Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora
Depoimento de Cleber de Carvalho Troiano
Entrevistado por Cristina Guerra e Helena da Motta Salles
Juiz de Fora, 15 de agosto de 2014
Entrevista 009
Transcrito por: Rafael Carrano Lelis
Revisão Final: Ramsés Albertoni (1/10/2016)
Helena: Cleber, você podia falar o seu nome completo, a sua profissão, onde é que você mora e a história de quem… sobre quem que você veio aqui falar na nossa Comissão.
Cleber: Meu nome é Cleber de Carvalho Troiano, sou nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, tenho 61 anos, e venho aqui relatar a história do meu irmão que foi um preso político, acredito que seja um dos maiores presos políticos desse país, o nome dele é Rodolfo de Carvalho Troiano, morto, assassinado, na Guerrilha do Araguaia, em 1974.
Helena: Então, você podia começar então relatando os fatos do seu irmão desde o início, o que aconteceu, a que organização ele pertencia, quando é que ele foi preso, contar a história dele pra gente…
Cleber: Começando pela história do meu irmão, vou dizer ainda na sua adolescência. Ele sempre foi um garoto muito inteligente, com 14, 15 anos já era um menino muito estudioso, lia muito, um menino que gostava muito de leitura; até uns 14, 15 anos ele já falava o inglês e latim bem fluente, teve a oportunidade de estudar num seminário de padre, mas não veio a concluir porque não era a vocação dele. Ele sempre foi um idealista, me parece que a vocação dele sempre foi o lado da política, ele pertencia ao Partido Comunista do Brasil, na época, aonde ele achava que era o melhor para o nosso país, era a ideologia dele; e foram se passando os anos, ele foi entrando mais na política, se interessando mais, até que, lá pros anos de 1967, 1968, ele já estava entranhado, mais vocacionado para o Partido Comunista, aí começou a entrar através de colegas e de estudos e pesquisas. Ele foi entrando mais na política, o ideal dele era um sistema político que era o comunismo, ele gostava muito do sistema de governo russo, então, ele estudava muitos livros, que vinham pra ele de fora, ele ganhava não sei como, minha mãe também não sabia como, porque ele entrou nisso, não falou pra ninguém, minha mãe achava que ele estava estudando, que ele ia pro colégio, ia pra casa, ele falava que ia pra casa de amigos estudar, porque tinha prova, precisava se inteirar mais, a gente tinha uma situação financeira muito precária, ele dependia muito dos outros pra estudar, os amigos sempre dava suporte, ele até estudou no Colégio Machado Sobrinho, que é um dos maiores colégios que tem em Juiz de Fora, muito conceituado e, na época, o dono do Machado, que era o diretor, o presidente, deu ele uma bolsa por achar um menino muito prodígio, muito inteligente, deve ter nos arquivos lá do Machado, o nome dele, como estudante, quando ele estava no terceiro ano do ensino, antigamente falava científico, hoje fala ensino médio; e dali a mamãe achando que ele tava estudando, ele já estava se preparando pro vestibular de medicina, que era o ideal dele fazer medicina, mas foram se passando um tempo, ele ficava mais arredio de casa, às vezes ficava afim de se abanar fora de casa, mamãe achando que ele tava estudando, até que determinado, eu acredito, foi lá pelos anos 1968, 1969, mais ou menos 1969, chegaram dois militares na nossa porta, eu tinha meus 14 anos, dois oficiais do exército, com carabina, antigamente eu acho que falava era fuzil, tinha aquelas pontas, não sei nome de arma, não sou interado, chegou dois, eu tava na porta assim, a gente morava numa casinha de beco, de vila, chegou e perguntou, o cara virou a carabina, falou “Aqui que mora o Rodolfo?”, eu falei “É”, aí “Sua mãe está aí?”, eu falei “Está”, aí eu bati na porta, minha mãe veio, na hora que a minha mãe chegou, falou “A senhora é mãe do Rodolfo?”, “Sou”, eles foram entrando pra casa adentro, reviraram tudo, não acharam nada e foram embora, com muita truculência, eram pessoas violentas, autoritárias, autoritárias mesmo, e foram embora. E se passou um tempo…
Cristina: Tempo, quanto tempo?
Cleber: Se passou uns, um mês, dois meses, eles conseguiram prender meu irmão, acharam meu irmão, ele foi preso em Rubim, uma cidade próxima a Belo Horizonte. Em Rubim trouxeram ele pra Juiz de Fora e ficou preso em Linhares, ficou um tempo preso, depois saiu; eu lembro que queimaram ele todo com cigarro…
Cristina: Aqui em Linhares?
Cleber: Aqui em Juiz de Fora, todo com cigarro. Essa é a história que eu sei, queimaram com cigarro. Aí nós íamos visitar…
Cristina: Mas não bateram nele não? Só queimaram?
Cleber: Dessa vez não bateram, porque o meu pai era funcionário público do exército, a minha mãe era uma pessoa que ficava muito em cima, sempre ia no quartel, pedia, queria ver o filho e pedia muito, eles vendo aquele sofrimento dela e ela teve a oportunidade de vê-lo e foi se passando o tempo, aí ele saiu livre, ele saiu livre…
Helena: Quanto tempo ele ficou no Linhares? Você lembra?
Cleber: Seis meses.
Helena: Seis meses.
Cleber: Aí teve o julgamento, ele saiu livre, aí ele foi trabalhar na Light em São Paulo. Nessa época ele já estava todo queimado com cigarro, mas foi trabalhar em São Paulo. Fez um concurso, menino com 18, 19 anos, tinha mais ou menos acho que era 18… 18 e pouco. Ele fez um concurso na Light, passou. Que inclusive eu tenho o documento que comprova no depoimento dele falando que eles buscaram ele na Light. Na época do segundo depoimento aqui, ele fala que, dá o depoimento que trabalhava na Light. Aí, depois de uns três meses que ele trabalhava na Light, foram lá, prenderam ele de novo, levaram pra Belo Horizonte, bateram muito na boca do estômago, tanto que ele comia, daí 10 minutos, 5 minutos, a comida saía, que não conseguia parar, ele já tava bem, bem, é como se diz…
Helena: Prejudicado, né?
Cleber: Não, não é, não estou sabendo falar o termo, debilitado! Ele já era uma pessoa debilitada! Aí ele saiu livre…
Cristina: Só um minutinho…
Cleber: Depois ficou mais seis meses, daqui saiu livre…
Cristina: Desse período da Light, que ele foi preso em São Paulo, foi pra Belo Horizonte, quanto tempo ele ficou em Belo Horizonte?
Cleber: Eu calculo que ele ficou mais ou menos lá um… eu não sei se foi uma semana ou um mês. Aí, a mamãe lutou tanto pra trazer ele pra Juiz de Fora, me parece que foi uma semana, de uma semana a um mês, entre esse intervalo.
Cristina: Aí ele chegou muito debilitado…
Cleber: Não, aqui ele já tava debilitado, muito debilitado. Aí ele ficou preso, esteve o julgamento, saiu novamente, aí foi embora, não falou pra onde ia. Quando nós descobrimos, a mamãe já estava morta quando nós descobrimos o paradeiro dele, a minha mãe já estava morta. Ela não soube o que tinha acontecido com ele, eu sei que ele sumiu, nunca mais apareceu, minha mãe não conseguiu vê-lo mais, nem saber se ele estava vivo ou morto.
Cristina: Então vou te interromper de novo. Ele veio pra Linhares, quanto tempo ele ficou preso nessa segunda prisão dele?
Cleber: Uns seis meses também…
Cristina: Também?
Cleber: Também.
Cristina: Também foi absolvido?
Cleber: Foi absolvido.
Cristina: Aí quando ele saiu…
Cleber: Mas aí ele já estava debilitado…
Cristina: Mas aqui em Linhares, quando essa segunda prisão, você foi visitá-lo?
Cleber: Essa segunda não, essa segunda prisão não, porque acho que ele não ficou muito tempo, ele saiu, porque a minha mãe foi no julgamento dele. A minha mãe que acompanhava mais. Meu pai sempre foi arredio, era um cara que não queria nem saber. Então, ele pegou, ele saiu, foi embora de casa, falou que ia trabalhar, nunca mais apareceu. Minha mãe morreu sem vê-lo, sem saber notícia nenhuma. Aí, em 1974, através do jornal O Globo, nós descobrimos que ele tinha sido assassinado no Araguaia. E ali a história foi se desenrolando, foi isso que aconteceu. Agora, era uma pessoa muito inteligente. Ele era uma pessoa que era arrimo de família, uma pessoa família, um cara muito educado, quem procurar saber quem é a pessoa dele melhor é só ir no Colégio Machado Sobrinho, ele também estudou na Escola Normal, quem gostava dele era o famoso doutor João Panisset. O doutor Panisset conheceu demais o meu irmão, meu irmão estudou na Escola Normal, aonde ele ia era tranquilo recebê-lo e querer que ele… bolsa ele ganhava sem problema nenhum, mas o que acabaram com a vida dele mesmo foi a segunda prisão dele lá em São Paulo, na Light. Buscaram ele, prenderam, ali a vida dele acabou.
Helena: Foi nessa prisão lá em São Paulo que ele sofreu mais queimaduras…
Cleber: Lá em São Paulo, ele apanhou muito em Belo Horizonte.
Helena: Sei…
Cleber: Em Belo Horizonte sim.
Helena: Apanhou também.
Cleber: Muito, em Belo Horizonte que eles debilitaram ele…
Helena: Sei…
Cleber: Ele já era uma pessoa debilitada.
Helena: E depois em São Paulo novamente?
Cleber: Não, São Paulo não, que eles prenderam ele em São Paulo…
Helena: Aí entã…
Cleber: Quando ele estava na Light e levou pra BH…
Helena: Ah, entendi…
Cleber: BH deram muita cacetada na boca do estômago dele…
Helena: Sei…
Cleber: Ali ele ficou debilitado. Aí ele foi embora pro Araguaia, lá ele ficou na guerrilha.
Cristina: E alguma vez o seu irmão te falou nomes, nomes dos colegas que foram presos com ele, nome de torturador, locais de tortura…
Cleber: Olha, a única vez que ele falou que eles queimaram ele aqui todo com cigarro. Foi a única vez. E que em Belo Horizonte que ele sofreu mais tortura, que eles pegaram ele em São Paulo e levaram pra BH.
Cristina: Ele fez algum relato sobre o hospital? Se ele foi torturado, machucado, levaram pra algum hospital? Aqui ele foi a algum hospital?
Cleber: Não! Nunca levaram ele pra hospital não, bateram e já tá batido e acabou, nunca levaram pra hospital não, bateu está batido e acabou, não tem isso não! Eu sei que ele fala dos amigos dele que foram presos com ele, ele fala muito do Colatino, porque o Colatino era muito amigo dele. Tem uns outros também, porque eu tenho um processo, que eu vou passar pra você que é presidente da Comissão da Verdade em Juiz de Fora, vou te passar todo o processo e o relato também, pra provar que ele trabalhava na Light, pra você e você vai dar uma estudada no processo, vai conhecer os amigos dele, vai saber dos depoimentos dele, que ali tem tudo. Porque o meu irmão era o seguinte, ele dava os depoimentos dele, mas sem entregar qualquer colega, ele não, não entregava. Colega dele era colega, era amigo, ele não entregava, ele falava das atividades deles, das atitudes dele.
Cristina: Então, Cleber, pelo o que você está dizendo, ele entrou na militância com 17 anos de idade…
Cleber: 17, 18 anos, mas ele já tinha uma tendência com isso depois dos 15, 16; ele já tinha uma tendência, porque ele era uma pessoa que lia muito! Ele era muito estudioso, era um cara muito inteligente, ele lia muito, ele passava noites lendo livro…
Cristina: E ele morreu com quantos anos?
Cleber: 24.
Helena: 24…
Cristina: A última vez que você esteve com o seu irmão, você se recorda?
Cleber: A última vez que eu tive com ele?
Cristina: É…
Cleber: Eu tive com ele foi em 1970, na garagem, porque o prédio que eu morava entrava por uma garagem, tinha uma lateral, mas entrava pela garagem também, é uma briga que ele teve com esse meu irmão mais velho do que eu, esse que é o do meio, eles tiveram uma briga, e dali ele foi embora.
Cristina: Aí você nunca mais viu?
Cleber: Nunca mais, nem mamãe, ninguém viu ele. Ele foi pra dentro de casa falou com mamãe “Ó, vou embora…”, foi embora no outro dia, nunca mais voltou.
Cristina: A sua família sofreu perseguição, preconceito?
Cleber: Olha, o que aconteceu é o seguinte: como eu era muito novo, tinha 14, 15 anos, a mamãe só procurava, a gente tentava achar, mas na forma com que chegou esses dois oficiais procurando ele, não tinha como a gente querer peitá-los, não tinha como a gente querer partir pra cima, partir pra cima no sentido de exigir alguma coisa, porque a gente já sabia como é que seria a reação do outro lado. Se nós tivéssemos uma ação, eles teriam uma reação, e a gente já sabia que a reação era a retaliação. Que tipo de retaliação? Poderia ser até torturar, matar; então, só a retaliação da época, só o próprio sistema de governo da época te deixava assustado, já te inibia. Eu era muito novo, um adolescente, na minha época não era igual na época de hoje, nós éramos adolescentes bem dependentes; os adolescentes hoje já não são mais dependentes, hoje, um adolescente, ele já tem praticamente vida própria, ele já vive noutro sistema de conduta, de criação. Na nossa época, era outro tipo de conduta dos pais, era de obedecer. Hoje já é diferente, hoje uma menina, um rapaz de 14 anos hoje, ele, praticamente, ele tem informação de tudo. Já é bem esperto, antigamente a gente já era bem… é diferente.
Cristina: Então o seu irmão não conversava com vocês em casa…
Cleber: Não…
Cristina: … sobre nada?
Cleber: Não. Meu irmão era uma pessoa fechada, muito reservada, falava pouco e agia mais. Ele era muito ligado à minha mãe. Sei que ele gostava muito de mim, porque ele pagou colégio pra mim, quando ele entrou pra Light falou “Mãe, não deixa o Cleber estudar, porque ele está muito magrinho, eu vou pagar o colégio…” Eu devia ter guardado essa carta, mas não guardei, porque ficou com a minha mãe, não ficou comigo, não sei onde a minha mãe enfiou. Mandava o dinheiro no envelope, entendeu? Meu irmão era um cara espetacular! Mas era muito reservado, muito reservado. Ele era fiel nas ideologias dele, muito fiel, e não tinha medo, ele era sem temor. Pra ele morrer, não era violento, não era do tipo violento, isso ele não era, mas era do tipo que a posição dele era aquela, morria ou matava, era aquela a posição dele, ele tinha uma ideologia.
Helena: Firme, né?
Cleber: Firme, muito firme!
Helena: Quando eles foram na sua casa pela primeira vez, que invadiram a casa, entraram e tal, ele ainda morava em casa, não tava na clandestinidade ainda não…
Cleber: Morava em casa, só que, não, ele morava em casa, inclusive tinha pilhas de livro dele dentro de casa, que, não sei porque, eles não conseguiram achar, porque eles estava bem atrás do meu irmão, eles com certeza pegariam os livros também, poderia até por a minha mãe como cúmplice.
Helena: Sim…
Cleber: Poderia até por como cúmplice, mas poderia pô, ela aceitar aquilo lá, mas ela deu sorte, ou não sei, porque eles estavam tão fissurado pra pegar que nem viram.
Helena: Agora, depois que eles foram lá, então, é que saiu de casa, aí já foi, é…
Cleber: Não!
Helena: Ainda voltou?
Cleber: Não! Depois que eles foram lá, é que ele foi preso…
Helena: Sim, foi algum tempo depois…
Cleber: Mas só não foi em casa, ele foi preso… primeiro eles acharam uma casa em Santa Luzia, só que prenderam ele em Rubim.
Helena: Sim…
Cleber: Uma cidade próxima a Belo Horizonte…
Cristina: Que casa em Santa Luzia?
Cleber: A casa era na Rua Chácara. Isso tem no processo, eu posso te…
Cristina: Mas que casa é essa? É uma casa de reunião?
Cleber: Era uma casa onde é que tinha os livros de reunião dos estudantes…
Cristina: Ah, sim…
Cleber: … é onde ele ia…
Helena: Entendi…
Cleber: … reunia os estudantes, era uma casa de reunião dos estudantes, ali ela já… como diz, era um comitê, ali ele…
Cristina: Iam articular, eles articulavam…
Cleber: Eles articulavam tudo ali.
Cristina: E você se recorda de nome de algum amigo dele, assim, dessa casa?
Cleber: Tem no processo, eu vou te passar.
Cristiana: Ah, tá.
Cleber: Eu vou te passar o processo, porque o processo ele é, ele, dá mais detalhes, né? Tem os depoimentos do meu irmão, tudo direitinho, aonde ele foi preso…
Helena: E entre uma prisão e outra, é que eu quero entender, assim, em que momento que ele entra na clandestinidade. Porque quando foram na sua casa pela primeira vez, ainda morava com a família, aí, depois ele é preso, quando ele é solto, que ele é absolvido, aí, ele volta a morar com vocês, não?
Cleber: Não.
Helena: ou ele já vai…
Cleber: Quando ele foi absolvido de vez, ele teve um desentendimento com o meu irmão, esse que, meu irmão do meio, aí ele falou “Mamãe não vou ficar aqui…”, que esse irmão do meio é muito problemático, então, é difícil de lidar, aí ele falou “Mamãe, ó, eu vou embora, eu vou trabalhar, depois eu volto”. Nunca mais voltou.
Cristina: E foi pra São Paulo, pra Light, não é isso?
Cleber: Não.
Helena: Antes, isso é antes.
Cleber: Não, essa última vez, que ele apanhou em BH, que ele apanhou em Belo Horizonte, que já estava debilitado, que ele veio pra cá em 1970, isso eu lembro que foi em 70.
Helena: Aí já foi pra guerrilha.
Cristina: Aí foi a briga com o seu irmão…
Cleber: Foi, aí ele foi pra guerrilha.
Cristina: Você o viu na garagem e depois você nunca mais…
Cleber: É, ele falou que “Mamãe eu vou sair, que eu vou trabalhar, vou arrumar um emprego” e nunca mais voltou.
Cristina: E nunca mais mandou dinheiro…
Cleber: Não! Não. Ele sumiu, nunca mais!
Helena: Sobre o período da guerrilha, vocês tiveram depois alguma informação?
Cleber: Nada!
Helena: Nada…
Cleber: Nada! Nada… Procurou, procurou, mas nada. Porque, até porque, nessa época, era muito difícil alguém querer falar.
Helena: Claro.
Cleber: As pessoas tinham medo de falar e sofrer retaliação.
Helena: E o corpo dele nunca foi achado?
Cleber: Não. Não foi encontrado.
Helena: Isso.
Cleber: Existe no Araguaia, eu fui até convidado, o Gabriel teve na minha casa, me convidou pra ir no Araguaia, ele disse que o governo pagava toda a passagem, pra mim ajudar nas busca dos corpos.
Helena: Sim.
Cleber: Tá certo? Eu até me comprometi a ir, falei “Eu vou”, pego um avião, vai daqui pra BH, de BH pra lá. Mas eu não fui. Foi até bom eu não ter ido. Há um problema, é o seguinte, você sabe que lá têm, arqueólogos internacionais pra identificar os corpos. Por quê? Eles queriam que eu fosse daqui pra BH, do Rio, pro Rio. Aí eu falei “Não! Eu não vou ficar indo pra lá, indo pra cá, ficar dentro de aeroporto…”. Tinha que ir pro Rio, pro Rio pra BH, de BH não sei pra onde, aí eu não quis ir.
Helena: Sim.
Cleber: Mas eu, até foi bom eu não ter ido, porque eu fiz um contato com os Direitos Humanos e eles me comunicaram que eu não deveria ter ido mesmo, porque o que está acontecendo é o seguinte, está muito difícil achar, identificar os corpos, porque lá é um lamaçal, é água, é um, é um brejo, e esse tempo que passou, pra identificar é muito difícil, porque os ossos já tão tudo deteriorado, tudo podre, é difícil.
Helena: Só com DNA, né?
Cleber: Não. Eu fiz o DNA.
Helena: Fez…
Cleber: Eu já fiz, a Polícia Federal já me tirou a mucosa pra fazer o DNA. Está lá em Brasília, mas não identifica o corpo, é difícil, porque lá é um brejo…
Cristina: É muito insalubre, não é? E tem muita, tem muito, muitos ossos…
Cleber: É, está muito podre as coisas. Então, elas falaram “Não faça isso, porque…”, sabe o que que fizeram? Foi uma menina, tem uma menina que ela foi lá pra identificar o corpo, eles mandaram ela assinar um documento. Ela assinou. Só que ela achou que já tinha identificado o corpo. Não! Aquele documento era pra falar se era o corpo da pessoa. Chegou lá, não era o corpo do pai dela, pai, sei lá, um parente, acho que era pai. Não era. A menina está num trauma, ficou depressiva. Então, isso foi um golpe que esse governo do PT deu. Pra quê? Não, nós estamos procurando, entendeu? E não pode, eu não posso assinar um papel pra eles, se eles não provarem que o corpo é do meu irmão. Deu pra você entender?
Helena: Então, ninguém da família esteve lá na região do Araguaia?
Cleber: Não. Ninguém. Ninguém teve.
Helena: Entendi.
Cristina: Que Gabriel que te chamou pra…
Cleber: O Gabriel! O Biel!
Helena: Ah, o Gabriel…
Cristina: Ah, não, o Gabriel hoje…
Cleber: O Gabriel hoje, aquele que faz parte…
Cristina: Não, porque o Gabriel Pimenta também estava no Araguaia…
Cleber: Não, o Gabriel, Biel, o Biel faz parte da Comissão…
Cristina: Sim, o Biel Santos, né? Aquele que é do PT.
Helena: Vereador.
Cleber: É, o problema é o seguinte, quer dizer, você vai assinar um termo, aí, aí você está isento, o governo está isento, porque o direito internacional está obrigando, o governo é obrigado a entregar às famílias todos os corpos, é obrigado! E já passou o prazo, já passou, deve ter um ano que passou o prazo de entregar; mas tem esse problema, não consegue identificar. O Biel me explicou, “Cleber, lá é um lugar alagado, é muito difícil, já tentamos de tudo”. Então não adianta! Não vai achar!
Helena: E foi a Polícia Federal que te procurou pra esse material pro exame de DNA?
Cleber: Foi, a Polícia Federal, a gente tinha que ir lá, pra poder tirar, é da saliva, mucosa, você faz o coisa pra ele poder identificar, mas é muito difícil, os corpos estão lá no mar.
Helena: Isso foi quando? Essa retirada do DNA…
Cleber: Ah, deve ter uns dois anos…
Helena: Dois anos?
Cleber: Deve ter uns dois anos.
Helena: E de lá pra cá você não teve nenhuma notícia não?
Cleber: Não, porque não consegue. Está lá em Brasília. Eles estão querendo, dizem que tem tecnologia avançada, mas não consegue, porque os ossos petrificaram, não consegue…
Helena: É muito tempo…
Cleber: Entendeu? O cara que sabia onde estava o meu irmão, lá, foi lá, já não tava mais.
Cristina: Quem é, que sabia o quê?
Cleber: Ele sabia, falou “Oh, aqui está o corpo do Rodolfo”, mas não está mais, entendeu?
Helena: O que participou da guerrilha também?
Cleber: Não, o cara é de lá.
Helena: Cara de lá, morador?
Cleber: É de lá. Ele é morador lá!
Helena: Entendi…
Cleber: E está vivo!
Helena: E ele achava, ele indicou um local?
Cleber: Ele indicou, mas não achou. Entendeu?
Helena: Aí escavaram lá e não acharam nada?
Cleber: É, não achou, eles estão lá, mas não acham. É difícil, os ossos já petrificaram, eu acho que igual o Ulysses Guimarães, sumiu e não achou mais, entendeu?
Helena: No mar é ainda mais difícil…
Cristina: O que você acha? Está bom…
Helena: Acho que é isso. Você gostaria, assim, tem alguma outra coisa que você gostaria de deixar registrado, de falar…
Cleber: Eu que eu posso deixar registrado é que, pra cidade de Juiz de Fora, pra aqueles que são políticos, que fazem parte da política em Juiz de Fora, que eles deveriam se inteirar mais sobre a vida do meu irmão, quem foi o meu irmão, e tem outros também aqui em Juiz de Fora que foram presos políticos, que são pessoas ilustres, que podem contribuir muito pra cidade de Juiz de Fora. Eu acho uma cidade, em termos de termos de política, pouco politizada, Juiz de Fora é muito pouco politizada! Juiz de Fora é uma cidade onde as pessoas também, os próprios moradores, aqueles que são da cidade de Juiz de Fora, deveriam estudar mais, pesquisar mais sobre esses que se candidatam a algum cargo político e pra saber da história de Juiz de Fora. Porque meu irmão, pra mim, eu considero um dos maiores preso político dessa cidade, por quê? Um cara que recebeu até medalha em Belo Horizonte, nós recebemos medalha do presidente da Câmara dos Vereadores, que é o Betinho Duarte, que escreveu um livro sobre ele, que tem uma rua com o nome do meu irmão em Belo Horizonte, no bairro Braúnas, se quiserem gravar isso, bairro Braúnas, chama Rua Rodolfo de Carvalho Troiano; tem um amigo meu que me informou agora que…
Cristina: Em Campinas…
Cleber: … tem um nome de rua do meu irmão em Campinas.
Cristina: É, eu vi. Tem em Campinas.
Cleber: Então, eu não consigo entender como que um cara, pra mim, em termos de política, ou até mesmo de história, até mesmo pra enriquecer o lado cultural dessa cidade, porque a maior importância que eu acho, desse depoimento e dessa Comissão, pra mim, a maior importância, é uma, é que essas crianças de hoje, esses alunos de hoje, seja de nível fundamental, de nível médio e superior, principalmente o fundamental e o médio, saberem dessa história desse país, porque muita gente não sabe; poxa, mas que foi a ditadura? Quem lutou na ditadura? Por que lutou? Pra que nós tivéssemos o quê? Um país melhor, né? Democracia é o quê? Democracia é um país onde a pessoa tem que ser politizada, a pessoa tem que ter cultura! Agora, ela só vai ser politizada e ter cultura se ela conhecer a história. O Brasil vem de uma ditadura, uma ditadura brava, que torturou. Porque o país sofre com isso até em termos econômicos e avanço pra ser primeiro mundo, ele tem que saber o que é história. Eu acho maior importância é pra que as escolas, as escolas, principalmente de nível fundamental, fundamental e médio, porque quando chega ao nível superior ela pode se envolver por si própria, mas é muito importante, pegar esses livros que conta a história do meu irmão, história de outros, que são da cidade, que são de outras cidades, pra que ela com o tempo ela passa até mesmo pra fortalecer a democracia.
Cristina: Sim.
Helena: Quantas vezes você já foi procurado, eu estou me lembrando disso agora, quantas vezes você já foi procurado, assim, pra relatar o caso do seu irmão, pra, por essa razão, em que situações que você já foi procurado?
Cleber: Qual razão que você fala?
Helena: Pra falar sobre o seu irmão, sobre a história do Rodolfo.
Cleber: Olha, sobre a história verdadeira, um depoimento assim que eu acho mais importante, esse é o primeiro. Por quê? Porque eu estou dentro duma faculdade, diante de duas pessoas que têm um nível elevado, cultural, e que se interessam pela verdade e têm interesse em propagar, eu acho que aqui é a primeira, mais importante, porque eu fui procurado pela televisão, mas a televisão é só um informativo muito rápido, é um informativo muito rápido, não é uma coisa assim que…
Helena: Você foi procurado pra uma entrevista?
Cleber: É, eu já fui procurado pela Globo duas vezes…
Helena: Sim…
Cleber: Duas vezes, pelo jornal Tribuna, umas duas vezes, e pelo outro Comissão da Verdade, eu digo outro depoimento…
Cristina: Outro depoimento…
Cleber: … do Comitê, outro depoimento que eu dei pro Comitê. Mas eu acho que pra minha o mais importante é esse aqui, ó. Eu acho que esse depoimento aqui é importante para os alunos da faculdade, pra eles é importantíssimo, eu acho que eles devem levar esse depoimento meu e de outros pra dentro da sala de aula e que essa Comissão da Verdade aqui, junto com a doutora Cristina que é importante, é levar isso mais adiante, isso pra mim tem um peso mais cultural e mais importante pro país, porque o que passou, passou, não vai voltar, é história que ficou. Eu acho que essa história tem que ser contada para os nossos filhos, para os nossos netos, tataranetos e assim vai. Cabral descobriu o Brasil, o Brasil vivia uma ditadura, o Brasil hoje é o quê? É uma democracia, mas eu acho que uma democracia ainda que precisa de muito. E essa história é muito importante pro Brasil.
Helena: Ser conhecida, né?
Cleber: Muito importante! É dum valor imensurável, eu acho que essa é muito importante.
Cristina: Eu acho então que a gente deveria agradecer você de vir aqui pra prestar esse depoimento pra gente e agradecer e encerrar; vamos continuar escutando…
Helena: É, agradecer por estar contribuindo com o nosso trabalho da Comissão…
Cristina: Isso! Com o nosso trabalho…
Cleber: É, eu até acho, eu fico mais feliz não por mim, pelo meu irmão. Eu amava demais esse meu irmão. Falar dele me emociona, porque ele tem uma história. Ele lutou pra que esse país fosse diferente!
Cristina: Pois é, e um dos trabalhos da Comissão que eu acho também de extrema importância, é que Juiz de Fora ainda tem ruas com nome de ditadores, escolas com nomes de ditadores. E a gente quer mudar isso, então o trabalho da Comissão também visa homenagear pessoas que lutaram a favor da democracia.
Cleber: É, eu acho que todos aqueles que foram torturadores, aqueles que tentaram segurar um regime que isso prejudicou o país, eu acho que esses não têm história boa, a história é ruim. Eles têm que ser contado em livros, mas deixar memória deles em nome de rua, ou até mesmo alguma estátua, acho que devia banir. Porque é uma história triste, né? Não tem nada de bom…
Cristina: É, então vamos encerrar… Muito obrigada.
Helena: Muito obrigada pela sua participação.
Cleber: É, estou sempre às ordens, eu é que agradeço vocês em nome do meu irmão.
Helena: Muito obrigada.