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Cláudia Regina Sell de Miranda

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Cláudia Regina Sell Miranda

Entrevistada por Cristina Couto Guerra

Juiz de Fora, 05 de dezembro de 2014

Entrevista 023

Transcrito por: Rodrigo Costa Yehia Castro

Revisão Final: Ramsés Albertoni (12/11/2016)

 

Cristina: Cláudia, boa tarde! Obrigada pela sua presença. A gente começa geralmente o depoimento pedindo para a pessoa contar um pouquinho da história da sua vida, onde nasceu, a idade, a formação e o que a trouxe aqui na Comissão.

Cláudia: Bom, eu nasci em Juiz de Fora. Trabalho aqui, sou professora há 34 anos e o que me levou… eu acho que as duas coisas se encaixam, o que me levou a buscar a Comissão foi uma morte, um suicídio, nunca entendido pela família, de uma das minhas irmãs. O meu pai se casou uma primeira vez e desse casamento ele teve duas filhas, Solange e Sônia. Depois, ele se separou e na separação ele ficou com a guarda das meninas, porque foi uma situação de separação, assim, bastante desagradável. Ele encontrou a mulher dele, na verdade, na cama com outro homem e um caso de adultério, na década de 1950, ainda era considerado até crime, segundo a lei brasileira, e ele levou, ele tirou as meninas de casa, levou pra casa da mãe dele que vivia na Universidade Rural do Rio de Janeiro. A minha tia era assessora do doutor Cassol, que era reitor da Universidade Federal do Rio. Meus avós moravam lá. Então, ele levou as filhas pra lá, pra Universidade Rural e se desquitou legalmente da mulher. Só que a ex-mulher nunca, ela não quis a guarda das filhas. Ela, na verdade, ela não quis mais as filhas. Ela falou que ele levasse, que ela não tinha interesse em ficar mesmo com as meninas. Então, a Sônia e a Solange foram criadas pela família do meu pai. Depois ele se casou com a minha mãe e elas foram incorporadas à minha família. Quer dizer, elas são as nossas duas irmãs mais velhas, apesar de outro casamento, já que elas foram completamente ignoradas pela mãe e o meu pai morreu muito cedo e elas foram incorporadas à nossa vida familiar.

Cristina: Cláudia, a Sônia hoje teria que idade?

Cláudia: A Sônia, ela teria hoje 63 anos de idade. Eu tenho 53, ela é dez anos mais velha do que eu. O que ocorre é que, exatamente assim, voltando, o que me levou a buscar a Comissão Nacional da Verdade. Na época em que a Sônia morreu ela era a irmã que eu idolatrava, em que eu me espelhava. Era a irmã mais velha, inteligente, a ponto de ela ter ganho uma bolsa, na época, pra fazer mestrado e estudar energia atômica, numa época em que havia um projeto no Brasil de estudo de energia atômica, construção de usina atômica. E ela ganhou essa bolsa de mestrado pra estudar no IME. O Instituto Militar de Engenharia, que ainda hoje é uma das instituições públicas brasileiras extremamente fechada e seleta. Estuda no IME, realmente, consegue uma bolsa, um estudante que é diferenciado. Então, era a irmã em quem eu me espelhava, que eu amava, pelo jeito também, mais revolucionário. Era a pessoa com quem eu me identificava.

Cláudia: A Sônia, ela veio morar aqui em Juiz de Fora… Eu nasci em 1961 e, então, eu passei a morar aqui em Juiz de Fora. Logo nasceram, dois anos, três anos depois, nasceram minhas outras duas irmãs. Em 1964 ela veio morar conosco pra estudar aqui, mas, logo depois… Ela passou, na verdade, quatro anos só conosco e, em 1968, ela foi pra Universidade Rural do Rio de Janeiro. A minha tia tinha ido pra Universidade Rural, essa minha tia Neuza, Maria Neuza de Oliveira Miranda, de quem eu falo muito… É exatamente porque foi a tia que assumiu a maternidade da Sônia e da Solange desde que elas foram abandonadas pela mãe e não foram, de certa forma, assumidas pela minha mãe. E, então, a tia Neuza foi quem sempre cuidou delas. Em 1968 havia essa possibilidade de ela estudar no Colégio de Aplicação da Universidade Rural pra conseguir fazer universidade lá, faculdade lá. Então, em 1968 ela voltou pro Rio de Janeiro, voltou pra Universidade Rural do Rio de Janeiro. Ela ficou na universidade, ficou no Rio, depois ela ficou com a minha tia. Na verdade, ela foi pro Rio de Janeiro, foi a época que ela começou a trabalhar, em que eu tenho mais indícios, por meio de testemunhas, mais indícios de participação, de início de participação dela no movimento estudantil e ela ficou no Rio, passou no curso de farmácia e bioquímica, lá no Rio. Em 1971 ela começou a cursar farmácia e bioquímica no Rio de Janeiro. Em 1972 ela estava sendo criada pela minha tia, até porque meu pai tinha morrido em 1970. Então, aí que as minhas irmãs tinham ficado completamente órfãs mesmo, porque elas não tinham contato com a mãe. Meu pai morreu em 1970 e, em 1972, por meio dessa minha tia, é que ela entrou em contato com a minha mãe, com um tio que era militar aqui em Juiz de Fora, Hernani de Oliveira Miranda, pra trazer a Sônia pra cá, porque ela estava muito envolvida no movimento estudantil e havia muitas situações de perseguição. E ela via o tempo todo que estava sendo perseguida por alguns policiais e havia provas disso. Minha tia já tinha visto, sistematicamente, ela entrar dentro do ônibus e um policial entrar atrás. Por causa disso ela se transferiu pra Juiz de Fora e veio fazer farmácia e bioquímica aqui em Juiz de Fora. Ela ficou aqui até se formar. Possivelmente, então, ela se formou em 1974, deve ter sido isso. Eu não tenho os dados dela aqui da Universidade Federal de Juiz de Fora. Na verdade, ninguém guardou nada dela. Foi muito difícil eu coletar o pouco de informação que eu tenho sobre ela, porque a minha mãe não guardou, porque não era filha dela, a mãe dela não guardou porque não convivia com ela, o meu pai tinha morrido. A minha tia guardou algumas coisas, mas muitas coisas ela diz que sumiram do apartamento dela, que de repente sumiram. Então, eu tenho algumas pastas com escritos, alguns documentos, mas foi muito difícil resgatar algumas coisas. Então, a vida dela aqui em Juiz de Fora eu não sei. Não sei exatamente o ano, eu sei que foi no meio de 1972 que ela veio pra Juiz de Fora, exatamente porque havia esse indício, achavam que ela ia ser presa e o grupo ao qual ela pertencia já tinha sido exterminado, que era o grupo “Colina”. Então, ela veio pra Juiz de Fora nessa época, terminou farmácia e bioquímica aqui…

Cristina: Ela morava com vocês, na sua casa?

Cláudia: Não. Ela veio morar sozinha, ela morou sozinha, morava num apartamento sozinha, que era um apartamento que eu frequentava, por ser a irmã mais velha. Ela tinha um contato muito limitado com as minhas outras irmãs porque havia muita diferença de idade. Então, na época, ela tinha 24 anos e eu 14. Apesar de eu ter 14, 15 anos, na época, a minha juventude, a minha geração, a nossa é uma geração muito diferente da geração de 14, 15 anos hoje, que são meninos muito desprotegidos e muito desinformados. Nós vivíamos na época da ditadura militar. Eu participava de passeatas, eu fui a primeira presidente de diretório estudantil secundarista de Juiz de Fora, em 1977. Eu estudava num colégio que era considerado o colégio mais politizado, o melhor colégio de ensino médio de Juiz de Fora, que era o Colégio Magister. Do Colégio Magister saíram muitos professores que ficaram exilados antes de eu entrar no Magister, inclusive. Antes do Magister, eu estudei no Colégio João XXIII, em plena época da ditadura. Então, eu tinha estudos de moral e cívica com o Nilo Ayupe, que era uma pessoa ligada ao exército, à ditadura, tanto quanto tinha professores admiráveis que burlavam de qualquer forma a ditadura, como a Lucy Brandão, que foi uma das grandes referências do João XXIII, que fazia do João XXIII uma escola diferente, porque era uma escola que, apesar de ligada a Universidade Federal, ela tinha um grupo, ela era regida por um grupo de professores que, assim, deram a oportunidade da gente ter um processo de leitura diferente e de muita informação, de muita politização. Professores como a Lucy Brandão, o Edson de Pavel Bastos. A Lucy Brandão, ela é a companheira do Murílio Hingel, ela vive com o Murílio Hingel há muitos anos aqui em Juiz de Fora. Mas, enfim, a minha juventude, ela sabia disso. Nós sabíamos que nós vivíamos numa ditadura. Eu fiz teatro com o José Luiz Ribeiro, desde 1970 e… É difícil pra quem está ficando velha lembrar de data… Vamos lá, eu entrei pro Magister em 1977. Então, eu fiz teatro no Magister desde 1977. O Zé Luiz tinha o grupo Divulgação, que era um grupo universitário, e o grupo Magister de teatro, chamado de GMT, igual tinha o grupo de teatro da Academia, que era o GTA. E a gente fazia teatro no ensino médio e era um teatro politizado. A gente estudava Albert Camus, Maquiavel, estudava Stanislawski, estudava Brecht. Então, eu fiz essa digressão porque, quando a Sônia então veio pra Juiz de Fora, pra morar sozinha, eu convivia muito com ela e eu não sabia que ela era do movimento estudantil, que ela estava vindo fugida pra Juiz de Fora, aconselhada a fugir do Rio de Janeiro. Isso eu não sabia, porque ela era a minha irmã mais velha, dez anos mais velha. Eu era a irmã mais nova com quem certas coisas ela não conversava, porque ela até me exporia. Mas, ela ficou aqui durante um tempo até se formar, até que ela voltou pro Rio de Janeiro quando ela prestou a prova do mestrado do IME e passou, em 1975. Esse período foi um período que eu continuei convivendo muito com ela porque aí eu já estava chegando aos meus 14, 15, 16 anos, já viajava mais sozinha, mesmo que a contragosto da minha mãe. Eu já viajava mais sozinha, ficava muito na casa dela…

Cristina: Você se lembra onde ela morava?

Cláudia: Lembro, porque eu fiquei na casa dela muitas e muitas vezes. Ela morava na rua Inhangá, em Copacabana. Rua Inhangá, número 27, no apartamento 203, em Copacabana. Era um quarto e sala, como os cariocas, que eram estudantes, tinham o privilégio de morar, pelo menos, num conjugado, num quarto e sala. Ela recebia uma bolsa boa do IME, como estudante de mestrado. Era uma época que ela, essencialmente, era uma pessoa muito feliz, porque ela estava realizada na vida profissional, fazendo mestrado, ganhando dinheiro, podendo sair… Mas, sempre, por outro lado, primeiro com um sentimento de solidão muito profundo, que ela dividia comigo, que ela dividia com a minha outra irmã, a Solange, que era mais velha, com o meu cunhado, na época, o Silvio Vasconcelos, que era casado com a minha outra irmã, Solange. Um sentimento de solidão muito grande. E com essa sensação de que estava sendo sempre perseguida. Eu lembro de uma vez que nós entramos num ônibus, nós estávamos vindo de Niterói pra Copacabana e aí ela falou assim “Cláudia, não levanta porque tem um policial me seguindo. Nós vamos parar num ponto só lá na frente. Pra despistar, nós vamos parar num ponto só lá na frente”. A mesma história foi contada pra mim, por uma prima, Lucinha, que mora em Belo Horizonte, que também esteve com ela entre 1976 e 1977, antes dela morrer e ela contava que acontecia a mesma história, que ela parava num ônibus, num morro, num outro lugar, porque ela sabia que estava sendo conhecida, pra não levar o policial pra casa dela. Apesar de que a casa dela, o endereço dela era conhecido porque ela estudava no IME, então, não tinha jeito do endereço dela ser desconhecido. Enfim, o que me fez procurar a Comissão, voltando, então a esse princípio foi que ela foi dada como suicida, como se ela tivesse se suicidado nesse apartamento da rua Inhangá em outubro de 1977. E na época não havia o que fazer, primeiro porque ela era órfã. A mãe não tinha interesse por ela, não tinha nem convivência com ela, meu pai tinha morrido. Era ainda uma época em que a gente vivia sob o regime da ditadura, sim. Era uma época em que havia menos notícias de perseguições e mortes, mas havia ditadura sim! Como eu falei agora, eu trabalhava no grupo Divulgação na época. Eu me lembro de muitas estreias do Divulgação em que a gente fazia um dia antes da estreia a apresentação para os censores. Então, se sentavam dois, três censores na primeira fila e a gente fazia uma apresentação pros censores e o texto depois da apresentação era todo cortado e o Zé Luiz era obrigado a fazer um monte de cortes ou a inserir vários “cacos” nas nossas apresentações pra que desse a entender pra plateia de que realmente tinha sido censurado alguma coisa, de que alguma coisa não tinha passado pela censura. No teatro a gente usa muito essa expressão “inseriu um caco”. Inserir um caco é de alguma forma uma fala qualquer que vai instigar a plateia a pensar que alguma coisa estranha aconteceu e a gente inseria esses cacos e os sensores não iam assistir a peça o tempo todo e, então, muita coisa a gente mudava, o Zé Luiz fazia os cortes e adaptava e a gente encenava peças importantes. Nós encenamos na época Brecht, encenamos “Estado de Sítio”, do Albert Camus, em que o Camus fala exatamente de um estado de sítio, de as pessoas serem privadas da liberdade e isso em plena ditadura. O “Estado de Sítio” foi, se não me engano, em 1980 ou 1981, que a gente estava apresentando o “Estado de Sítio”. Não lembro exatamente da data. Quer dizer, eu sabia, eu convivia com a ditadura. Na época de estudante no Magister eu cheguei a participar de diversas passeatas na universidade. A Universidade Federal de Juiz de Fora chegou a ser invadida… Por mais que isso fosse proibido por lei, depois do AI-5, na verdade, não havia nada mais proibido de verdade, nada proibido aos militares, a universidade chegou a ser invadida, a gente fugindo de cachorro, gás lacrimogêneo, cavalo… A universidade, por meio do DCE, promovia… como é que chamava aquele sábado de manhã? No sábado de manhã tinha… Nossa gente, eu me lembrei antes de chegar aqui… Bom, tinha um projeto, que era um projeto musical, todo sábado. Era um projeto de resistência, que vinha dos antigos “Centros Populares de Cultura”, da UNE… Os meninos não vão lembrar… Como é que chamava?

Cristina: Eu vou tentar lembrar…

Cláudia: É, depois a gente lembra… E havia sempre apresentações aqui no campus. Era uma mania de criar ali onde tinha a praça cívica, onde a reitoria expandiu… Show Aberto! Nossa, uma coisa tão óbvia. Era o Show Aberto1, mas tinha um outro nome… Mas, enfim, tinha sempre o Show Aberto e a gente assistia, por exemplo, Nara Leão, Zé Keti com o grupo Opinião… Vieram essa música de resistência, essa cultura da resistência, eu acompanhei esse projeto desde os 15, 16 anos de idade…

Cristina: Claro! Mas quando ela foi pro Rio? Em 1970 e…

Cláudia: Aí, voltando, em 1974, ela deve ter formado em 1974, 1975 ela foi pro IME.

Cristina: Aí ela foi pro IME, aí ela ficou quanto, até 1977 que ela ficou, quando ela morreu?

Cláudia: É!

Cristina: Nesse período ela te falou alguma coisa sobre movimento, sobre partido…

Cláudia: Nada! Como eu falei, comigo o relacionamento era de uma irmã mais velha que certas coisas não conta e tudo que eu sei, na verdade, foi investigado por mim. Aí, quando surgiu a Comissão da Verdade, em 2012, eu e algumas pessoas da minha família, minha outra irmã, Fernanda, nós nunca aceitamos o suicídio da Sônia porque a minha tia Neuza, que está com quase 90 anos, todo mundo garante “ela não se suicidou”, ela não seria capaz de se suicidar, ela não teria motivo para se suicidar…

Cristina: Mesmo que seja uma coisa dolorosa, mas você pode relatar assim as últimas coisas que você se recorda da sua irmã, os últimos momentos com você, com a sua família…

Cláudia: Olha, vou recordar primeiro um momento comigo e depois falar de coisas que eu ouvi por meio de primos e tios. Uns 15 dias antes dela morrer, ela ligou pra minha mãe, porque tinha nascido um sobrinho meu, filho da Solange. E aí ela ligou, era período de férias… Na verdade, foi um pouco mais, porque foi julho… Era férias de julho, pra eu ficar um tempo com ela lá no Rio e aproveitava e convivia com o Ivo. O Ivo tinha nascido em fevereiro. Então, eu fui sozinha pro Rio pra ficar um pouco de tempo na casa da Solange e um pouco de tempo na casa da Sônia. Com a Solange na época, com neném recém-nascido, estava com uma série de problemas pessoais no casamento… eu acabei ficando só dois dias na casa da Solange e fiquei com a Sônia o tempo todo. E a gente saía, a gente saía pra passear. Ela fazia questão, assim, na casa da minha mãe a gente não tinha hábito de ouvir música, por exemplo. Tudo era muito proibido, a minha mãe sempre foi uma pessoa extremamente conservadora e sem muita condição financeira, sem muita formação intelectual também, tinha só o primário, veio da roça. Quer dizer, com a morte do meu pai essa formação nossa intelectual vinha das escolas onde a gente estudava, das pessoas com quem a gente convivia. E a Sônia sabia disso, porque ela nasceu num ambiente que era de pessoas de muita cultura. Todos os meus tios tinham curso superior, eles eram professores universitários, eram pessoas bem sucedidas. A minha família, originalmente, era uma família tradicional de Barbacena, que sempre valorizou muito a cultura. Então, eu lembro muito disso, dela me dar livro pra ler e me indicar música pra ouvir. São as referências que eu tenho até hoje de música. Por que um dos maiores ídolos de música na minha vida é a Janis Joplin? Mas a Janis Joplin é da geração da Sônia e não da minha, mas foi com ela que eu comecei a ouvir Janis Joplin, Novos Baianos, Chico e Caetano e saber o que era o Tropicalismo, coisas assim. Então, a gente conversava muito sobre essas coisas e nessa relação de irmã mais velha com irmã mais nova mesmo. Ela falava assim “Tem tanta coisa que um dia vou te contar, mas ainda eu não posso te contar. É muito difícil, é preferível eu não te contar”. E dava conselhos, era aquela irmã que dava conselho, que tinha ficado sabendo, por exemplo, que de vez em quando eu gostava de fumar um cigarro de maconha. Porque, na minha geração, não houve quem não fumasse maconha. Graças a deus passamos por essa experiência. Então, era aquela coisa de aconselhar, ela era bioquímica, “Toma cuidado com o tipo de droga. Não é problema, mas, assim não é legal ficar consumindo droga”, de dar conselho mesmo, de irmã mesmo, assim. Porque na época a gente tomava uns comprimidinhos, tomava uns ácidos. São outros tempos. Alguma coisa que vem daquela geração underground dos anos 1960, geração hippie… Então, as nossas conversas eram muito isso, o que ela queria passar pra mim como pessoa, o que era importante eu ser. Ela sabia que eu tinha um conflito muito profundo com a minha mãe, exatamente porque a minha mãe era uma pessoa extremamente conservadora e eu sempre fui uma pessoa mais rebelde. Mas uma rebelde que sempre era primeiro lugar em tudo. Eu fui a primeira aluna em todas as escolas que eu estudei, eu fui primeiro lugar geral do vestibular da Universidade Federal de Juiz de Fora, eu era sempre uma excelente aluna. Então, assim, e a minha mãe queria me criar dentro de uma forma pra casar, pra fazer curso de floricultura, pra aprender a dar banho em neném… 15 anos de idade, uma pessoa que pensava em ouvir Janis Joplin… Então, ela sabia desse conflito que eu tinha muito com a minha mãe e ela ia e aconselhava que era muito importante eu tentar entender, porque era… porque eu só ia entender o que era não ter uma mãe se eu não a tivesse, porque ela não teve mãe. Tem uma carta que ela me escreveu nessa época também, que é de 1976, porque ela passou muito mal, ela teve que fazer uma cirurgia de seio, porque ela teve um nódulo no seio, uma coisa assim e não conseguiu ficar sozinha em casa. Então, pela primeira vez ela ligou pra mãe dela e pediu pra mãe dela ficar com ela, assim, pelo menos uma semana e logo que ela saísse do hospital ela não tinha condição de ficar sozinha. E ela me escreve uma carta nessa época falando assim “Cláudia, pela primeira vez na minha vida eu estou sabendo o que é ter uma mãe e é muito legal. Sabe que ela cuida de mim de verdade? Eu pensei que ela não ia cuidar, mas ela cuida de mim de verdade”. Quer dizer, o que ela conversava comigo antes de morrer era isso. Alguns meses antes dela morrer. Foi ela que tomou a iniciativa de pedir pra minha mãe pra eu ir pra lá, porque a minha mãe nunca deixaria…

Cristina: Você sentiu que ela estava com medo, assustada, preocupada?

Cláudia: Ela estava carente.

Cristina: Mas, Cláudia, ela chegou a ser presa alguma vez?

Cláudia: Em Juiz de Fora, várias vezes. No Rio eu nunca soube, porque o que ela vivia no Rio a gente não sabia. Ela morava sozinha, tinha uma vida independente, então, a gente não sabia o que acontecia. Eu sei do que aconteceu na vida dela no Rio antes dela vir pra Juiz de Fora em 1972, que era a participação no movimento estudantil. Eu tenho algumas anotações que eu acho que vale a pena contar a história rapidamente, mas, assim, ela não comentava sobre isso e, pelo que eu saiba, no Rio ela nunca foi presa, ou ela nunca falou sobre isso.

Cristina: Pois é, mas você tinha um tio que era coronel. E qual era o assunto na casa? Ele não mandava ela ficar quieta, não falava pro seu pai…

Cláudia: Não, porque ele era um barato, não. Ele era um militar, assim, ele era tenente-coronel e as poucas conversas que existiam sobre isso em casa… A única conversa foi assim, quando ela morreu, em 1977 , “Ninguém vai mexer com isso”.

Cristina: Ele falou?

Cláudia: Ele e outros tios. A minha tia Neuza, que criou a Sônia, que foi quem mais ficou com ela, falou que não tinha condição de mexer nas coisas da Sônia porque ela era funcionária pública, ela era assistente do doutor Cassol, lá na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela ia perder… na Universidade Rural… Ela ia perder o emprego dela… Ela não podia perder o emprego dela, ela vivia sozinha, ela era mulher, ela era solteira. Tudo isso era um complicador muito grande, mas não há notícias de prisão assim. A morte dela não foi pesquisada por isso, não havia um contexto que ajudasse. Não houve ninguém que pudesse fazer isso. Eu tinha 16 anos, eu ia fazer o quê? Eu ia, pelo menos, colecionar essa história. Mas eu não podia fazer nada. Ela nunca teve uma mãe que se interessou, não tinha mais o pai e nós vivíamos a época da ditadura.

Cristina: Então, assim, quando você ficou sabendo da morte da Sônia como é que foi? Você pode relatar essa situação? Se você quiser relatar…

Cláudia: (choro) Todo mundo sabia dessa relação tão próxima… da gente. Então, meu tio, que estava no Rio, tio Nilton de Oliveira Miranda, ele pediu para um filho dele, o Marcelo, vir aqui em Juiz de Fora pegar a minha mãe e as três irmãs da Sônia pra ir assistir o enterro. Então, nós fomos levadas direto pro cemitério. Mas a história, as minhas irmãs não sabiam muito o que estava acontecendo. A minha mãe sentou do meu lado no carro enquanto a gente viajava e aí ela falava assim (emocionada) “Cláudia, nós vamos viajar porque a Sônia está doente e a gente vai lá porque parece que a doença é mais séria”. E aí, na medida em que a viagem passava, é quase aquela história do gato subindo no telhado. E aí a viagem passava e “Oh, a notícia que tem é que a Sônia piorou”. E aí foi chegando no Rio, eles tinham que me contar. E aí, o Marcelo, meu primo, e a minha mãe falaram assim “Oh, Cláudia, nós vamos contar uma coisa pra você, Valéria e Fernanda”. Na verdade, eu, a impressão que eu tenho é que a Valéria e a Fernanda estavam dormindo no carro. Isso foi de noite e a minha mãe falou assim “Olha, Cláudia, na verdade a Sônia não está doente. A Sônia se suicidou, a Sônia morreu” (emocionada). E eu fiquei lá, as minhas irmãs não quiseram ir no enterro. Eu fiquei, fui a única que fui… Fui no cemitério, depois fui no enterro no dia seguinte…

Cristina: Cláudia, você disse que estava no Rio, quinze dias antes disso…

Cláudia: É… essa data eu não tenho muito precisa porque, assim, se eu estava de férias, eu fiquei lá por pelo menos uns 10 dias, não podia, e ela morreu em outubro… Não podia ter sido em setembro. Ou era um feriado estendido ou eram as minhas férias de julho… Alguns meses antes eu estava lá.

Cristina: E ela não tinha perfil de suicídio?

Cláudia: Nada, nada. Era aquela coisa de brigar com o namorado, se sentir solitária… Mas ao mesmo tempo feliz, ela tinha terminado todas as matérias do IME. Ela só dependia de escrever a dissertação. Muito feliz, porque falava que orientador dela, que vinha do Japão pra orientá-la, ele elogiava muito o trabalho dela na área de energia atômica… Devia ser uma pesquisa muito importante, feita no Instituto Militar de Engenharia. Realmente uma coisa, assim, que daria uma projeção profissional muito grande e ela sabia disso. É engraçado que, numa das notícias de jornal que eu pesquisei sobre a morte dela, tem uma que dá uma informação muito estranha… As notícias de jornal da época eu pesquisei, eu vou deixar como documento. Então, fala que a polícia foi acionada por causa de vazamento de gás no apartamento, mas na verdade ninguém ligou pra ninguém, ninguém ligou pra família, ninguém viu o corpo sair do apartamento dela. Essa é a verdade. Ninguém viu nada, o apartamento simplesmente foi lacrado. Quando telefonaram, telefonaram pra minha tia Neuza pra avisar do suicídio dela, pra ela ir ao IML reconhecer o corpo. O corpo já estava no IML. O apartamento lacrado, ninguém podia entrar no apartamento. A tia Neuza conta que quando entrou, depois, e o policial foi pra tirar aquela coisa de lacre, que o apartamento estava todo revirado e com muitos papéis, com muita coisa dela revirada. Tinha pouca coisa, muito livro, mas muita coisa revirada. E a tia Neuza conta que, no meio de uns papéis que estavam lá jogados, dentro de uma gaveta, não era em cima nem nada, no meio dos papéis havia um bilhete, que eu tenho aqui, que é um bilhete… No mesmo papel ela escreveu um bilhete pra Solange, minha irmã e escreveu um bilhete pra tia Neuza. Então, ela escreve… É pequenininho, é tranquilo de ler… Porque ela escreve assim “Solange, me dê a dignidade que eu preciso, sendo mais forte que eu na vida e eu no outro mundo só terei você”. Não tem data, não é uma carta, é uma despedida. Mas o jornais chamam isso de uma carta de suicídio e, no mesmo papel, então, ela… Porque estava rasgado na verdade, no outro papel pra tia Neuza “Carregue os erros do mundo sem ter culpa por ter dignidade, por ser difícil reinar onde a coroa é invisível, por conseguir ser humana na terra. Saiba, difícil morrer, difícil nascer, difícil ser. Não sou capaz de ser o que você é”. Ela tinha uma admiração muito grande pela tia Neuza por ter sido mulher que rompeu uma série de coisas da geração dela. Mas, enfim, essas cartas, essas coisas que vão desencontrando… Existem trechos de uma outra carta, então, isso aqui então não é uma carta. Ela pode ter escrito antes de morrer mesmo ou ela pode ter escrito um outro dia que tomou um pouquinho de vinho a mais e aproveitou pra despedir no dia seguinte. Arrependeu, né? (Risos). Não, o texto é muito poético, é dela! A Sônia escrevia muita poesia. Então, essa coisa que ela escreve “Viver sem ter culpa com dignidade, é difícil reinar onde a coroa é invisível”, porque é difícil realmente quando a gente não sabe quem é que manda, quem é que está dando as ordens. É muita metáfora, é muita figura de linguagem. É difícil que um delegado tenha a inteligência pra produzir uma linguagem tão sofisticada e eu tenho uma coletânea de mais de oitenta poemas dela. Mas, nas notícias de jornal aparece uma outra carta de suicídio e essa carta de suicídio, a história é interessante porque ela foi lida por telefone pra minha tia Neuza e quando a tia Neuza pediu a carta, a delegacia disse que não poderia disponibilizar porque fazia parte do processo. Foi lida para a mãe da Sônia quando ela foi reconhecer o corpo, lá no IML. O delegado chamou pra entrega do atestado de óbito lá, leu a mesma carta e falou que não podia entregar porque fazia parte do processo. As duas ouviram a mesma coisa, mas nunca ninguém viu nem se a letra era da Sônia. E nas histórias que a gente lê na literatura sobre a época existiam cartas padrão, que eram lidas pelos delegados pras famílias. Eles liam a carta de suicídio pras famílias acharem que a pessoa tinha suicidado. A carta que foi lida por telefone ou que foi lida de costas pra mãe da Sônia foi essa daqui “Minha família, amo-a. O mundo amo. Não sou capaz de viver só”. E o jornal conta que ela escreveu com letras trêmulas. “Não me neguem o meu suicídio, não me neguem a minha morte. Deixem que ela me perpetue”. Isso é chavão! Isso, um delegado de polícia, um milico um pouquinho mais inteligente escreve… Desculpa (risos). Mas um milico um pouquinho mais inteligente é capaz de fazer. Isso que ela escreveu aqui não. Eu costumo dizer assim “Oh meu Deus, eu vou encontrar uns bilhetes desses meus num dia assim”… No dia que eu bebo um pouquinho mais de meia garrafa de vinho, de vez em quando a gente escreve umas coisas assim, resolve despedir. No dia seguinte só cura a ressaca e pronto e acabou. Isso pra mim não é uma carta de suicídio. É uma carta de despedida, é diferente. É uma carta em que ela se despede da minha irmã, Solange, da tia Neuza. Por que a história também não seguiu? Quer dizer, o tio Hernani… Todo mundo falava “Eu não vou mexer nisso, não vou mexer”, que não sei o que… Com a morte da Sônia, a Solange pirou. A Solange tinha um filho de seis meses e passou os próximos vinte anos sendo internada por meses, de ano em ano, mês em mês, em hospícios. Porque ela pirou com a morte da irmã. Então, a gente tinha que cuidar da Solange. Na verdade a ditadura não matou uma irmã, ela me tirou duas irmãs (choro), porque uma ficou doida… (emocionada).

Cristina: Ela tinha um bebê de seis meses?

Cláudia: De seis meses, que nós ajudamos a cuidar. Ela cuidava um pouco, depois passava um ano e meio, dois, três no manicômio. Voltava, todo mundo ajudava, ela tentava, aí ela pirava, começava a conversar com o Chico Buarque, falar que a Sônia estava mandando um recado pra ela (choro). Ela hoje é uma senhora de quase setenta anos. Foi a única pessoa que eu não entrevistei porque eu tenho até medo de falar. Ela está estável há dez anos. Eu fui responsável judicial por ela, porque ela não tendo pai e mãe, então, eu, como irmã mais velha era eu que internava, eu que mandava “Pode dar choque, não precisa mais dar choque” (muita emocionada). Desculpa!

Cristina: Deixa eu dar uma olhada nesse recorte de jornal…

Cláudia: Com tudo isso que aconteceu não tinha como alguém se preocupar com a Sônia, porque nós tínhamos outra irmã, que pelo menos estava viva e a gente tinha que cuidar dela (choro). Esse outro recorte de jornal que está aí…

Cristina: Ela trabalhava numa farmácia…

Cláudia: Não existe isso, nunca trabalhou numa farmácia. Uma informação esquisitíssima. Tem uma informação nessas cartas que eu… uma informação muito interessante… Diz que ela trabalhava numa farmácia. Nunca trabalhou numa farmácia. Na verdade, ela estava dando umas aulas de química em Arraial do Cabo, porque como ela já tinha terminado a parte escrita do mestrado, ela não tinha que ir ao IME todos os dias. E ela pegou umas aulas, ela adorava trabalhar. E ainda mais passando o fim de semana em Arraial do Cabo… Ela tinha amigos em Arraial, que era muito perto do Rio de Janeiro. Então, ela ia dar aula, dava umas aulas em Arraial. E a notícia de jornal diz, aqui, então, uma coisa que é bastante interessante, que ela trabalhava… Deixa eu ver se é essa aqui…

Cristina: Numa farmácia no Meyer…

Cláudia: Numa farmácia no Meyer… Sendo que ela morava em Copacabana, estudava no IME, na Praia Vermelha, que é do lado de Copacabana. Não tem jeito de… É uma coisa meio distante, mas aqui… Diz que ela teria deixado algumas cartas, fala aqui que ela teria deixado numa tira de papel um recado pra Sônia… pra Solange e um recado pra tia Neuza. Então, essa tira de papel que eu tenho…

Cristina: E uma carta pro namorado…

Cláudia: Uma carta pro namorado. Essa tira de papel que eu tenho, na verdade, ela foi vista pelo jornalista que entrou lá no apartamento. Alguém entrou, mas ela estava escondida no meio de coisa…

Cristina: Quem assinou essa matéria?

Cláudia: Não tem! Não tem quem assina a matéria. O que é interessante nessas cartas é uma outra história, que é uma história… Tudo é tão estranho quando envolve a Sônia… Nessas conversas que a gente tinha, e aí eu não me lembro quando, ela me contou, quando ela falava assim “Olha, um dia eu ainda vou te contar muita coisa. Não posso, mas eu queria te contar sobre uma filha que eu tive, mas eu tinha medo de não conseguir ficar com ela, o Rio é muito perigoso e o fato de eu estar estudando no IME…”. Ela dava indícios que tinha a ver com a ditadura, mas não falava claramente. Eu sei até o nome da menina, ela se chama Lilian. Eu sei porque, assim, na época, quando eu voltei pra Juiz de Fora, eu contei essa história pro meu namorado, na época eu tinha quinze anos e tinha um namorado de muito tempo que, na verdade, depois se tornou meu marido e pai dos meus filhos, que era compositor, que é o Rodrigo Barbosa, que é da FACOM. E o Rodrigo chegou a fazer uma música pra Lilian, que era a filha desconhecida da minha irmã. E ela só falava comigo assim “Eu vou deixar umas anotações pra um dia vocês encontrarem a criança”. Bom, o jornal fala que ela tinha uma filha. Quando eu contei essa história na minha casa todo mundo achou que eu era louca, afinal de contas “Claro que ela é doida, essa Cláudia tira umas coisas… Fuma coisa mesmo…”. Então, todo mundo achava que era coisa de gente meio pirada, igual eles achavam que a Sônia era. O jornal fala que ela tinha uma filha e todo mundo falava que não. A minha tia Neuza fala assim “Não, não era filha da Sônia. A Sônia me falou mesmo”. A Sônia me falou que existia um mapa e que se alguma acontecesse com ela, porque a tia Neuza sabe da vida clandestina da Sônia que eu vou contar de fatos de quando ela viveu na clandestinidade. A tia Neuza fala que a Sônia falou assim “Tia, eu vou deixar um mapa pra vocês encontrarem a menina”. Só que, segundo a tia Neuza, na verdade, a menina não era filha da Sônia, era filha de uma outra militante que estava sendo perseguida e que chamava Gracinha, mas que era golpe de militância. É o único nome de militante que eu conheço, eu não conheço o nome da Sônia, nem de nenhum outro amigo. E ninguém sabe, ela não falava os nomes dos colegas de militância. Ela não falava pra ninguém, não falava pra minha tia, ninguém sabe. Talvez, quem saiba, é um cunhado meu que mora nos Estados Unidos, mas com quem eu não consegui ainda ter muito trânsito. Mas que eu ainda vou acessar. Mas, enfim, então, essa menina existiu e ela foi colocada na clandestinidade. Segundo a minha tia, a Gracinha morreu no parto. Então, por isso que a criança foi pega pela Sônia e que foi levada pra esse lugar na zona rural do Rio de Janeiro onde havia um aparelho e ela ia ser criada por um casal lá até alguém resgatar a criança. A Sônia me contou que era uma filha. Quando a tia Neuza me contou essa história da filha da Gracinha eu ainda liguei pro Rodrigo e falei assim “Oh Rodrigo, me conta assim, lembra, faz tantos anos, não é?”, que a gente tinha 15 anos na época, já quase quarenta anos se passaram. Eu falei assim “Rodrigo, como é que eu te contei a história da Miriam?”, “Ah, você voltou do Rio e contou que a Sônia falou que tinha uma criança que estava vivendo clandestina, mas que um dia ela queria que se resgatasse a criança, que era filha dela, chamava Lilian”, tanto que existe a música. Na época que a Sônia morreu, em 1979, ele compôs a música, foi a primeira música que ele compôs que é a tal da música “Lilian”. Quer dizer, olha como são histórias muito estranhas.

Cristina: Mas você disse que a sua tia sabia alguma história da sua irmã…

Cláudia: Sabe! Mas eu só quero comentar mais essa notícia de jornal aqui. É porque a tia Neuza que me levou a achar essa notícia de jornal também. Na verdade, isso é em dezembro. Em dezembro de 1977 morreu do mesmo jeito uma vizinha da Sônia. Do mesmo jeito! Dada como tendo se suicidado… a Sônia morava no 203 e ela se suicidou no 103. E a notícia de jornal ainda fala que o síndico acha que não pode haver tanta coincidência. Foram meses depois. (inaudível) Parecia uma pessoa comum, com um sobrenome meio latino aqui, meio… Nunca ouvi falar dessa pessoa, a Sônia não tinha relacionamento com ninguém do prédio. Ninguém do prédio. O síndico era um militar. O síndico, eu sabia que ele era um militar, ela não gostava dele e ele não gostava dela, porque a Sônia andava despojada, da geração hippie, andava despojada… Então, as pessoas olhavam e nem imaginavam que era um bolsista do IME nem nada. Ela estava mais pra vendedora de bijuteria da praia de Copacabana. Então, as pessoas olham muito isso. E aí, essa outra notícia de jornal mostra, foram dois, três meses depois… A Sônia morreu em outubro e a notícia é de dezembro, dois meses depois uma pessoa morreu exatamente igual em um apartamento embaixo do dela.

Cristina: Pois é, são os invisíveis da ditadura, que a gente estava conversando…

Cláudia: Bom, o que a minha tia fala… a minha tia, como ela foi quem mais conviveu com a Sônia… A Sônia tinha um amor por ela como se fosse de mãe, porque ela criou a Sônia e a Solange como filhas mesmo… A minha tia morou a vida inteira nas Laranjeiras, hoje ela é uma senhorinha que mora em Juiz de Fora por questões de segurança. Porque ela foi assaltada no Rio e ela como era… chegou quase a reitora na universidade, então, ela tem uma boa aposentadoria, morou em uma casa aqui em Juiz de Fora durante muitos anos, ali em um condomínio em São Pedro. Mas agora, como ela está muito debilitada, ela mora aqui em São Mateus, mas ela tem uma memória muito boa, porque ela é muito inteligente. Ela era professora, ela era… Ela ainda, apesar dos quase noventa anos, ela tem umas coisas de memória, isso é muito interessante, ela não lembra data de nada, mas juntando das conversas com ela eu cheguei a algumas datas. A Sônia saiu… veio morar no Rio de Janeiro, foi em 1968. Ela foi morar no Rio. E foi numa época que ela foi morar com a tia Neuza. Então, a tia Neuza conta algumas coisas que são muito interessantes. Primeiro, que assim, a Sônia era muito reservada. Tinha muitos amigos, mas nunca apresentava os amigos. Nada! Mas que tinha uma casa que ela frequentava, era uma casa no Cosme Velho e que ela lembra direitinho, ela perguntava “Sônia, onde você passou a noite?”, e a Sônia de vez em quando sumia seis meses, voltava e “Ah, não! Eu estava lá na casa, tia”, que é a tal da casa no Cosme Velho. E essa notícia eu não consegui encontrar no jornal, até porque não é a minha praia… Fazer pesquisa em jornal de época é muito difícil pra quem é leigo. Essa casa, em 1970, ela foi estourada e morreram, foram assassinados todos os jovens que estavam lá. A referência que a minha tia tem, que nunca foi à casa, é que era uma casa perto da casa do Roberto Marinho. Era, na verdade, um aparelho do grupo Colina e que eu não sei quantos jovens, mas, segundo a minha tia, foram muitos jovens assassinados numa mesma noite. E depois, então, a Sônia ficou encolhida, não saía de fora de casa, ficava mais dentro de casa, etc., etc. Depois, passado um tempo desse atentado lá no Cosme Velho, um dia ela chega em casa e a Sônia tinha montado um aparelho em casa, que tinha umas oito pessoas com escutas, com tvs, com câmeras, com o que tinha porque eles estavam monitorando alguém. E a tia Neuza, como ela trabalhava na Universidade Rural, até chegar a Laranjeiras realmente chegava muito tarde em casa. Ela não sabe quanto tempo eles ficaram na casa e que ela pôs todo mundo pra fora “Vocês estão malucos? Vocês vão me mandar pra cadeia! Eu não posso!”, pôs todo mundo pra fora e ficou com a Sônia dentro de casa, mas, enfim, de vez em quando acontecia uma coisa dessas… Ou a Sônia, em determinado dia, aparece com uma pessoa e fala “Tia, fulana”, ela não lembra o nome da “fulana”, “Fulana vai passar uns dias aqui até alguém vir buscar”. Aí a tia Neuza “Sônia, eu não posso abrigar uma pessoa clandestina, Sônia. É complicado”, que não sei o que, mas a minha tia também sempre foi uma pessoa de esquerda e ela não queria participar, mas ela também não negava ajuda. E por mais de uma vez ela abrigou pessoas que estavam fugindo de um aparelho pra outro e ela ainda conta isso, que numa das vezes que, assim, a Sônia saía de casa e como ela morava em apartamento de frente ela via policial atrás da Sônia e aí cada vez foi dando mais medo. E, um dia, a Sônia aparece com uma menina, ficou uma semana na casa dela. Um dia toca o telefone, era pra Sônia e marcaram um horário “Olha, vai aparecer um Fusca verde com uma bandeira do Botafogo atrás”, estou chutando, não era isso não, mas vamos ter uma descrição “O carro é assim, ele vai passar na esquina da rua tal e tal, vai ser um Fusca dessa cor com o símbolo de um time de futebol e aí vocês podem entregar a ‘fulana’”. E aí, a tia Neuza ficou com tanto medo que… (inaudível) era uma militante, uma clandestina… Ela vivia levando clandestina pra passar dois, três dias lá pra poder mudar de aparelho, e que, num dos dias, a tia Neuza já estava tão apavorada porque via sistematicamente ela entrando no ônibus e a polícia entrando atrás dela e militar atrás dela, que a tia Neuza foi fazer a entrega. Aí ela fala que, assim, que ela nem sabe de onde que ela tinha coragem, que ela tremia a perna toda, que todo carro que aproximava e que era da cor que eles tinham descrito na época, e que ela não lembra, ela achava que era pra pegar a menina… Até que apareceu um que abriu a porta, chamou o nome da moça e a moça entrou dentro do carro. Então, da vida de militância da Sônia existem esses indícios. Eu não sei nome, mas eu sei que de 1968 a 1972, quando ela veio pra Juiz de Fora, a pedido da tia Neuza, porque ela estava já sendo perseguida, foi a época em que ela viveu mais tempo na clandestinidade e teve maior participação política. Parece que a coisa se esvaziou um pouco quando teve esse atentado no casarão do Cosme Velho, que eu não consigo… De vez em quando eu acesso a informação, mas eu não consigo achar informações sobre esse tal desse atentado. Mas alguém do Rio de Janeiro, ligado ao Colina, parente de pessoas mortas, com certeza sabe o que aconteceu…

Cristina: E a sua tia não lembra de nome nenhum, a não ser o da Gracinha?

Cláudia: Nenhum, só o da Gracinha. E a Gracinha está na agenda de telefone da Sônia, porque eu também consegui a agenda de telefone dela. Só que na agenda devem aparecer só codinomes, não devem aparecer…

Cristina: Tem uma conta que apareceu naquele papel que você me mostrou, que dizia que era uma conta universitária também… Número de conta…

Cláudia: Sei…

Cristina: Mas, assim, já tem uma porção de pessoas ajudando a gente na pesquisa…

Cláudia: É, porque eu consegui pesquisar, quer dizer… É isso! Não tem… (inaudível) Todas as vezes que ela foi presa foi aqui em Juiz de Fora. Foi quando ela veio pra cá em 1972, ela era estudante de farmácia, mas ela era presa assim… Era presa porque bebia muito, saía fazendo algazarra na rua, estava fumando maconha ou estava pichando o Cristo contra a Ditadura…

Cristina: Mas o Cléber… O Rodolfo Troiano também (inaudível) o Cristo e foi (inaudível)…

Cláudia: Pois é, ela foi solta o tempo todo por causa do meu tio que era tenente-coronel… Ele ia lá, tirava ela da cadeia, entregava pra minha mãe e aí era aquela confusão de saber “e agora, quem que vai ficar com a Sônia”. É difícil não ter pai nem mãe, “quem que vai cuidar da Sônia sendo perseguida assim?”. É que eu estou olhando aqui as anotações, mas, enfim… Onde que, assim, eu queria ter vontade de pesquisar? Lá na delegacia da Hilário de Gouveia, que se lá foi a delegacia que atendeu o ocorrido, que tirou o corpo do apartamento, apesar de ninguém nunca ter visto isso, lá existe um processo. Foi lá que foi lida a tal carta de suicídio que também nunca ninguém viu… Nunca ninguém viu essa carta! Então, nessa delegacia tem que existir um processo, nem que seja do suicídio dela. Alguma coisa tem que ter nessa delegacia da Hilário de Gouveia. As duas vezes que essa tal dessa carta de suicídio foi lida a explicação é a mesma “Nós não podemos mostrar, porque isso faz parte do processo”. Ninguém nunca viu se a letra é dela ou não. Tem um outro detalhe da minha tia Neuza, que depois do enterro ela estava arrumando o apartamento da Sônia para dar as coisas para uma instituição de caridade, observando se tinha algum documento pessoal e, em seguida, ela recebe uma ligação de um policial que era do IME dizendo que precisava ir até o apartamento da Sônia para pegar livros que pertenciam ao IME. Esses livros estavam emprestados da biblioteca para os estudos do mestrado dela, Sônia. Ele foi com vários outros policiais até o apartamento da tia Neuza, e recolheram todo o material de estudo da Sônia, com todas as anotações dela, inclusive de pesquisa. Levaram tudo, livros do IME, livros que não eram do IME, dissertações, e minha tia não tinha como fazer nada. Não existe nada, foi tudo levado e com certeza existe um registro no IME dizendo que ela estudou lá. Bom, o mapa, eu falei dele, ele existe eu coloquei aqui para buscar a criança. E o mapa, eu ainda escrevi aqui “Essa letra não é da Sônia, alguém ensinou ela a chegar lá”. Que fala que ela vai para Volta Grande, pega a viação Salutaris, vai até tal lugar e vai chegar em Além Paraíba e dar uma volta, isso daqui que era na verdade para ir a um lugar pegando vários caminhos para não ser vista, porque não tem jeito, você podia pegar de Volta Grande direto na época. Aqui existe indicação de pelo menos 2 ou 3 viações de ônibus, que ela teria que sair de um e entrar no outro, e no outro, e chegar no tal lugar. Essa letra não é da Sônia, mas ela fez um mapa com a letra dela depois, e ela escreve coisas, fala para procurá-la, andar quatro casas, ia visitar um curral, tinha um estábulo. Ela anota coisas que ela estava ouvindo na conversa para poder chegar ao lugar, e essa letra é dela. Essas anotações assim atrás que ela fazia, pois isso era uma mania dos hippies dos anos 1960, tudo que fazia lia o “I Ching”, e ela era extremamente mística. Tudo que ela ia fazer ela colocava os palitinhos, lia a mensagem do “I Ching”, que é uma filosofia chinesa, para saber se estava indo no caminho certo. Então, quando acho esses palitinhos é porque ela estava lendo alguma coisa no “I Ching”. Mais misticismo dessa geração hippie dos anos 1960, 1970. E estas fotos dela são fotos com o meu sobrinho que tinha nascido, que nasceu no ano em que ela morreu, filho da Solange. O Ivo devia ter uns 3 meses, ela morreu depois. Então, são as últimas fotos que a gente tem dela.

Cristina: Você acha que tem alguma coisa a mais que você possa falar? Porque o importante para a gente tentar ajudar são os nomes, coisa que você não tem. E para todo mundo que eu tenho pesquisado, procurado e perguntado dessa mesma época, as pessoas não lembram, porque ninguém usava nome, então, a “Sônia” não é “Sônia”, e ninguém sabe o codinome dela. O que a gente precisaria é de alguma referência, mas vamos ter todo o empenho que for possível para termos alguma notícia da sua irmã.

Cláudia: Essa acomodação da gente nesse tempo também, Cristina, é porque, assim, eu tenho, como eu falei, uma pasta com mais de oitenta poemas escritos por ela, ela gostava muito de escrever e todo mundo comenta que esses anos, de 1976 e 1977, foram anos em que ela estava muito deprimida, se sentindo muito sozinha. Então, assim, não quer dizer que ela não tenha se suicidado. Não quer dizer que… quem vai conseguir saber o que leva uma pessoa a achar que o suicídio é o melhor caminho. Uma pessoa que se sentia tão solitária, tão abandonada, sem pai, sem mãe, sem família, sem amigos. Porque ela perdeu os amigos, eles caíram, eles morreram. Ela tinha medo de viver, isso ela tinha, porque isso os textos dela mostram. Ela tinha medo. Então, não quer dizer que ela tenha suicidado, mas para mim, como irmã, para minhas irmãs, para os meus filhos, meus netos, aceitamos que ela tenha suicidado como uma lição para a família, que alguém pode ser capaz de se matar por abandono. É muito diferente aceitar, muda completamente a imagem da Sônia, se ela foi morta por uma ideologia, por algo que a gente sabe que sempre foi a vida dela. Ela se dedicou a estudar, sempre uma pessoa extremamente engajada em movimentos culturais, movimentos estudantis, e se ela morreu por isso, é diferente a imagem dela do que a daquela que fraquejou, bebeu demais e se matou.

Cristina: Simples assim.

Cláudia: São dois tipos de morte, e eu, assim, porque, nossa, eu chorei minha vida inteira o suicídio da minha irmã, mesmo não acreditando que ela tivesse suicidado. Mas eu não tinha jeito de ter essa visão distanciada que eu tenho hoje e nem as informações que eu tenho hoje. Como eu disse, quando eu vi o decreto que criou a Comissão da Verdade, eu sou uma das pessoas que vai à página na internet todos os dias da Comissão Nacional, que estuda isso com os meus alunos, eu estudo isso com os meus alunos. Então, assim, a partir desse momento eu falei assim “Não, eu não vou mais me conformar com o suicídio. Eu pelo menos quero saber da vida dela, quem ela foi, que participação teve, que história foi a história dela que a gente não conheceu”.

Cristina: Cláudia, e essa é uma oportunidade que você nos dá, porque você conta uma história, é uma semente, mas a gente tem uma equipe muito grande. E todo mundo está estudando ponto a ponto. É uma possibilidade. Você autorizando a divulgação, a gente vai poder esmiuçar.

Cláudia: Mas, exatamente isso que eu quero, que isso tudo seja divulgado, porque é uma história. Primeiro, é uma história que eu acho, assim, muito bonita, pela complexidade. É muito complexo.

Cristina: Mas você deve isso a ela, mesmo que no final se descubra que foi um suicídio mesmo.

Cláudia: É, um dos motivos dessa orfandade dela, a gente já conhece, então, isso a gente sabe que isso é motivo para alguém se suicidar. E as outras coisas todas que ela fez. Eu queria tentar conhecer. A Comissão, quando foi criada e assim quando começou a funcionar, e eu comecei a “escarafunchar” quem eu podia achar, e por meio do Betinho Duarte eu cheguei a vocês. Eu falei “Então agora eu tenho uma esperança de contar essa história”, porque é a história que nós vivemos na nossa época.

Cristina: Porque a gente quer contar tudo que sabemos.

Cláudia: E eu vivia essa época, eu vivi os anos de chumbo. Eu fui uma adolescente na época dos anos de chumbo. Isso é assassinar uma adolescência. Você viver em um país que não tem liberdade de expressão, viver em um país que você não tem uma imprensa que te informe de verdade sobre o que está acontecendo à sua volta. Foi nesse país que eu nasci, que eu me fiz adolescente. Eu quero saber muito dessa história. E tenho muita fé em projetos como esse, da Comissão da Verdade, e é uma honra para mim ser recebida por vocês, pois são pessoas que se preocupam com os outros, e vão fazer uma história que nunca mais vai ficar para trás, para todo mundo saber, e esses jovens de hoje saberem por que suas mães são tão amarguradas, por que algumas pessoas não são tão alegres, e poder entender melhor as mães, as avós e saber de onde vem essa amargura, pois ela pode ser histórica. Nascemos massacrados.

Cristina: Nós temos que contar essas histórias, exatamente.

Cláudia: Porque todo mundo tem que saber o que é viver nesse contexto de ditadura, para não abrir a boca falando a besteira de pedir a ditadura de volta.

Cristina: Intervenção militar, gente, onde estão com a cabeça?

Cláudia: Pedir Intervenção militar? Nossa, eu juro que eu arrepio quando falam disso.

Cristina: A gente também arrepia. Tem que vir uma intervenção psiquiátrica para essas pessoas. Mas eu acho, então, que a gente podia terminar, e eu te agradeço muito a sua confiança, a sua presença, a sua história.

Cláudia: E eu agradeço muito a vocês por insistirem nesse caminho.

Cristina: Mas precisa exatamente que as pessoas divulguem e que nos procurem, pois a gente se alimenta das histórias.

Cláudia: E lhe ofereço, como voluntária para qualquer coisa, para buscar pessoas, ajudar a pesquisar no que for necessário. Nos limites da minha condição de trabalho, o que eu puder ler, porque como professora de português posso pelo menos ajudar a fazer correção, e revisões, tornar mais claro alguns depoimentos. Pois algumas falas são confusas. A gente vai recuperando a memória, é difícil.

Cristina: A gente agradece toda a ajuda.

Cláudia: Estou à disposição para o que for necessário. Obrigada, Cristina, obrigada a todos vocês da comissão.

Notas

  1. Som Aberto