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Francisco Carlos Limp Pinheiro

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Francisco Carlos Limp Pinheiro

Entrevistado por Cristina Guerra e Rosali Henriques

Juiz de Fora, 31 de outubro de 2014

Entrevista 019

Transcrito por: Marcelo Riceputi

Revisão Final: Ramsés Albertoni (03/11/2016)

 

Rosali: Boa tarde, Chicão.

Francisco: Boa tarde.

Rosali: A gente gostaria de começar o depoimento com você falando seu nome completo, local e a data de seu nascimento.

Francisco: Meu nome é Francisco Carlos Limp Pinheiro, nasci em 28 de outubro de 1955, em Juiz de Fora.

Rosali: A gente queria que você falasse sobre o seu pai. Você se lembra do dia do golpe… qual era a atuação sindical do seu pai? Conta um pouco da trajetória sindical dele.

Francisco: Lembro. Meu pai era funcionário da Companhia Mineira de Eletricidade e, como funcionário, ele começou a participar do movimento sindical, na categoria dos eletricitários. Participou de sindicato e, inclusive, chegou a ser presidente do Sindicato dos Eletricitários de Juiz de Fora. E, concomitante a isso, era filiado também ao Partido Trabalhista Brasileiro e conquistou um mandato de vereador na Câmara Municipal de Juiz de Fora.

Rosali: Quando que ele foi eleito? Em que ano, você lembra?

Francisco: Ele foi eleito, uma primeira vez ele foi suplente, final da década de 1950 e na legislatura que estava em vigor, que terminou com o golpe de 1964.

Rosali: Fala o nome completo dele?

Francisco: Meu pai era Francisco Afonso Pinheiro.

Rosali: Conta pra gente um pouco dessa atuação dele no sindicato. Você falou que ele chegou a ser presidente, né?

Francisco: Sim, sim. Nesse período, ele participou de todas as lutas da classe trabalhadora do período, né? Participou do movimento pelo aumento de 100% do salário mínimo, em 1954. Depois, por exemplo, participou da luta da elaboração da primeira Lei Orgânica da Previdência Social, da luta pelo 13º salário; e da luta econômica mesmo, do sindicato, por melhorias de condições de trabalho, melhoria salarial, assim por diante. Então, todo esse movimento que houve nesse período da década de 1950 até 1964, ele participou de tudo, campanha pela criação da Petrobras. Foi um militante ativo de todos esses movimentos do período.

Cristina: Eu posso entrar na questão do dia do golpe, então? Você se recorda do que aconteceu com ele no dia da prisão?

Francisco: Sim. Ele saiu pra trabalhar, como normalmente ele saía, de manhã e não voltou mais pra casa.

Cristina: E quem é que avisou vocês que ele estava preso?

Francisco: Aí recebemos avisos de companheiros de trabalho que ele tinha sido preso, e na hora que ele foi preso, ele estava trabalhando, estava consertando um poste da Companhia Mineira. Os policiais chegaram, pediram pra ele descer e levaram detido para o Quartel General. Isso foi no dia 31 de março, foi no dia 31 de março de 1964.

Cristina: E junto com ele, lá, nesse trabalho, no poste, mais alguém foi preso?

Francisco: Não, somente ele.

Cristina: Só o seu pai?

Francisco: Só ele, foi uma detenção, já sabiam quem deveria ser recolhido, né? E foram recolhidas várias pessoas de outras categorias, né? Principalmente pessoas ligadas ao movimento sindical.

Cristina: Você se recorda de algum outro nome?

Francisco: Eu lembro de que… Me parece que eu sei que foi detido nessa época um que era diretor dos Correios, por exemplo, foi detido. Me parece que o senhor Jair Reihn também.

Cristina: Senhor Jair era?

Francisco: Era vereador e presidente do Sindicato dos Tecelões. Não sei se foi nesse mesmo dia. Só sei que todos os quatro vereadores do PTB, na época, foram detidos. Se foi dia 31, aí eu não sei dizer. Mas, com certeza, o meu pai e esse diretor dos Correios e Telégrafos, sim. Isso aí, eu posso dizer com certeza.

Cristina: Quanto tempo seu pai ficou preso?

Francisco: Ah, eu acredito que ele ficou detido uns noventa dias, mais ou menos. Depois ele ficou doente, ficou detido no pronto-socorro, com guarda, aliás, né? Guarda da Polícia do Exército em frente ao quarto. Ele teve crise de asma.

Rosali: Ele ficou preso só em Juiz de Fora?

Francisco: Só aqui. E logo depois ele ganhou um habeas corpus e respondeu o processo em liberdade e foi absolvido, né? Mas, agora, nesse período que ele ficou detido, aconteceu um fato interessante, até virou um tipo de folclore político, porque ele era asmático, né? E esse período que acontece, o golpe de Estado, quem tem asma sabe disso, quando vai mudando as estações, vai passando de verão pra outono, outono pra primavera, etc., geralmente pesa. Então, quando foi detido, ele passou mal lá na detenção e disse que precisava da bomba. E aí, não sei se entenderam errado, negócio de bomba. De repente, nós temos a nossa casa invadida pelo exército. E reviram tudo, uma bagunça danada, aquele negócio de “bomba”, de “bomba”. E a minha mãe, ingenuamente, falou “Bomba, dele, se ele está precisando é essa bomba aqui”. E mostra para um capitão do exército a bomba, que era uma bomba de borracha, “Bomba aqui em casa é essa bomba de asma”. E invadiram a casa, veio viatura, cercaram a casa com metralhadora, cheia de gente na rua, aquele negócio.

Cristina: Isso foi de dia?

Francisco: É, durante o dia, uma confusão danada. Gente no meio da rua, polícia do exército com metralhadora. Sei que reviraram a casa e a tal bomba era essa bomba de asmático. [risos] A paranoia era tanta, né? E daí, então, ele entrou em crise e ficou uns tempos lá no pronto-socorro, né? Barulho de oxigênio e tudo.

Rosali: No período que ele estava preso, ele ficou preso só no QG ou ele foi pra outros lugares?

Francisco: Que eu saiba, foi só no Quartel General.

Rosali: Vocês sabiam que ele estava lá?

Francisco: Sim, fomos avisados que ele estava detido lá.

Cristina: Mas vocês não podiam visitar?

Francisco: Não, visitamos quando ele estava no pronto-socorro. Aí, minha mãe nos levou para visitá-lo lá. Estava no balão de oxigênio e tudo. Mas, no Quartel General, não.

Cristina: Quando ele saiu do hospital ele voltou pra cadeia ou ele já foi direto pra casa?

Francisco: Não, aí ele retorna pra casa.

Cristina: Ah, ele saiu do hospital direto…

Francisco: É, aí ele retorna pra casa.

Cristina: E ele fez algum relato de tortura com vocês, ou com sua mãe?

Francisco: Não, de tortura ele nunca falou.

Cristina: Mas você se recorda como ele voltou, assim, se ele mudou alguma coisa?

Francisco: Esses episódios é uma coisa que o aborreceu até o final da vida. Ele sempre falava disso, e tal. Não conformava de ter perdido o mandato da forma que perdeu, né? E fora, vamos dizer, assim, preconceito, né? Que ele sofreu, nós também, na época, né?

Cristina: Você pode relatar algum fato pra gente?

Francisco: Por exemplo, não podia brincar com a gente, porque era filho de comunista. Se chegasse em algum lugar o pessoal saía, essas coisas assim, né? O povo todo viu a sua casa ser invadida pelo exército, etc., até entender o que é que aconteceu, você era tido como filho de bandido, você era bandido, filho de comunista, não sei o que que tem, ninguém queria conversar, esse tipo de coisa, né?

Cristina: Mas ele voltou pro trabalho?

Francisco: Não, ele voltou a trabalhar e tudo.

Cristina: E no trabalho, ele não sofreu perseguição, os companheiros…

Francisco: Não, não. Ele foi readmitido, tudo. Voltou a participar normal, tocando o barco, né? Agora, esse período que ele ficou detido, aí nós contamos com solidariedade também, né? Tem esse outro lado, tem as pessoas que discriminavam e tudo, mas também tinham muitas pessoas solidárias, que não nos deixou faltar alimento, iam visitar a minha mãe e tal.

Cristina: Você tem o nome de alguém, se recorda de alguém?

Francisco: Um, eu me lembro que sempre levava lá uma cesta básica, ele chamava Odilon, esse senhor. O sobrenome dele, eu não sei. Eu lembro, inclusive, eu tenho uma recordação dele, que quando teve a campanha pela volta do presidencialismo, eu lembro que eu fui com meu pai em um jipe, subindo aí esses morros de Juiz de Fora, e esse Odilon é quem dirigia esse jipe, na campanha pela volta do plebiscito que queria o parlamentarismo ou o presidencialismo, aí, eu lembro que ele ia nesse jipe, eu ia atrás, segurando, assim, e foi esse senhor, um deles, que eu lembro.

Cristina: Então, seu pai não se acovardou, né? Porque se ele voltou pro trabalho, voltou pro sindicato, voltou pra atuação política, ele não teve medo.

Francisco: Ele só não participou mais de política partidária, isso aí ele não participou mais. Nesse período ele volta para o movimento comunitário, dedicar mais ao movimento comunitário. Ele participa da fundação… participou da fundação da Sociedade pelo Melhoramento do Bairro de Santa Luzia e… participa lá, e ele era da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, que depois virou CNEC, ele militou nesse movimento, liderou a construção do colégio do bairro Santa Luzia, professor Oswaldo Velloso. E, nesse período, ele começou a participar disso. Na vida política partidária entrou outro, um irmão dele que também era sindicalista, do Sindicato dos Trabalhadores em Hospitais, tio Jorge, Jorge Pinheiro, ele entra e ganha as eleições. Ele também teve dois mandatos de vereador. Ele só retorna a disputar um mandato na eleição de 1982, depois da anistia, né? Aí, ele filia de novo e conquista o mandato de vereador e ficou até o ano de 1988.

Cristina: Então, seu pai voltou pra vida política?

Francisco: Volta, ele volta. Ele volta e tem um mandato de novo. Mas esse novo mandato que ele conquistou nunca serviu para devolver o mandato que ele havia perdido em 1964. Aquilo, e até ele morrer, ele falava, “cassaram”, ele usava essa expressão, “Eles cassaram meu mandato para homenagear o Mourão”.

Cristina: Por que, o seu pai tinha alguma relação com o Mourão?

Francisco: Não, porque, segundo ele, a Câmara cassou o mandato dele simplesmente pra homenagear o Mourão Filho, então, ele sempre falava isso. Até ele morrer, ele morreu com isso, foi uma coisa que ele não aceitou de jeito nenhum, um trauma que acho que se ele tivesse virado presidente da república ele não ia, não ia.. foi uma coisa que marcou ele. Toda vez que ia falar de política, ele começava a tocar nesse assunto.

Cristina: Ele conquistou, então. Quando é que ele deixou de ser vereador, em que ano?

Francisco: Ele é eleito em 1982 e fica no mandato de 1983 a 1988, né?

Cristina: E aí ele falece quando?

Francisco: E aí ele falece em 1993. Mas ele nunca deixou de participar de movimento comunitário. Meu pai sempre participou de movimento comunitário, seja sindicato, seja associação de moradores, seja agremiações esportivas, porque ele, também, foi do Esporte Clube Mineira de Eletricidade, que era um clube que tinha muita ligação com o sindicato, ele participou, chegou a ser diretor, também, lá. Em Santa Luzia, ele criou, junto com os irmãos dele e outros amigos, o Horizonte, um clube de futebol que disputava campeonato que eles chamavam da segunda divisão, tinha como adversário um outro clube do bairro, o Olaria. Ele nunca deixou de participar. Teve a Associação dos Aposentados, depois que ele aposentou, então, ele sempre gostou de ter essas participações, né?

Rosali: Deixa eu só voltar um pouquinho nessa questão da cassação dele, porque a cassação foi feita pelos outros vereadores, né?

Francisco: Isso, a pedido do general Mourão Filho.

Rosali: E qual foi a desculpa de cassar os quatro vereadores?

Francisco: Olha, eles cassaram porque eles eram tidos como comunistas.

Rosali: A alegação é essa?

Francisco: É, é isso. A manchete do Diário da Tarde após a cassação é isso “Cassados pela câmara os vereadores tidos como comunistas”. Foi isso. Foram cassados meu pai, Peralva de Miranda Delgado, Jair Reihn e Nery Mendonça. A bancada do PTB era a maior bancada da câmara. Eram quatro vereadores.

Cristina: E como seu pai algum desses retomou a vida política, ou não?

Francisco: Não, assim, não de não ter mandato, né? De ter mandato, não. Mas o doutor Nery Mendonça chegou a disputar eleições. Ele se filia ao PDT, me parece, chegou a disputar eleição pra deputado federal, né? E depois ele milita na categoria dele, foi… já bem agora no final vira depois como advogado, foi presidente da OAB de Juiz de Fora. Agora, o Jair Reihn não, porque logo… passa um tempo, ele falece. E o Peralva vai para o Rio de Janeiro e dedica ao ensino. Vem a ser, me parece, reitor da Universidade Gama Filho.

Cristina: E todos esses quatro foram presos aqui? Ninguém saiu de Juiz de Fora?

Francisco: Aqui, aqui em Juiz de Fora. Me parece que o Jair Reihn conseguiu escapar, assim. Mas é preso em Belo Horizonte e volta pra cá.

Cristina: Porque o Misael, que era dos Correios, foi preso em Lagoa Santa, em Belo Horizonte, não aqui.

Francisco: É, esse aí… aí eu não sei. Mas eu lembro que meu pai falava dele, desse diretor dos Correios que foi preso.

Cristina: E seu pai falava sobre tortura, assim, de algum companheiro torturado, algum lugar de tortura em Juiz de Fora.

Francisco: Não, não, isso ele nunca falou. Porque ele nunca tocou nesse assunto, não. Com a gente ele nunca tocou.

Cristina: Mas ele conversava sobre isso?

Francisco: Sim, isso era assunto lá em casa, porque nessa época as rádios transmitiam as sessões da câmara. Tinha a Rádio Industrial, por exemplo, transmitia algumas sessões ao vivo da câmara, então ele falava pra minha mãe, minha mãe botava a gente sentado pra ficar ouvindo as sessões da câmara, os discursos etc. Até na véspera, antes dele ser preso, ele fez um discurso violento na câmara contra o aumento das passagens de ônibus, tinha ocorrido um aumento aí, ele faz um discurso criticando o aumento abusivo das passagens, etc. Um dos últimos discursos que ele faz antes de ser preso, de ser cassado. E essas pessoas frequentavam nossa casa, né? Eram muito amigos, né? Então, às vezes levavam a gente lá pro Esporte Clube Mineira, levavam a gente pra reunião do sindicato e igual essa campanha do plebiscito, os outros, meu irmão não, mas eu fui com ele, andando com ele, mais o Seu Riani. Aí, ele fazendo campanha e essas pessoas todas frequentavam nossa casa, às vezes a gente ia também visitar Seu Riani, dona Norma, mesmo depois que Seu Riani foi preso, a minha mãe levava a gente. Eles moravam lá em Santa Terezinha. Então, eles tinham esses contatos, né? Então, convivia, conheci Sinval Bambirra, que foi deputado estadual e foi cassado também. Também muitas vezes na minha casa, João Luzia, um outro sindicalista lá de Belo Horizonte que ficou muito tempo na clandestinidade. Um outro deputado do PTB, acho que chamava Dazinho, né? Então, muito dessas pessoas frequentaram muito lá, até o ex-presidente Tancredo Neves já foi na nossa casa nesse período, e mesmo depois que… já quando o Tancredo foi governador, candidato a governador. Então, sempre respirou isso lá, também.

Cristina: E a sua mãe, falava o quê?

Francisco: É, minha mãe não…

Cristina: Não tinha medo?

Francisco: Não, não, ela tinha o jeito dela, lá. Não participava muito de política, não. Negócio dela era fazer os cafezinhos, né, pras reuniões, mas nunca fez objeção a isso, não. Agora, botava a gente sempre pra ouvir as transmissões pelo rádio das reuniões da câmara.

Rosali: Chicão, você sabe se o seu pai participou ativamente ou esteve envolvido no comício do Arraes que teve no Cinema Popular, na Getúlio Vargas?

Francisco: Sim, ele participou, teve presente. Teve presente, sim, em todos esses movimentos, né? Me parece que ele chegou a dizer uma vez também que o Carlos Lacerda não botaria o pé em Juiz de Fora, que haveria um exército de operário pra impedir e tal. Acho que isso, inclusive, foi um dos motivos pra depois ele ser cassado. Eu me lembro disso, né? Então, ele tinha muito contato com essas pessoas, Brizola, o próprio João Goulart, né?

Rosali: Juiz de Fora nessa época era uma cidade com muito movimento sindical, né?

Francisco: Era, o movimento sindical era tanto que o PTB tinha quatro vereadores, né?

Rosali: Todos sindicalistas, né?

Francisco: É, todos ligados ao movimento sindical, né? Todos eles ligados ao movimento sindical. Dentro das suas respectivas atividades, né? Provavelmente tudo leva a crer que se não tivesse ocorrido, a gente não pode prever, mas venceria as eleições pra prefeito em 1966. O partido era forte. Além de ter o Clodesmidt Riani, como deputado estadual, presidente da Central Geral dos Trabalhadores, né? Meu pai também chegou a participar da Federação dos Trabalhadores das Indústrias Urbanas do Brasil, ele foi um período. Inclusive, morou no Rio de Janeiro, né? Ele vinha todo fim de semana porque a sede era lá. Então, ele participou disso tudo. Comissão que, me parece, criou a primeira Lei Orgânica da Previdência Social. Então, tinha muito trânsito nesse meio. Com o próprio presidente, inclusive, né? Então, ele tinha uma certa articulação nacional, também, né? O PTB aqui era muito representativo nacionalmente, tanto é… porque era liderado pelo Clodesmidt Riani, né? Que era o principal líder dos operários no período, né? Então, a gente teve convivência com isso tudo, e participamos… A gente era pequeno e ele levava a gente pras reuniões, essas coisas.

Rosali: Você falou que ele foi absolvido, né?

Francisco: Isso.

Rosali: Quando ele foi julgado? Foi em 1964 mesmo ou foi mais pra frente?

Francisco: Não, acho que foi mais pra frente. Isso rola uns dois, três anos pra frente, assim. Aí, eu sei que ele é absolvido, a denúncia não é aceita, alguma coisa parecida assim.

Rosali: Você sabe qual… ele estava sendo acusado de quê?

Francisco: Ué, era isso, de promover agitação, era agitador. Acho que a denúncia usava isso. Um agitador contumaz, um comunista notório e essas coisas.

Cristina: Você tem alguma coisa da época, fotografia, documento, carta? Francisco: Não, não. Isso não tenho, nada arquivado, assim, desse período. Cristina: E algum irmão seu entrou no movimento estudantil?

Francisco: Não.

Cristina: Você tinha irmão mais velho, ele não entrou?

Francisco: Não, não. Quem que veio a participar de movimento estudantil fui eu. Mas, meus outros irmãos, não. Nenhum deles participaram de movimento estudantil, não. Que, até porque, dos meus irmãos, só que chegou a fazer curso universitário foi eu e meu irmão mais velho, os outros só tem completado o 2º grau. E esse outro meu irmão, não. Ele trabalha, também, e levou quase doze anos pra formar, quase foi jubilado. Eu não, eu participei, Diretório Acadêmico, diretoria do DCE, tudo mais. Os outros meus irmãos, não.

Rosali: Em que período que você participou?

Francisco: Eu participo do movimento estudantil de 1975 até 1982, por aí… 1983…

Rosali: Você era ligado a algum movimento?

Francisco: Eu fui secretário-geral do Diretório Acadêmico Tristão de Ataíde, que era do antigo ICHL, duas vezes. E fui representante discente no departamento, na coordenação. Fui diretor do DCE na gestão “Ponto de Partida”, como representante discente na Copete. E participei desse movimento nesse período.

Rosali: Mas você era ligado a algum desses movimentos de esquerda?

Francisco: Sim, no último período eu participei da Tendência Estudantil Liberdade e Luta.

Rosali: Ah, Libelu.

Francisco: Libelu, isso. Fui um dos primeiros militantes aqui da Libelu de Juiz de Fora. Eu, Flávio Bitarelli, Beatriz Helena Domingues, Luiz Carlos, Adenaldo… fomos, nesse período. Fizemos chapa pra DCE e tal. Ganhamos a eleição do Diretório Acadêmico, né?

Cristina: Você podia só falar… o que o golpe, tudo isso, o que que ficou na sua lembrança?

Francisco: Ué, isso, eu até falei no começo, né? Isso foi uma coisa que marcou a mim, aos meus irmãos, as discriminações que a gente sofreu naquele período, né? Principalmente os três, quatro, cinco anos, né? Principalmente, foi uma coisa que marcou a gente, porque a gente foi discriminado pelos vizinhos, por colegas, né? Na escola, então, isso nos marcou, né? Agora, por outro lado, tanto eu como meus irmãos, isso pra gente, a atuação do meu pai, isso pra gente é motivo de muito orgulho. Até o meu irmão, recentemente, faleceu agora, falava assim “Ah, não”, negócio de indenização, não sei o que tem, “Isso nós não vamos pedir, não queremos não, porque nós temos orgulho disso”. Porque meu pai não prendeu ninguém ilegalmente, não torturou ninguém e não matou ninguém, né? Então, isso, a gente pode deitar e dormir com tranquilidade (emocionado). Agora, os que fizeram isso dormem?

Cristina: Não, e não sentam aqui pra relatar como você está relatando.

Francisco: Então, isso, pra gente é motivo de orgulho.

Cristina: E você se recorda do Rodolfo Troiano? Porque ele é da sua geração, também. Você conheceu?

Francisco: Não, porque o Rodolfo Troiano ele é antes, ele é da década de 1970, ainda. Eu, quando entrei na universidade, já foi 1975. Aí, já não tinha mais a entidade, ele, se não me engano, foi presidente da UJES, União Juizforana de Estudantes Secundaristas. Então, eu só mesmo de ouvir falar, naquele período, porque nessa época eu ainda estava com meus quatorze anos, quinze anos de idade, e só mesmo de ouvir falar. No período, hoje a gente sabe que foi militante, na guerrilha do Araguaia e tudo, militante daqui, né? E que eu conheci, também, que morreu nesse período e, aí sim, foi contemporâneo, a gente chegou a conviver, foi o Gabriel Pimenta que foi assassinado no Araguaia, como ele era advogado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Com ele, sim, eu tive convivência, assim, mais ou menos, contemporâneos, tomamos cerveja junto e tinha muita relação com o irmão dele, Zé Pimenta, participei da chapa do DCE que o Zé Pimenta era presidente. Agora, o Rodolfo, pessoalmente, não conheci.

Cristina: Teria algum nome de alguma pessoa que você se recorda que a sua família sofreu no período e que você poderia citar pra ajudar o trabalho da Comissão? Assim, alguém que você… que te lembra essa época, que a gente poderia chamar aqui pra prestar um depoimento?

Francisco: É, que eu lembrei foi mais é esses que eram vereadores. Você diz da época do meu pai… É, eu lembro desses… talvez, eu não sei. Pessoal da família do doutor Nery Mendonça, ou a filha do Jair Reihn, não sei se ela já deu depoimento. A esposa dele ainda é viva.

Cristina: Ah é? Como é que ela chama, o senhor sabe?

Francisco: Eu não sei o nome dela, mas eu sei que a filha, que a esposa e a filha são vivas ainda. Inclusive eu li um depoimento delas da Tribuna de Minas.

Cristina: É? O senhor não tem esse jornal, não, né?

Francisco: Não, não. Não tenho, não, mas tem inclusive no site da Tribuna uma gravação delas. Porque eles fizeram um especial, entrevistaram as pessoas e tem ela que poderia ser ouvida aqui. Que eu lembro desse período, né? E tem os familiares do doutor Nery que poderiam talvez falar, talvez poderiam relatar o que eles passaram, né? Que eu sei que a família Jair Reihn, eles passaram muita dificuldade no período, né? Logo após isso, aí depois ele falece e tal e o que eu sei mais desse âmbito que convivia com meu pai, seriam esses. E o Clodesmidt Riani, que já não sei se já depôs aqui, ele ainda está vivo, né? Já depôs, ele? Não sei.

Cristina: Fez um depoimento lá aquele dia, né? E a gente, dentro do Comitê também.

Francisco: É… e ele tem, sim, muita coisa arquivada.

Cristina: É, ele deu muito documento.

Francisco: Aí, eu tenho fotos que tenho do meu pai é junto lá com o Riani. Aí ele tem, inclusive, um livro, foi publicado pela Funalfa, né? Pelo Nilo, pela Hilda, de depoimento dele. Nesse livro tem várias fotos do meu pai lá, junto deles. Um depoimento que ele deu pro Museu da Imagem e do Som e que virou um livro. Tem um livro. Todo o depoimento dele virou um livro que foi publicado.

Lucas: O pessoal da minha geração só ouve mesmo da ditadura por histórias, mesmo. Mas você foi presidente do diretório acadêmico durante a ditadura militar, que era um dos maiores focos do movimento estudantil contra a ditadura, a favor da liberdade. Como que era, assim, ser o presidente da entidade que é o diretório acadêmico durante a repressão, durante os anos de chumbo? Tinha muita repressão, tinha essa questão deles ficarem em cima do diretório acadêmico, de ter espiões, essas coisas existiam mesmo?

Francisco: Tinha, tinha. Nesse período você tinha muitas pessoas que entravam na universidade, eles não faziam vestibular, não faziam nada. Teve muita gente que formou aí assim, né? Tinha, e como você sabia, você ia na listagem das pessoas que fizeram vestibular naquele ano e não constava o nome da pessoa, e aquela pessoa estava matriculada, né? Existia uma coisa acho que ligada ao SNI, dentro da reitoria, porque tudo passava pelo reitor. Eu lembro que eu ia nas reuniões lá na reitoria, inclusive era uma coisa até, “Chama esse secreta” aí pra reunião, aí vinha o secreta lá, que chamava doutor Hebert, o nome dele, não sei o sobrenome dele, mas o primeiro é Hebert, e praticamente ficava ao lado do gabinete do reitor. Então, assim, eu ainda peguei esse período, tinha livros que você não podia ler, uma vez lá que passamos um livro pra um colega dentro do banheiro. Pra trocar um livro com o outro, né? E era uma paranoia danada, né? Você não sabia quem é quem, na época a gente usava essa expressão “Fulano é cana”, né? Era a expressão que usava. E muito desses caras inclusive distribuíam drogas dentro da universidade, esses caras ligados à repressão. Tem isso também. É tipo assim que achava que a droga iria alienar, não sei o que tem. Tem notícias disso, desses agentes da repressão, vamos dizer, assim, trazer pessoas pra esse lado. Anotava aula que o professor estava dando, né? Tinha até isso, a coisa era bem ostensiva. Então, era assim um clima muito pesado, né? Mas dali a pouco a luta foi caminhando, né? E nesse sentido, nesse período, o movimento estudantil era um movimento que conseguia ter alguma capacidade de organização na sociedade naquele período, puxava a luta, puxava, a gente faz aqui em Juiz de Fora praticamente uma primeira grande greve, que houve, estudantil no Brasil. Se não me engano, em 1978, foi uma das primeiras grandes greves por melhores transportes, a coisa começou assim, o DCE negociando com o prefeito, melhoria pelo transporte pra cá, os estudantes vão pro Parque Halfeld pra negociar com o prefeito Mello Reis e, de repente, sem mais nem menos, sai de dentro da prefeitura uma tropa de choque com cachorro e cassetete e ataca os estudantes ali. Transforma aquele centro ali numa verdadeira praça de guerra. Muitos foram detidos, e aí então se decreta uma greve que durou quinze, quase vinte dias de greve, parou tudo, a universidade. E isso na época repercutiu, se você pegar jornais da época, não só do país, mas do exterior também, esse movimento foi um grande embate pro movimento estudantil. E encantou também outras bandeiras, pela anistia, né? Então, começou a ter movimento pela anistia, né? Então, começou a ter movimento pela anistia ampla, geral e irrestrita. Aí, ao nosso diretório, no caso do ICHL, eu participei, nós fizemos um concurso de cartazes pra o melhor cartaz sobre a anistia. Muita gente participou, escolheu, então, começou a participar desse tipo de movimento, também. E aí vai ter nesse período uma das primeiras grandes greves do professorado de Minas Gerais. Na época, o governador era o Francelino Pereira, então, um dos grandes movimentos ainda em plena ditadura, a gente apoia isso. O movimento estudantil apoia aqui. Nós, aqui do ICHL, por exemplo, puxamos uma greve de solidariedade aos professores e paramos a escola nesse sentido, nesse, de apoio. Então, a gente tinha uma vida… o movimento estudantil, uma vida, assim, muito presente, não só dentro da cidade, mas no país, né? Aí, logo após a classe operária em cena, com as grandes greves no ABC, final da década de 1978, a ditadura já está mais cambaleando. Aí, começa a haver mais um refluxo do movimento, né? Nós chegamos a fazer aqui, na praça cívica, uma assembleia de quase cinco mil estudantes pela libertação dos operários que tinham sido presos lá em São Bernardo do Campo, no 1º de Maio. Conseguimos parar um dia a cidade por um movimento, assim, vamos dizer, que até nós ficamos surpresos. Convocamos a assembleia, quando fomos ver, de repente, descendo, desceu todo mundo, encheu essa praça aqui de estudantes nesse período.

Cristina: Não tinha internet, não tinha celular, não tinha nada.

Francisco: Então, tem fotos, né? Fotos desse período, né? Comícios que a gente fez na frente da câmara, pela anistia, geral e irrestrita, que acabou não sendo, né? Então, o movimento estudantil participou, no meu período, dessas lutas mais gerais, né? Até mais disso do que uma… vamos dizer, essa luta mais sindical do movimento estudantil, mesmo, né? Essa de melhoria do ensino, melhoria dos transportes. Essa dos transportes nós levamos essa cacetada que foi conhecida na época como “A greve dos cachorros”, porque a cachorrada pegou estudante, pegou povo, pegou tudo ali. Virou uma praça de guerra, o Centro de Juiz de Fora.

Cristina: Que ano que foi isso?

Francisco: 1978, se não me falha a memória.

Cristina: Seria interessante pegar esse jornal, né?

Francisco: É. E muitos colegas desse período foram processados na Auditoria Militar. A gente dava apoio às pessoas que estavam sendo julgadas, íamos lá pra Auditoria, pra ver os julgamentos, né? E aí tivemos, por exemplo, eu conheci esse grande advogado brasileiro chamado Heleno Fragoso, né? Tive presente, tive o prazer de ver uma atuação dele numa defesa aqui na Auditoria Militar. Idibal Pivetta, também, um outro, vários advogados, né? Vi o julgamento desse. Foi julgado na Auditoria Militar um jornalista, chamado Hélio Fernandes, que é irmão do Millôr Fernandes. Se não me engano, ele é vivo, ainda muito velhinho, foi julgado aqui. Prestamos solidariedade a um colega de Ouro Preto, professor, um dos últimos julgados pela ditadura, professor David Maximiliano. Foi preso em Ouro Preto, acusado que tinha bomba lá na casa dele, né? E foi julgado aqui, ele era ligado a essa corrente que a gente participava, a Liberdade e Luta. Tem assim… que a gente lembra, né? Mas é isso aí desse embate que pessoalmente tive, né? Nesse período no movimento estudantil. Eu militei, assim, mas meus irmãos, não. Meus irmãos nunca tiveram essa militância depois, não. A não ser mais essas coisas comunitárias deles. Meu irmão, depois, formou engenheiro, participou lá das coisas da categoria. O outro irmão meu é mais negócio de associação de bairro. Hoje é membro de Conselho Municipal de Saúde. Mas assim, na briga política, na luta política, foi só eu nesse período. Enquanto fui estudante, de 1975 a 1983, que participei desses vários movimentos daqui, né? Um absurdo, teve um absurdo, o Oscar Niemeyer não pôde falar aqui na universidade. O Oscar Niemeyer foi convidado a vim falar aqui na universidade e ele não pôde falar. Foi proibido, né? Aí, já mais tarde, não, mais tarde a coisa foi afrouxando e tivemos aqui, presença, no auditório da Faculdade de Direito, Luís Carlos Prestes, fez uma palestra bonita, né? E aí, Leonel Brizola recebeu de novo o título de cidadão honorário que tinha sido cassado, né? E por exemplo, já que me lembrei agora, o presidente João Goulart, é a avenida Brasil, que hoje a gente chama de Avenida Brasil, chamava Avenida Presidente João Goulart, isso foi projeto do meu pai. Inclusive deu nome dessa avenida de Presidente João Goulart. Então, passado um tempo, pós 1968, cassaram o nome da avenida. Você pode olhar nas atas da câmara do período que tira o nome de João Goulart e passa a ser avenida Brasil. Aí, depois, já bem mais recente, o filho de João Goulart veio aqui, em Juiz de Fora, eu fui representar lá a família em um evento que teve na câmara, e aí deram o nome de avenida João Goulart àquela avenida lá onde é hoje o Carrefour, pra chegar à faculdade Estácio de Sá, ali. Depois foi recuperando, né? Meu pai também, a câmara prestou uma homenagem a ele, porque o plenário da câmara chamava Plenário Marechal Castelo Branco, que foi o primeiro presidente depois da ditadura, então, mudaram o nome, tiraram Castelo Branco e o plenário da Câmara chama hoje Plenário Vereador Francisco Afonso Pinheiro. Trocou, isso foi um projeto do vereador Biel Rocha, que fez isso, e trocou o nome de Castelo Branco para o nome do meu pai. E tem uma praça também, em São Mateus, chamava praça Emílio Garrastazu Médici, aí, hoje ela chama praça poeta Daltemar Lima. A gente foi tirando.

Lucas: E tem de tirar o nome do presidente Costa e Silva daqui do São Pedro, né?

Francisco: É isso aí, isso, contribuir pra alguma coisa, né?

Rosali: Está joia, está bom. Muito obrigada por você ter vindo aqui.

Francisco: É, eu lembro muita coisa de memória, né?