mas nós saímos da reunião, eu saí com o Paulo César, que a gente chamava de Paulinho Parceiro, e o Domiguinhos.

Helena Sales: Paulinho que foi presidente do DCE aqui?

Ricardo Cintra: Foi presidente do DCE e é uma pessoa maravilhosa, e quando saímos o Domiguinhos me abre uma pasta, e ele tinha estatuto de tudo quanto era organização. Quer dizer, ele não deu o nome pra mim porque era perigoso e o Domiguinhos, porque diz que a organização estava com dificuldades já. E pegaram o Dominguinhos, mas não prepararam o Domiguinhos. E eu falei “Domiguinhos, como você consegue esses estatutos de tudo quanto é organização?”. E ele tinha tudo lá, Polop, MR-8. Ele falou “Eu faço bolsa de valores lá na faculdade”, falei “O que é isso?”, ele falou “Os estatutos que são muito difíceis de conseguir eu troco por dois ou três da AP”. E eu falei: “Cara, você está maluco, você vai ser preso”. E não deu outra, ele foi preso com os estatutos da organização.

Helena Salles: Explica só quem é Domiguinhos, eu acho bom registrar. É Domingos Sávio.

Ricardo Cintra: Domingo Sávio do Nascimento, uma pessoa maravilhosa, mas que não estava preparada pra isso.

Helena Salles: Se formou em medicina.

Ricardo Cintra: Se formou em medicina, é uma figura até hoje, ele tem problema neurológico.

Cristina Guerra: Ele ocupa um cargo no Ministério da Saúde.

Ricardo Cintra: Não, ele tem problema neurológico, mas é uma pessoa que defende as causas dele com uma… ele é um cara impressionante. Mas ele não estava preparado pra isso. Eu não estava preso ainda quando ele foi preso, então, perguntaram porque ele não queimou igual aos outros, perguntou, como o Ricardo fez. Ele falou não isso custou muito sacrifício pra gente. Quer dizer, o cara falar isso pra repressão é a prova de que ele não estava preparado mesmo. Aí eu fui preso, eu estava no cinema, no Excelsior, numa sexta-feira com minha noiva na época, que foi minha esposa…

Helena Salles: Você lembra o ano?

Ricardo Cintra: Não, foi em 1971, foi a pior prisão minha e foi justamente no período que eu não estava fazendo quase mais nada.

Helena Salles: Foi no período que você estava licenciado, né?

Ricardo Cintra: Estava licenciado, eu recebia gente lá em casa, mas não estava participando de mais nada.

Cristina Guerra: E você abrigou quem? Você lembra das pessoas que você abrigou na sua casa?

Ricardo Cintra: Na minha casa? Olha, teve uns, o Gildásio, o Gildo, que foi assassinado pela ditadura, hoje é nome de rua lá em Recreio, o Olavo, você conheceu o Olavo?

Helena Salles: Não.

Ricardo Cintra: Quer dizer, desses três eu tenho certeza. Ah, e o Baixinho, que eu não sei o nome, a gente chamava ele de Baixinho, o Marcos, essas pessoas eu abriguei lá em casa.

Helena Salles: Era um Marcos que também fazia medicina e era ligado à Jussara, né?

Ricardo Cintra: É. Tem algumas coisas assim interessantes, essas pessoas que eu abrigava lá em casa quando eu descia com eles, a gente encontrava com o Renê, na Rua Halfeld, e o Renê era presidente do DCE.

Helena Salles: O Renê Gonçalves de Mattos, que depois foi reitor.

Ricardo Cintra: É, o Renê era maravilhoso, mas o Beiral, que era o agente da Policia Federal aqui tinha o hábito de cercar o Renê na Rua Halfeld e bater papo com o Renê. Então, de vez em quando você saía e o cara falava assim, “Ah, vou lá falar com o Renê”. Eu falava assim “Não, não vai não”. Aí o cara “Por que não posso falar com ele?”, eu falava “Não, depois eu te explico”. Quer dizer, os caras estavam lá em casa, ninguém ia imaginar que o Renê, presidente do DCE, estava na Rua Halfeld conversando com o chefe da Policia Federal.

Cristina Guerra: Como se chamava o chefe da Polícia Federal?

Ricardo Cintra: Era Beiral Beraldo, eu não lembro.

Helena Salles: Você não lembra.

Ricardo Cintra: Bom, ele me interrogou várias vezes, mas em muita coisa que eu esqueci.

Cristina Guerra: Então, aqui em Juiz de Fora, você foi interrogado na Polícia Federal?

Ricardo Cintra: Não. A última vez que eu fui preso, em 71…

Helena Salles: A vez do cinema.

Ricardo Cintra: Eu estava no cinema, ele sentou do meu lado, estudante de medicina e virou pra mim e falou assim: “Ricardo, não olha pra mim, eu estou correndo risco, já prenderam fulano, fulano, Paulinho, foi falando os nomes de todo mundo que estava preso…

Helena Salles: Todo mundo daqui?

Ricardo Cintra: “E eles estão te procurando. Você vai me dar uns 10 minutos pra mim sair e sai depois”. Eu abracei a minha noiva e eu falei assim, “Olha nós vamos no mesmo ônibus, mas nós não vamos juntos não, eu vou na frente e você vai atrás de mim, nós vamos sair do cinema, porque se me pegarem você tem que avisar alguém”. Porque naquela época era comum desaparecerem com as pessoas, e combinei com ela o seguinte “Eu vou para casa”, a minha casa era no ponto final, “[…] e você passa lá com seu irmão de carro, se a janela tiver aberta está tudo bem”. A janela estava aberta, então tudo bem. Segunda-feira, eu dei aula de manha no ZAZ, de tarde eu dava aula, de tarde não, 18 horas eu dava uma aula no Vital Brasil, no Vitorino Braga, e de lá ia dar o resto de aula no curso ZAZ, mas que era na… eu esqueço o nome da rua. Era esquina com a Rio Banco, tinha uma academia de esporte… Delfim Moreira, não…

Helena Salles: Antônio Carlos.

Ricardo Cintra: Presidente Antônio Carlos. Aí, quando eu desci do táxi, porque eu peguei um táxi que eu já estava atrasado, quando eu desci do táxi, estava tudo cercado, os caras de escopeta e tal, aí…

Helena Salles: Cercaram o colégio?

Ricardo Cintra: É. Mas ai eu falei, bom, se eu for preso aqui eu estou perdido porque aqui ninguém sabe, aí, eu passei correndo subindo a escada, e o cara atrás de mim. “Você está sendo convidado a depor no QG”, eu falei “Vou sim, amanhã que horas?”, entrei no meio da turma e falei assim “Gente, eu estou sendo levado ao QG, todo mundo está sabendo que eu estou sendo preso”. Mas eles falaram “Não tem problema não, nós vamos na casa dele”. E foram mesmo, tomaram livro da mão do meu pai, meu pai tinha tido um AVC, tomaram o livro da mão dele, meu pai era advogado, um dos caras, inclusive… Porque eu tinha queimado todos os livros porque eu sabia. Os poucos livros que eu queria preservar eu levei pra casa do meu tio, e meu tio queimou, então, não adiantou nada (risos).

Helena Salles: Eles foram na sua casa no mesmo dia que te prenderam?

Ricardo Cintra: Na mesma hora. Me algemaram, perguntaram onde estavam as armas, eu disse “Eu nunca dei um tiro”. Aí eles reviraram minha casa de cabeça pra baixo e tomaram o livro do papai. Papai virou e falou assim “Aqui, a nova esquerda americana”, aí, o outro olhou, porque estava grande assim, “O que há por trás da morte do Kennedy. Isso é do Kennedy” e jogou pra lá. Acho que foi o único livro que eu deixei que podia me incriminar, mas assim, mas isso era o de menos. Aí me levaram pro QG e não me fizeram mais perguntas. Um fato, pior de tudo pra mim, o negócio mais absurdo do mundo, no ponto final do Vitorino Braga, eu morava na Baependi, eles desceram na Clorindo Burnier, eles desceram do carro, deram uma surra em dois garotos, deram uma surra mesmo, mas sem motivo nenhum.

Cristina Guerra: Garotos de que idade?

Ricardo Cintra: Deviam ter entre 14 e 15 anos. Um deles acho que era o Rafinha e o outro a gente chamava ele de Beré.

Helena Salles: Garotos da vizinhança?

Ricardo Cintra: Da vizinhança, eles estavam lá no ponto do ônibus, aí o cara voltou pro carro, virou pra mim e falou “Maconheiro a gente trata assim, agora subversivo é pior”. Quer dizer, eles surraram dois garotos pra me assustar, um negócio tão absurdo de imaginar! Mas depois que a gente está vendo essas coisas que a gente vê que é por aí mesmo. Aí me deixaram na cela no QG, mas não me perguntaram mais nada. De manhã me colocaram um capuz, me algemaram.

Helena Salles: Você ficou ali ao lado do Museu?

Ricardo Cintra: É ao lado do Museu, mas numa cela comum, aí deram a volta, quer dizer, ao lado do Museu, na entrada principal ali, aí deram a volta e me colocaram no chão do carro, um cara ainda me pisou em cima, eu reclamei, ele falou assim “Você vai morrer mesmo, o que é que tem?”. Aí, deram a volta e entraram por trás do QG, aí sim, lá naquela entrada por trás do Museu, naquela rua ali. E eu não sabia que eu estava ali não, porque eles rodaram bastante comigo que eu acho que era pra me assustar mesmo. Aí me deixaram sentado, botaram um livro enorme lá sobre a prisão de Ibiúna e me deram ordem que eu não podia levantar, não fazer nem nada, e me puseram um capuz do lado. Aí, teve uma hora que me mandaram botar o capuz e levaram alguma coisa pra eu comer, eu imagino que deveria ser umas quatro e pouca. Chegou um cara que se apresentou como tenente-coronel, mas eu não sei o nome dele. Eu sei que ele tinha uma pronúncia sulista, aquela pronúncia bem carregada do sul, tinha os olhos verdes e começou a falar, queria que eu falasse o nome das pessoas e começou a me dar nomes pra eu falar que tipo de partido que era. Aí eu falava que era do MDB, e o cara foi perdendo a esportiva. Aí, chegou num determinado momento ele falou assim “Olha, você está aqui no exército, nós estamos te tratando bem, mas eu vou ser obrigado a te mandar pro DOPS, e aqueles caras são uns animais, eles batem, fazem isso, fazem aquilo”. E eu tinha acabado de ler um livro do Jorge Amado, acho que era “Terras do sem fim”, uma coisa assim que o cara fala que o cara que manda é pior, que o Cosmo, que era o negão que batia e que matava, que estava até com drama de consciência, que ele ouviu falar que o cara que manda é pior, né? E eu falei isso com o cara. Dei a frase do Jorge Amado mesmo, porque eu estava acabando de ler. Aí ele ficou vermelho, deu um soco na mesa, “Pois você vai pra mão dos caras que não mandam”. Me algemaram e saíram comigo sem botar o capuz. Me botaram atrás num camburão. Algemado, eu fui picando até Belo Horizonte, mas aí eu vi onde eu estava, quando eu saí eu vi que eu estava atrás do Museu, então eu vi que eu não tinha saído do QG.

Cristina Guerra: Atrás do museu, o senhor diz numa rua atrás do Museu?

Ricardo Cintra: Uma rua atrás do Museu porque eles tinham entrada pro quartel, porque ali possivelmente eles torturavam. A mim eles não torturaram, a não ser tortura assim, me pisaram, falar que eu ia morrer e tudo, mas assim…

Cristina Guerra: Mas era uma casa?

Ricardo Cintra: Eu não sei, eu só sei que assim, eu saí, eu acho que pertencia ao QG.

Helena Salles: É onde hoje é a Auditoria Militar?

Cristina Guerra: Não, é na rua de trás, onde entra de carro, não é isso?

Ricardo Cintra: É, na rua de trás, onde a gente entra de carro no Museu, por ali tinha alguma coisa que era ligada ao quartel.

Helena Salles: Você sabe que o carro saiu por ali?

Ricardo Cintra: Sim.

Cristina Guerra: Ele estava na Auditoria, eles colocaram o capuz, não é isso? Ele demorou muito pra chegar e quando ele viu ele estava na rua atrás do Museu.

Ricardo Cintra: Eu vi só quando eu estava saindo, quando eu cheguei não, porque eu estava de capuz.

Cristina Guerra: Se o senhor for nesta rua o senhor consegue lembrar que casa era essa, que lugar era esse?

Ricardo Cintra: Ah, não consigo não, porque eu olhei pela janelinha do camburão. E eu fui picando até Belo Horizonte.

Cristina Guerra: E o que tinha nesse lugar? O senhor se recorda?

Ricardo Cintra: Não, o lugar que eu fiquei só tinha uma mesa, a sala totalmente vazia, a cadeira que eu fiquei que era distante e o livro que era um convite, eles estavam querendo que eu levantasse pra ver.

Cristina Guerra: Aparelho de tortura não tinha nada?

Ricardo Cintra: Não, não vi nada.

Cristina Guerra: Não tinha grade?

Cristina Guerra: Não, na hora de comer alguma coisa me botaram o capuz, deixavam a comida e saíram, porque aqui em Juiz de Fora provavelmente eu conheceria as pessoas.

Helena Salles: Bom, ai você foi de camburão…

Ricardo Cintra: Fui de camburão, fui picando até Belo Horizonte, eu achei que eles estavam blefando. Algemado e picando. Quando chegou a Belo Horizonte, um corredor polonês enorme. Quando eu cheguei perguntaram meu nome, quando eu falei meu nome parecia que eu tinha falado um palavrão porque me deram tanta pancada e chute.

Helena Salles: Isso foi em que lugar? No DOPS?

Ricardo Cintra: Eu acho que foi no DOPS.

Helena Salles: Não tem certeza?

Ricardo Cintra: Não tenho certeza porque eu não conhecia nada lá, mas eu tenho quase certeza que era o DOPS. Agora, eu ainda caí na asneira de pedir pra urinar, porque imagina, eu picando daqui lá. Os caras deixaram, quando eu fui urinar o cara deu um chute, eu botei a mão, minha mão ficou inchada, ele deu um chute, minha mão inchou, depois me botaram sentado em uma cadeira, com uma algema de plástico que se você mexesse ela ia apertando. E de vez quando passava um e me chutava. E eu escutava muito grito, e teve uma época que eu nem conseguia escutar uma música, quando eu ia em baile, essas coisas assim, que é “Take my eyes of you”, porque eles botavam no último volume que era pra alguém não escutar grito, porque eu escutava os gritos, e a música, né? E a música acabou mexendo muito comigo. Hoje eu acho que já consigo escutar, mas por muito tempo eu não… Mas quando chegou, eu passei quase a noite inteira assim, quando chegou de manhã…

Helena Salles: Sentado e algemado.

Ricardo Cintra: Sentado e algemado.

Cristina Guerra: Vestido?

Ricardo Cintra: Vestido. Quando chegou de manhã eles foram me interrogar. Aí, o cara fazendo perguntas e eu negando. Eles queriam principalmente o nome do Márcio, que era professor de História. Perguntaram pelo Romão, e perguntaram pelo Zé Paulo, foram perguntando e eu dizia “Pelo que eu sei, alguns são do MDB, mas não sei”. Aí o cara pegou um cigarro, acendeu e foi chegando perto de mim. Eu estava com as algemas assim, algema não com um negócio de plástico que é terrível. E aí ele começou a queimar meu bigode com o cigarro, e eu tinha um bigodão (risos). Acho que eu tenho aqui pra mostrar.

Helena Salles: Eu lembro. Aí ele foi queimando com cigarro?

Ricardo Cintra: Foi queimando e fazendo perguntas e eu negando. E aí de repente eles pararam tudo e falaram “Levem ele pra esperar o aguardo”. Eu cheguei, tinha um preso comum, eles me levaram pra uma prisão de favela, onde já estavam o Domingos e o Paulinho.

Cristina Guerra: Como assim prisão de favela?

Ricardo Cintra: Era uma favela. Eu sei que era favela.

Helena Salles: Isso foi no dia seguinte, Ricardo?

Ricardo Cintra: No dia seguinte.

Helena Salles: No dia seguinte a esse interrogatório?

Ricardo Cintra: No dia seguinte a esse primeiro interrogatório. Que eu não falei nada, mas nada mesmo.

Helena Salles: Aí te levaram pra essa prisão da favela?

Ricardo Cintra: Me levaram pra essa prisão da favela, me colocaram no meio, e aí tiraram o preso politico e ele levou o colchãozinho que tinha lá. Então eu fiquei, fui o único que não tinha colchão na cela, eu dormia no chão. Depois um guarda bondoso, jogou uns diários oficias lá e falou “Faz a sua cama aí”.

Helena Salles: Com jornal?

Ricardo Cintra: Com jornal. Dominguinhos fala que eu tinha um estado de humor muito grande, que eu brincava com os caras, mas não é, eu queria passar pra eles que eu não tinha falado nada. Então, eu perguntava pros guardas que passavam de um lado pro outro, “Você sabe se eu vou ficar aqui muito tempo?”, ele respondia “Ah sei lá, não sei o que você fez”, eu dizia “Eu estou cansado de falar que eu não fiz nada”. E um dia eu perguntei a hora pro cara, mas eu perguntei mais pra puxar conversa pra ver se eles falavam alguma coisa, pra mim saber. Aí eu perguntei as horas e o cara respondeu “Ah, sei lá de horas, mais tarde eu vou lá e vejo”, eu falei “Não, não tem pressa não porque eu não tenho nenhum programa pra hoje à noite” (risos). Então, o Dominguinhos falou “Você era maluco”, eu falava, não, eu estava tentando ver se vocês falavam alguma coisa comigo. E eles tinham dinheiro, eles podiam mandar comprar as coisas, porque eles compravam leite essas coisas, e eu não, eu não sei porque mas eles me deixaram sem nada.

Cristina Guerra: E a sua família sabia que o senhor…

Ricardo Cintra: Não, pensavam que eu estava aqui.

Cristina Guerra: Quanto tempo o senhor ficou lá?

Ricardo Cintra: Dezoito dias.

Helena Salles: Nessa prisão da favela?

Ricardo Cintra: É, mas eles saíam à noite pra torturar. No meu depoimento para a Comissão da Verdade, eu digo o seguinte:

Helena Salles: Pra Comissão Nacional?

Ricardo Cintra: Pra Comissão Nacional. O Domiguinhos falava o que eles precisavam saber e eles tinham pressa, então, quando você escutava barulho de carros você sabia que alguém ia ser torturado. Ou eu, o Paulinho ou ele.

Helena Salles: Os três estavam lá?

Ricardo Cintra: Os três estavam lá.

Helena Salles: Vocês se viam de uma cela para outra.

Ricardo Cintra: Não. E o guarda não deixava a gente conversar. Por isso que eu falei, eu puxava assunto com o guarda pra ver se passava alguma coisa pra eles, né? Mas aí eu ficava torcendo pra ir outro, né? Depois, e falava “Nossa, a que ponto eu cheguei. Torcer pra um companheiro sofrer”, mas é natural isso, né? Eu tive muita dor de consciência porque quase sempre era o Dominguinhos, e o Dominguinhos voltava arrebentado. E eu fui levado acho que umas três vezes. E lá esses interrogatórios eram terríveis, porque eu levei muito choque.

Helena Salles: E era nessa própria favela? Nessa própria prisão?

Ricardo Cintra: Não. Aí era no DOI-CODI, o cara se apresentava, eu com o capuz, teve um que falou que era o Portela, mas acho que era mais pra intimidar porque o Portela era um dos torturadores mais famosos, e tinha um outro. Mas eu não acho que era não, o nome tanto fazia, porque eles não tinham…

Helena Salles: Pra assustar né?

Ricardo Cintra: É, mais pra assustar mesmo. Um deles inclusive, no último dia, quer dizer, eu estou pulando etapa aí, mas Tarcísio Delgado conseguiu que minha irmã me visse. Estava eu e Paulinho sendo torturados juntos por esse cara que falou que era o Portela, esse eu vi a fisionomia dele, porque os outros eu estava de capuz. E aí falou “Toma cuidado porque um deputado veio ver ele e tal”. Aí, ele falou “A gente prende o deputado”. E o Paulinho tinha falado que tinha úlcera, ele deu um soco no estômago do Paulinho, e falou “Vamos ver se essa úlcera é boa mesmo”. Então quer dizer, um negócio assim, terrível. Num domingo…

Helena Salles: Então, três noites você foi levado…

Ricardo Cintra: Pra ser torturado à noite…

Helena Salles: Com choques?

Ricardo Cintra: Choques, e como eu negava quase tudo, uma vez eles me mostraram um depoimento, eu não sei se era da Marileia, ou da Marinilda, que falava que me deu um jornal, Libertação. Aí, essa, acho que foi a única coisa comprometedora mesmo no meu depoimento, eu botei que eu recebia o jornal Libertação. É claro que perguntavam se eu conhecia fulano, fulano eu conhecia. Agora, quando no domingo, quando eles começaram a me torturar, cismaram que eu tinha que confessar, isso foi de sábado pra domingo, eu passei o sábado a noite e o domingo lá sendo torturado. E o cara queria que eu confessasse que eu era líder da Juventude Católica Comunista de Juiz de Fora. E eu tentando conversar com o cara que isso era um absurdo, porque eu fui criado em uma igreja evangélica batista, falei “Olha, eu exerci até cargo, mas agora eu estou fora da igreja, eu não sei nem rezar”. E o cara querendo que eu confessasse dando choque, dando pancada, aí chegou numa hora que eu falei pro cara “Olha, se você tirar católico, comunista tudo bem”. Mas eu já não estava aguentando mais mesmo. Teve uma noite que começaram, conhece fulano, conhece fulano, e aí colocaram o nome do Beto no meio, meu irmão. E eu já estava tão assim, não conheço, não conheço, que eu falei que eu não conhecia, e aí eu levei muita pancada, muito telefone, porque eles não batiam aleatoriamente, eles batiam muito aqui, no abdômen que acho que não deixa marca, e telefone. Telefone te apagava.

Cristina Guerra: E a pessoa fica surda, perde a audição, né?

Ricardo Cintra: É, eu fiquei muito abalado da perna, eu tive que operar depois, que eu tinha uns problemas na perna com algumas varizes, e como eles jogavam água de vez em quando na minha cela, eu tinha que ficar em pé o tempo todo, isso me deu muito problema.

Cristina Guerra: Como assim jogavam água?

Ricardo Cintra: Passava um cara lá e jogava água.

Cristina Guerra: Com mangueira?

Ricardo Cintra: Não, com o balde.

Helena Salles: Pra ter que dormir no molhado, né?

Ricardo Cintra: É, pra dormir no molhado. E também tinha uma coisa nas celas da favela, se você quisesse beber água eles tinham que abrir do lado de fora e era em cima do vaso sanitário, quer dizer, a água, vaso sanitário, tudo que você quisesse usar era pelo lado de fora e pela boa vontade deles, mas isso era o de menos. Mas, então, eu estava falando, esse negócio de confessar que eu era líder da Juventude Católica Comunista, negócio tão absurdo. Olha, eu levei muita pancada pra confessar, e choque. Choque eu tenho trauma até hoje, eu não troco lâmpada em casa.

Helena Salles: Foi a tal Cadeira do Dragão que você sentou não?

Ricardo Cintra: Não, isso não. A cadeira que eles me colocaram eles apertavam um negócio, isso eu acho que não era a Cadeira do Dragão não, e eu também não fui no pau-de-arara. Não, isso eu não. Eu levei muito choque e muita pancada, e depois também eles queriam que eu falasse que o Afonsinho, esse cara jogou no Botafogo, que brigou pela lei do passe. Ele tinha vindo em Juiz de Fora fazer um trabalho com a gente. E olha, que eu saiba o Afonsinho não veio, não sei, então, eu neguei, neguei. Quando eu cheguei aqui no Linhares, quando quebrou a incomunicabilidade, conversando com o Dominguinhos, eu perguntei “Dominguinhos, o Afonsinho alguma vez veio aqui em Juiz de Fora fazer algum trabalho?”, ele falou assim “Por quê?”, eu falei “Porque eu apanhei muito por causa disso, levei muito choque’’, ele falou “Ah, se fosse comigo, Afonsinho…” Eu vou usar a palavra que ele usou, que é chula, né!, ele disse “Se é comigo o Afonsinho estava fudido” (risos).

Helena Salles: Entregava?

Ricardo Cintra: Ele falou assim “Depois de um certo tempo o que eles mandavam fazer eu fazia”.

Cristina Guerra: O senhor falou “Quebrou a incomunicabilidade aqui no Linhares”, como assim?

Ricardo Cintra: Também eram celas separadas, a gente não tinha, quer dizer, foi por pouco tempo. Depois de trinta dias preso eles quebraram a incomunicabilidade.

Cristina Guerra: O senhor voltou da favela para o Linhares?

Ricardo Cintra: Não, da favela, quando eles me soltaram, voltei pro QG, eu fiquei dois dias no QG e depois me levaram pra Linhares.

Helena Salles: No QG aqui em Juiz de Fora?

Ricardo Cintra: Aqui em Juiz de Fora.

Helena Salles: Lá em Belo Horizonte, nesse…

Ricardo Cintra: Lá em Belo Horizonte me roubaram um relógio e o dinheiro, porque eu pedi, porque eu tinha que dar baixa, e falei “Olha, eu tinha um relógio”, falaram “Não tem problema não, é só você subir essas escadinhas aí e conversar”. Eram os caras que torturavam e eu falei “Não, pensando bem eu nem quero esse relógio”.

Helena Salles: Aí ficou por isso mesmo?

Ricardo Cintra: Fiquei sem o relógio e o dinheiro, não tinha mais dinheiro nenhum. E aí, no Linhares, por incrível que pareça, quebrou a incomunicabilidade, porque eu fiquei na mesma cela com o Dominguinhos e com o Paulinho, por pouco tempo. Depois levaram para o Linhares. Quer dizer, no QG ficamos na mesma cela, depois no Linhares, aí separaram de cela de novo.

Cristina Guerra: Então vocês voltaram juntos?

Ricardo Cintra: Voltamos juntos. Olha, eles botaram no camburão duas pessoas que eles falaram que era contrabandistas, mas pra mim era agente infiltrado, porque eles queriam ouvir o que a gente conversava. Então, o Paulinho entendeu logo. Eu dei um toque no Paulinho, falei “Oh, isso aí…”, e eles começaram a fumar, dentro de um camburão fechado de Belo Horizonte pra Juiz de Fora, e nós reclamando, eles falaram “Ah, estou com vontade eu fumo”. E depois nunca mais os vimos, quer dizer, se eles vieram pra ficar presos em Linhares deveriam ter ficado presos. Pra mim era gente infiltrada pra ver se a gente ia falar alguma coisa, conversar alguma coisa.

Helena Salles: Agora, aqui em Juiz de Fora vocês não foram torturados não. Aqui não?

Ricardo Cintra: Não, aqui não. Porque tem dois lances assim, que foram importantes. Um foi impressionante. A passagem de ano, no Linhares, os presos políticos, tiveram homenagens pra gente. Porque eles sabiam que a gente tinha chegado e a gente ainda estava incomunicável. Então, quando foi dez para meia noite, não sei…

Helena Salles: De 1971 para 1972?

Ricardo Cintra: É. Eles falaram “Companheiros, eu sei como vocês…” e fez discurso e os caras ficavam assim “Cala a boca”, e eles “Prende a gente”. Eles já estavam presos, quer dizer. E aí eles cantaram algumas músicas revolucionárias, uma da revolução espanhola, “San José Republicano”, eu não vou saber cantar direito “Y la virgen socialista y el hijo de sus entrañas militante comunista. Y si a Franco no le gusta la bandera tricolor le daremos una roja con el martillo y la hoz”. Era muito bonito, o cara tocando violão também, e cantaram também acho que “Viola enluarada”, umas músicas assim. E quando foi meia-noite eles cantaram a “Internacional”. Então, foi um negócio assim muito lindo pra gente que estava muito arrebentado, né?

Helena Salles: E eram muitos presos políticos, Ricardo?

Ricardo Cintra: Lá devia ter muito, mas a gente não tinha ideia porque tinham vários pavilhões.

Cristina Guerra: Tinham mulheres também nessa época?

Ricardo Cintra: Olha, lá eu não vi nenhuma, porque quando a gente saía no pátio, depois de um certo tempo, acho que depois do dia 8 eles começaram a deixar a gente sair no pátio um pouco. Teve um dia que eu briguei quase com o Paulinho, porque o Paulinho não quis descer. Eu falei “Você está maluco cara? Nós estamos isolados há tanto tempo!”, quer dizer, eu obriguei ele praticamente a descer porque ele não queria, ele queria ficar no…

Cristina Guerra: O senhor esteve na suíte lá do Linhares? Porque eles têm um termo, a gente viu umas fichas…

Ricardo Cintra: Não.

Cristina Guerra: De presos, eles falam estava na suíte, na suíte…

Ricardo Cintra: Não, eu nem sabia disso não. Eu sei que na minha cela tinha uma frase escrita “O que são dez anos para a eternidade”. Quer dizer, alguém foi condenado a dez anos. E outra coisa, depois conversando com um preso político, é Jopi o nome dele, a gente estava com medo de ser condenado a dois, três anos, e eu falando com ele, ele riu, falou “Oh companheiro, dois anos eu tiro com o saco amarrado na grade”. Aí, eu fui saber, ele já estava condenado. Ele já tinha duas condenações e ainda tinha outro processo, né? Então, quer dizer, ao todo ele já tinha dezoito anos, e ainda ia ser mais, e eu reclamando de dois anos com ele.

Helena Salles: Mas no Linhares você ficou quanto tempo?

Ricardo Cintra: Olha, no Linhares, ao todo, deve ter sido um 67 dias, quer dizer, contando com os dezoito em Belo Horizonte…

Helena Salles: Mas aí já tinha contato com os outros…

Ricardo Cintra: É, não. No Linhares nós ficamos incomunicáveis, mas tinha um carcereiro lá que era corrupto, então, ele passava as coisas pra gente porque no Linhares era mais fácil a convivência. Até meu sogro deu um dinheiro pra ele e ele passava tudo. Então a gente se comunicava, ou através da Teresa. Teresa vocês sabem o que é, não sabem?

Helena Salles: Teresa é a corda, né?

Ricardo Cintra: Teresa é uma corda que a gente jogava com um peso qualquer, a gente enfiava a mão pra fora da grade, o cara jogava, agarrava e você puxava a Teresa, via o que estava escrito e mandava depois com resposta, né?

Helena Salles: Vocês usavam isso pra se comunicar uns com os outros?

Ricardo Cintra: É, tinha que ser perto, né? Teresa tinha que ser perto. Agora, eu recebi até um radinho de pilha na cela. “Companheiro, estão mandando presente. Através da Teresa”. Devia ser um preso antigo e ele pegou com a família dele, que era dia de visita.

Helena Salles: E passou pra você.

Ricardo Cintra: Passou pra gente saber as notícias de Juiz de Fora. Bom, deixa eu ver mais o que em Linhares… Ah, o general Ariel Paca foi visitar a gente, e olha, eu só lembro dele pela dignidade dele. Porque ele conversou comigo, com o Paulinho e com o Dominguinhos, e a gente estava… ele começou a falar muito em democracia. O Paulinho teve uma coragem enorme, que ele virou pro general e disse “General, tudo que o senhor disse aí…” E ele ainda cobrou do Paulinho que esteve na formatura e nem citou o nome dele, porque o Paulinho citou as autoridades presentes e pulou o general.

Helena Salles: Depois que foi solto?

Ricardo Cintra: Não, isso não, isso foi antes. Ele reclamou isso lá, falando com a gente. Ele sentou com a gente conversando.

Cristina Guerra: Ele chamou vocês três pra conversar?

Ricardo Cintra: Nós três, e tinha um tal de Arapuã também, um tampinha, bravo. Aí, quando o Paulinho falou “Olha, general, a gente concorda com tudo o que o senhor disse aí, democracia e tudo. Mas tem alguma coisa errada, ou o senhor tem que vir ficar aqui junto com a gente, ou então tem que mandar soltar a gente. Porque o senhor está falando em democracia, democracia, do jeito que nós fomos torturados em Belo Horizonte…” Aí o cara disse “Cala a boca”, e ele falou assim “Não, eu vim aqui para ouvi-los”. E ouviu a gente.

Helena Salles: Quem gritou “Cala a boca”?

Ricardo Cintra: O tal de Arapuã.

Helena Salles: Ah, tá.

Ricardo Cintra: Aí, ele falou assim “Não, eu vim aqui para ouvi-los e eu quero ouvi-los”. Aí, eu falei que tínhamos sido torturados e ele disse “Podem ter certeza que aqui vocês não serão torturados, e não vão voltar para Belo Horizonte”, e ele manteve isso. Eu encontrei com ele uma vez na Tijuca, mas eu atravessei a rua porque eu fiquei com medo, né?

Helena Salles: Ele era o general da 4ª Região?

Ricardo Cintra: Ele era general paca, né, achei assim, uma coisa, ele não devia ser desse grupo. Porque eles estavam divididos, né?

Cristina Guerra: Quem era o diretor da penitenciária na época?

Ricardo Cintra: Eu não sei.

Cristina Guerra: O senhor chegou a conhecer o Milton Soares? Esse que morreu na penitenciária?

Ricardo Cintra: Não, também não lembro. Tem muita coisa que eu não lembro. Na penitenciária, depois que quebraram a incomunicabilidade, eu e o Paulinho andávamos com o Dominguinhos do lado assim, porque a gente ainda ia fazer os depoimentos oficiais, conversando com eles, porque não podia falar isso, não podia falar aquilo: “E se me levarem para Belo Horizonte?”, “E se levarem para Belo Horizonte você pode falar tudo”. E conversando, indo pra lá e para cá. E, olha, o Dominguinhos é uma pessoa que eu admiro muito. Mas ele ficou muito arrebentado e ele não estava preparado, ele nem foi preparado para fazer parte de uma organização assim. E ele sofreu muito. Ele apanhou muito mais do que eu e o Paulinho.

Helena Salles: Mas o Paulinho também…

Ricardo Cintra: Não…

Helena Salles: Apanhou?

Ricardo Cintra: Não, apanhou. O Paulinho, o cara deu um soco no estômago dele porque ele falou que tinha úlcera, era um negócio absurdo. E o Paulinho, eu achei de uma coragem, porque eu não tinha coragem de me dirigir ao general do jeito que ele fez. E ele falou…

Helena Salles: E aí, depois dessa conversa com o general, aí vocês relataram as torturas e tal?

Ricardo Cintra: Falamos com ele tudo isso. Aí ele garantiu que não ia ter e não teve mesmo. Depois, logo depois, quebraram a incomunicabilidade. E aí, meu pai, minha mãe, e na época minha noiva, foram me visitar. Aí eu vi meu pai, assim, muito… O papai era o diácono da Igreja Baptista, ele era assim. Em casa, ele no máximo ele botava um pijama comprido e tudo. Aí eu soube que eles botavam o velho nu pra poder entrar pra me visitar.

Helena Salles: Pra revista né?

Ricardo Cintra: Então, quer dizer, aí eu falava com ele “Oh pai, o senhor não precisa voltar aqui não. Eu sei o que o senhor está passando e tudo”. Era terça-feira o dia da minha visita. Na terça-feira o velho estava lá de novo, coitado. E meu pai já tinha tido derrame, já estava bem…

Helena Salles: Já estava mal.

Ricardo Cintra: Bem baqueado, né?

Helena Salles: E cada vez que ia tinha que se submeter a isso?

Ricardo Cintra: Então, quer dizer, é muita humilhação botar o velho nu.

Cristina Guerra: Isso é feito até hoje, essa revista vexatória.

Helena Salles: Você respondeu a inquérito?

Ricardo Cintra: Respondi.

Helena Salles: Depois que saiu você respondeu inquérito?

Ricardo Cintra: Depois que eu saí, eles me proibiram de dar aula aqui, eu fui pro Rio…

Helena Salles: Eles falaram claramente que você não podia dar aula, lecionar mais aqui?

Ricardo Cintra: Não. O Detoni, que era meu diretor no Vital Brasil e no ZAZ, eles não quiseram nem conversa comigo. O Detoni me chamou, virou e falou assim “Cara, eu sou seu amigo, mas eu não posso deixar você dar aula de História. Mas eu já tenho uma saída, você vai dar aula de Educação Física”. Aí eu ri, falei “Pô, Detoni, faço curso de História. Com esse corpo eu vou dar aula de Educação Física?”, ele falou “Você adora futebol, você dá futebol todo dia, não quero saber”, eu falei pra ele “Não Detoni, eu vou pro Rio, vou pra outro lugar, vou tentar minha vida…”.

Helena Salles: Aí, isso que determinou que você fosse para o Rio e ficasse lá?

Ricardo Cintra: É, e o Detoni fez um negócio comigo que agora eu posso falar. Ele falou assim “Se você falar isso, cara, você está me comprometendo”. Ele falou: “Eu vou manter seu pagamento, até você me dizer que está trabalhando”. E manteve mesmo, até o mês de abril ele manteve o meu pagamento. Aí eu comecei a trabalhar…

Helena Salles: Lá no Rio?

Ricardo Cintra: Lá no Rio. Mandei comunicar pra ele que podia suspender meu pagamento que eu estava trabalhando.

Helena Salles: Ele foi bacana, né?

Ricardo Cintra: Mas ele foi, assim, foi muito bacana comigo.

Helena Salles: Aí você respondeu inquérito depois o processo também?

Ricardo Cintra: É, nós fomos julgados, aqui na 4ª Região que era ali naquela praça que eu esqueci o nome…

Helena Salles: Praça Antônio Carlos.

Ricardo Cintra: É…

Helena Salles: A Praça do Canhão.

Ricardo Cintra: E fomos absolvidos, né?

Helena Salles: Todos três…

Ricardo Cintra: É, mas mesmo assim, aconteceu o seguinte, chegavam umas cartas lá em casa, assim, que eu tinha 24 horas pra comparecer aqui no QG. E eu trabalhando no Rio tinha que vir de qualquer jeito.

Helena Salles: Chegava lá no Rio a carta?

Ricardo Cintra: Não, chegava aqui.

Helena Salles: Na casa dos seus pais…

Ricardo Cintra: Eu dei o endereço da casa da mamãe. E aí, eu ia. Eu vinha de lá, eles me deixavam sentado mais ou menos seis horas, depois falava “Oh, tem problema não, pode ir embora, você já compareceu”. Eu, até hoje, eu imagino o seguinte, eles possivelmente estavam pensando que eu podia cair na clandestinidade. Então, eles estavam querendo manter o controle. Porque não tinha outra lógica isso. Mas isso muito tempo. Outra coisa também que me criou muito problema, eu passei no concurso lá para o estado da Guanabara, pra professor, logo, e eles não deixavam eu tomar posse porque eles pediam um tal de atestado de ideologia. E quem que dava atestado de ideologia? O DOPS. Aí, arrumaram um despachante pra mim que eu conseguiria e eu fui lá com ele. Não deram. Aí, como eu virei pros caras e falei assim “Pô, mas pera aí! Isso é até um absurdo. Não tem nada que eu tenha feito”, e tal. E falei meu negócio que eu ainda ia ser julgado como é que eles iam? Aí os caras viraram e falaram assim “Uai, então é muito pior do que a gente pensava”. Eles só tinham lá no DOPS registrado Ibiúna, eles não tinham mais nada. Naquela época eles não tinham essa organização que teria hoje (risos).

Helena Salles: Você acabou falando, né?

Ricardo Cintra: É, eu é que falei. E quem conseguiu isso pra mim foi uma esposa de um professor lá do Batista que trabalhava lá, era secretária lá no DOPS. Ela já tinha conseguido pra um colega meu, que eles tinham assassinado os dois irmãos dele. E ele falou comigo “Tenta!”. Aí, eu falei com esse professor, ele falou com ela, três semanas depois ela mandou lá em casa o tal de atestado de ideologia. E virou pra mim assim “Oh, não preocupa não que o que tinha lá seu, eu queimei!” (risos).

Helena Salles: Aí, com isso você conseguiu assumir o cargo?

Ricardo Cintra: Eu assumi o cargo, mas eu fiquei uns três meses sem receber, né?

Helena Salles: E aí, com isso aí você acabou morando no Rio por décadas, né?

Ricardo Cintra: Não, aí é… Hoje eu costumo dizer o seguinte “Eu voltei pra Juiz de Fora por causa da minha esposa”. Porque eu acabei fazendo todo um círculo de amizade no Rio. E lá eu até acabei progredindo bem, porque eu dei 18 anos de aula no Batista e 24, mas isso ao mesmo tempo, no Bennett e na faculdade. Na faculdade eu acabei até exercendo cargos, assim, de chefia. Eu fui diretor acadêmico, embora não oficialmente. Eles me deram um título de diretor acadêmico em exercício. Por quê? Porque a Bennett é metodista, e no estatuto deles lá, quem pode exercer esses cargos tem que ser metodista. Mas eu assinava documentação, assinava diploma. Eu dirigi uma mesa, acho que a última vez, que o Brizola ainda estava vivo, ele foi participar de uma mesa lá e fui eu que dirigi a mesa. O Brizola e esse Lupi. O Brizola contando a história do PDT, ele foi contando a história e eu assistindo, eles tinham falado que eu era professor de História e ele falava “Tá aí o professor de História que não me deixa mentir!”. Então aí, quando chegou 1937 ele pulou, ele já passou direto pra 1946. Por quê? Porque a ditadura do Estado Novo ele não falou (risos). Mas aí eu falei “Político é político mesmo, né?” (risos). E eu não podia falar nada, eu não ia interromper pra falar, né?

Helena Salles: É, mesmo sendo professor de História, né?

Ricardo Cintra: Mesmo sendo… Os meus alunos, quando eles perguntaram, eu falei “Não, ele esqueceu um período aí meio enjoado”, e tal, mas…

Helena Salles: Ricardo, em que ano foi o julgamento de vocês? Você lembra?

Ricardo Cintra: Não sei. Acho que foi 1974, porque eu acho…

Helena Salles: 1974?

Ricardo Cintra: Porque eu acho que a Graça estava grávida do…

Helena Salles: O julgamento aqui na Auditoria.

Ricardo Cintra: A gente estava preocupado porque se eu for condenado, como é que não vai ser? Ela grávida do meu primeiro filho, né?

Helena Salles: Sei… E aí depois no Rio, quando é que pararam de te procurar, de te chamar?

Ricardo Cintra: Ah, 1976,1977, acabou. Não chamavam, não intimavam mais pra vir pra cá.

Helena Salles: Aí, daí pra frente você não teve mais problema?

Ricardo Cintra: Não, não tive mais problema nenhum. Eu acho, assim, que os meus alunos do colégio, do Batista, porque na faculdade eu já entrei direto, eu dava História. Na faculdade eu dava História Econômica Geral e Formação Econômica do Brasil, aí eu falava abertamente porque já estava numa outra época, foi 1981, né? Aí eu falava abertamente mesmo. Mas aqui, no Batista, os primeiros alunos, eles devem ter falado “Nossa, esse professor tem alguma…”. Porque eu pulava alguns assuntos, né? Porque como é que eu ia falar alguma coisa se eu estava sendo vigiado ainda e podia ser preso, né? Ah! Lá em Belo Horizonte os caras me acusaram de estar dando aula de marxismo-leninismo.

Helena Salles: Era uma das acusações?

Ricardo Cintra: É. E aí eu virei e falei assim “Mas eu tinha que dar aula de marxismo-leninismo porque fazia parte do programa”. Porque no programa, naquela época era separado o vestibular de engenharia e medicina, era só século XX, mas eles pegavam século XIX e XX. Então, tinha lá no programa socialismo e tinha capitalismo. Aí, o cara que estava torturando achou aquilo, aí voltou lá dentro, conversou, com certeza, com o superior, e voltou com a minha apostila assim “Mas precisava dar ideia de Marx e Engels?”. Aí eu virei e falei assim “Olha, como é que eu vou dar aula de socialismo se eu não der a ideia de Marx e Engels? Por acaso foram eles que criaram essa encrenca” (risos).

Helena Salles: Aí tudo era pretexto…

Ricardo Cintra: Era um negócio assim… Você via que os caras estavam interrogando, mas não tinham, às vezes, nem cultura pra isso, né? Outra coisa que eu fiquei revoltado foi no dia do jogo do Botafogo que o Atlético foi campeão, o cara que estava me torturando, ele parou porque chamaram ele pra ver o jogo, acho que a TV Tupi é que dava. E ele virou pra mim e falou assim “Oh garotão”, na época eu era garotão (risos), “Garotão, se meu Galo for campeão eu trago bife com batata frita pra você. Agora, se ele não for, vai ser muito pior do que você passou até agora”. Quer dizer, eu brinco que foi a primeira vez que eu torci contra o Botafogo e eu sou Botafogo, né? (risos). E, pior, ele voltou trazendo bife com batata frita e me abraçando como se eu fosse amigo dele, e eu, assim, todo… Aí, ele virou e falou assim: “Pô, garotão, já acabou meu expediente, já bati até meu cartão”. Eu costumo dizer o seguinte, eles eram burocratas, eles torturavam no horário de expediente.

Helena Salles: Ele falou desse jeito?

Ricardo Cintra: Não, eu que falei, que ele era burocrata.

Helena Salles: Não, ele falou desse jeito “Já acabou meu expediente”?

Ricardo Cintra: É! “Já acabou meu expediente, já bati meu cartão, cara!”. Mas me abraçando como se eu fosse amigo dele e pulando, comemorando a vitória do Atlético. Agora, o bife com batata frita foi bem vindo porque eu estava com uma fome (risos)!

Helena Salles: Cristina, você tem mais alguma pergunta?

Cristina Guerra: O senhor falou sobre Grunewald, na faculdade, no D. A., lembra? Alguém era presidente do D.A.

Ricardo Cintra: É, Luizinho Grunewald.

Cristina Guerra: Ele tinha parentesco com o Major?

Ricardo Cintra: Eu acho que não. Não, eu acho que não, porque ele era da AP.

Cristina Guerra: Esse rapaz era da AP?

Ricardo Cintra: Da AP. Ele foi candidato a vice na minha chapa, já com a mesma posição minha de entrar denunciando tudo. O Luizinho, uma vez, isso eu não sei se eu já contei pra Helena, ele estava muito bêbado na Rua São João, e falou que o primeiro militar que ele ia fazer e acontecer, e eu tinha passado pelo Josias, né? (risos). Mas pra mim segurar o Luizinho, ele estava muito bêbado. Eu falei “Luizinho vamos embora, eu vou te levar em casa”. E eu não sabia onde que ele morava, “Onde que é sua casa Luizinho?”, ele disse “Minha casa é o mundo!”, eu falei “Pô, você podia ser mais preciso” (risos). Mas o Luizinho faleceu, né? Eu soube que ele faleceu em São Paulo, né? Ele fazia jornalismo.

Cristina Guerra: Teria alguma pessoa que o senhor acha que seria bom o senhor dar o nome pra Comissão, pra que a gente chamasse pra prestar um depoimento? Alguém que o senhor se recorda…

Ricardo Cintra: É o Paulinho, mas o Paulinho está no Paraná. O Paulinho seria ótimo.

Helena Salles: É Paulo?

Ricardo Cintra: É Paulo César de Oliveira.

Helena Salles: Paulo César de Oliveira.

Ricardo Cintra: A gente só chama ele de Paulinho Parceiro.

Cristina Guerra: E o senhor se recorda de mais alguém que seria bom?

Helena Salles: Domingos está em Brasília, né?

Ricardo Cintra: É, o Domingos está no Rio e em Brasília, o Domingos mora na Lagoa. Seria interessante. Agora, o Domingos eu não sei se…

Helena Salles: Se está numa situação de saúde boa.

Ricardo Cintra: A saúde dele está complicada. Ele pra pegar o telefone, ele vem assim, olha… E, pior, ele já sabia disso. Ele estudou neurologia, pra estudar o caso dele.

Helena Salles: Ele tem uma doença degenerativa?

Ricardo Cintra: Degenerativa. Então não sei se valia a pena.

Helena Salles: Ele seria uma boa pessoa pra depor, né?

Ricardo Cintra: Ele seria. Nossa, o Luizinho sofreu muito.

Helena Salles: Eu acho que é isso, né, Cristina? Tem mais alguma coisa?

Ricardo Cintra: Da faculdade eu não lembro mais ninguém. Que tenha sido preso…

Helena Salles: Bom, em todo caso, se você lembrar pode nos procurar pra sugerir um nome ou uma pessoa que a gente possa procurar também.

Ricardo Cintra: Não, claro! Eu te ligo.

Helena Salles: Você me liga. Ricardo, muito obrigada.

Ricardo Cintra: Obrigado vocês. Ah! Uma coisa que eu não falei, mas que é importante, é que a gente tem que denunciar sempre isso. Quer dizer, eu faço questão de prestar depoimento pra que isso não volte a acontecer. Acho que eu falei isso no princípio. Mas outra coisa que me incomoda muito é você, lendo a sessão de carta de jornais, as pessoas pedindo tratamento igual, que querem as pessoas que participaram, ser julgadas também. Como se essas pessoas já não tivessem sofrido o suficiente, alguns assassinados e tudo. Outro dia eu disse, numa das reuniões dessas, que a gente não pode dar tratamento igual a eles, que nós somos seres humanos, então, a gente não vai conseguir torturar torturador pra confessar a tortura. A gente não vai conseguir desaparecer com o corpo de ninguém. Isso eu acho que a gente tem que registrar, porque é um negócio absurdo os caras quererem entrar com esse negócio de desmoralizar a Comissão da Verdade, falando que tem que ter tratamento igual. Que tratamento igual? Se a gente fosse fazer o tratamento igual a eles, eles estariam sendo agora torturados pra confessar tortura.

Helena Salles: O que fizeram, é…

Ricardo Cintra: E esse último caso aí que eu li no jornal, o cara falar que estava cumprindo a obrigação dele, levando corpos para serem queimados…

Helena Salles: Incinerados, né?

Ricardo Cintra: Ele disse que não tinha problema de consciência porque ele estava fazendo o serviço dele. Que coisa!

Helena Salles: Ricardo, muito obrigada por você ter vindo aqui em cima no Campus…

Ricardo Cintra: Foi um prazer enorme!

Helena Salles: … pra dar depoimento, e você está ajudando a Comissão. A gente está aí…

Ricardo Cintra: Eu ia trazer o… porque eu fiz um depoimento pra…

Helena Salles: Pra Comissão Nacional.

Ricardo Cintra: Pra Comissão Nacional, ia trazer esqueci. Mas acho que eu disse quase tudo que teria, dizia lá.

Helena Salles: Se você localizar esse depoimento, ele tiver coisas que não foram ditas aqui, talvez você possa ter esquecido…

Ricardo Cintra: Aí eu mando pra vocês.

Helena Salles: Aí é só você entregar pra gente, né, Cristina?

Cristina Guerra: Sim.

Helena Salles: Então é isso. Muito obrigada, mais uma vez.

Notas

1 Organização Continental Latino Americana e Caribenha dos Estudantes.