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Ismair Zaghetto

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Ismair Zaghetto

Entrevistado por Rosali Henriques e Danilo Pereira

Juiz de Fora, 28 de novembro de 2014

Entrevista 003

Transcrito por: Yasmin Machado

Revisão Final: Ramsés Albertoni (15/12/2016)

 

Rosali: Ismair, a gente queria começar o depoimento com você falando o seu nome completo, o local e data do seu nascimento.

Ismair: Ismair Zaghetto, o meu nome. Filho de João Zaghetto, e Maria Zaghetto. Nascido e criado em Juiz de Fora, onde nasci em 1933. Um período longo, imenso. Passado aí, uns vinte, trinta anos dentro de uma redação de jornal, e outro tempo dentro de sala de aula, lecionando sociologia e antropologia. Ter a oportunidade de ter vivido tantas coisas, né, ao longo desse período. Alguém como eu que tem uma ansiedade muito grande de aprender, a oportunidade de ver coisas novas é muito interessante. Porque a todo instante você vê coisas que te chamam a atenção, né. Ontem eu tive, ontem, por coincidência, eu tive a oportunidade de ver a vida do Steve Jobs, o filme. Ele fala uma coisa extraordinária, as pessoas que são loucas o bastante para imaginar que podem mudar o mundo são justamente aquelas que o fazem. Eu achei isso maravilhoso, não é? Tem gente que se autoimagina capaz de tantas coisas, no caso aí, o Steve Jobs falando sobre pessoas que pensam em mudar o mundo são aquelas que realmente realizam as coisas, né. Essas coisas do caso de Juiz de Fora… um Bernardo Mascarenhas, um Mariano Procópio, um Henrique Fernando Halfeld… a fazer o que fizeram, e dar esse embasamento cultural que é a vida de Juiz de Fora.

Rosali: Ismair, a gente queria que você contasse para a gente como foi o seu início no jornalismo?

Ismair: Pois é, eu comecei a trabalhar em jornal, no esporte. Trabalhei, fazia esporte amador no Diário da Tarde. Juiz de Fora tinha dois grandes jornais na época. Tinha o… tinha mais dois ou três jornais menores, mas tinha os dois maiores jornais, que eram jornais dos Diários Associados, o Diário Mercantil, que era considerado o matutino, e o Diário da Tarde que era, imaginava-se, o vespertino. E que funcionava como tal, porque ele circulava efetivamente à tarde. O Diário da tarde popularizou entre nós a figura do pequeno jornaleiro, que apregoava as manchetes na tentativa de vender os exemplares, e crime não sei mais aonde, dona Maria matou seu José, e etc. Então, esses dois jornais, esses dois jornais, encarnavam a tradução da vida de Juiz de Fora. Tinha dois outros jornais, mais uns dois jornais menores, a Gazeta Comercial, a Folha e Meia, e que eu acho que, um pequeno período, um jornal muito interessante, interessante porque trazia coisas novas, o Binômio. Trazia coisas um pouco diferenciadas daquele, daquele jornal muito tradicional e que eram os jornais tais quais trabalhávamos. Mas como eu ainda… reincitando a minha jornada no jornalismo, comecei trabalhando em jornais, em esportes, fazia esporte amador, a convite de amigos. Depois comecei a trabalhar fazendo outras matérias para ainda… para o Diário da Tarde. Paralelamente comecei, lentamente, a fazer matérias também para o Diário Mercantil. Isso representava, assim, quase que uma espécie de promoção porque o Diário Mercantil era um jornal mais cuidado, era um jornal mais cuidado, geralmente mais sofisticado, teoricamente endereçado a um público, a um publico já formado. Já o Diário da Tarde… imaginava-se o Diário da Tarde como aquele jornal, por ser vendido na rua, através do seu apregoamento, imaginava-se aquele jornal que era comprado pelo trabalhador, comprado pelo empregado, pela dona de casa. E é curioso lembrar desse período, minha jovem, em que os jornalistas tinham profissões que não eram o jornalismo. Hoje, felizmente, nós temos uma formação específica, o jornalista é formado especificamente para ser um comunicador social. O jornalista no meu tempo era o professor, era o joalheiro, era, eventualmente, um médico; pessoas que tinham, tinham a sua profissão, da qual viviam, e que curtiam um pouco a vida fazendo aquilo que também gostavam, que era escrever. E faziam amadoristicamente. Não tínhamos um jornalista profissional, aquele que vivia do jornalismo; isso ainda é coisa bem… bem recente da vida da comunicação social de Juiz de Fora. Se você perguntar como eram os jornais, eu diria que esses jornais eram jornais conservadores. Conservadores como a própria cidade, e eu considero Juiz de Fora uma cidade conservadora, sempre achei. E os jornais eram jornais que acompanhavam aquele ritmo lento de uma cidade lenta, de uma cidade que está longe de ser essa Juiz de Fora de hoje, com seus aí, quinhentos, seiscentos mil habitantes, centro de uma imensa região e, curiosamente, sempre uma cidade pobre. Explica-se esse fato, é difícil você ser uma cidade rica dentro de uma região pobre. A Zona da Mata é uma região pobre, e Juiz de Fora é o centro abastecedor dessa região. E, de certo modo, ela reproduz um pouco, um pedaço, parcelas dessa região. Então, esses jornais desse tempo que eu vivi, o Diário Mercantil e o Diário da Tarde, não estou me referindo aos outros, neles não trabalhei, só trabalhei nesses dois jornais, mas eram jornais importantes da época. Os Diários Associados era para a época o que é para nós hoje o sistema Globo. O Roberto Marinho daquela época era o Assis Chateaubriand, ele era o dono da cadeia dos Diários Associados. Era, exatamente, Diários e Emissoras Associados porque tinham os jornais e rádio. E a partir de 1950, que é a data do advento da televisão no Brasil, tv Tupi, inaugurada por Assis Chateaubriand, que é a primeira, a primeira emissora de televisão. Então, eu acho uma grande oportunidade, a partir do Diário da Tarde, eu acabei trabalhando também, passei a trabalhar no Diário Mercantil. Uma determinada época, 1974, 1975, mais ou menos, eu fui editor-geral do Diário da Tarde, um bom período, e durante todo esse tempo que eu permaneci nos Diários Associados, que era o Mercantil e o Diário da Tarde, ultimamente mais Diário Mercantil, eu tive a oportunidade também de ser editor-geral do Diário Mercantil em algumas oportunidades. No rádio, substituindo um grande nome aqui da Faculdade de Comunicação, que é o professor Milton Cavalieri. Ele era o meu editor-geral do Diário Mercantil. O Milton adoeceu e eu o substituí por muito tempo… até que, finalmente, nós o perdemos fisicamente, um grande amigo. Mas temos hoje um mundo jornalístico inteiramente diverso daquele, exatamente pelos contextos culturais diferentes daquela época de duzentos, duzentos e cinquenta mil habitantes para uma cidade hoje, aí, de quinhentos, seiscentos mil habitantes, e que alguns bicos, fins-de-semana, demandas aos nossos supermercados, aos nossos shoppings pode-se chegar aí até uma população, flutuante, de um milhão de pessoas. Uma cidade que emplaca cinquenta novos carros por dia, e vê-se pois, um mundo bem diferente daquele mundo que pelo qual atravessávamos nos anos, nos anos 1960, que é o motivo principal da nossa… do nosso papo aqui, né, que é focalizar o período da ditadura militar. Mas era um tempo bem diferente, o tempo que aquele 31 de março, aquele 31 de março de 1964 não foi considerado um dia diferente dos demais, não.

Danilo: O senhor lembra mais ou menos o momento, onde o senhor trabalhava?

Ismair: Eu estava na redação do Diário Mercantil.

Danilo: Como é que você recebeu a notícia?

Ismair: Pois é, chegou a nós a informação que, naquele momento, o comandante da 4ª Região Militar, general Olímpio Mourão Filho, estava assinando um manifesto, um manifesto colocando o exército em desobediência aos cânones institucionais, ou seja, colocando o exército em momentos, ou em instantes, ou em estado de rebeldia. A preocupação primeiro, como é de qualquer editor, é mandar um repórter, um fotógrafo, mas não se imaginava algo tão, tão grande, né, como nem se imaginava naquela época que estaríamos vivendo ali, naquele instante, naquele momento, algo duraria 25, 30 anos. Só na segunda metade dos anos 1970 é que nós vamos começar a conhecer a chamada distensão, né, o povo pedia e os militares diziam que a abertura tinha que ser lenta, gradual e segura. Então, essa lenta, gradual e segura levou uma temporada imensa, muito tempo. Não foi um período fácil de fazer jornal, não, exatamente pelas limitações que começaram a ocorrer, censura.

Rosali: Deixa eu voltar um pouquinho. Você se lembra das primeiras prisões que aconteceram aqui em Juiz de Fora? Antes mesmo das tropas do general Olímpio descerem para o Rio de Janeiro houve prisões aqui em Juiz de Fora. O senhor se lembra disso?

Ismair: Pois é, eu fico tentando lembrar o prenome dele, do deputado que veio trazido para cá, preso, Moreira Alves. Estou tentando lembrar o prenome dele. Isso deu assim um certo rebuliço na época porque ele era uma figura nacionalmente conhecida. Juiz de Fora, politicamente, é um pouco mais conhecida, além das nossas fronteiras, mais pela presença do Clodesmidt Riani, ele era um líder sindical, um líder sindical que se projetou nacionalmente, está vivo aí, felizmente, nosso querido Clodesmidt. Ele chegou a presidir o CGT, Comando Geral de Greve, e as greves começaram a eclodir, né, no país. Mas em Juiz de Fora, praticamente, a coisa não tinha essa expressão exatamente porque… exatamente pelo contexto que nós vivíamos daquela lentidão daquele tempo, que passava lentamente, tão lento quanto os bondes que passavam pela nossa velha Rio Branco. A movimentação um pouco maior ocorreu no dia seguinte, quando o general Olímpio Mourão Filho descia com as tropas para o Rio de Janeiro. Então, havia aquela… aquela expectativa do que poderia ocorrer com esse deslocamento das tropas, até porque nesse trajeto entre Juiz de Fora e Rio de Janeiro, um trajeto bem mais complicado do que é hoje. Hoje, você, com uma hora e meia, você vai ao Rio, não tínhamos nem amarela, nem vermelha, nem azul, nem nada disso, era a velha rodovia. Num determinado momento, esse deslocamento de tropas de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro se encontrariam com as tropas que vinham de São Paulo; num determinado momento essas tropas encontrariam as tropas do… do 2º Exército, sediadas em São Paulo e comandadas pelo general Amauri Kruel que… que segundo os jornais, e naquele tempo falando em jornal nem sempre você estava lendo o que realmente estava acontecendo, exatamente pela censura, né. Censura que, num primeiro momento, nós driblávamos com algumas artimanhas, colocando matérias fatalmente, totalmente fora do contexto. O Diário Mercantil circulou com receita de bolo na primeira página, até começarem a proibir esse tipo de procedimento, até o ponto que acabaram colocando um censor, a figura do censor na redação.

Danilo: Seu Ismair, o senhor lembra de algum momento específico em que o senhor foi orientado por algum censor, onde algum lamento de sua matéria foi direcionado?

Ismair: Mas esse censor, meu jovem, quase sempre um 2º tenente; muitos jovens, eles eram trocados, eu me lembro que eles eram trocados com muita assiduidade e a informação que eu tinha que essa… Ficava-se imaginando “esse cara chegou aqui ontem, agora que ele, agora que ele pegou aí o jeito, no dia seguinte…”, mas havia uma explicação lógica para isso, é que esses jovens oficiais quase sempre voltam pra lá 2º tenente, eventualmente um 1º tenente, mas quase sempre um 2º tenente, esses censores, eles acabavam ficando amigo do… Porque eram todos jovens também, erámos todos, estávamos ali no mesmo barco, tomando o mesmo cafezinho, e indo junto para o café, tomando cafezinho, e aí se estávamos achando ruim a figura do censor… E a figura do censor funcionava da seguinte forma, você… você escrevia a sua matéria, evidentemente na máquina de escrever; eu escrevia lá na minha velha Remington, pesadona, essa matéria antes de ser entregue ao revisor, ela recebia o visto do censor, desse jovem oficial, se nós estávamos achando ruim essa presença do censor, meu jovem, ela ficaria ainda muito pior porque o que que fizeram? O que as autoridades fizeram, passaram a tarefa do censor para o editor do jornal, então, o editor do jornal passou a ser o responsável pelo que o jornal publicasse. Então, você aí se… você instalava-se em você aquilo que era terrível, que é a autocensura, né. A autocensura é um negócio terrível, a censura explícita, definida, estampada, “isso pode, aquilo pode, etc., etc.”, mas autocensura é cruel porque você senta, hoje no computador, naquele tempo numa máquina de escrever, “isso aqui, será que eu fui, pesei a mão aqui, será que a mão foi leve ali?”. Esse… essa sensação de não saber o que você está fazendo é muito ruim, é uma sensação que você, jovem jornalista, não sente hoje com essa liberdade absoluta e total com que sentamos numa redação de jornal, não é? E escrevemos aquilo que bem nos interessa, né. Você me perguntava se eu me lembro de algum episódio… Engraçado que ocorreu um episódio muito curioso durante esse período, mas que não tinha relação direta com nada subversivo. O jornal, eles havia proibido que não se poderia publicar nada sobre o COBRA. O COBRA era um tipo de computador que a IMBEL, lá em Benfica, antiga… hoje chama IMBEL, já foi Engevídeo, mas ela, onde se fabrica munições tais, lá em Benfica, não sei se o nome ainda hoje é IMBEL, me parece que é, indústria de material bélico. Lá se desenvolvia alguma coisa parecida com o computador, olha quanto que o Brasil é atrasado em matéria de computação, né. Estamos aí, cem, duzentos anos atrasado, ainda agora, 1964, 1967, foi ontem, praticamente. Então, se desenvolvia lá alguma coisa relacionada a esse, a esse mecanismo que batizaram de COBRA, e um colega nosso se aventurou a fazer uma matéria sobre, e fez uma boa matéria. Um colega que nós tínhamos, formado aqui pela Facom, Pedro Paulo Taucci, hoje já aposentado, mora em Belo Horizonte, tanto ele como a mulher são formados aqui. A mulher do Pedro Paulo Taucci é Maria José Goulart, a Zezé Goulart. O Pedro Paulo Taucci fez uma matéria sobre o COBRA, e o jornal publicou essa matéria, estranhamente uma matéria assinada, porque era uma outra coisa, não se assinava matéria. Hoje você sabe quem escreveu determinado assunto. O Pedro Paulo foi preso. Contava, contava-nos a mãe do Pedro Paulo que chegou cedo lá na casa um carro, um carrinho azul, diz ela, aparentemente um fusca, com dois homens de gravata, e chamaram o Pedro Paulo, e o Pedro Paulo entrou nesse carro e foi levado. Imaginou-se que o Pedro Paulo, evidentemente, havia sido preso e imaginava-se a razão, não era? Ele nem cobria essa parte política, mas ele fez uma matéria sobre o COBRA, e o Pedro Paulo acabou preso por isso. O Pedro Paulo está… Quando a gente se encontra, e raramente a gente se encontra, porque ele está tão longe, e ele há duas semanas atrás, ele estava na Rússia e quebrou o braço lá, isso eu ouvi pelo Face, pelo Facebook dele. E eu perguntei para o Pedro Paulo que sensação que ele sentiu ao chegar lá na 4ª Região Militar e ele falou “Ismair, depois de passado, fui levado imediatamente à sala do general comandante, ele virou para mim, olhou minha carteira, pediu para ver minha carteira, dei minha carteira de jornalista, ele olhou, rasgou e xingou nomes bem feios”, mais feio possível, que veio à imaginação dele naquele momento e jogou a carteira rasgada na direção do Pedro Paulo, então, aí, o Pedro Paulo teve uma sensação curiosa, ele falou comigo assim “Zaghetto, imagina se o comandante me trata daquele jeito, eu comecei a imaginar o que que ia acontecer como seu… lá embaixo, se o comandante aqui, pô, me chama desse nome, e joga a minha carteira, lá embaixo vão fazer comigo o diabo”. Mas ele disse que foi exatamente o inverso, à medida que ele, que ele ia passando por escalões menores até chegar lá embaixo e ser inserido no subsolo lá de onde que é hoje o quartel general da 4ª Região Militar, que não é mais a 4ª Região Militar, é 8ª Região, Brigada, tem um outro nome, nós não somos mais sede, Juiz de Fora está perdendo tudo, menina, não é nem mais sede da 4ª Região Militar. Lá ele foi tratado com todo o respeito, carinho, deram até um cafezinho a ele, mas é… Naquele tempo, meu amigo, você ser abordado por alguém num fusquinha azul de terno e gravata não era boa coisa, não, não era. E ser levado para algum lugar, não era boa coisa não. E ainda com relação à censura, um outro dado muito curioso e que é importante se lembrar é que não há nada escrito, nada foi proibido por escrito. Tiveram o cuidado, você não encontra por esse Brasil afora um memorando sequer proibindo alguma coisa. Isso era sempre falado, não ficou documento proibindo alguma coisa.

Danilo: Mas o jornal, ele não se prontificava a registrar de alguma forma?

Ismair: Nós… nós internamente é que nos precavíamos porque ligavam, como eu disse, não escreviam nada, eles ligavam “Oh, é proibido falar no discurso do deputado fulano de tal, é proibido falar não sei o que tem lá”. Era sempre proibido, proibido falar sobre fulano de tal. Então, nós nos precavíamos, e fazíamos a nossa anotação. Tínhamos um livro vermelho lá na redação, eu até tenho esse livro comigo, aliás, eu até emprestei, se vocês têm imagem desse livro aqui, porque eu emprestei à Christina Musse mais de uma vez para matérias aqui do… de vocês. Então, nós nos precavíamos e anotávamos porque, de repente, o editor mudava, o editor ia tomar café, o editor ia jantar, o editor ia embora, e aquele que o sucedia era preciso estar informado do que era proibido, né? E, às vezes essa proibição era, era… era até hilária. Eu me lembro que eu era editor do jornal, e eu não me lembro… Curiosamente, há uma coincidência que passa, às vezes, despercebida pela… até pelos nossos veículos, que dois presidentes que foram, literalmente, atropelados, pelo golpe militar, morreram no mesmo ano, que é João Goulart e Juscelino Kubitschek. Ambos morreram em 1976. Ainda se discute até hoje, né. A forma que morreram e etc, etc. Mas eu não me lembro bem se foi com… na morte do João Goulart ou na morte do Juscelino, me parece que mais o Juscelino, em que eu recebi um telefonema, aliás nem fui eu que recebi, foi a minha secretária da redação que recebeu, e ela falou comigo “Ismair, estão pedindo para que a morte do JK seja dada apenas com meia emoção”. Olha que coisa estranha, como você vai dosar uma coisa dessa natureza? Então, eu era, como sou até hoje, um tipo muito pacífico, mas aquele dia, eu, o que raramente acontece comigo, eu perdi um pouco a paciência, peguei meu paletó e dei um pulo lá na Polícia Federal, que funcionava onde é… Hoje a Polícia Federal tem uma outra estrutura, tem uma bela delegacia lá no bairro Manoel Honório, mas funcionava naquele tempo, precariamente, na galeria Salzer, aquela galeria comprida que tem em frente ao fórum, na Rio Branco, lá no fundo, nas últimas lojas, lá era a sede. Eu fui lá e falei “Eu vim aqui me informar, porque realmente com toda a minha idade e com toda experiência que eu tenho em jornal, eu queria aprender como é que se faz uma coisa com meia emoção”. O cidadão é… “Simplesmente, meu amigo, comentar o mínimo possível”. Então, não me restou outra coisa a voltar para a redação do Diário dos Associados, que naquela época funcionava era na avenida Rio Branco, onde hoje é uma agência do Santander, em frente exatamente onde foi o cinema Excelsior, avenida Rio Branco, 1906. Ali funcionavam os jornais Diário Mercantil e Diário da Tarde, jornais que circularam até 1983. E simplesmente fizeram uma manchete: “Morre JK”. E meia dúzia de linhas, acidente, lamentável acidente ao longo da Rio-São Paulo, da via Dutra, o choque do carro conduzido… O ex-presidente Juscelino Kubitschek, que era uma das figuras que podia se falar pouco, havia aquelas figuras que havia sempre uma recomendação que se falasse com pouca ênfase naquelas… naquelas criaturas de cinema que havia construído Brasília, que havia sido presidente, que deu a outra cara ao Brasil, criando indústria automobilística, criando aí, rodovias, no tempo que mudou muito o país, mas que lamentavelmente incorreu num grave erro, matou o trem. É o período, é… os anos 1960 são os anos que acontecem tudo no Brasil; não só no Brasil, no mundo, né? Os anos sessenta mudaram a fisionomia do mundo, né. O poder jovem, a pílula, me lembro pouco da pílula, é de 1960. John Kennedy, é tudo nos anos 1960; Martin Luther King, Woodstock… Quer dizer, o mundo, enquanto o mundo mudava de cara, o Brasil vivia essa mudança triste de não poder se regozijar tanto com tantas mudanças pelas limitações que os seus… os seus veículos de… os seus veículos de informação sofriam, né. Mas ainda, voltando ainda aos anos 1960, a única tristeza é a que… não obstante tudo de bom acontecendo, era o tempo também que começava a morrer o trem no Brasil, que pena que o Brasil parou de investir no transporte ferroviário, transporte barato, que polui pouco, né. Eu ainda tive o privilégio que vocês, meninos, não têm, de viajar de trem, de Juiz de Fora pro Rio de Janeiro, era uma delícia, viajar na Litorina era uma delícia. Você sentar naquela poltrona imensa, parecia uma poltrona dessas de primeira classe de avião, que na verdade só vejo em filme, porque eu não tenho condições de viajar em primeira classe de avião. Mas morria o trem também, né, junto com… aquela cultura rodoviária, que pena que ela também não era uma cultura ferroviária, né. O trem acabou no Brasil. Só se lia manchetes assim: “Está sendo desativado o ramal, é, o ramal, por razões econômicas será desativado o ramal pâpâ…”. Aqui tinha um ramal que ia a Lima Duarte, vinha e virava-se a esquerda em Benfica, tem lá o trilho até hoje, porque alguns, alguns vagões chegam até a… Tem uma indústria ali na frente, para… de metais, ainda, ainda parece que vai trem lá, para apanhar coisas lá, mas mata lá. Mas aquele ramal que Benfica vira à esquerda, aquele ramal que foi também considerado não economicamente, inviável economicamente, foi desativado, mas ia-se de trem até Lima Duarte. Então, a cultura rodoviária foi intensa, mas a cultura ferroviária morreu.

Rosali: Ismair, você estava falando de figuras que não poderiam ser tocadas, nomes ou… Você falou do JK. Aqui em Juiz de Fora, vocês poderiam notificar a questão de desaparecidos ou procurados, ou naquele período que há muitos assassinatos, ou mesmo quando teve os sequestros dos embaixadores, isso podia ser noticiado?

Ismair: Pois é, o que nos movimentava mais tempo, minha jovem, você está falando aí de sequestro de embaixador, era o que ocorria lá fora e que às vezes envolvia pessoas locais.

Rosali: Como o do Gabeira, por exemplo.

Ismair: Como o caso do Gabeira, né. Eu falo do Gabeira assim, com uma, uma… é, de forma muito lírica. Quando eu lembro do Gabeira, porque o Gabeira foi meu repórter, imagina, quando hoje, eu vejo o programa, vejo esses programas do Gabeira na Globo News, eu fico imaginando os tempos do Gabeira. O Gabeira era uma figura, né, além de ser uma pessoa extraordinária, além de ser inteligente. Ele, às vezes, vou cometer uma indiscrição aqui, mas que não me compromete nada, o Gabeira passava, assim, dez, quinze dias longe de casa, dormia lá no jornal e quando o Gabeira estava por lá aparecia… Aparecia por lá a prima dele, procurando por ele, que é a nossa querida, queridíssima, também jornalista, Leda Nagle. “Gente, eu estou aqui atrás do Gabeira”. Então você sabia que o Gabeira de noite juntava duas ou três mesas lá na redação e dormia por lá? O Gabeira era uma figura extremamente inteligente. Uma outra lembrança gostosa também do Gabeira era… eu conheci o Jornal do Brasil através do Gabeira. Eu fui lá visitar, eu fui lá fazer qualquer coisa, o Gabeira viu que eu ficava lá, o que que eu estava fazendo lá no Jornal do Brasil, na velha redação da avenida Rio Branco, o Gabeira, ele viu, e quis me mostrar o jornal todo. Eu conheci um mundo, um mundo, um mundo de bastidor de jornal que eu estava longe de imaginar, eu conhecia aqui o nosso, o Diário Mercantil, o nosso modesto Diário da Tarde, com a impressão ainda rotoplana. Não conhecia as rotativas, aquela coisa fantástica e circulei tudo aquilo lá. E o Gabeira tem uma outra, além de ser uma figura extremamente inteligente e cuja repercussão maior em Juiz de Fora foi exatamente o sequestro, por ele ser daqui, né, por ele ser de Juiz de Fora. O Gabeira tem uma outra, uma outra virtude, deliciosa nele, a simplicidade. O Gabeira é uma figura nacional, é um nome nacional, mas é o mesmo Gabeira, aquele mesmo mineiro que a gente trabalhou junto aqui, que no dia que veio lançar o livro dele aqui, o… Depois transformado em filme, “O que é isso, companheiro?”. Eu estava pensando comigo aqui “será que o Gabeira vai lembrar de mim?”. Eu imaginando antes de chegar lá na Capela, galeria de arte, que eu não sei se vocês apanharam na Rio Branco, lamentavelmente, como tantos outros patrimônios belíssimos foram ao chão, a Capela também foi. Imaginando se o Gabeira ia lembrar de mim, eu mal coloquei os pés na entrada na Capela, lá na frente, onde é que ele estava, “Zaghetto!”. Era aquele menino de sempre, não mudou nada o fato de ele se tornar figura nacional, o que é comum nas pessoas humanamente bem formadas, porque nós, na verdade, somos apenas passageiros nesse, nesse… A vida é apenas um estágio que passa tão rápido. Estamos aí e vamos…

Rosali: Mas vocês puderam noticiar o sequestro do embaixador, alguma coisa, ou não? Mais especialmente assim, em relação a esses eventos, digamos assim, terroristas.

Ismair: Pois é, a repercussão maior que às vezes Juiz de Fora podia ter, nesse período, como eu volto a falar, Juiz de Fora era uma cidade pequena, pacata. Era o que dava maior notoriedade à cidade era o fato de ser a sede da 4ª Região Militar, e que Juiz de Fora era… e que Belo Horizonte reclamava imensamente disso. Eles não podiam imaginar como é que uma região, uma unidade militar, que tanta expressão dentro do 1º Exército, quanto era a 4ª Região Militar, não estaria na capital. Mas isso não acontecia exatamente pela… pelas campanhas que os jornais faziam. Os jornais podiam ser conservadores, mas tinha esse… esse lado da força comunitária. Então, o Diário Mercantil estava muito por coisas da terra, então enquanto Belo Horizonte lutava para levar a 4ª Região, a sede da 4ª Região Militar para Belo Horizonte, o Diário Mercantil em sucessivas reportagens… Nós entrevistávamos as autoridades da cidade, nós fazíamos campanhas contra a saída da 4ª Região Militar e de outras coisas que já tinha ido embora como a Academia Mineira de Letras, que foi criada e fundada em Juiz de Fora por Machado Sobrinho, sobre quem, aliás, eu escrevi uma biografia. Mas Juiz de Fora tem coisas muito curiosas, há coisas, jovem, que você vai conhecer muito tempo depois. Eu, nesse momento, eu estou escrevendo o meu quarto livro, na verdade é o quinto. Eu digo quarto porque o quinto ainda está em fase, ainda, de discussão com as editoras, o que é um romance, ainda não definiu muito; então esse meu quarto livro, que eu abordo o período urbano transformador do prefeito Mello Reis, em Juiz de Fora. Então eu fiquei sabendo um fato relacionado ao período militar que me surpreendeu. Eu vivi tanto tempo com… fui o superintendente da FUNALFA dele, e tive o privilégio de implantar a FUNALFA, convivi intimamente, tantos anos com o Mello Reis e nunca soube desse detalhe, a perseguição militar ao Mello Reis. O Mello Reis foi… eu vou contar isso nesse livro que eu estou fazendo sobre ele, que eu devo lançar dentro aí, de uns dois ou três meses, “Mello Reis e o sonho da metrópole e da cultura”, eu conto esse episódio, me contado pela sua própria mulher, a professora Vera Lúcia de Mello Reis. Ela… mas o Mello, pouco antes da… pouco antes do golpe militar, em 1964, golpe que, na época, foi chamado de Revolução Democrática. Deram vários nomes, né, revolução democrática, não sei mais o quê, mas na verdade, o golpe militar, né. Antes do 31 de março de 1964 houve um episódio no Cinema Popular, na avenida Getúlio Vargas, onde foi saudado o Miguel Arraes. O Miguel Arraes era o terror do Nordeste porque ele queria reformas a qualquer preço, a qualquer custo, e vivia atazanando o presidente da república, que era o João Goulart, porque ele achava que as reformas estavam lentas, e Miguel Arraes era um barril de pólvora nesse país. E o Miguel Arraes veio a Juiz de Fora falar no Cinema Popular, e foram designados um líder trabalhista, um líder empresarial, um líder isso, um líder aquilo, e um líder estudantil para falar em nome dos estudantes. O líder estudantil escolhido foi exatamente Mello Reis, que era o presidente do Diretório Tristão de Ataíde, da Fafile, Faculdade de Filosofia e Letras. E o Mello fez a saudação em nome dos estudantes ao Miguel Arraes, fez um discurso muito progressista. Passado o 31 de março, em que começaram várias pessoas serem convidadas a comparecer à 4ª Região Militar, volta e meia se escutava a prisão de alguém, alguém foi detido, alguém foi convidado, alguém foi preso, etc., etc. O Mello soube que seria preso por ter saudado o Miguel Arraes antes do 31 de março, então o Miguel, o Mello Reis teve que fugir e foi, o Mello Reis foi escondido lá nos dominicanos; e os dominicanos tinham um convento, um mosteiro, um convento lá no bairro Paineiras, lá no fim da rua Doutor Ávila. O Mello Reis ficou escondido, eu achei isso, o que eu acho estranho nesse episódio é que eu convivi tanto tempo com ele, e ele nunca me contou isso. Isso foi me contado agora pela mulher dele e eu estou mencionando esse episódio no livro, vai ser interessante as pessoas saberem dessa perseguição militar uma vez. Ele foi escondido lá, pelos dominicanos cerca de dez dias, até que chegou uma informação que lá não era um lugar seguro, os militares sabiam que o Mello estaria lá, então fugiram com ele de lá, passaram, levaram o Mello para o Seminário da Floresta, mas mal ficou lá também porque os militares teriam descoberto que o Mello tinha ido para lá. Então ele foi… foi para um sítio de familiares lá em região de Bicas ou Maripá, até que, então, foi informado de que ele podia se apresentar sem represálias. E para você ver como que é um tempo de caça às bruxas, o oficial que o atendeu na 4ª Região Militar perguntou “Mello Reis, o senhor é o autor desse… Do que está escrito nesse papel?”. Uma espécie de folder ou manifesto, qualquer coisa. “O senhor é?”, ele falou “Eu sou responsável por isso”, ele falou “Uai, o senhor…”. Aí, o Mello virou para o oficial “O senhor sabe de onde eu tirei isso?”, ele falou “Não”, “Eu tirei isso da campanha do Magalhães Pinto, essas palavras de mudança que ele está falando, eu tirei…”. Que era o homem, o chamado “o chefe civil da revolução”, que chamavam Revolução Militar, que era o Magalhães Pinto. Olha como era o período de caça às bruxas, né, por nada, né.

Danilo: Sr. Ismair, talvez é uma pergunta que seja um pouco genérica, mas pode ajudar a gente no sentido que… qual foi o momento mais difícil para o trabalho jornalístico no período da ditadura?

Ismair: Eu diria que o período mais difícil, meu jovem, foi exatamente a figura do censor na redação. Explico isso. Porque de algum modo, em graus maiores ou menores, uma farda sempre intimida, não é. É uma figura sentada numa redação de jornal. Sentado numa redação de jornal alguém fardado, podiam até mandar esse censor em trajes civis, ficaria um pouco menos, mas ele ia fardado, todo paramentado. Eu diria que esse foi, meu jovem, o momento mais, digamos assim, do ponto de vista estético, mais difícil para nós, sabe? Do ponto de vista operacional, aquilo que eu falei, o sentimento da autocensura.

Danilo: Sr. Ismair, a gente queria agradecer a presença do senhor…

Ismair: Não, pelo contrário, eu volto a agradecer muito à Faculdade de Comunicação. Eu acho que vocês estão fazendo, estão prestando um serviço à história maravilhoso. Esse trabalho que vocês estão fazendo, levantando coisas relativas à Comissão da Verdade, como tantas outras coisas tão belas que a nossa Facom tem feito, é um privilégio estar aqui. Eu que agradeço profundamente essa oportunidade.

Danilo: Muito obrigado, acho que é só isso mesmo.