Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora
Depoimento de José Salvati Filho
Entrevistado por Cristina Guerra e Helena da Motta Salles
Juiz de Fora, 19 de setembro de 2014
Entrevista 015
Revisão Final: Ramsés Albertoni (17/10/2016)
Helena: Salvati, você poderia começar falando um pouco assim da sua história de vida, e depois contar pra gente a sua história de militância política e prisões, etc.
Salvati: Eu sou de Juiz de Fora, desde os doze anos de idade eu trabalho, sou filho de italianos, né, então, eles davam, por exemplo, prioridade ao trabalho, carreira do que ao estudo, né? E aos dezoito, dezessete, dezoito, eu comecei a ter uma consciência política das coisas e procurei me integrar em alguma coisa. A primeira, a primeira organização, assim, organização não, é… entidade que eu me integrei foi a UJES, porque eu trabalhava e estudava à noite. Aí a UJES começou a me dar mais clareza das coisas. E eu fui e comecei a pensar em coisas mais largas, mas nunca tive naquela época, quando eu comecei, pensamento em organizar… em determinados grupos. E quando acaba a UJES, o exército manda acabar, fechar a UJES, então, eu peguei, aluguei uma casa lá em Santa Luzia, no bairro Santa Luzia, porque sempre eu pensava em fazer um trabalho junto com os operários. E mesmo sendo estudante eu já tinha uma visão da importância, do que eu pensava, da transformação social, passava por aí. E aí eu aluguei uma casa lá, uma casinha e nós levamos o que sobrou da UJES, com o mimeógrafo, uma máquina de escrever… Ah, tinha móveis que também nós levamos e o resto nós doamos pro DCE, na época.
Cristina: Que idade o senhor tinha?
Salvati: Na época, vinte e um pra vinte e dois anos, já… e aí, lá no bairro, a partir daí, eu também me integrei ao colégio lá, que eu era secundarista e formei um grêmio lá. Tinha um pessoal, aí nós tínhamos um jornal, que esse jornal, que a gente começava a passar ele para o bairro todo, em cima de uma resistência. Não só, gente, eu nunca pensei somente na ditadura, eu pensava à frente um pouco de se fazer algo mais quando derrubasse a ditadura, a gente criar uma sociedade, no caso, era socialista mesmo. E aí nós começamos também a nos ligar através da encíclica, né, que era no momento a igreja lá do bairro, tentando estender o trabalho. E aí, depois, veio o Rodolfo, morava aqui, o Rodolfo participava comigo da UJES. Aí, o Rodolfo também tinha saído.
Helena: O Rodolfo Troiano?
Salvati: O Rodolfo Troiano.
Helena: Vocês eram ligados, então?
Salvati: Nós éramos, éramos. O Rodolfo, por exemplo, porque ele não tinha condição muita, então, como eu trabalhava e ajudava, porque a família dele nunca participou assim com ele, assim, de dar alguma coisa a ele. Então, eu o ajudava, em determinado aspecto. Eu já tinha lá um trabalho, uma família lá, e ele almoçava às vezes na casa da minha família e a gente ia tocando e também veio o Limar, morar comigo. O Limar que, depois que eu soube, parece ele trouxe o irmão dele também, que eu acho que ele teve problema com a família dele lá, não sei o que lá, o que estava acontecendo, e eles foram morar com a gente. O Limar também era da UJES, e, aí tá, aí éramos só nós mesmo.
Cristina: Então, eram três?
Salvati: Quatro… Era eu, Rodolfo, Limar e o irmão dele, Antônio.
Cristina: Que moravam nessa casa?
Salvati: É, que moravam nessa casa.
Helena: Mas a essa altura ainda não tinha nenhum partido, era só uma iniciativa de vocês?
Salvati: Não, não tinha nenhum partido. Era só nós. Era só nós. Então, era mais um trabalho de bairro, entendeu? Então, o que deve ter… agora dá para fazer essa análise tranquilamente né, porque quando a gente tem mais experiência, a gente sabe, né? Aí, quando o trabalho começou a crescer e a gente, lógico, tinha o contato das pessoas e naquela época começava a surgir, já estava surgindo também as passeatas aqui, e inclusive o enfrentamento com a TFP. Então, essa organização me vinha… a gente organizado lá já, estava vinculado ao colégio com o grêmio já formado, já tinha no bairro famílias, tinha um operário no grupo da gente. Aí, de tudo quanto é grupo. Aí, começava a se discutir aquelas coisas, agora que a gente vê, que era um negócio mais, assim, idealista, de uma discussão sem fim, às vezes, com pouca objetividade, cada um querendo impor a sua ideia, e tal.
Cristina: E estas reuniões eram nessa casa?
Salvati: Eram nessa casa. Aí veio, em uma época, o Chuchu, veio o Chuchu, que fazia medicina em Belo Horizonte, ele era um dos líderes da Corrente, da tal Corrente. Aí, veio na minha casa, querendo conversar, querendo ver como é que trabalhava junto. O Antônio, que também era da Corrente, Antônio Guedes, também participou desta reunião com a gente lá, com o pessoal. Mas eu era, na verdade, muito assim personalista, às vezes. Então, do jeito que eu não queria que eles tomassem meu trabalho, que eu ficasse dependente deles, eu também precisava desenvolver mais. Aí, eles fizeram um jornal, esse jornal, inclusive, foi o que os caras prenderam lá na minha casa. Fizeram um jornal e nós não quisemos, nós não iríamos distribuir, porque nós vimos o seguinte, que nós não participamos da feitura do jornal e, então, eles colocaram o que quiseram. Mas antes deste teve um outro, primeiro, este seria o segundo. No primeiro nós aceitamos, nós distribuímos esse, legal, nos pontos todos. Agora, no segundo, nós exigimos participar, que a gente teria uma participação.
Helena: Desculpe te interromper, mas quem fazia os textos do jornal era o pessoal da Corrente, e eles queriam que vocês distribuíssem, e vocês não queriam ficar só com este papel?
Salvati: E aconteceu uma outra coisa também, o seguinte, o Antônio, que era da Corrente, foi lá, e roubou, roubou não, pegou o mimeógrafo. Eles falaram, eles usavam um termo, não era roubo, era…
Helena: Desapropriação.
Salvati: Desapropriação (risos). Aí, deixaram o jornal, eu não estava lá, deixaram com o Rodolfo lá, um monte de jornal que era para ser distribuído, porque eles não tinham como distribuir, eu acho. E a gente tinha falado que não iria distribuir porque nós não participamos. Mas eu sei que o Rodolfo pegou, estava em casa, lá, e eles deixaram o jornal lá. Inclusive esse jornal ficou quase todo o tempo lá, e eles pegaram o jornal, esta edição, mas que não tinha nada a ver, nós não tínhamos nada a ver com aquele jornal, porque nem distribuir nós iríamos. Não sei porquê… aconteceu isso.
Cristina: E vocês pichavam também, né?
Salvati: Nós é que fizemos a pichação no Congresso da UNE, porque o pessoal do DCE estava alegando que estavam sendo visados, que não poderiam, aí nós fizemos a pichação. Foi, acho, que a maior pichação que já teve em Juiz de Fora (risos). Nós pichamos até o quartel general.
Cristina: Vocês eram muito ousados!
Helena: Isso foi em que ano? Você se lembra?
Salvati: Em 1968.
Helena: Aí, você falou que eles pegaram os jornais na casa, quer dizer, os militares foram lá na casa?
Salvati: Então, quando eu estava na prisão eles foram lá e pegaram os jornais, eles sabiam que estava lá. Eles ficavam perguntando e eu dizendo que não sabia de jornal nada, mas depois fiquei sabendo que… realmente… porque estava lá e eu não sabia.
Helena: Entendi. E a sua primeira prisão então, como é que foi? Foi nessa casa?
Salvati: Foi nessa casa.
Helena: Como é que foi?
Salvati: Eles chegaram lá, era mais ou menos umas quatro horas da manhã. Estava eu, Rodolfo, esse Antônio e o Limar… e o Oswaldo. O Oswaldo era um operário e era do grupo também, participava do grupo. Aí, eles levaram…
Cristina: Eles quem?
Salvati: A Polícia Federal.
Helena: A Polícia Federal.
Salvati: Aí, levaram para o Quartel General.
Helena: Daqui mesmo, né?
Salvati: É. Aí, chegou no quartel, eles me separaram, me colocaram lá no QG, no QG não, no Esquadrão. Tem um portão assim entre o Quartel General e o Esquadrão1, parece que era um só quartel, dividido por um portão. E quando eu ia prestar depoimento vinha a pessoa me trazendo, com a baioneta… Aí, eu ia prestar depoimento. Às vezes, como eu coloquei aí, às vezes eu ficava… porque os caras, os coitados dos soldados, eles não tinham muita noção, porque para eles te “pintavam” como… todo mundo para eles era terrorista, então, eu era terrorista para eles. E os soldados… nós falávamos que qualquer hora nós iríamos matá-los, que iríamos pegar a arma deles, que iríamos matá-los.
Cristina: De medo?
Salvati: É, de medo. Os caras ficavam… aqui, olha, me machucaram, está vendo… uma vez me machucaram aqui. Uma vez eu cheguei a falar que estava doendo. Porque os caras tremiam para levar lá, até lá no Quartel General, para depoimento, os caras levavam, tremendo. Inclusive, teve um lance muito bom, que tinha um rapaz do meu bairro, chamado Pintado, porque, ele cresceu junto comigo, o Pintado. Ele estava servindo o exército, o apelido dele era Pintado. Lá, quando ele me viu lá, ele estava tomando conta, porque eles colocaram… no primeiro dia, colocaram a gente lá numa… tiraram os soldados do alojamento e nos colocaram lá. Aí, houve na linha em frente, passava a linha, naquela época, saiu o negócio do trem e deu uma explosão. O cara que estava tomando conta de mim lá, o cara sumiu, e era o Pintado. Inclusive ele foi até na minha casa quando eu tinha sido preso. O cara saiu correndo, olha só, o cara me conhecia, assim, sabia quem eu era, sabia que eu não era nada daquilo, mas o cara estava tão condicionado, e eles colocaram tanto medo nele, que ele pensou que alguém estava explodindo lá, para entrar, para me libertar (risos). Deve ser um negócio, um tipo de uma coisa dessas, uma doideira dessas, né. Aí, saiu… e eu fiquei com mais medo, porque eu fiquei com medo, pensei “Esses caras vão chegar aqui atirando e me matando”. Eu estava lá no alojamento, apagou a luz também, nesta explosão que deu lá… quando saiu lá, apagou a luz do alojamento também, e demorou um pouquinho a chegar. E eu falei “E agora? Os caras vão chegar aqui metralhando, porque se o cara correu… vai chegar a patrulha toda”.
Cristina: Nesta prisão, o senhor foi torturado?
Salvati: Não, eu só levei… tortura só psicológica, mas torturado assim… igual depois eu seria, não. Levei “telefone”, empurrão, esses “negócios” assim. Inclusive, não foi de ninguém do exército, eles não sujaram as mãos. Eles mandavam a Polícia Federal fazer isso. O tal de Sílvio, que a gente conhecia, que era… a entidade, a UJES, era na galeria Constança Valadares, e lá tinha… a Polícia Federal tinha uma loja lá também e esse Sílvio a gente já conhecia ele lá.
Cristina: Então ele, ele chegou a bater no senhor?
Salvati: Bateu…
Helena: Nos outros também, né? Telefone…
Salvati: Nos outros eu não vi, né, porque eu fiquei separado, eu não vi.
Helena: E essa primeira prisão demorou quanto tempo?
Salvati: Trinta dias.
Helena: Trinta dias. O tempo todo ali no QG?
Salvati: O tempo todo ali no QG.
Helena: E sendo interrogado?
Salvati: E sendo interrogado.
Helena: E aí, depois disso, o que aconteceu?
Salvati: Aí, depois, eu saio e vou e fujo, né? Porque eu fui em uma audiência na Auditoria, né, porque eu estava aqui, aí teve uma audiência e eu fui lá. Aí, depois da audiência… aí eu falei para o Rodolfo “Rodolfo, você quer ir comigo?”, o Rodolfo falou “Ah, eu quero”. Porque eu tinha feito um acordo com meu ex-patrão, aí ele liberou meu Fundo, eu estava com uma grana. Aí eu falei “Quer ir? Eu tenho dinheiro, a gente vai para São Paulo”. Aí eu fui. O Rodolfo não tinha nem mala, ele levou uma caixa… parecia uma caixa de ferramentas… não sei se existia mala naquele tempo, mas ele tinha uma… era de madeira.
Helena: Uma caixa com as coisas dele?
Salvati: É, é interessante, isso aí, que depois de algum tempo, acho que uns dois meses, o Rodolfo é preso, em Minas, num lugar aí, porque o Rodolfo era meio assim mesmo, eu sempre entendi ele… (risos) Aí, ele vira e fala… Eles devem ter perguntado a ele por mim, porque eles estavam querendo me pegar, né, aí ele falou “Não, o Salvati saiu de São Paulo e roubou minhas roupas, minha mala…” (risos). Eu que paguei a viação dele… (risos) ele não tinha mala (risos)! Mas isso aí deve ser para se livrar, porque eles estavam perguntando (risos). Isso aí eu soube, porque eu peguei um documento, um documento que eu pedi, e veio um depoimento do Rodolfo, lá do DOPS de São Paulo.
Helena: Isso muito tempo depois?
Salvati: Muito tempo depois.
Helena: Aí você viu que ele tinha falado isso, né?
Salvati: É, aí que eu vi que ele tinha falado. Mas nesse inquérito, por exemplo, também, eu falei “Poxa, Rodolfo, você falou que eu mandei você fazer pesquisa de arma?”, ele falou “Eu falei, sabe por quê? Porque aí fica uma coisa sobre a outra e aí depois o advogado vai, fala uma coisa, fala uma coisa, não prova nada…”, eu falei “E você acha que eu vou ficar… querer procurar advogado? Eu vou é rapar fora daqui!” (risos). Mas ele gostava de fazer umas histórias, sabe… Mas ele era muito bom.
Helena: Vocês eram amigos?
Salvati: Nós éramos amigos.
Helena: Mas quando vocês foram para São Paulo, você falou que vocês foram embora para São Paulo, aqui estava correndo um processo contra vocês, ou não?
Salvati: Estava.
Helena: Era processo, já? Você falou em auditoria militar.
Salvati: É, foi pela Auditoria Militar.
Helena: Aí, vocês foram embora para São Paulo?
Salvati: Aí nós fomos embora para São Paulo. Aí, chegou em São Paulo, eu estava com problema de dente, aí eu vim aqui fazer tratamento nos dentes, porque eu fui fazer lá… eu fui arranjar emprego, aí, no exame médico, me eliminaram. Aí, eu vim para Juiz de Fora para fazer o tratamento de dente. Aí, eu encontrei um contato, aí eu fui para Belo Horizonte com um conhecido, e de Belo Horizonte eu já fui para São Paulo, já integrado na AP mesmo.
Helena: Aí nesta época que você entrou na AP?
Salvati: É, foi nesta época que eu entrei na AP.
Helena: Isso era que ano?
Salvati: É… mil novecentos… depois do AI-5, 1969.
Helena: 1969. Aí o Rodolfo tomou outro rumo?
Salvati: Aí o Rodolfo tomou outro rumo. Aí nós nos separamos, eu iria rever o Rodolfo quando eu saí da prisão, em 1970. Porque tinham falado com a minha família que eu estava morto, que eu tinha morrido, porque eles me esconderam no hospício lá na polícia, porque eles me quebraram, né. Aí, para… aí me esconderam lá no hospício.
Cristina: Peraí, vamos voltar então, te quebraram na primeira prisão?
Salvati: Na segunda.
Helena: A primeira foi aqui.
Salvati: A primeira foi aqui.
Cristina: Aí o senhor foi para São Paulo?
Salvati: Pra São Paulo.
Cristina: Aí o senhor foi preso lá em que ano? O senhor não lembra?
Salvati: Em 1970.
Cristina: E aí te quebraram?
Salvati: Aí me quebraram.
Cristina: Lá é que o senhor sofreu tortura?
Salvati: Aí que eles…
Cristina: E o senhor pode relatar alguma tortura pra gente, lá em São Paulo?
Salvati: Posso… posso…
Cristina: Se o senhor quiser…
Salvati: Não, é porque ontem a gente veio discutir aqui e aí, a Marcélia, hoje estava falando que… eu tive pesadelo, mas…
Cristina: Se o senhor não quiser falar…
Salvati: Mas eu não senti… não, não… tudo bem. Aí, eles me… eu estava na fábrica, eu trabalhava na fábrica, era do movimento operário, eu trabalhava no sindicato, mas como estava com processo, eu não poderia ser sindicalizado, mas eu era da oposição sindical, participava lá do sindicato, normalmente, né?
Helena: Aí já como integrante da AP, né?
Salvati: Como integrante da APML. Porque acho que isso aí tem que ficar… porque existia uma AP aí, que todo mundo era de AP. Aí, quando a AP começa a ter um rumo mais revolucionário e tal, aí a AP ficou desse tamanhozinho, né.
Helena: APML, né?
Salvati: É. Isso. Então, uma das coisas de AP, inclusive foi por isso que eu entrei em AP, que eu achei importante, era que todos os militantes teriam que se integrar no movimento operário, camponês, né. Aí tá, aí eles me pegaram… aí eu tinha… lá na Philco, na Philco eu tinha construído lá um mini-comitê, a organização achava que era comitê, mas eu achava que era mini, era oito pessoas só, era um mini-comitê. Aí, teve a campanha salarial lá, aí nós fizemos uma distribuição da panfletagem para a campanha salarial e houve uma parada espontânea, assim, que não era ideia de ter… que nós não pensávamos de ter uma parada assim, de ter tanta repercussão, mas acho que foi em função que ficou em dia de pagamento, né, que nós fizemos essa panfletagem, e o pior dia para o trabalhador é o dia do pagamento, né, que ele recebe, que ele vê que ele tá dentro d’água mesmo… (risos) que não tem jeito. Então, o pessoal se revoltou, né, aí parou. Paramos umas quatro, cinco horas, e eu não sabia o que fazer. Primeiro, porque eu não tinha muita experiência nisso, né. Aí eu saía da minha seção, ia para outra para discutir com a outra, com as pessoas que eu já tinha organizado, né, então… quando acabou o negócio, que voltou ao normal, isso aí durou mais ou menos umas quatro ou cinco horas, esta paralização. Eu fiquei visado, né. Aí, no outro dia, tinha um cara na esteira que eu trabalhava, um cara novo, assim, aí o cara, na cara de pau, tirou a carteira e mostrou, aqui olha, sou do DOPS. Aí, o pessoal da organização, achando que eu deveria sair da fábrica. Mas eu não queria perder o trabalho, né. Aí eu falei “Poxa, vou perder o trabalho, não vou”. Aí eu continuei. Falei “Ah, poxa, se o cara fez isso, né, ele podia ter me prendido, qualquer coisa, se ele tivesse visto, né…”. Mas não adiantou, depois de dois… acho que um ou dois dias, aí o DOPS, na saída, aí o DOPS me pega lá na saída da fábrica, aí me leva. Aí, na hora em que estava me levando, que eu acho uma coisa importante pra mim é que não era só questão… só que a ditadura pegava somente político, era a própria autoridade. Que houve uma discussão entre o motorista que estava levando a gente com uma pessoa de táxi. Aí a pessoa chamou o cara de filha da puta, esses “negócios” assim, né, aí eles param o carro do lado, pegam o cara e põe dentro também.
Helena: Olha, por causa de uma discussão de trânsito?
Salvati: É.
Cristina: Estava levando “a gente”, quem?
Salvati: Estava me levando, sozinho. Eram quatro polícias. Aí levou também. Aí me puseram primeiro no pau-de-arara. E o azar meu, na época, na época eu estava com uma lista, que a gente chamava de ponto. Ponto era um encontro. Então, eu estava com vários pontos, porque eu tinha o pessoal, o pessoal da fábrica, que era contato, tinha o pessoal da organização porque eu era, eu era na época, eu era de uma célula, que eu era o coordenador desta célula na época. Então, eu tinha que encontrar, até, com várias pessoas. Aí, na hora em que eles viram aquele ponto… e o primeiro que eles viram…
Helena: Tudo anotado?
Salvati: Tudo anotado no papelzinho… não tinha como, né… Porque, por exemplo, eu saía da fábrica, então, eu saía cinco horas, então cinco e meia eu ia encontrar com uma pessoa, lá do movimento, lá de dentro da fábrica, num lugar, para mim conversar com ele. Aí, seis e meia eu tinha que ir em outro lugar. Eu tinha um trabalho de bairro também, aí eu tinha que ir no bairro. Então, era muito, era fogo. Aí eles ficaram querendo o primeiro, porque… A questão é o seguinte, se eles pegam sempre o primeiro, aí é mais fácil de eles pegarem o resto. Então, o primeiro era o… era um cara que era simpatizante do partido, da organização, ele era português. Então, eu tinha colocado “pê”, “ó”, “erre”, “tê” e ponto, né, e o horário, acho que era sete da noite, sete e meia. Aí eles ficaram doidos, porque eles estavam querendo aquilo, aquela lista toda. Aí “Quem é esse tal, tal?”, eu falei que era minha namorada, “Não, essa é minha namorada, não sei o quê…”, “Como é que ela chama?”, “Portina”. Na hora me veio isso aí, Portina. O cara falou “Você tá me gozando? Portina, isso é nome?”, falei “É, o nome dela é isso, uai, é Portina”. E vai choque, vai tal, tal, e eu…
Helena: Pau-de-arara e choque?
Salvati: E eu com medo, o seguinte, de não sustentar. Porque se você não sustenta, se você fraqueja, depois… a água vai pro brejo mesmo, porque eles vão querendo, querendo, né… aí vai, vai… Aí, lá pras tantas, aí já passou aquele, entra outro…
Helena: O próximo ponto?
Salvati: O próximo. Aí eles ficavam falando “Ah, não, põe ele lá na cadeira do dragão”. Aí, eu fui pra cadeira do dragão. Cadeira do dragão, você senta… mas isso tudo é nu, você é nu, né. Eles te sentam, aqui tem uma corda aqui, outra corda aqui, e aqui é ligado aqui, sai um fio que é ligado a um aparelho de televisão, tipo um aparelho de televisão, que eu não sei qual o processo que eles… que eu acho que eles tiram a amperagem, alguma coisa, aí de lá eles vão te… eles vão… conforme o choque… você vai… para… tal…
Helena: Eles vão controlando?
Salvati: É aí vai, vai, aí foi, foi e eu naquele negócio de não poder falar. Aí, dá um negócio, o seguinte, acontece, não sei porque cargas d’água, isso aí deve ter acontecido normalmente, eu ejaculo, em cima do cara.
Helena: Aí que ele ficou enfurecido…
Salvati: Aí, gritou lá, o cara chutou, aí eu desfaleci, aí eu desfaleci, aí os caras me soltam, aí eu desfalecido, eu levanto, esse cara que aconteceu isso, o cara vem e me dá uma, tipo uma rasteira, eu só lembro, parece que eu fui lá no teto, eu estava desfalecido. E vim pra deitar. Aí eles mandaram eu por a roupa, eu consegui normalmente sentindo, mas não percebendo nada, aí me levaram para a cela. Chegou na cela eu deitei, pronto, aí esfriei, aí tinha um médico lá, preso lá também, Lenine que ele chama, o nome Lenine, ele com uma canequinha, ele começou a me ver o meu estado, né? Porque acontecia lá o seguinte, a gente só pedia socorro em último caso mesmo, porque sempre chegavam pessoas piores. Então, se pedisse socorro toda hora, quando chegasse um pior mesmo, uma pessoa lá que poderia morrer, eles não iam atender. Então, evitava-se pedir, você entendeu, socorro, enquanto aguentava… punha os caras aguentando lá. Aí, ele viu que meu aparelho digestivo tinha parado…
Helena: Esse doutor?
Salvati: É, é.
Helena: Que estava na sua cela, junto com você?
Salvati: Isso, com uma canequinha, ele começou… aí, “Olha, o aparelho digestivo dele está parado”. Aí começaram a gritaria na cela “Vai morrer, vai morrer, vai morrer, socorro, vai morrer, vai…”. Aí eles vêm, aí eles vêm, tal, aí volta lá e aquele apavoramento. Aí eles me levam para o Hospital das Clínicas. É interessante, na hora que eu saí lá, uma mulher, um polícia, porque lá perto tinha um quartel que protege o DOPS, da polícia militar. Então o polícia veio e falou assim “Menos um comunista”. Eu estava deitado, saindo, assim, desfalecido, mais ou menos, aí estou lá “Menos um comunista”. Aí uma mulher que trabalha lá no DOPS, tal, ela pegou um dinheiro, acho que cinco reais, e colocou, falou que era pra mim comprar alguma coisa. Você vê a contradição (risos). Aí eles me levam para o Hospital das Clínicas, aí tirou, faz o raio X, tal, me colocam uma…
Helena: Sonda?
Salvati: Sonda não, gesso, me engessam daqui até aqui.
Cristina: Mas o senhor estava quebrado? Não foi choque?
Salvati: Não, a partir que o cara me deu a rasteira e me chutou, aquilo. Aí depois eu descobri, estou até com o exame aí, é esmagou, não foi só uma coisa, teve esmagamento.
Helena: Esmagou uma vértebra.
Salvati: É, aí eles no Hospital das Clínicas, eles pegam…
Helena: Te engessaram todo.
Salvati: Me engessaram, aí me leva pro Hospital do Exército. Não, antes, me leva pro Hospital do Exército. No Hospital do Exército, eles não me aceitam, porque tinha um… inclusive da minha organização. O cara falou “Olha, o…”, esqueci o nome, que eles falaram… “Ele está vendo, ele está vendo… ele está vendo passarinho, não sei o quê”. Mas… é Zé Pedro, o nome dele. Mas o Zé Pedro, ele tinha mania o seguinte, de se preparar pra tortura, ele falava “Ah, eu vou dar uma de epilético, qualquer coisa”, aí eu até pensei, mas eles tinham quebrado, ele era americano, filho de americano, eles tinham quebrado praticamente… não deve ter quebrado, porque depois de uns cinco ou seis anos depois eu soube… ele voltou a andar, mas eles afetaram muito a espinha dele, sabe, porque ele foi pro Estados Unidos se tratar lá.
Helena: Esse estava no Hospital Militar?
Salvati: Esse estava, por isso que eles não me aceitaram… aí…
Helena: Porque já tinha o outro lá…
Salvati: Já tinha o outro lá que estava ruim, que eles estavam com medo de morrer. E que já tinha morrido um operário lá no hospital também, naquela semana anterior, parece.
Helena: Entendi.
Salvati: Então, eles me levam… vão lá, volta pro DOPS, pega um outro documento, e obriga a polícia militar a me aceitar. Aí eu vou pro Hospital da Polícia Militar. Aí, chega lá eles me colocam uma sonda no nariz, outra sonda no ânus pra… porque eles não quiseram me operar…
Helena: Pra ver se funcionava?
Salvati: Se funcionava. E me colocaram no sangue e soro. Eu fiquei. Aí, na hora que eu começo a me recuperar um pouco, aí eu a ouvir do meu lado a conversa do pessoal, quem estava lá era o pessoal da polícia que foi combater o Lamarca (risos), lá na Ribeira, no Vale do Ribeira. Aí, você precisa ver a conversa dos caras, os caras gozando que os caras… aqueles coronel, capitão, tudo com medo, porque o Lamarca estava na barba deles, os próprios caras, os caras que estavam gozando que eles iam dar uma medalha pra eles. Teve um que levou um tiro. Aí, eu fiquei ali mais ou menos um dia a dois dias. Aí, depois eles me descem, eu vejo eles só me descendo, pá pá pá… desce, desce… porque deve ser no mesmo local onde era a cela. Deve ser lá no porão, não sei, eu desci muita escada, os caras me levando. Aí, na hora que eu olho assim, tem cela. Falei “Olha…”. Era o hospício, eles me colocaram no hospício, me esconderam lá no hospício. Aí vem, me coloca numa cela, coloca um polícia, um policial, sentado, o cara sentado lá. Por ter me atingido um nervo, eu fiquei paralítico uns vinte dias, eu nem podia andar, mas eles estavam pensando que eu ia, poderia morrer, então, o cara estava lá, ficava lá pra me pegar, o que eles estavam acostumados a fazer, era costume deles, jogava na rua e falava que morreu em combate. Aí esse policial ficou lá comigo uns quatro a cinco dias.
Helena: Esse hospício, só voltando um pouquinho, você estava no Hospital da Polícia Militar?
Salvati: Isso.
Helena: Eles foram descendo com você, é como se fosse um andar de baixo, funcionava um hospício, também da polícia militar?
Salvati: Isso, deve ser isso. Disso eu não tenho certeza não, mas o hospício deve ser lá embaixo, entendeu, porque as escadarias que os caras desceram comigo lá…
Helena: Era o mesmo prédio?
Salvati: Parecia que era o mesmo prédio.
Helena: Entendi. Aí você ficou lá?
Salvati: Aí eu fiquei, aí eu fiquei lá, é… eu fiquei lá mais ou menos uns vinte e tantos dias, vinte, vinte e tantos dias. Aí, tinha uma irmã de caridade lá, uma freira, que aliviava um pouco, me passava a mão, me chamava de coitadinho… (risos). Aí teve um dia, eu estava fingindo que estava dormindo, ela chegou com um cara, um coronel, que era o comandante do hospital, e falou: “Aí, coitadinho, olha o que fizeram com o rapaz, não sei o quê…”, o coronel “Esses caras são não sei o quê, tal…”. É, esse coronel era comandante do hospital, eu acho. Ela levava pra mim, assim, ela me tratava, levava comida pra mim, esses negócio todo, tentava me tratar bem, isso ela fez. E depois, depois que eu comecei a andar, uns vinte, vinte e poucos dias, eles me levaram para um tipo de um dormitório assim, que tinha televisão, que tinha o pessoal da polícia que eram doidos, mas doido assim, eles eram considerados doidos, mas era um pessoal mais questão de bebida, questão de droga, deve ser. Que, inclusive, eles pegavam, eles pegavam, eles iam dando aqueles remédios, eles seguravam o remédio, tomavam não, fingiam que tomavam, mas não tomavam não. Aí eles tomavam tudo e falavam… olha… tal… eles eram considerados doidos. Ah, eles contavam… que eles, o seguinte, eles quando tinham problema financeiro em casa, eles chegavam no bar, tiravam o revólver e prrrrrr… aí a polícia já mandava já direto pro hospital. Aí, internava eles não sei quantos dias. Aí eles se aliviavam também da questão econômica. Teve um dia lá, por exemplo, nesse dormitório, que o Médici, acho que era o Médici, estava falando na… era o Médici? Não, era… ah, não lembro, se era o Médici, acho que era o Médici, estava lá falando na televisão, aí o cara diminui, né, aí o cara levanta e vai e faz o maior discurso pro pessoal, enquanto ele ficava com essa demagogia, tá, tá, “Ah, que o salário da gente está isso, isso, isso…”. Os caras eram considerados doidos, né… (risos) mas… então, quer dizer… aí depois me levaram, quando eu comecei, aí já… aí me levaram ainda engessado para o DOPS.
Helena: Você ficou internado um tempo aí junto com esses outros?
Salvati: Fiquei, fiquei lá uns… entre… entre o dia que eles me levaram, uns vinte, vinte e cinco dias, assim, mais ou menos…
Helena: Aí você já voltou a andar?
Salvati: Aí eu voltei a andar. Com vinte, vinte e um, vinte e dois, eu comecei a andar. Aí os caras falando “Não, tenta.” Aí eu comecei a tentar, aí eu comecei a firmar, e comecei a andar. Aí fui para o DOPS outra vez.
Cristina: Porque o DOPS era uma cadeia, e o senhor estava preso com mais quem no DOPS?
Salvati: No DOPS? Ah, fiquei preso dessa vez agora, eu fiquei preso com o pessoal da VAR-Palmares. Quase todo mundo que estava lá era da VAR. Porque eles fizeram um cata lá… nossa mãe…
Helena: Mas aí, era cela separada ou cela conjunta?
Salvati: Eram, eram quatro celas, mas juntos.
Helena: E quando quando você volta pro DOPS, aí eles voltam a te torturar, ou não? Ou nessa fase já não estavam torturando mais?
Salvati: Não, não, aí não me torturaram mais não, aí não me torturaram. Eles esperaram, aí me tiraram o gesso quando eu melhorei, porque eles estavam doidos pra me mandar embora, porque o Dom Paulo, o pessoal pediu, o Dom Paulo foi lá no DOPS me procurar.
Helena: O Dom Paulo Evaristo Arns.
Salvati: É, foi aí que pensaram que eu tinha sido assassinado, que eu tinha morrido, que eles tinham me matado, que a minha família ficou sabendo, né, que eu tinha morrido, que eu fiquei sabendo que eles estavam sabendo que eu tinha morrido.
Helena: Chegou esta notícia aqui?
Salvati: Chegou esta notícia aqui, porque eu sumi, né, porque… quando eu cheguei tinha uma pessoa, o Miguel, da minha organização lá, preso também, então, ele passou a informação que eu cheguei e que eu fui levado pro hospital, aí não voltei… ele falou “Ah, depois de tanto tempo, né…”.
Cristina: O senhor pode falar que teve uma Operação Bandeirante, que tentaram invadir o DOPS, como foi isso?
Salvati: Isso, eles foram tentar invadir para tentar tirar o Bacuri de lá…
Cristina: Mas quem tentou invadir?
Salvati: Ah, o DOI. Porque era uma briga, era uma briga entre o Fleury e o DOI-CODI, o Fleury tinha muito poder, porque ele tinha… não sei se era muitos informantes, qualquer coisa, então, ele conseguia muitas coisas que o DOPS não conseguia, ah, não, que o exército às vezes entrava numa briga de informação, então eles estavam querendo pegar o… pegar o Bacuri de qualquer jeito, pra ter mais informação, tentar ter informação.
Helena: Porque o Bacuri estava lá no DOPS?
Salvati: No DOPS. No Fleury…
Cristina: Foi lá que o senhor conheceu o Bacuri, então?
Salvati: Eu não conheci ele não. Eu vi ele… conheci, assim… conheci, né, de ver, né…
Helena: E aí… depois que você volta pro, pro DOPS, mas aí quanto tempo você ainda fica lá, nessa segunda…
Salvati: Eu fico lá umas… ah, uns dez dias, porque aí foi a conta deles tirar…
Helena: O gesso.
Salvati: Tirar o gesso, na hora que deu pra tirar, eles tiraram o gesso, mandaram eu fazer um depoimento, aí eles falaram, no depoimento estava que eu era do par… PCB. Aí eu falei “Mas eu não sou de partido nenhum…”, “Mas, porra, quero mandar você embora” (risos) “Você quer que eu te… quer ir outra vez pra tortura?”, “Então deixa, então eu sou do PCB” (risos). Pra mim eu tinha pensado, poxa, lá em Minas falaram que eu era da Corrente, agora do PCB… tanto faz, deixa, eu sou… (risos) aí assinei, aí no outro dia me soltaram.
Cristina: E o senhor voltou para Juiz de Fora?
Salvati: Não.
Cristina: O senhor não voltou mais para Juiz de Fora?
Salvati: Não, não. Aí, eu estive em Juiz de Fora, né, porque aí aconteceu um fato, o seguinte, que a organização queria me mandar pra mim, é… pra mim ser dirigente de um movimento operário no estado de São Paulo e eu não estava… eu não sei, eu nunca fui camponês. Eu nunca fui camponês, agora até que eu sou, na granja, eu trabalho, agora até que eu estou estudando, faço alguma coisa, mas tinha muito ca… poxa, eu não sei nem pegar uma coisa… como é que eu vou dirigir, achava, achava uma doidura. Aí os caras, não… aí eles não estavam com uma posição, tal, aí eu peguei, falei “Ah, tá”. Aí eu peguei e falei “Olha, eu vou…”. Eu falei com um amigo meu lá, falei “Companheiro, olha, eu vou pra Juiz de Fora, porque minha família está achando que eu tinha morrido, vou falar com eles que eu não morri, daqui dois dias eu estou aí”. Pra deixar… porque eu sabia que aí, na hora que eu voltasse já estava… que eu não obedeci. Aí vim, tal, com a minha família, aí foi quando eu encontrei o Rodolfo, porque o Rodolfo estava saindo de uma prisão de Belo Horizonte.
Cristina: Lagoa Santa.
Salvati: É, aí eu soube que um amigo meu que sabia que eu estava aqui, ele encontrou com ele e falou “Olha, o Salvati está lá, tal, está escondido lá”. Aí, o Rodolfo foi lá em casa. Foi a última vez que eu vi o Rodolfo. E ele falou que estava esperando, ele não falou que ia para o Paraguai. Ele falou “Estou esperando também um contato aqui e eu estou de saída, só estou esperando o contato pra mim sair”. E ele…
Cristina: Ele te disse que iria para o Paraguai?
Salvati: Não, ele falou que estava esperando um contato pra ir pra determinado lugar que ele não sabia. Aí eu peguei, aí eu voltei pra… aí, eu fui pra São Paulo… voltei pra São Paulo…
Helena: E eles insistiram pra você trabalhar com os camponeses?
Salvati: Não, aí já amaciaram, aí eu voltei pro movimento operário. Aí, surgiu que aí no partido, começou o seguinte, a gente ver que era importante as pessoas se profissionalizarem pra realmente se tornarem um profissional. Aí, um projeto lá do Senai, que dava uma bolsa de um salário mínimo pra pessoa estudar, fazer um curso. Eu fui fazer um curso de ajustador mecânico, comecei a fazer um curso de ajustador mecânico, mas ao fazer a inscrição, meu processo saiu aqui, aí a hora em que viram lá meu nome, aí o DOPS me prendeu, me pegou, me trouxe. Aí eu fiquei aqui cumprindo pena um ano, aqui em Linhares, eu cumpri a pena.
Cristina: Quem era o chefe ali em Linhares, quem era o homem que tomava conta, o senhor se recorda? Diretor…
Salvati: Puxa vida… eu… se falar nome, assim…
Cristina: Ele era militar?
Salvati: Inclusive eu estava até com medo de voltar a estudar, justamente isso, porque eu não consigo assim… eu tenho dificuldade com isso, nome, endereço, esses negócio…
Cristina: Mas ele era militar?
Salvati: Ex-militar. Doutora, ele, eu lembro o seguinte, que ele morava na rua Halfeld, porque ele morava… eu tinha um tio que morava lá que era vizinho dele, e eu tinha uma briga com esse meu tio lá, que ele foi me visitar lá, porque ele não estava querendo pedir, me pedir, pedir pra o diretor me trocar, porque eles me puseram na ala 1. A ala 1 tinha um pessoal que era assaltante de banco, assim, comum, né…
Helena: Preso comum.
Salvait: E tinha um jornalista, aqueles caras que era isso, tinha televisão pra eles, sabe, aí eu não estava querendo, eu estava querendo ir pra 2, que tinha o pessoal mais ligado a mim, né?
Cristina: Preso político.
Salvati: Porque lá tinha preso político também, mas sei lá… era um pessoal mais assim… igual era um jornalista, assim, sabe, parece que era tipo um negócio melhor, assim, sabe.
Helena: O pessoal tinha mais regalias, assim…
Salvati: Isso, isso. Aí ele não queria, aí… acabou, acabou ele pedindo, pedindo…
Helena: Seu tio?
Salvati: É. Aí pediu, aí ele me trocou. Inclusive aconteceu um negócio chato, que deu essa discussão, tal, meu tio acabou sendo atropelado quando ele saiu de lá pra vir pra…
Cristina: Seu tio era militar?
Salvati: Não. Ele era aposentado de negócio de eletricidade.
Cristina: Ele morreu, seu tio?
Salvati: Morreu. Foi atropelado. Na saída da…
Cristina: Lá em Linhares?
Salvati: Não, lá em Linhares não, na cidade, mas quando ele foi lá visitar… morreu. Aí eu fui pra lá, que eu fui lá acabar de cumprir lá.
Helena: Mas em São Paulo, olha que coisa, lá em São Paulo você foi liberado, prestou depoimento e foi liberado. Aí te encontram aqui pra ir cumprir uma pena… olha que doideira, entendeu? A legalidade, a legalidade…
Cristina: A ilegalidade…
Helena: É… porque se eles tinham te liberado… aí chegou aqui resolveram te prender para cumprir pena…
Salvati: Não, não. Eles… Eu saí de São Paulo, eu saí de São Paulo, e fui fazer o curso. Aí, isso é outra prisão.
Helena: Sim…
Salvati: Essa seria a terceira.
Helena: Pois é… aí tornaram quando você foi fazer o curso…
Salvati: É, aí eu vim cumprir a pena.
Helena: Descobriram a sua ficha.
Salvati: Isso, isso.
Helena: Pois é, mas você, mas antes você tinha sido liberado, né… entendeu?
Salvati: Ah, é… então, eu tinha sido liberado, liberado porque… não é possível que o DOPS não tinha a minha… a minha…
Helena: Ficha?
Salvati: É, eu ainda não tinha sido condenado. Porque a partir do que você é condenado vem a ordem de prisão, deve ser isso, eu já era procurado.
Helena: Entendi.
Salvati: Mas… eu não sei qual é o peso disso, né, como é que seria…
Helena: Agora, aqui, então, no Linhares, na penitenciária de Linhares, você ficou quanto tempo? Um ano?
Salvati: Eu fiquei um ano.
Helena: Um ano só?
Salvati: Eu fiquei menos de um ano, porque eu tinha cumprido um mês, antes, quando eu fui preso, né, aquilo é descontado.
Cristina: E em Linhares o senhor apanhou, o senhor foi torturado?
Salvati: Não.
Cristina: Não?
Salvati: Não.
Cristina: Mas alguém, o senhor soube de alguém que foi torturado em Linhares?
Salvati: Soube, soube.
Cristina: O senhor lembra o nome?
Helena: Quem estava lá de preso político nesta época? Veja se você consegue lembrar, nesta mesma época, lá. Inclusive, você tinha dito que viu a Dilma, né…
Salvati: Ah, não, isso aí foi em São Paulo.
Helena: Ah, em São Paulo.
Salvati: Foi em São Paulo. Eu viajei porque eu estava quebrado e aí para mim sarar mais rápido lá, eles deixaram eu tomar banho de sol com os homens, só, e deixava com as mulheres. Então, eu tomava banho com as mulheres. É aquilo que eu te falei, ela lembra de mim porque devo ter sido o único homem a tomar banho com ela. E ela estava lá naquela época, então, ela lembra. Eu não lembro da fisionomia porque eram muitas pessoas.
Helena: Eles te deixaram ficar lá no pátio tomando sol.
Salvati: Deixaram.
Cristina: Ela também esteve presa aqui em Linhares.
Salvati: Mas quando foi isso?
Helena: Ela passou por aqui. Então, aqui na Penitenciária você não sofreu torturas, maus tratos…
Salvati: Não. Aqui eu fiquei preso em 1973. As torturas aconteceram antes, foi antes, o pessoal inclusive estava reclamando que separaram as pessoas uma das outras.
Helena: Aqui?
Salvati: Sim. Colocaram na cela C as pessoas que tiveram mais participação nesses protestos que houve lá. E que essas que devem ter sido torturadas.
Cristina: Mas, o senhor se recorda de abaixo-assinados de presos.
Salvati: Eu ouvi falar.
Cristina: Mas o senhor não fez abaixo-assinado?
Salvati: Não. Nessa época da ditadura não teve.
Cristina: E greve de fome? Porque as greves eram nacionais.
Salvati: Nessa época que eu estive lá, não teve.
Cristina: O senhor falou de padre, da freira. O senhor se lembra da participação da Igreja nesse movimento na época da ditadura?
Salvati: Era o seguinte. Por exemplo, tinha o pessoal, os dominicanos, por exemplo, eles tinham uma participação muito importante, foram importantes, inclusive essa pichação da UNE, na ocasião, nós organizamos lá nos dominicanos, lá em cima. Então eles tiveram uma participação importante.
Helena: Salvati, aí depois que você sai aqui da Penitenciária de Linhares, aí depois disso você não foi preso mais, né?
Salvati: Fui, mais uma.
Helena: Quatro prisões então, né?
Salvati: Aí eu saí. Que história, hein! Aí eu saí da prisão e fui fazer um cursinho que se chamava Madureza.
Helena: Madureza, era supletivo.
Salvati: Supletivo. Aí eu conheci uma pessoa, ela era noiva de um cara, de uma pessoa. Aí nós ficamos amigos assim.
Helena: Isso aqui em Juiz de Fora?
Salvati: É. E eu fazendo e trabalhando. Porque eu sempre trabalhei. Eu trabalhava, fazendo, mas me organizando para ir embora outra vez para São Paulo. Aí fazendo o curso tal, eu chamei, falaram que essa menina, que depois ia ser minha primeira mulher, que eu ia para São Paulo. Aí ela engravida do noivo dela. Ela morava com a tia dela e aí a tia dela quase botou, praticamente botou ela pra fora. A tia dela não aceitava. Aí, eu falei que se ela quisesse ir comigo para São Paulo a gente iria então. Aí ela foi comigo para São Paulo, aí nós fomos. Inclusive eu acabei o curso, fizemos a prova e nós fomos. Chegou lá, a gente morava junto com um pessoal e acabou a gente se dando ali. E a nenê que ia nascer. Ia nascer a nenê, caramba, tal. Aí ela falou se eu queria casar. Porque eu nunca liguei pra isso, eu nunca tinha pensado nestas coisas também. Aí eu casei, aí o nenê nasceu numa boa, porque eu trabalhava, nessa época eu trabalhava na Vasp e aí tinha médico, tinha tudo, então, foi tranquilo. Aí não ficou tranquilo o seguinte, isso aí tudo foi depois que eu cumpri a pena aqui, né? Não ficou tranquilo o seguinte, o DOI estava atrás de mim e…
Helena: De novo.
Salvati: O cara, o primeiro cara, aquele ponto que eu falei, aquele português, que era simpatizante…
Helena: Sim.
Salvati: Como uma vez eu dei o endereço da casa dele pra arranjar trabalho, os caras conseguiram, o DOI conseguiu esse endereço, aí foi na casa… foi nele, me procurar lá. Aí, pega o cara, né, e faz ele me levar onde eu estou, né? Aí o cara pega e leva, numa boa, leva os cara lá. Aí, prende eu, minha mulher e uma filha que tinha… aí, era minha filha, né, lógico, eu assumi, tinha três meses de idade. Era uma choradeira, uma menina chorando e aquela coisa lá do DOI e os caras lá questionando, falando que tinha que ter um lugar pra deixar a criança, pra poder torturar à vontade os pais, deve ser o pai, no caso eles estavam querendo era eu, porque eles estavam querendo sabe o que que era? Que apareceu uma organização nova, aqui de Minas, olha só, hein… como é que chama, da Corrente, que era oriunda da Corrente, não sei o quê, aqueles negócio, um pessoal aí…
Helena: Uma dissidência. Salvati: Uma dissidência. Helena: Da Corrente?
Salvati: É. Aí eles estavam querendo saber quem eram as pessoas, alguma coisa, aí eu cheguei e na hora que eles chegam lá, que eles chegaram lá de metralhadora e te metendo o pé, e tal. Mas na hora eu peguei logo a minha liberação que eu cumpri pena, os documentos.
Helena: Mostrou pra ele?
Salvati: Aí, eu não, aí eu mostrei pro cara. Não, porque eles estavam já telefonando pro doutor vim. Doutor, é os caras de…
Cristina: Tortura?
Salvati: Tortura, né, que é o coronel lá…
Helena: Eles chamavam de doutor?
Salvati: É, doutor. Aí “Oh doutor, não sei o quê, tal, ele já cumpriu pena, ele estava na cadeia, tem um mês, ele saiu tem pouco tempo…”.
Cristina: E onde é que estavam sua mulher e a sua filha nesta hora?
Salvati: Lá também.
Cristina: Junto?
Salvati: Junto.
Helena: Eles foram na casa deles.
Salvati: É, eles me prenderam lá. Eu morava numa casa que era difícil chegar, pra eles chegar eles falaram “Pô, como é que você pode ter arranjado uma casa assim…” (risos). Que era um bairro assim, que o bairro acabava, entendeu? Os caras… aí o doutor, o doutor deve ter falado, mandado eu ir lá no outro dia, no outro dia, né? Aí liberou pra gente ir e eles só estavam querendo eu, no outro dia. Agora você pensa bem, você vai pra casa, aí chega no outro dia você vai pra lá pra morrer ou pra qualquer coisa. É pior do que… se eles tivessem lá soltado e me deixado lá até o outro dia era uma boa, mas você saber que você, que eles iam te vigiar, pra eles saberem onde você mora, eles já estavam lá, acampando, então, estavam querendo um vacilo meu pra… e minha mulher lá na casa, então, eu não podia fugir de jeito nenhum, como é que eu ia fazer? Aí eu tive que ir, aí eu fui. Eu fui, cheguei lá, eles me deixaram lá, eu acho que eles tinham marcado pra mim chegar lá, era oito horas ou nove, eles me deixaram sentado numa sala lá até quatro horas da tarde. Aí chegou quatro horas da tarde os caras pegaram e falaram “Olha, pode ir embora”.
Cristina: Então, você não foi preso?
Salvati: Não, não fui preso, só fiquei…
Helena: Fizeram essa pressão em cima. Quer dizer que levaram você, a sua mulher e a criança pra lá, aí fizeram vocês voltarem, aí no dia seguinte você foi de novo, passou horas sentado e depois te liberaram?
Salvati: Isso, isso.
Cristina: Salvati, depois disso você não foi mais preso?
Salvati: Não, não.
Cristina: Como é que você reconstruiu a sua vida?
Salvati: Aí teve um problema. Eu voltei, voltei… morando lá. Aí, com essa quizomba, a minha ex-mulher vira e fala assim “Olha, ou nós vamos embora agora pra Juiz de Fora, ou se vier me perguntar qualquer coisa eu entrego todo mundo”. E nessa semana que ela fala isso, ia pra lá uma pessoa da direção nacional, o Dori, ele chamava Dori, né?
Helena: Ia pra sua casa?
Salvati: Não, ia prum bar, ia pro bar e ela sabia onde ele ia ficar, o Dori. E era época em que eles estavam pegando as pessoas e eliminando mesmo, que eles estavam… que a época, porque eles já estavam pensando em fazer a abertura. Foi quando começou a ser criado o PT, né? Aí, eles, ela me dá esse xeque… xeque-mate… e eu sabendo que o Dori ia estar lá, aí eu pensei, e se ela entrega uma dessas casas aí, a casa onde está o Dori, né? Aí, eu peguei e não pensei duas vezes, falei “Não, vamos embora”.
Helena: Aí, vocês voltaram?
Salvati: Voltei, vim pra Juiz de Fora, comecei a trabalhar. Porque eu fui trabalhar no comércio com peças de automóveis, então, você está dentro do setor. Então, você conhece, se você agarrar, lá em São Paulo às vezes era mais difícil de eu arranjar emprego do que aqui, porque todo mundo me conhecia, sabia, né? Aí, eu comecei a trabalhar, a trabalhar. Morava lá num quarto de pensão. Primeiro, eu morei, nós fomos pra casa da tia dela, com a criança, e tal. Mas eu passei um sufoco, nossa mãe… porque aí eu aluguei um quarto com cozinha, lá no Vila Ideal, mas encontrava com pessoas de esquerda, a pessoa ficava com medo, virava a cara pra mim, às vezes. Aí eu pensei, eu pensei assim, poxa, agora não vou olhar pra ninguém, não cumprimento ninguém, quem quiser que venha conversar comigo, eu não quero saber de mais nada. Essa pessoa que você falou o nome aquela hora, perguntando, se ele fazia parte, tal, não precisa falar nome. Por exemplo, ele encontrou comigo no Feliz Lembrança, num dia que eu fui, por exemplo, que teve um negócio no Feliz Lembrança, um ensaio, aí a pessoa chegou perto de mim, ele e a mulher dele e falou pra mim assim “Salvati, eu estava na fila, eu vi assim…”, ele falou “Oh Salvati”, aí a mulher dele falou “Salvati, quero te falar uma coisa, nós nos assumimos classe média, e tal”, eu não perguntei nada, falei, “Ah, tudo bem, né”, aí, ela falou “Aqui, eu vou pagar uma cerveja pra você”, eu falei “Não, pode deixar, eu tenho dinheiro, eu vou comprar, e tal”. Mas, aí da… aí eu senti, eu falei “Não, vou ficar é na minha mesmo, né, não vou…”. Você entendeu? Se a pessoa vier, eu converso numa boa, discuto qualquer coisa, agora, eu não vou… Estava com medo de envolver. Então, foi muito difícil o começo. Aí fiquei com aquele negócio. Aí, mesmo já vendo que não tinha condições de estar mais com a minha ex-mulher, ainda tive dois filhos, porque você num relacionamento, eu tive uma menina e depois que teve outro assim, aí fez ligação, aí eu falei “Nossa mãe!”. Eu tive que trabalhar, vendo que eu não tinha condições depois que aquilo aconteceu. E acabei separando, né? Mas eu fiquei em casa para ela acabar de estudar, ela se formou em professora, fiquei em casa com as crianças para ela estudar. Aí separei.
Helena: Nessa nova etapa você já não tinha mais nenhum vínculo com nenhuma organização política, né?
Salvati: Tinha. Aí, eu fui, inclusive, eu fui da direção do PCdoB daqui de Juiz de Fora.
Helena: Porque aí a AP já tinha acabado, né? Tinha se desmantelado.
Salvati: Colocaram nessa época antes de eu vir para cá, colocava uma faca no pescoço “Ou você vai para a AP ou vai para o PCdoB”. Era assim. Porque a organização… Aí dividiu. Mas como aconteceu isso e eu tive muitas discussões, eu vim embora para Juiz de Fora. Depois, eu revendo as coisas, peguei e fui, acabei entrando aqui, eu conhecia o pessoal do PCdoB, entrei no partido. Eu fui da direção do partido, eu saí inclusive quando o Amazonas esteve aqui em Juiz de Fora, e eu já tinha ido numa reunião em Belo Horizonte lá e começaram com negócio de jogo de cintura, agora tem que ter jogo de cintura. Aí, eu brincando na Câmara, perguntei “Tem que ter jogo de cintura até com o José Sarney?”, “Tem que ter até com o José Sarney”. Porque o Zé Sarney era o cara que a gente sempre criticou o tempo todo. Aí, eu simplesmente falei “Ah, tá”. Pedi para sair do partido na segunda-feira. Essa é a minha versão, agora, o partido tem duas versões, uma versão que eles falaram que um amigo meu falou que eles falaram é que eu não fui convidado para uma reunião com ele, com o João Amazonas, aí eu tinha ficado com raiva e saí. E a outra é que teve um almoço com o João Amazonas, que não me convidaram e eu saí. Tudo bem.
Helena: A sua é a primeira. Mais alguma coisa, Cristina?
Cristina: Só mais uma para a gente fechar, se o senhor concordar. O que o senhor acha da Lei da Anistia?
Salvati: Nossa, mãe! Eu acho o seguinte, não existe perdão, não. Porque existem injustiças. Essa questão de perdão isso não existe não, ou se faz justiça… senão nunca vai acabar a tortura, nunca vai acabar. Nós vemos hoje aí, quantas pessoas estão sendo torturadas, enquanto nós estamos aqui conversando sobre tortura que aconteceu, várias pessoas, só que na época… hoje não tem a repercussão que teve na época porque na época quem estava sendo torturado era a classe média, então, a repercussão era grande, hoje a tortura está acontecendo aí igualzinho que aconteceu comigo, aconteceu com essas pessoas mesmo e ninguém fala nada, as entidades, tudo, se calam diante disso. Quer dizer, por quê? Porque não houve justiça, o que houve foi justamente isso, perdão, e quando se perdoa é porque não se quer justiça. Então, querem que continue. Então é isso!
Helena: Esse depoimento… todos os depoimentos vão entrar no nosso relatório final da Comissão. Tem alguma outra coisa que você gostaria de falar, que você quer deixar registrado do que você viveu e que você possa queira acrescentar…
Salvati: Não, eu acho o seguinte. O que eu poderia acrescentar aí é o seguinte, que apesar de todo o sofrimento, apesar de tudo, eu acho que foi importante, entendeu, tudo o que aconteceu, com os erros, com os acertos, com a falta de experiência e com a experiência que a gente tem hoje, agora, o importante que eu acho é o seguinte, nós não podemos… essas pessoas que se comprometeram e que falam que se comprometem, desmoralizar pessoas que foram assassinadas, que foram torturadas, principalmente as pessoas que foram assassinadas pensando numa sociedade melhor, pensando num mundo melhor, não se venderam, não se trocaram por cargo, por nada, eles lutaram por coisas que realmente… para se transformar uma vida, vidas de pessoas, vida de todas as pessoas, não é de um grupo, não é sair uma elite e entrar outra não, as pessoas que eu conheci e que tiveram compromisso realmente, eles não pensaram em ser o poder, eles pensaram em participar do poder porque o poder seria de todos, da maioria. Eu acho que eu vejo o que poderia redimir aquelas pessoas que foram assassinadas, as pessoas terem a capacidade de compreender que se muitas pessoas que foram torturadas, assassinadas, pensavam não em dar esmola para ninguém, mas resolver o problema de todo mundo. É isso.
Helena: Tá certo, então. Muito obrigada por ter vindo e ter dado esse belo depoimento.
Cristina: Obrigada, além do depoimento, este tanto de documento para a nossa pesquisa.
Notas
1 17º BLog – Batalhão de Logística.