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Lauro Almeida Mendes

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Lauro Almeida Mendes

Entrevistado por Antônio Henrique Duarte Lacerda e Jucelio Maria

Juiz de Fora, 22 de julho de 2014

Entrevista 002

Transcrito por: Mírian Bianco de Souza

Revisão Final: Ramsés Albertoni (18/09/2016)

 

Antônio Henrique: Nós agradecemos muitíssimo a sua presença. A Comissão fica honrada de estar te ouvindo e nós gostaríamos que você se apresentasse, dissesse o seu nome, a sua profissão, o local e o dia do seu nascimento.

Lauro: Eu me chamo Lauro de Almeida Mendes. Sou professor aposentado da Universidade, do Departamento de Física e também sou coronel da reserva do exército brasileiro. Nasci no dia 1º de julho de 1934, portanto, estou com 80 anos e 22 dias.

Antônio Henrique: Na sua família havia alguém que tinha algum envolvimento político? Conversava-se de política na sua casa?

Lauro: Sim, bastante. Meu pai era um homem muito ligado na situação atual. Nasceu em 1908, mas nos mantinha sempre informados de tudo que se passava no mundo, no Brasil e na Bahia, meu estado natal. Particularmente, dois irmãos meus eram políticos ativos, pertenciam naquele tempo a um partido chamado Partido Social Democrático (PSD) que fazia contraponto com a União Democrática Nacional (UDN). Era líder estudantil lá na Bahia e no Rio de Janeiro também. E o outro era mais calmo, mas trabalhava com um grupo de agrônomos em Cruz das Almas, na Bahia.

Antônio Henrique: Então se discutia política em casa?

Lauro: Muita.

Antônio Henrique: O senhor se lembra como é que foi a sua entrada na militância política? O senhor fez parte de movimentos estudantis? Fez parte de alguma agremiação? Como é que foi?

Lauro: Isso merece uma introdução para o fenômeno que está preso… na verdade, há um tempo que nenhum dos senhores, como eu também, não era nascido, a Segunda Guerra Mundial. Havia, evidentemente, como os senhores da história sabem perfeitamente, duas ditaduras muito fortes na Europa: a de Adolf Hitler e a de Benito Mussolini. O Brasil entrou na guerra por força dos EUA, mandou para lá cerca de 23 mil homens, e quando houve o 8 de maio de 1945 as tropas vieram e começaram a querer também que o Brasil não tivesse mais nenhum tipo de governo de formato ditatorial. Gostariam muito que o país se democratizasse. E, naquele tempo, o número de militares de alta patente era pequeno, mas eles foram os instrutores da Escola Militar do Realengo e da Academia Militar das Agulhas Negras, na qual eu entrei em 1953. A minha formação política começou no colégio de padres salesianos em Salvador, que eles também estavam numa situação de muito constrangimento, porque o diretor era alemão e a maioria dos professores e párocos eram italianos. Eles não tinham a Polícia Federal, mas tinham agentes dos DOPS que, de vez em quando, iam lá fazer visitas. Nós perguntávamos: “Por que isto?”, e eles diziam que era por causa da guerra. Eu, com 12 anos, parava aí a minha observação, porque não sabia questionar o porquê da guerra fazer isto com eles, mas aos 14 anos, quando já estava passando para a 4ª série, para a terceira série do ginásio, eu comecei a ter ideia do que estava acontecendo. Já naquele tempo, um general que comandava a 6ª Região Militar, na Bahia, era muito discreto, muito inteligente, foi fazer uma visita na Páscoa dos militares no nosso colégio, porque era lá que os militares realizavam a Páscoa deles. E no discurso dele, eu não me lembro exatamente as palavras, mas ele dava a entender que, não obstante aquilo ali fosse um núcleo de pessoas para as quais o país tinha mandado tropas e esforços para combater, era um local muito benquisto e muito bem escolhido pelas Forças Armadas. A partir deste momento a minha cabeça começou a se abrir para entender o que era o contexto internacional agindo no contexto nacional. Tá claro isso? E a partir desse momento eu precisava de pensar o que eu iria fazer antes do ginásio antigo. E como eu era um aluno razoável eu me aventurei a fazer um concurso público, aos 15 anos, para a Escola Preparatória de Cadetes de Fortaleza. Passei e aí começou a minha vida militar, aos 16 anos. Eu não sei se os senhores querem fazer perguntas intermediárias. Fiquem à vontade, porque eu tenho uma sequência própria para falar com os senhores, entendeu?

Antônio Henrique: Não, não. Fique à vontade.

Lauro: Mas se os senhores acharem que está um pouco tendenciosa ou fugindo um pouco dos objetivos… por favor.

Antônio Henrique: Não.

Lauro: Então, em Fortaleza, todos os oficiais e instrutores, imaginem que nós éramos de 16 anos. Todos que entraram lá de 16 anos. E todos naquela fase em que tudo é explosão. O jovem, desde a parte hormonal até a descoberta do próprio mundo, das garotas de Fortaleza. Na escola preparatória os oficiais e instrutores eram todos, todos oriundos da Segunda Guerra Mundial. E lá, quando eles falavam qualquer coisa, a primeira frase que eles diziam era: “Os EUA na América, o Exército americano”. Um dia, um húngaro, que era refugiado da Alemanha, filho de judeus, judeu também, disse para um tenente: “Escute aqui, porque o senhor não fala da atuação do exército russo?”. Aí, normalmente os oficiais respondiam: “Porque os russos são comunistas e não nos interessam. A nós só nos interessa compreender o trabalho que fizemos com os americanos”. De novo a parte tendenciosa da minha cabeça crítica começou a perguntar o porquê somente os americanos. Toda terça-feira, à noite, ia para lá um grupo parecido, não como esse com essa tecnologia de hoje, mas uma máquina a carvão e na parede da igreja exibiam os chamados jornais. Começava assim: “Isso é América”, e a partir daí o locutor ia colocando as belezas inegáveis dos EUA, a ação deles na Segunda Guerra Mundial, a queda de Hitler. Antes a de Mussolini, depois a de Hitler e o encostamento de Joseph Stalin na Rússia para que não aparecesse muito. Na verdade, depois eu fui entender que naquele momento estava começando a surgir o gérmen da Guerra Fria, que os senhores só ouviram falar, mas não viveram. Por que era o gérmen da Guerra Fria? Porque justo naquele tempo havia o Ialta, o Churchil foi lá com Roosevelt, Stalin e De Gaulle, dividiram a Alemanha. Uma parte ficava lá com a Rússia e a outra parte ficava do lado de cá. Berlim dividiram também. E era claro que aquilo não iria dar certo. Não deu tão certo que depois os americanos repetiram a mesma coisa na Coreia e no Vietnã. No Vietnã acabou logo com Ho Chi Minh e na Coreia, lamentavelmente, hoje, todos estamos vendo o que está acontecendo com a Coreia do Norte e a Coreia do Sul. Então, naquele tempo, para mim, foi que começou a me dar consciência do que significava eu estar numa Força Armada e ter que, dentro de mim, dirigido e exatamente o que é que eu queria, como oficial do exército, fazer pelo meu país. Foi muito claro esse momento para mim. Terminada a Escola Militar de Fortaleza, quem comandava a região, por incrível que pareça, foi o primeiro general da ditadura, que não era um homem mau, Humberto de Alencar Castelo Branco. Eu tive a possibilidade de ter a esposa dele como minha madrinha e, curiosamente, eu tive a oportunidade de ser orador da turma e ela gostou muito da oração que foi feita, e me convidou para dançar uma valsa a meia-noite com ela. Bem, saí de lá e vim para a Academia Militar. Daí três anos foi o suicídio de Getúlio. Foi um impacto grandiosíssimo para todos nós, mas a oficialidade toda, ainda oriunda da guerra, queria porque queria que a individualidade toda de Getúlio se acabasse e que fundamentalmente o indivíduo que estava começando a aparecer em ascensão, era amigo dele. Chamava-se João Belchior Marques Goulart, o apelido dele era Jango. Todo mundo sabe, né? Estava começando a despontar, Ministério do Trabalho e isso assim, assim. E os militares da academia militar tinham horror, mas horror a falar no nome de Jango. E Jango era um liberal, era um garotão ainda e não devia assumir aquelas coisas e pior ainda, quando a própria constituição de 46 fez uma hibridação inconcebível hoje: o presidente com o vice-presidente da República era o presidente do Congresso Nacional. Os senhores sabiam disso? Se lembram disso? Bom, desculpem falar a história assim, mas era uma incongruência incrível. Era uma mistura de poder, uma mixórdia verdadeira que de vez em quando se perguntava como essas coisas iam acontecer. E para nós, a hipótese, não, a forma de nos dizer todos os dias, de nos dizer nas aulas de educação moral e cívica era: “Cadetes, ides comandar. Aprendei a obedecer”. Depois, “O exército é uma força armada constitucional baseada nos princípios da hierarquia e da disciplina e na fiel observância das ordens do presidente da República”. Isso nós fomos desenvolvendo anos e anos a fio, e ouvindo respeitosamente isto tudo, praticando e estudando tudo que nós chamamos de disciplinas de direito internacional, penal militar e de constitucional. Essa disciplina era dada em um ano, mas um curso muito denso e por um homem muito bom. As outras todas eram disciplinas de caráter militar. Essa disciplina de direito também abria muito a cabeça dos cadetes que decidiam, sobretudo os oficiais, para saber como nós colocávamos a legislação dentro da Força. E o que era a lei e o que era o arbítrio? Esses momentos foram momentos muito difíceis, porque nós não tínhamos a maturidade que os senhores têm hoje e que eu tenho hoje.

Antônio Henrique: Nesse contexto eu posso fazer uma pergunta para o senhor?

Lauro: Perfeito.

Antônio Henrique: Porque tem uma parte que me interessa muito, que é a gênese da própria ditadura. Aí, já existe uma contradição: o juramento das Forças Armadas obedecer ao presidente ao mesmo tempo era contra o Getúlio.

Lauro: O senhor permita, eu trouxe aqui alguma coisa escrita para não falhar e não dizer… Muito obrigado. É isso mesmo. O senhor tem razão. Eu não quero dar um salto, eu quero seguir a história, a não ser que os senhores queiram fazer alguma outra pergunta, se eu estou fugindo. Respondendo o que o senhor me perguntou, bem, aí houve em 1954 aquela situação terrível entre o Café Filho e depois… Café Filho sai e entra o Nereu Ramos. O Nereu era Presidente do Congresso. Até aí, razoável, porque foi tudo dentro da Constituição. Nereu sai, faz a eleição. O Juscelino Kubitschek é eleito Presidente da República, mas o candidato a vice-presidência era o Jango e o Jango foi eleito vice-presidente. Os senhores todos sabem disso da história, né? E era incongruente, porque um era de um partido e o outro do outro e, ao mesmo tempo que o Jango era Vice-Presidente da República, também era Presidente do Congresso. Aí eu não sei, não me lembro muito bem o que arrumaram, que tinha um Senador muito importante no Brasil. Era um gênio em inteligência, riquíssimo e muito bom político. Ele se chamava Aldo Soares Moura Andrade. O nome acadêmico dele… Perdão. O nome político dele era Moura Andrade. E o Moura Andrade realmente conseguiu fazer com que o Congresso fosse dirigido por ele e pelo Presidente da Câmara. Mas, depois, ele, muito vaidoso, foi engraçado porque todas as vezes que o Congresso Nacional se reunia em… corporativamente, ele foi sempre o presidente. E para dourar a pílula, ele desfez uma… é muito entediante… ele dizia assim: “Hoje o Congresso começa a votar de Norte para Sul”, e começava lá do Amazonas e “tá, tá, tá”. Aí, quando eu via, de Sul para Norte. E agradava todo mundo, entende? Era muito inteligente, jovem, assim como esse menino aí. Cara magrinho, simpático, riquíssimo, uma fluência incrível para falar e um senhor, um senhor senador, aos olhos de Moura Andrade. Bem, a essa altura da vida, quando Juscelino foi eleito, houve um movimento muito grande, principalmente na Aeronáutica, principalmente nos movimentos de Jacareacanga e… esqueci o outro nome… Araguaia, lá no município. Mal estar daqui, buchicho d’acolá e a indefinição das Forças Armadas, até que o Lott, Henrique Duque Teixeira Lott, acabar com isso, militares no quartel e os políticos ao país. E assim o país veio caminhando de uma forma razoável, até a hora que o Juscelino termina o seu mandato e apresentam-se duas candidaturas, a do Lott, que devia ser candidato amigo, apoiado pelo JK, o que não houve o apoio. Foi indicado, mas não houve. E a candidatura do Jânio Quadros, cujo símbolo era uma vassoura.

Antônio Henrique: Jânio Piscina.

Lauro: Não entendi.

Antônio Henrique: Jânio Piscina.

Lauro: (risos) Pois bem, o Jânio vem. Vem as eleições. Ganha as eleições. E aí é que os senhores vão entender por que eu estou aqui hoje. Toma posse e, justo no dia 24 de agosto, ele vai e apresenta ao Congresso Nacional a sua renúncia. Aquilo foi para o país… Vocês não queiram saber. Porque todo mundo tinha esperança no Jango, sabe? Mesmo aqueles que não votaram nele tinham esperança no danado do barbudo e doido, como chamavam, cabeludão, etc. Mas ele fez uma coisa que no início foi muito bonita para a Igreja. A Igreja havia pedido a ele que, pela influência dele, que pedisse a Fidel Castro, que recém tinha feito Serra Maestra e era o Presidente de Cuba, o ditador de Cuba, chefe da Revolução, que libertasse dois bispos e uma porção de padres. Então, o Ministro das Relações Exteriores dele disse: “Só tem um jeito. Nós vamos convidar o Che Guevara e, aqui no Brasil, nós vamos condecorá-lo com a Ordem do Cruzeiro do Sul, que é maior ordem das nossas condecorações”. O Che veio, foi condecorado. Jânio pediu, Fidel soltou os bispos todos… Eu não sei se os senhores têm conhecimento disto. E estava tudo bem quando, de novo, os militares ficaram indignados porque deram a Ordem do Cruzeiro do Sul ao Guevara. Foi um mal estar, senhores. E talvez os senhores não entendam. Não tinha televisão ainda. A coisa vinha ou na conversa, no radiograma, que era no “piripipi”, o Morse, ou vinha pelo rádio, censurado, normalmente, porque os donos de empresas de radiofonia sempre perguntavam ao comandante da região se aquela notícia podia ser veiculada em todos os jornais. Normalmente eles deixavam. Só diziam: “Oh, o senhor já é um homem maduro e sabe que não deve ofender”. E as coisas vieram caminhando quando, de repente, ele apresenta esse pedido de renúncia ao Congresso. O Congresso pega e aceita imediatamente. Ele vai para a base de Brasília pega o avião e desce em São Paulo. Eu estou dizendo aos senhores coisas que eu presenciei. Quando chega em São Paulo ele vira para o coronel, comandante da base, que é uma pessoa de um conhecimento… Não vou citar o nome dele, está vivo ainda. E diz assim, ele diz, o coronel da base diz a ele: “Mas, excelência, por que a renúncia?”. “Porque eu não quero mais trabalhar com o Congresso”. Foi um silêncio total, tal qual os senhores fizeram aí, e isto aconteceu, eu sou testemunha disto. Ninguém gostou, porque embora todos quisessem que as Forças Armadas continuassem com prestígio, não queria, em absoluto, que a gente vivesse sem um parlamento. Ninguém queria. Eu era primeiro-tenente na época e disse: “Mas como?”. Bem, o Jânio vai embora. Aí os senhores conhecem o que aconteceu da história, mas eu vou dizer o que eu vi. Há um movimento lá no Rio Grande do Sul, né? O Brizola encabeça a manutenção constitucional. A saída de Jânio determina para as Forças Armadas… Perdão. Constitucionalmente que o vice-presidente assuma, mas o Jango estava na China em visita oficial. Era o nosso representante lá. E então os militares que aqui estavam não queriam nem sequer ouvir falar em Jango na presidência. Aí, senhores, é que começa para o entrevistado aqui o que aconteceu. Eu estava nessa época servindo em Pouso Alegre, no grupo de canhões de lá, e vai nomeado para lá um general muito jovem ainda, chamado Moacyr Araújo Lopes. Ele já se foi, eu vou falar com respeito, porque ele já se foi, mas, ideologicamente, nós temos posições de muito, muito, de 180º. Então, ele vai assumir, reúne os oficiais e diz: “Olha, a situação do país é a seguinte: o presidente renunciou”. E a gente pergunta: “O Jango está na China. Quem é que vai assumir a Presidência da República?”. Reuniu todos os oficiais, como é a praxe militar, o cerimonial, e vai perguntando do mais novo, do mais moderno para o mais antigo. Quer dizer, do aspirante até o coronel. É sempre assim que se faz, porque não pergunta outro, senão gera uma inibição hierárquica. Aí foram perguntando. Quando chegou a minha vez, dei um passo em frente, faço posição de sentido, muito respeitosamente meti a mão no bolso – naquela época a gente usava uma calça num brim officer, num brim muito forte, de um verde oliva fortíssimo –, meti a mão lá dentro e puxei um livrinho vermelho. O livrinho vermelho era uma Constituição do Brasil, que a Editora Globo – não é dessa Globo de agora não –, a Editora Globo de São Paulo publicava livros de bolsos. Aí, puxei, abri e disse assim: “Excelência, com todo o respeito, a Constituição que todos nós e Vossa Excelência juramos diz que no caso de vacância do presidente cabe ao vice-presidente assumir a presidência”. Nesse momento, meus senhores, eu senti, alguma coisa dentro de mim me disse que eu tinha assinado a minha sentença de término de carreira. Ele e o meu comandante, ele comandava a ADI (Artilharia Divisionária) e o meu comandante era um coronel, um homem sério, danado. Ele virou, arregalou os olhos para mim e eu disse “Sim, coronel, o senhor também jurou a mesma coisa que nós todos juramos”. A reunião terminou, as coisas continuaram nos seus devidos lugares. O general foi lá para o comando dele, eu fui para a minha bateria e o tempo continuou. Bem, o que aconteceu os senhores também sabem. Jânio chegou, entrou por Foz do Iguaçu. Brizola segurou o pepino, aquele General Machado do Rio Grande do Sul veio etc., e “tocou a parada”. E Jango tomou posse. Mas para tomar posse fizeram uma coisa para ele não ser o presidente direto. O que fizeram? Transformaram o nosso regime presidencial em um parlamentarismo e convidaram o senhor Tancredo Neves para ser o primeiro-ministro. E assim a coisa foi caminhando. Depois entrou o Luís Lima, depois entrou um outro que eu nem me lembro mais. E nos quartéis sempre aquele mal estar, “O que é que vai acontecer agora?”. Mas nós, brasileiros, somos de uma índole… Presta atenção no que eu vou dizer, porque isso é duro, mas é verdade. Porque ele, mas eu também sou assim, a gente se acostuma com a vitória ou com a derrota da seleção (risos), e o que aconteceu foi que o povo já estava chateado de toda hora estar negócio de reunir parlamentarismo, voto de confiança, essa história todinha, quando um chega lá e diz assim: “Vamos retornar ao presidencialismo?”. E retornou-se ao presidencialismo. Ao retornar ao presidencialismo, Jango começa a tomar as decisões dele como presidente da república, até chegar em 1964, num comício gigantesco que houve na Central do Brasil. Ali, senhores, eu devo dizer a todos os senhores que, dentro da minha formação militar, eu fiquei profundamente entristecido como que ele permitiu. A quebra de um dos princípios constitucionais que era a disciplina e a hierarquia. Em outras palavras, teria havido como que um “açodamento” pelas palavras do próprio presidente, em favor de sub-tenentes e sargentos para que não obedecessem aos seus oficiais, aos seus comandantes. Isso aí, em particular, para mim, foi muito duro, muito pesado. Acho que isso foi no dia 13 de maio de 1964, se não me falha a memória. Era uma sexta-feira. Lembro muito bem.

Antônio Henrique: Você estava aonde?

Lauro: Nesta época eu estava em Nioaque, perto de Aquidauana, no atual Mato Grosso do Sul. Naquele tempo era Mato Grosso ainda. Eu estava ali naquela unidade, de artilharia também, e percebia que havia um mal estar incrível entre os oficiais. O comandante dessa época era até simpatizante do Jango, etc. Mas ele também, como eu, ficou muito entristecido e nós dissemos “E agora? O que nós vamos fazer?”. Então, ele, como era amigo do Amaury Kruel, que comandava o Segundo Exército, em São Paulo, tentou se comunicar com o Amaury, não sei porque mesmo. Naturalmente, foi pelo meio de “piripipi” mesmo. E nesse meio tempo o Kruel disse: “Olha, Toledo, coronel, eu já estou em contato com o Jango e pedi ao Jango o seguinte: Diga não aos sub-tenentes e sargentos. Volte à presidência, reestabeleça a disciplina e aqui nós garantimos a sua permanência”. O Jango, segundo o Kruel, não topou. E, então, ele se retraiu, silenciou e deixou que todos os outros comandantes de exército dissessem ao Jango que desse jeito o país não podia ir mais para adiante. O governo dele estaria encerrado. E, de fato, entre 31 de março e 1º de abril, decidi estar dentro de um trem viajando de aqui de Aquidauana para Corumbá, no Mato, lá pertinho da fronteira com a Bolívia, porque ali havia um moinho de trigo que subia pelo rio Paraguai e a gente comprava o trigo deles, pelos cartéis. E eu fui lá comprar esse trigo. Quando eu voltei, a situação inacreditavelmente desordenada dentro do quartel, e já iam me perguntando o que é que era… “Olha, houve o golpe, depuseram o Jango e Jango fugiu e já está no Uruguai”. E eu disse: “Mas como?”. Tudo era difícil, não tinha comunicação entre terra. A gente tinha que ir de trem e voltar. Só sabia de coisas pelo “piripipi”. Chegavam os radiogramas com as informações oficiais dos Comandantes. Bem, neste meio tempo, comanda a 9ª Região Militar um afrodescendente, o primeiro general negro que o Brasil teve na época moderna. Era João… não me lembro o nome dele. Um homem digníssimo, um homem, um gênio verdadeiro, inteligente e muito afável. Quando estourou isso tudo ele chamou os comandantes da grande unidade e disse: “Olha, vamos ficar aqui obedecendo o que a lei manda, a Constituição e a ordem”. Mas o comandante da divisão, que era subordinado a ele, adoeceu, voltou para o Rio de Janeiro e imediatamente nomearam Moacyr Araújo Lopes, o tal que estava comigo em Pouso Alegre, para Campo Grande. E ele foi comandar minha grande unidade. E no dia que ele foi visitar a minha grande unidade, ele me olhou e disse assim: “Coincidência, hein, capitão?”, e eu disse: “Oh general, sim senhor, muita coincidência”. “E o senhor, o que é que está pensando?”. Eu disse: “General, eu continuo pensando que o nosso trabalho é defender a Constituição e aduzir o que ocorreu no dia 13 de março, quebrou a Constituição”. E me calei, não disse mais conversa nenhuma a ele, sabe? Aí, havia um major lá, chamado Nestor do Val Filho. Eu creio que, segundo os exames psiquiátricos, ele devia ser um caso limítrofe entre a normalidade e a anormalidade. E então disse ao coronel, esse Toledo, que eu era muito diferente e que talvez eu estivesse a ponto de querer sublevar os tenentes e capitães do quartel a favor dos comunistas. Aí, já trocaram a adjetivação, eu já passei a ser um comunista lá dentro do quartel. Aí, pediu ao coronel para abrir o IPM, o Inquérito Policial Militar. O coronel disse: “Mas como? Eu não tenho elemento nenhum. O capitão está aí fazendo tudo da unidade dele, está agindo sempre, sempre do jeito que ele é”. Ele vai para Campo Grande, esse general lá, o Moacyr Araújo Lopes, de lá dá uma ordem ao coronel para abrir. Aí, nesse momento, de novo, tudo o que eu havia estudado desde os meus aninhos lá no Salesiano, no colégio e tal… eu disse “A arbitrariedade chegou. Como é que o general, numa hora dessas, abre um inquérito? Porque não tem fundamento”. O senhor entendeu bem, senhor historiador? Não havia fato determinante, e ele manda instaurar um IPM para apurar as minhas relações com o mundo subversivo. Essa a expressão. E, pois bem, o coronel teve que cumprir a ordem dele e mandou abrir. E, pois bem, esse major era o encarregado.

Antônio Henrique: Qual o ano?

Lauro: 1964. Isso foi do dia 30 de abril de 64. Vou lhe dar direitinho o dia, porque neste dia eles me prenderam. Me levaram preso para Aquidauana. O quartel de Nioaque. O quartel de artilharia fica em Nioaque. Mais ao Sul, indo para Bela Vista. E Aquidauana fica lá na rede, na noroeste do Brasil, 90 km ao norte de Nioaque. A estrada era de terra, eu era casado e já tinha dois filhinhos pequenininhos, estava com 29 anos, porque era 30 de abril eu ainda tinha 29 anos. Minha mulher com 24, 25, e os dois garotinhos, 3 meses e 1 ano e 3 meses. Fui preso junto com um oficial de dentista. Ficamos lá, presos arbitrariamente 66 dias. Lá, lamentavelmente, assisti cenas deprimentes de oficiais novos, inexperientes, mas queriam se projetar diante dos comandantes e pegavam os civis, coitados, que não tinham nada. Estava fazendo frio já nessa época em Nioaque. Maio, Junho. Estava fazendo frio já em Aquidauana. Mandavam despir homens de idade. Tinha um alfaiate chamado Seu João, coitado, aquele homem eu tenho uma dó dele incrível porque ele foi o que eu vi mais maltratado. Mandaram ele mergulhar embaixo de uma cama e jogaram água fria em cima dele e diziam assim: “E então? Isto é bom? Os comunistas não fazem assim, fazem pior. Comem criança. Fala, João”. Isto, este tipo de tortura na minha região, isso é tortura, tá? Eu fiquei profundamente entristecido com um companheiro meu, que eu conheci na Academia Militar, chegar a fazer um ato desse. E ele não tinha aprendido isso lá.

Antônio Henrique: Mas isso era feito com os civis?

Lauro: Civis.

Jucelio: Com o senhor foi feito alguma coisa? Não, né?

Lauro: Meu amigo, o senhor me desculpe eu lhe dizer uma coisa. Minha mulher sempre dizia: “Lauro, eu já conheci muitos colegas seus, mas eu nunca vi um homem tão terrível quando olha para o outro e como você se enche de vaidade, de poder, e o cara seguir. Qualquer pessoa vai e ele diz ‘amém’”. E eu fazia isso com as pessoas mesmo. Ninguém me tocou a mão. Ninguém. Quiseram tocar nela, porque era uma moça muito bonita. Tinha sido convidada para ser miss Minas Gerais aqui, e esse general, esse mesmo sem vergonha, quando ela foi ao QG perguntar por que eu estava preso, ele virou-se para ela cinicamente e disse o seguinte: “A senhora tem condições de tirar o seu marido da prisão”. Quando ela me falou isso na prisão, os senhores imaginam que eu com 29 anos, no auge da “vaidade”, do conhecimento, das amizades que eu tinha, da correção da minha vida militar toda, saber que o general falou isso com a minha mulher. E ele me falou isso… Bom, deixa pra lá. Aí, meus senhores, a partir daí ele determinou a abertura de IPM. Esse major fez o IPM, aí eu fui preso, fui processado. Quando chegou o processo na mão do auditor, que por acaso esteve, veio transferido aqui para Juiz de Fora por decisão desse general, chamava-se doutor Antônio de Arruda Marques. Foi o auditor daqui, tá? Ele escreveu o seguinte em próprio punho: “Não vejo nem transgressão disciplinar, nem crime nesse Inquérito”, e mandou me botar em liberdade. Aí o general mandou me botar em liberdade, mas ele, esse general afrodescendente passa mal e ele vai, ele que era comandante, general de brigada, comandava uma brigada, agora vai comandar a região. O que ele fez? Tinha todo o poder na mão… Obrigou o novo auditor a reabrir o inquérito. Aí eu fui reconduzido à Corte Marcial. Já estava aqui em Juiz de Fora. Fui conduzido à Corte Marcial, processado, julgado e, felizmente, quando chegou lá no dia tinha quatro oficiais superiores, três coronéis, um tenente-coronel e o auditor, cinco. Eu fui ouvir a sentença toda. Me perguntaram, me inquiriram, aquilo tudo que os senhores veem no júri. No final eu fui absolvido por unanimidade. Confirmaram que não havia nem crime, nem transgressão no que eu tinha feito. Ele, não contente com isto, mandou que eu fosse vigiado aqui em Juiz de Fora. Recém do Rio de Janeiro, havia sido colocado na reserva um coronel – eu não vou dizer o nome dele por uma questão de decência, porque ele está vivo ainda e namorou umas professoras daqui também da universidade, inclusive aqui da faculdade de educação, tá? Ele veio espionar o pessoal da engenharia e em particular a mim que nesse meio tempo havia feito concurso para a universidade. Contra tudo e contra todos eu tinha sido aprovado. Estava no departamento de física. Aí pedi pra fazer o meu mestrado na Universidade Federal Fluminense. Então, aqui eu tive, nós tivemos, um reitor aqui, os senhores todos, eu não vou dizer o nome dele também, porque são companheiros e fraquejaram na hora. Não aguentaram a pressão e negaram o meu requerimento na hora de fazer o concurso. Aí, esse eu vou dizer. No entanto havia, há um homem vivo aqui, baiano também, chamado Aldemir Negrão. É um médico, mora na Rua João Pinheiro. Um homem corretíssimo, não era assim simpatizante de esquerdismo, nem coisa nenhuma. Pelo contrário, era um homem de centro. Peitou o reitor e disse: “Como é que o senhor vai fazer isso? Está fazendo isso com o professor Lauro?”. E como ele tinha uma autoridade moral incrível sobre o reitor, o reitor assinou na hora o “autorizo a abertura do concurso”… perdão… “a realização do concurso e a… o acesso ao concurso que o professor Lauro deva ter”. Fiz o concurso, passei, mas a vigia continuou. Durante cinco anos, aqui dentro da universidade também, nós fomos, eu mais um colega meu e um outro, que eu esqueci até o nome dele… Zé Paulo Neto.

Antonio Henrique: José Paulo Neto.

Lauro: Zé Paulo foi meu “afilhado” (sic) de casamento, ele a Cida. E ele também foi apanhado aqui, e depois o Bebeto… O Guedes.

Antonio Henrique: Guedes…

Lauro: O Guedes estava lá na França. Aquele papo que nós tivemos lá rapidamente, que eu não tive tempo de dizer nada, está tudo isso imbricado nesse processo daqui, da perseguição em 1964 da universidade e da vida militar. Quando Figueiredo fez a anistia, vou dizer uma coisa para os senhores também que é uns vão ficar perplexos, foi o menos estúpido politicamente e intimamente dos generais que comandaram o país. Figueiredo era um homem bom, acreditem. Muito bem intencionado, porque quando ele era garoto o pai dele foi exilado na Argentina, na Revolução de 1932. E ele ficou lá seis anos, era torcedor do Boca Juniors, sabia aquilo tudo de cabeça, espetacular. E quando ele assumiu ele disse assim: “Eu vou fazer desse país uma democracia”, e, do jeito dele, ele fez. Fez uma lei de anistia, uma lei restrita, é verdade, mas nós sentíamos, nós que estávamos do outro lado sendo anistiados sabíamos que ele não podia fazer mais, porque o grupo militar nessa hora, nessa época, chamado de Oficialidade Jovem, cresceu muito e já estava em outras funções. Já eram coronéis, alguns já eram generais e ele tinha que ter muita cautela para não ser desmoralizado como presidente. Em síntese, senhores, é o depoimento de quem conta aos senhores a verdade do meio-dia para ser dita, escutada, transmitida a quem quer que seja. Então, eu me ponho agora a disposição do jovem trabalhador, da mocinha, dos dois entrevistadores, para perguntarem aquilo que desejarem. Responderei estritamente o que for verdade e o que eu souber.

Antônio Henrique: Professor, quanto àqueles episódios de tortura que o senhor assistiu lá em Aquidauana.

Lauro: Aquidauana. Batalhão, no 9º Batalhão de Engenharia de Combate.

Antônio Henrique: O senhor poderia falar mais um pouco?

Lauro: O que eu vi, veja bem… Eu tenho muito cuidado sobre ouvir dizer. Eu lhe digo o que eu vi, a ciência própria, porque essa eu sei o nome e sei quem fez. Ele foi para os EUA com uma doença incrível e acho que morreu por lá. Isso, o aspirante. E o Seu João já morreu. Tanto que naquela época o Seu João já tinha 50 anos. Nós estamos há 50 anos de distância disso, né? Ele era alfaiate e fez o meu terno de casamento (risos). Criei uma amizade incrível com o Seu João, um homem boníssimo que eu não podia… isso eu não podia, as outras coisas não. Ele esteve preso comigo em Nioaque, no meu quartel, um outro médico que chamava Arruda, doutor Arruda. Ele me disse que foi torturado, mas eu não vi. Ele chegou a dizer assim: “Mendes…”. Meu nome de guerra era Mendes. Aqui eu sou professor Lauro e lá eu era o capitão Mendes. “Mendes, não fica perto de mim não, senão você vai se dar mal”. Eu disse: “Não, Arruda. Eu não dou mal com ninguém não. Eu não tenho um milímetro de rabo”. Os senhores sabem o que quer dizer essa expressão, né? Não tenho culpa de nada, nada. Enfrento aqui desde o coronel até o último soldado. Não tenho nada, mas pegaram ele, dizem que pegaram ele e não sei. Por isso que eu não quero nem sequer que os senhores imaginem que eu estou escamoteando. Não. Eu não vi. Mas disseram e depois ele foi maltratado, inclusive com tapas no rosto, porque ele atendia as crianças e não cobrava nada e achavam que ele estava cooptando gente para o Partido Comunista na cidade de Jardim. Jardim é uma cidade pequena perto de Guia Lopes, onde lá estava uma comissão de estrada de rodagem, cujo comandante, cujo chefe de lá foi encarcerado também comigo. Um coronel paraibano, cabra macho danado, gente finíssima, entendeu? Foi cassado porque não concordava com a quebra da Constituição na época. É isso que eu posso lhe responder.

Jucelio: E os argumentos utilizados para justificar a prisão dessas pessoas todas? Elas diziam o porquê? Não?

Lauro: Meu querido entrevistador, justo essa história que eu lhe contei, do major Nestor com esse general. O meu comandante não topou porque não tinha o elemento fundamental para dizer assim “há uma”… a gente chamava… aqui no direito chama de uma representação, mas na vida da gente é chamada de parte. É uma parte que eu não comunicava o oficial, entendeu? Não havia nada, então ele não podia fazer isso comigo não. Mas general, no arbítrio, podia tudo, tudo. Mandou arbitrariamente abrir o inquérito e, possivelmente, outros tinham feito coisas até mais constrangedoras do que esta para se chegar ao absurdo da tortura física. Inadmissível, na minha consciência. É algo que quando eu falo, eu não gosto, sabe, meu amigo? Pode ser até que eu fique ainda emocionado e o ódio ainda pulule dentro de mim e eu me desconcerte. Então, eu prefiro não entrar muito nesse… o que eu vi, eu vi e o que eu não vi, eu não quero saber. Muitas coisas eu vi, muita dignidade vi, muitos majores, coronéis que disseram não a todos os generais, entendeu? A todos aqueles que disseram que ele também poderia ser enquadrado como comunista. Ele dizia: “Pode me enquadrar à vontade”. Vi pessoas muito boas a defender os seus subordinados, a defender o amigo civil, a defender o comerciante, a defender o ferroviário lá de Aquidauana. Vi muita, muita, muitos casos edificantes nessa zorra toda. E a gente, então, neste momento, toma contato com uma coisa que eu aprendi lá no Salesiano em latim, “Amicus certus in re incerta cernitur”, a gente só conhece os amigos verdadeiros nas situações difíceis, na hora incerta. É isso em síntese o que é o meu depoimento à Comissão da Verdade.

Antônio Henrique: Professor, o senhor tem uma demanda…

Lauro: Tenho.

Antonio Henrique: O senhor pode falar?

Lauro: Perfeitamente. Quando houve a anistia, deixa eu contar uma coisa para vocês. O exército trabalha com o mérito. Na Academia Militar todos são classificados com milésimos de nota, pela sua situação intelectual. Eu era um bom aluno. Na minha turma de 456 eu era o 18º e eu tinha, evidentemente, um respeito incrível pelos meus companheiros e eles por mim. Não por intelectualidade nenhuma não, por amizade. A gente vivia ali como num seminário. Não tem mulher, não tem nada, é dormir, trabalhar e estudar. Dormir, trabalhar e estudar. Durante seis anos, três na Preparatória e três na Academia Militar. O senhor naturalmente tem uma ideia disso como é que é, né? Pois bem, quando a gente sai de lá, a gente tem irmãos novos, que o senhor confia fielmente. Pois bem, eu tenho um amigo lá, tenho vários amigos que disseram assim: “Mendes, você é um dos nossos generais”. Eu olhava assim para ele… até que eu ficava satisfeito. Eu tinha estudado e estava preparando para isto. Quando chegou 1964 que me jogaram na rua da amargura, aí veio o Figueiredo e anistiou, me anistiaram como capitão sem receber nada, nada para trás. Minha demanda começa aí. Depois me promoveram a major reformado. Depois a coronel reformado, depois a general de brigada reformado. Então, hoje, eu ganho como um general de brigada, mas o meu posto é de coronel reformado. O meu companheiro que falava isso comigo chegou a general de 4 estrelas. Uverlon Guaraci, muito meu amigo, homem sério. É um dos que a gente pode confiar. E eu lhe disse assim: “Surgiu a lei 10.000 e não sei quanto, 10.772”. Essa lei criou o aspecto, não sei se o senhor já ouviu falar, do paradigma. O paradigma, na lei, é… nessa lei, o indivíduo, imagine que os senhores todos são coronéis, todos, os quatro aqui são coronéis, está bom? Estudaram na mesma coisa, na Escola Militar, etc. O senhor é primeiro, ela é o segundo, esse é o terceiro, ele é o quarto. Ela foi promovida a general de 4 estrelas, escolha do presidente da república. Até aí tudo bem, a escolha é do presidente, eu não tenho nada o que falar. Escolheu ele. O outro foi escolhido e os outros dois não foram. O senhor que é o primeiro e o terceiro não foram. Então o que é o paradigma? Paradigma era aquele indivíduo que estava colocado na situação da mesma turma e que tinha conseguido, por mérito próprio ou pela presidência da república, ser colocado no mais alto posto. Nessa hora, se fosse o senhor o primeiro, como ela era a quarta e foi provida, o senhor tranquilamente podia requerer o seu posto de general de 4 estrelas. Agora, por essa lei, entendeu? Na vida normal não pode porque é escolha do presidente. Então, eu estou diante dessa situação. Eu tenho um colega que é número 56 na turma, eu sou o 18, e ele foi a 4 estrelas. Então, entrei com um requerimento na Comissão de Anistia pedindo a ela toda a revalidação, prejuízo do que eu deixei de ganhar, porque, quando eu fui reformado como Capitão com 18 anos… com 13 anos de serviço, eu saí do meu salário de capitão e fui ganhar como um cabo. Tive que recomeçar a minha vida toda, porque eu sabia, era artilharia. Era apontar canhões, era a maneabilidade, era a arte militar mesmo. Conhecia muita topografia, conhecia um pouco de matemática, de física, etc., mas a minha função, a minha profissão era, eu sou um capitão de artilharia, tá bom? Então, essa minha demanda está, no sentido de que à Comissão de Anistia, que já tem apanhado todos os casos e colocado no ponto final ao requerente, estou fazendo esse pleito. Meu processo entrou lá no dia 13 de dezembro, é fácil porque é “13 do 12 do 11”. No dia 13/12/11 eu faço esse pleito, entende? Para que a Comissão trabalhe nisso e fico até um pouco constrangido, porque eu não quero… eles tratam a gente tão bem lá no Ministério da Justiça que eu não quero fazer nada. Hoje mesmo, quando chegou essa pauta da anistia, ainda estão julgando processo de 2003. O meu é de 2011. Aí eu chego exatamente… mas eu já tenho 80 anos. Aí quando eu olho lá na última coluna, que diz assim: idade, tem companheiros de 96 que estão sendo julgados. É claro que eu quero, porque eu sei que a gente não é eterno. Mas por outro lado, eu gostaria que a Comissão de Anistia, os senhores aqui, que fazem parte desta Comissão da Verdade, né? Fossem como que estimuladores da Comissão de Anistia, para que apressem casos verdadeiros, entende? De quem comeu o pão que o diabo amassou com o rabo e não se revoltou. Eu não quis fugir do país, eu fiquei aqui o tempo todo. Eu criei os meus filhos, eu fui submetido a coisas que eu… eu tinha que escrever em um livro. Contar um caso para os senhores. Talvez os senhores fossem pequenininhos. Ali onde tem aquele, aquele concreto, em frente… onde tem, a prefeitura tem aquele Cesama. Ali. Ali tem um negócio de concreto. Como é que chama aquela praça? Ali tem um grupo escolar.

Antônio Henrique: Escola Normal?

Lauro: Como é que chama aquilo ali? É na esquina. Oh…

Jucelio: Benjamim Constant…

Lauro: Benjamim Constant com a Rio Branco, ali, e a Getúlio Vargas dali. Pois bem, estavam destruindo aquele grupo escolar. Ali tinha um grupo escolar. Eu não sei como chamava não.

Antonio Henrique: Jardim da Infância?

Lauro: Isso, Jardim da Infância. Eu cheguei lá. O que eu vou dizer, moça, isso é bonito, viu? Simplesmente vestido e virei assim para o mestre de obras: “O senhor tem emprego aí pra um trabalho?”, e ele disse: “Tenho. O senhor sabe ler?”, eu disse, “Sei sim, senhor”, “O senhor tem o primário?”, e eu disse, “Tenho”. Aí, o cara me olhou e disse assim: “O senhor fez o ginásio simples?”. Aí o engenheiro, que estava ao lado dele, disse assim: “O senhor fez o científico?”, e eu disse, “Fiz”, e ele disse, “Então não posso lhe arrumar emprego, porque o senhor foi cassado”. Eu não tinha como, ninguém, ninguém dava emprego para quem tinha sido atingido pela área institucional. Nós éramos como se fosse os leprosos da sociedade. Tanto é que na minha argumentação, lá com a Comissão de Anistia, eu digo que naquela época o exército chegou ao ponto de permitir que nós fossemos “expurgados”. Olha o adjetivo, hein? Expurgado. Quem mexe com grãos é que sabe o que era expurgo antigamente, pegava o milho, colocava num círculo daquele, colocava um veneno terrível ali dentro. Como é que chama ele? Aqueles besourinhos vinham de lá… gorgulho! Os gorgulhos vinham e morriam asfixiados com aquilo ali. Era o expurgo. Aquilo chama-se expurgo, em tecnologia de esterilização. Pois bem, lá no exército disseram que nós tínhamos que ser expurgados. De fato, ninguém queria mais ver a gente. E assim a gente vai contando outros casos, esses inacreditáveis que existem… eu tenho uns dez que ocorreram comigo, mas que eu não gosto de relatar, porque eu tenho… eu sou um homem de fé profunda, e eu tenho feito de tudo, tudo, para que Deus me dê o dom do esquecimento.

Antônio Henrique: O senhor acha que o esquecimento seria bom?

Lauro: Para o meu interior sim. Agora, para aquilo que é o direito, eu não posso abrir mão, porque eu sei que não é esse esquecimento bonzinho que eu quero não. Eu quero o cumprimento da lei correta. O meu esquecimento que eu quero, eu quero ter o ódio desses camaradas. Está vendo, senhor doutor? Está incongruente isso ou deu para compreender bem?

Jucelio: Estamos no caminho. Nós te agradecemos então a presença, a fala e o conhecimento que o senhor passou. Não de ouvir ou de dizer, como o senhor mesmo falou o tempo todo aqui, mas o conhecimento que foi sentido e experienciado na própria existência, né?

Lauro: Isso aí.

Jucelio: Então a gente agradece muitíssimo a sua fala e a sua disponibilidade para estar repassando isso para nós.

Lauro: Não há de quê. Eu acho que isso tinha que ser a minha obrigação de, se é verdade, nós não podemos escamoteá-la nunca, nem dizer que isto não aconteceu tendo sido testemunha ocular. Obrigado aos senhores também.

Jucelio: Muito agradecido.

Lauro: Pelo tempo de vocês.

Antônio Henrique: Quando aconteceu o golpe teve gente contra, a favor… me conta sobre esse sentimento de irmandade. Como as pessoas estavam dentro do quartel? Como elas ajudavam os irmãos? Elas tinham medo? Elas estavam a favor? Como que era no quartel nessa época?

Lauro: O senhor me deu a oportunidade maravilhosa de dizer algo, que é terrível o que eu vou lhe dizer aqui também… e eu tive um colega filho de alemão, e a esposa, filha de alemães, morava em Curitiba. A primeira unidade que eu fui servir foi lá em Curitiba, e quando eu fui cassado ele estava em Curitiba e quando ele se encontrou comigo, olhou pra mim e, com aquele sotaque paranaense alemão, enorme, mais forte do que eu, um alemão imenso, bom jogador de futebol, ele olhou para mim e, vou lhe dar a resposta, ele disse assim: “Mendes, tu só foste cassado, porque tu não tinhas um colega da tua turma que tinha servido em Nioaque”. Deu para responder?

Jucelio: Sim.

Lauro: De resto, levo comigo a alegria de ter feito bons amigos na minha turma e de não ter pisado numa casca de banana, e ter dito um sim por um não e um não por um sim.

Antônio Henrique: É, professor, muito obrigado.