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Mariléa Venâncio Porfírio

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Mariléa Venâncio Porfírio

Entrevistada por Antônio Henrique Duarte Lacerda e Helena da Motta Salles

Juiz de Fora, 01 de agosto de 2014

Entrevista 006

Transcrito por: Tuane Oliveira Gonçalves

Revisão Final: Ramsés Albertoni (27/09/2016)

 

Helena: Mariléa, você podia começar falando o seu nome, a sua ocupação, onde você nasceu, onde é que você esta morando agora. Uma coisa assim mais geral e depois falar um pouco para a gente sobre a sua história durante o período militar, o que te aconteceu, por que você está aqui depondo, por que nós te convidamos a vir depor.

Mariléa: Bom, eu sou Mariléa Venâncio Porfírio, eu nasci em Juiz de Fora, em 7 de setembro de 1946, sou assistente social de formação, de graduação, e depois eu continuei os estudos, fiz mestrado em Educação, doutorado em Ciências Sociais. Ao concluir meu curso de graduação, que foi feito em Juiz de Fora, eu saí de Juiz de Fora, fui trabalhar em Belo Horizonte, fiz concurso logo, em fevereiro. Eu me formei em 1969. Em fevereiro de 1970 eu fiz concurso para o antigo INPS, hoje INSS, como assistente social, e comecei a trabalhar em maio de 1970. Trabalhei até dezembro de 1971, momento em que eu fui presa e não mais retornei ao meu posto de trabalho. A partir de 1985 eu fiz concurso, primeiro para Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro. E a partir de 1991 eu sou professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Então, hoje eu sou professora da UFRJ. Nesse meio tempo, depois eu vou voltar a dizer, mas, eu trabalhei algum tempo depois que fui presa, saí da prisão, como assistente social. Mas, nesse exato momento eu estou professora na UFRJ, há oito anos no Núcleo de Políticas Públicas em Direitos Humanos. Saí do serviço social e estou numa unidade voltada para as políticas públicas. Bom, mas, voltando então ao período de Juiz de Fora. O primeiro momento que eu comecei a ter a noção da questão de justiça, de pobreza, de desigualdade, já foi em casa. Meu pai, em especial, mas a minha mãe também, eram pessoas de uma ligação muito forte à igreja católica e meu pai participava de um movimento que chamava Vicentinos e que visitava os bairros pobres, levando ajuda financeira em especial. Então, desde criança eu ouvi dizer que existiam pobres e ricos. E que Cristo, na medida que ele era católico, não permitia que essa situação prevalecesse, mas que nós, que tínhamos alguma coisa, tínhamos que ajudar. Meu pai era um micro, como se dizia hoje, um microempresário e um funcionário público estadual que trabalhava na administração dos grupos escolares de Juiz de Fora. Então, era uma classe média baixa e que tinha oito filhos e que lutava com muita dificuldade para dar a casa e a escola para seus filhos. Mas todos eles sempre ouviram dizer que se tinha que repartir e que essa situação era inadmissível. Então, com 12, 13 anos eu fui conhecer as favelas de Juiz de Fora e aquilo me chamou muita atenção. Ao mesmo tempo eu estudava no colégio Santa Catarina, que tinha uma freira alemã que logo iniciou um trabalho também, que ela chamava de comunitário, nas favelas de Juiz de Fora. Era um movimento que se chamava Veritas e foi ali que eu comecei a entender que só dar o pão, só dar a roupa, isso não adiantava, e o Serviço Social apareceu para mim como sendo uma possibilidade técnica de sair dessa realidade, a ilusão que através do curso que isso poderia ser modificado de qualquer forma. Então, eu vou fazer o curso de Serviço Social. No curso eu rapidamente percebo que a realidade não se mudava através da profissão e através da mera vontade das pessoas, que a situação era muito maior, que era uma questão estrutural. Bom, eu já entro na universidade no período da ditadura militar, a ditadura passou para mim, ilesa.

Antônio Henrique: Qual período? Você entra em que ano?

Mariléa: 1966. Esses dois anos de golpe se passaram ilesos, eu não fui, nem apoiei, mas também era uma coisa meio nebulosa, na universidade que eu logo começo a entender que alguma coisa estava errada. Bom, mas nesse meio tempo eu já participava do movimento. Eu não fui de JEC, de Juventude Estudantil Católica, mas eu logo comecei a participar de todo um processo que circundava os jovens que participavam desse movimento e eu entrando na universidade, eu já entro na JEC. Já logo entro na militância de movimento estudantil. Um ano depois eu já assumo a presidência do diretório acadêmico e rapidamente eu começo a participar das reuniões e aí eu sou chamada para entrar em Ação Popular. Então, já em 1967, nos primeiros meses do ano, eu já entro em Ação Popular. Aí, eu já começo a entender toda a discussão que acontecia no país, já começo a militar, também já em função dos presos que já existiam, da denúncia das prisões, da denúncia das torturas…

Helena: Aqui na Penitenciária de Linhares?

Mariléa: De Linhares e no país em geral, mas principalmente em Juiz de Fora. Bom, a minha militância então, ela nesse momento se restringiu ao movimento estudantil, primeiro ao Diretório Acadêmico, depois cheguei a ser secretaria do Diretório Central, participei da UEE, fui no congresso da UEE em Belo Horizonte, primeiro momento que eu tive contato com o gás lacrimogêneo foi em Belo Horizonte, no encontro da UEE. Não fui ao congresso de Ibiúna, que foi outro colega, que foi a Elizabeth Schimdt, que foi pela escola. Bom, minha militância na universidade terminou, mas eu já participava de Ação Popular durante esse período todo e a orientação da AP é de que eu saísse de Juiz de Fora e fosse para Belo Horizonte. Então eu vou para Belo Horizonte, por uma orientação da organização.

Helena: Essas alturas já era APML?

Mariléa: Não era APML.

Helena: Era APM?

Mariléa: Era APM.

Antônio Henrique: Era APM.

Mariléa: APM. Bom, em Belo Horizonte a orientação é que eu já começasse a militar voltado para os bairros da Cidade Industrial e eu chego então, em Belo Horizonte, faço concurso… Então, eu me formo em 1969, faço concurso em 1970, vou para o INPS e no INPS eu tinha varias opções, de trabalhar em vários lugares. A organização me propõe que eu fosse trabalhar num hospital que é um hospital da Cidade Universitária, que é o hospital Júlia Kubitschek, que atendia doentes, tuberculosos, operados, em especial, que vinham da mina…

Antônio Henrique: Morro Velho.

Mariléa: Porque ali seria um espaço também de militância, na medida que tinha alguns operários que estavam ali, mas ao mesmo tempo, eu deveria concentrar minhas atividades na Cidade Industrial, já tendo contato com um movimento operário.

Antônio Henrique: Mariléa, eu posso só fazer um retornozinho?

Mariléa: Tranquilo.

Antônio Henrique: Você falou que você entrou em 1966, então por volta de 67 você já estava na AP, né?

Mariléa: É.

Antônio Henrique: Já começou… Aí você falou das denúncias de prisão e tortura. As torturas, você se lembra da conversa de denúncia de tortura aqui em Linhares já nesse período 1967, 1968, né? Você deve ter saído 1968 daqui?

Mariléa: Eu saí, eu me formo em 1969, saio em janeiro de 1970.

Antônio Henrique: Mas aí nesse período, nesse interim, 66-70, a tortura em Linhares.

Mariléa: O que eu via sempre era, primeiro houve uma campanha muito forte para as assistentes sociais de Belo Horizonte, que tinham sido presas e que estavam presas, vieram para Linhares, mas depois saíram de Linhares, mas que tinham sido barbaramente torturadas.

Helena: Em Linhares?

Mariléa: Em Belo Horizonte e em Linhares também.

Helena: Em Linhares também.

Mariléa: Em Linhares.

Helena: Tá. Porque a gente estava investigando isso…

Antônio Henrique: É.

Mariléa: Em Linhares. Mas, elas eram de Ação Popular, essas eram da AP. Mas logo depois também teve prisões de outras organizações, exemplo, Colina, né? O próprio grupo do Partidão teve pessoas que também foram presas nesse período. Então, sempre houve a conversa de que essas pessoas tinham sido torturadas. Se tinham sido presas fora, tinham sido torturadas pelo DOPS e se tinham vindo para Linhares também, era centro de tortura também ali em Linhares. Agora, eu nunca fui a Linhares, então… Mais tarde, eu já no Rio, eu tive contato com uma pessoa, que eu acho que em Juiz de Fora, que tem muito contato, que é o Gilney, que esteve em Linhares muito tempo, né? E com Gildásio Consenza que esteve no Rio, mas que foi inclusive uma pessoa que circulou pelo nosso processo todo de Ação Popular em Juiz de Fora e que dizia das torturas que eles também tinham passado em Linhares.

Helena: Ah, é? O Gildásio?

Mariléa: É, o Gildásio? Não, o Gilney.

Antônio Henrique: Gilney?

Helena: Gilney?

Mariléa: O Gildásio foi torturado no Rio. O Gilney e outras pessoas. Mas, é o que nós sabemos, é isto. Bom, então em Belo Horizonte eu trabalhei no hospital de maio de 1970 a dezembro de 1971. Bom, nesse meio tempo, o que eu fazia na organização? Eu participava de reuniões, de discussões de textos, de panfletagens, comecei a ter contato com poucas pessoas, muito poucas, que eram do movimento operário. Então, eu tinha um misto de participação, porque eu participava com algumas pessoas, que a Ação Popular chamava de pequena burguesia e com algumas pessoas que eram do movimento operário. Por que eu estou dizendo isso? Porque depois eu vou ter três processos. E tinha alguns contatos com pessoas que eram do movimento estudantil, mas, secundariamente, primeiro porque eram pessoas que eram de Juiz de Fora e que tinham ido para Belo Horizonte. Então, eu acabava circulando por esses três segmentos dentro da AP. E em Ação Popular existia já uma conversa muito forte, por isso eu tinha um contato maior com quem estava no movimento operário, de eu me desligar de Belo Horizonte e ir para São Paulo para trabalhar na produção, aquilo que se falava. Então, eu iria trabalhar na fábrica. E era uma coisa que eu realmente, gostaria, de ser uma operária e fazer o trabalho de Ação Popular na fábrica. Eu comecei a ser preparada para isso, já durante o ano de 1971 todo. E nesse sentido eu passei a ter contato com a alta direção da AP, com pessoa que tinha nome de Aníbal e que, mais tarde… Estou dizendo o nome que eu acho que tem um significado muito importante, essa figura, que mais tarde eu vou saber que chamava Edésio Passos. Bom, é do meio do ano em diante, não sei se Marilda vai dizer isto, mas nós começamos a ter notícias, eu comecei a ter notícias, primeiro parecia que tinha infiltração em Ação Popular, depois parecia que nós estávamos sendo seguidas, mais para o final do ano, eu não me lembro, não consigo me lembrar se foi outubro ou novembro… Eu e Marilda morávamos juntas, embora eu trabalhasse na Cidade Universitária, eu morava num bairro de classe média baixa, mas média, em Santa Tereza, nós duas tínhamos apartamento alugado e nesse meio tempo, deve ter sido outubro, novembro, quando nós ficamos sabendo que parecia que nós estávamos sendo seguidas, porque outras pessoas já estavam sendo seguidas e algumas pessoas já tinham sido presas, da AP. A mãe da Marilda foi para Belo Horizonte, para dar uma noção de que nós éramos família, que nós não tínhamos nada com a questão política partidária. Então, a mãe de Marilda vai, nós tínhamos algumas atividades de assistir uma música, de sair, mas nesse tempo, mais tarde, nós ficamos sabendo, nós ouvíamos barulho em casa, no sótão, eu via na porta de onde eu estava um mendigo que não saía dali. Então, esse mendigo, depois, mais tarde, na própria prisão, eles vão dizer, eu fui seguida ali o tempo todo e que eles entraram de dia na nossa casa e que viram nossos livros, viram todas as coisas, inclusive chegaram a levar coisas. Então, nós já estávamos sendo seguidas e como nós estávamos sendo seguidas, mas ainda assim percebessem, soubessem, eu me preparei para sair de Belo Horizonte e ir para São Paulo, já que eu já tinha programado que eu ia para uma nova forma de atividade política. Então, no dia 2 de dezembro eu saio de manhã, pego duas sacolas, que é minhas sacolas de roupa, dou uma para Marilda, vou ao banco, pego todo o meu dinheiro que eu tinha, como se fosse hoje uns 800 a 1.000 reais, eu não sei, mas como se fosse mais ou menos. Pego as minhas roupas, duas sacolas de roupas, Marilda leva uma, eu levo outra, porque eu ia encontrar com ela depois, porque eu ia embora naquele dia, ou ia ficar em Belo Horizonte com alguém, mas enfim, eu ia embora. Não consigo saber se ela sabia, eu acho que sim, nós nunca conversamos sobre isso mais. Bom, eu saio, ela sai de casa antes de mim, ela vai dizer isso e ela é sequestrada. Eu saio logo após, eu devo ter saído umas 7h30 mais ou menos para ir para o trabalho, eu estava indo para o trabalho normalmente com a sacola, quando eu saio, dou uns dez passos, alguém me chama. Eu olho para trás, no que eu olho para trás, já tem três pessoas em cima de mim, já me agarram, já me põem um capuz, já me põem dentro de um carro. E a partir dali as pessoas dizem “Abaixa, abaixa”, eu entrei em susto, eu não tive outra reação. E rodam, rodam muito tempo e logo depois param em um determinado lugar, eu entro, subo umas escadas, eu vou saber mais tarde que eram as instalações do DOPS. Bom, quando eu chego, eu já entro em uma sala fechada, já como se fosse uma coisa assim, cheia de bancos, não vejo ninguém ainda, fico ali um determinado tempo, mais tarde eu vou começar a ver algumas pessoas, inclusive eu vi a Marilda. Bom, nesse dia eu não me lembro se eu já fui torturada nesse dia, nesse primeiro dia, eu tenho impressão que é mais para a noite, eu já comecei a ser torturada. Já sabiam meu nome e a primeira coisa que me causou maior impacto, porque eu nunca tinha ouvido, era o seguinte “Guerra é guerra, vocês perderam”. Então, foi primeira coisa já que eu já comecei a ouvir, aquela coisa já me causou um impacto assim, assustador. Eu tenho impressão, eu não consigo mais guardar os tempos, as datas, só sei esse dia, porque esse dia ficou registrado em todos os documentos, né? Mas eu acho que nessa noite eu acho que eu já comecei a ir já para uma sala e a primeira coisa que faz, aí eu acho que é o maior impactante, que causa maior ruptura entre você e outro do outro lado, é te arrancar todas as roupas e é um ato muito brusco, então, já é arrancando todas as roupas. Eu lembro que eu estava de calça comprida e de blusa e já começa pela blusa e já começa tirando tudo. Aquilo causa uma perplexidade que você não sabe o que você vai fazer. E ai já começa a te perguntar coisas que você já ali desnuda, então se você já está desnuda, né? Corporalmente, você tem que desnudar também todas as outras coisas, é o que eles querem. No primeiro momento foi ainda de perguntar as coisas e eu dizer que eu não sabia de nada, não sabia de nada, ainda muito, aleatoriamente. Bom, eu não consigo lembrar como foi passada essa noite, mas eu sei que foi uma primeira noite de interrogatório e eu já totalmente sem as roupas. No dia seguinte, aí eu começo realmente a ser torturada. O primeiro momento a tortura começa a ser uns tapas no ouvido, perguntando se eu conhecia fulano. Ainda eram todos codinomes, e como as pessoas tinham vários codinomes, então você sabia e você não sabia. Então, não conhecia, e eu comecei a ser perguntada porque eles achavam que quando eu fui presa, eu era alguém da direção. Por que eu disse que eu circulava? Porque como eu tinha contato com o movimento estudantil, com o movimento que eles chamavam de pequena burguesia e com o movimento operário, eles imaginavam que eu era, e como eu encontrava com a pessoa que era o orientador geral da Ação Popular, que era esse Aníbal e ele estava sendo seguido, muito seguido, ele já tinha sido denunciado de uma prisão que já tinha sido, acontecido já no Rio e depois em Brasília, então, ele é que foi seguido e que a partir dele é que várias pessoas foram sendo também seguidas, mas ao mesmo tempo existia pessoas infiltradas dentro da AP, né? E eram essas que de fato passavam todas as informações. Bom, então quando começavam a me perguntar realmente, eu comecei a apanhar e ser torturada porque não era nem que eu não quisesse dizer, eu não estava segurando sob o ato da tortura o não dizer, é porque eu realmente não conseguia saber quem eram aquelas pessoas. Então, isso me fez apanhar e ser torturada, talvez com mais intensidade do que é, se soubessem já de antemão, que eu não tinha tanta importância quanto é, eles precisavam saber. Bom, então, a partir dos tapas nos ouvidos eu comecei primeiro a ter os dedos enrolados para levar choque, ao mes… Nisso vai indo numa gradação. Isso deve ter sido uns cinco dias. Durante dois dias me tiravam dali, me faziam rodar na Cidade Industrial para ver se eu conhecia algumas pessoas, me punham na porta da fábrica da Belgo Mineira para ver se, na saída dos operários, se eu apontava alguém, eu realmente não conhecia. Eu não conseguia. Tinha um operário que eu conhecia que ele já foi preso e que depois eu fui vê-lo, mas ali, nas instalações do DOPS. Então, cinco, seis dias depois, eu não consigo definir muito… Então eles me põem no carro, e vão sair. E já na estrada eu já percebo que tinha uma outra pessoa, eles tiram meu capuz, aí eu vejo que era uma colega minha, a Verônica, que tinha sido presa, mais ou menos na época e eu falei “Para onde nós vamos?”. Bom, muito tardiamente nós descobrimos que nós estávamos na rodovia Juiz de Fora-Rio. Bom, aí nós não sabíamos o que ia acontecer conosco. Nós estávamos sequestradas, para onde nós íamos, o que ia acontecer, bom… Enfim, não tivemos noção…

Antônio Henrique: Oh Marilda, posso faz…

Mariléa: Mariléa.

Antônio Henrique: Mariléa. É, eu sei que não é nada fácil não.

Marilea: É.

Antônio Henrique: Mas você, você conseguiria descrever com mais detalhes as torturas.

Mariléa: Sim. Deixa eu falar essa do Rio?

Antônio Henrique: Tá.

Mariléa: Eu volto na do Rio. A do Rio, eu vou e aí mais tarde, muito tardiamente, eu vou saber que foi o quartel da Barão de Mesquita. Bom, no quartel…

Helena: Nesse dia vocês foram levadas para o Rio?

Mariléa: É. Uns seis dias depois, deve ter sido. Eu vou para o quartel da Barão de Mesquita, nós chegamos encapuzadas, nós ficamos em celas separadas, eu e a Verônica. Na Barão de Mesquita, assim que eu chego, eu vou para uma sala que tinha uns holofotes, mais holofotes em cima de mim, me tiram toda a minha roupa, me põem num canto, nua, e eu fico ali, não sei quanto tempo. Eu não sei quanto tempo. Essa foi a minha única tortura no quartel da Barão de Mesquita e depois numa cela onde que eu tinha músicas ensurdecedoras. Nunca me perguntaram absolutamente nada, nada. Eu não fui perguntada nada e a tortura foi só esta e eu fiquei na cela sem roupa durante muito tempo também, depois é que me deram minha roupa. Aí, eu volto da Barão de Mesquita, eu não perguntei para as pessoas que me levaram, para os torturadores, o que eu fui fazer lá, o que que eles queriam comigo, eu não fui, não fui. Muito, muito recentemente, o ano passado, eu comecei a imaginar que eu fui parar ali, para uma pessoa que estava presa em Brasília, que era o Paulo Fontelles, que ele foi preso com o meu nome e eu também tinha o nome dele, que eu acho que ele seria um ponto que dizia que eu iria encontrar com ele em São Paulo, para ele ver se ele me conhecia, se eu era alguém, se eu era alguém de nome. Ele não me conhecia! Então ele, não, não… Mas, então, eu fiquei sabendo, muito tardiamente, que essa poderia ter sido, isso pelas próprias pessoas da comissão da Anistia e por algumas pessoas do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. Mas não sei se era, eu sei que eu voltei. Bom, quando eu voltei eu comecei então a sofrer novamente, eu já cheguei já sofrendo torturas. Então, eles diziam o seguinte “Você é muito boa, você não fala nada”, mas não é verdade, porque as pessoas que eu conhecia, me perguntavam se eu conhecia, eu falava que eu conhecia. Perguntavam pelas pessoas com as quais eu circulava, seja de trabalho, ou seja que militavam comigo: “Você conhece?”, “Conheço”, “O que ela faz?”, “Não sei, trabalha”. Bem, então, o que aconteceu? Então, começou-se os tapas, os dedos enrolados que eu tenho até ainda marca das torturas, o ouvido, muita tortura no mamilo, tanto que os meus mamilos ficaram retraídos, eles retraíram, tem um que é extremamente retraído, aqui entre as mamas, nos mamilos e faziam em circuito. Nos dedos do pé. Aí eu…

Antônio Henrique: Choques?

Mariléa: Sim, os choques. E aí me punha num balde com água, os pés ali e os choques nos mamilos, nos ouvidos e nos dedos. E perguntando e fazendo perguntas. Eu fui para o pau-de-arara duas vezes e sofrendo choque nos ouvidos, nos ouvidos e nas axilas, eram lugares extremamente sensíveis, né? E nas mamas, que chegavam a sangrar. Os mamilos eles saíam tanto, que a retração do mamilo vem em função disto. Eu fui acareada talvez com duas pessoas só, com três pessoas. Mas talvez, no décimo segundo dia mais ou menos, eles queriam que eu escrevesse as atividades que eu fazia. E me puseram numa mesa, com um papel que já estava escrito que eu queria, era para eu ler e ver se era aquilo mesmo ou se não era. E aí, eu estou sentada, parada, não tinha tortura ali, estava parada naquele momento e, quando eu vejo, então, a pessoa que era o Aníbal, que era pessoa que era o coordenador geral. Eu não sei o título da AP no estado de Minas inteiro e Espírito Santo. Era uma região, talvez Rio de Janeiro, eu não sei bem. E aí ele me olha e diz o seguinte “Olha, escreva tudo, assine isso aí, não fique preocupada” e ele me mostra uma quantidade, volumes e mais volumes: “Isso aqui já é o meu depoimento, quando eu fui preso, eles já sabiam tudo de mim, Ação Popular está caída, está desmoronada e diga tudo já de uma vez. Fale tudo, não sofra mais”. Porque nesse tempo eu já estava já com a pele já roxeada.

Antônio Henrique: Essa da frequência dessas torturas, você falou quinze dias?

Mariléa: Quinze dias.

Antônio Henrique: E assim, di…

Mariléa: Não era, não era…

Antônio Henrique: E assim, diuturnamente ou era…

Mariléa: Era, era. Mas não era, ela sofria, ela tinha interrupções. Não era uma coisa assim, doze horas em seguida, cinco em seguida. E tinha uma outra coisa que era o seguinte, você tinha o torturador, o bonzinho e o bravo. O bonzinho vinha, te falava “Conta tudo, conta tudo o que você sabe, fale tudo o que você sabe, diga o que você…” Aí, eu digo para vocês que eles achavam que eu era direção “Diga que você era direção, só falta você dizer isto. Fale mais pessoas que você que participam e que já não estão presas”. Porque foi uma queda brutal. Em Belo Horizonte foi brutal e acho que foi sendo em cascata. O advogado, que mais tarde foi meu advogado, estava preso também. Então, foi uma coisa assim, assustadora, eles não tinham mais lugar para por as pessoas. As pessoas ficavam ali sentadas, já, no chão, nos bancos, então, eles próprios não imaginavam, porque as quedas foram sendo como um castelo de cartas, foram caindo, caindo. Só que eles também ficavam, o torturador, ele era tão alucinado, ele ficava tão desesperado, eu acho, em querer mais e mais, ele chegava para as pessoas e torturava, às vezes, talvez mesmo, sem necessidade, só pelo belo prazer de ver se chegava a mais uma pessoa ou se chegava a mais um segundo. Pessoas que talvez que eles diziam que eram simpatizantes, tanto que muitas e muitas pessoas depois foram logo liberadas, porque diziam que eram apenas simpatizantes. Mas isso eram volumes, essa imagem, daquela quantidade de volumes, ela me assusta, porque já eram, acho que dos depoimentos todos, estavam ali para trazer, acho mais um impacto. Mas, as torturas então, elas eram alternadas. Eu acho que pelo grau de importância que ele dava para as pessoas, pela chegada das pessoas, também para ver se as pessoas liberavam falar através das pessoas que estavam sendo torturadas fisicamente ou psicologicamente. Então, o torturador bonzinho, chegava e dizia para mim assim “Você é muito novinha, você tem os lábios muito bonitos, você tem os olhos muito bonitos, fale logo para você ir embora”. E aí, eu dizia “Bom, mas eu não sei o que, o que eu vou falar”. Porque eu, na verdade, se me perguntaram se eu conhecia meus amigos que já estavam presos, pessoas que já estavam presas ali, eu dizia que conhecia sim, não deixava de dizer que não conhecia. E aí, você saía daquilo ali e ia para o outro, que você achava que ainda podia te extrair alguma coisa, voltava novamente à tortura. A tortura, ela era sempre feita com você desnuda, raramente você estava com roupa. E aí, eu descobri uma coisa que eu não sabia, eu não sabia o cheiro do suor, qual é o suor do corpo. Aquilo para mim foi uma coisa assim, foi um outro impacto, aquilo também é uma tortura, você sentir o cheiro do seu suor. Porque a tortura ela fazia você urinar, você evacuar e você suar, e você punha roupa, só tinha uma peça de roupa que eu punha. E aí você punha a roupa, a mesma roupa que já estava suja, que já estava suada e isso era uma coisa, assim, horripilante, que você sentia aquilo horripilante e que ao mesmo tempo você não sabia como fazer. Assim, porque também eles queriam durante muito tempo que eu disse isso e eu não disse em momento algum, primeiro que dinheiro era aquele, se aquele dinheiro era da organização. Eu dizia que aquele dinheiro era meu, porque eu estava com aquele dinheiro. Primeiro, eu fiquei desnorteada quando me pegaram com as roupas. Eu disse que ia levar na lavanderia. Depois, eu disse que eu ia viajar, que eu vinha para Minas, eu vinha para Juiz de Fora. E por que aquele dinheiro? Porque eu ia viajar e ia para Juiz de Fora. Eu apanhei muito para dizer a questão das roupas e a questão do dinheiro, né? E para quem eu ia dar aquele dinheiro, como eu recolhi aquele dinheiro. Mas, então, eu voltava e dizia “Bom, eu tenho roupa”, mas não me deram as roupas. Até hoje eu não ganhei mais aquelas roupas, no dia que eu saí da prisão, eu tive outra peça de roupa limpa, os meus documentos ficaram todos, eu nunca mais revi os meus documentos e aquele dinheiro também nunca foi entregue, nunca foi entregue, né? Bom, mas aí eu me perdi.

Helena: A história do Aníbal, que ele estava na mesa e falou para você falar tudo, e aí?

Mariléa: Ah, sim. Falar tudo. Eu fiquei perplexa, eu fiquei muito perplexa, eu fiquei muito assustada, eu acho que eu chorei muito naquela hora. Primeiro, que ele era um grande carisma da organização. Ele era a pessoa que organizava todo mundo, ele era a pessoa que encontrava meios de atrair o que ele chamava de pequena burguesia e do movimento operário, ele era o que se dizia, um grande quadro. Quando eu escuto aquela pessoa dizer aquilo, foi aí que a ficha caiu para mim. A ficha caiu. Eu achava que as pessoas estavam ali caindo, que as pessoas estavam ali sendo torturadas, porque havia gritos, havia choros, até uivos, mas ao mesmo tempo, quando alguém que você encontrou, alguém com quem você discutiu, alguém com quem você militou junto, chega e diz que “Eu já achei que foi bom, não tem mais jeito, entreguei tudo, já está tudo entregue, não apanhe mais, não seja mais torturada”, aquilo para mim foi assim, primeiro um misto de decepção com a pessoa, mas para mim uma coisa mais de desespero. O que fazer agora? O que fazer? E eu lembro que eu assinei, tinha uma quantidade de coisas escritas e eu vendo mais tarde, que eu peguei até depois no arquivo já de Minas, as coisas que diziam, diziam o que eu fazia, eram umas coisas bobas, eu até tenho, depois eu até dou para você. O que eu fazia? Eu lia documentos, eu estudava, eu fazia pichação, eu fazia reuniões, eu tive livros subversivos em casas, era isso que estava escrito. Era essa que era a peça, não é? Essa que é a peça. Fez panfletagem, a peça era esta. Aí me deram aquilo para assinar. Eu não me lembro de ter assinado, mas ao mesmo tempo eu acho que eu assinei. Eu não consegui encontrar documentos que diz que eu assinei, mas eu tenho isso escrito. Esta essa peça do IPM.

Helena: Isso foi parar no Arquivo Mineiro?

Mariléa: Sim.

Antônio Henrique: Está no DOPS, né?

Mariléa: Está no DOPS. Helena: Está no DOPS. Mariléa: É o Arquivo do DOPS.

Helena: Entendi.

Mariléa: Bom, depois desses doze dias, eu saio, vou para um quartel. No quartel, então, eu tenho uma cela, é onde eu tomo banho, é onde eu…

Antônio Henrique: Você deixa só eu retornar um pouquinho?

Mariléa: Pois não.

Antônio Henrique: No Aníbal, no DOPS em Belo Horizonte, isso?

Mariléa: Belo Horizonte, no DOPS em Belo Horizonte, é…

Helena: Eles já colocaram ele ali de propósito, para te convencer que era para entregar tudo.

Mariléa: Sim, mas ele fez isso para todas as pessoas.

Helena: Ah, é?

Mariléa: Ele também, isso também é uma tortura, né? E aí, depois mais tarde, nós ficamos sabendo. A esposa dele, que também era militante, que também eu conhecia, ela estava grávida e eles fizeram um acordo com ele que ela seria liberada, ela iria embora ter o filho se ele entregasse tudo. Ele entregou, foi a partir daí que começou a ter muitas quedas. Tanto, parece que, os médicos todos de Belo Horizonte, que foram todos presos, foram a partir dele. Porque era ele que reunia com o grupo de médicos e de engenheiros. Então, aquilo que ele fez comigo, eu o vi uma única vez, inclusive eu não sabia que ele estava preso. Eu o vi uma única vez, depois eu não o vi mais, o que foi feito. Então ele também foi servido, né? Como um grande banquete para os militantes que estavam ali presos, né?

Antônio Henrique: E, e havia tortura coletiva? Você, quando você sofreu essas torturas? Houve algum tipo de tortura coletiva? Não houve? Houve acareação com tortura?

Mariléa: Eu não consigo lembrar. Exemplo, eu fui acareada com o Lula. Mas eu não consigo lembrar. Fizeram perguntas que eu lembro que ele falou uma coisa e eu testemunhei e eu avancei nele “Você está falando mentira”. Mas, eu não consigo lembrar de ser torturada com outra pessoa e de ter visto o outro ser torturado. Eu me lembro de ouvir muitos gritos, eu me lembro. Mas eu não consigo lembrar, realmente é uma névoa. Me lembro das pessoas todas envolta, todas juntas.

Helena: Depois desse dia você nunca mais encontrou o Aníbal, não? Depois desse dia que ele se encontrou com você?

Mariléa: Nunca mais, nunca mais.

Helena: Entendi. E dali você saiu e foi para…

Mariléa: Eu vou para o quartel. Eu fico no quartel, que também várias pessoas foram. Ficamos em celas. Do quartel eu voltei ao DOPS algumas vezes, mas aí era para uma coisa assim, primeiro tinha uma quantidade de livros, era para ver se aqueles livros eram meus, outra vez era para perguntar, tinha algumas fotos e se eu conhecia aquelas pessoas das fotos. Mas, do quartel, depois mais uma única vez, que eu tive uma sessão de choques, uma única vez que eu me recordo. Depois eu não tive mais. Bom, ainda tem uma…

Helena: Mas no quartel ou no DOPS?

Mariléa: Do quartel para o DOPS. No quartel eu não fui torturada.

Helena: Ia para o DOPS.

Mariléa: Foi no DOPS, eu fui torturada nas instalações do DOPS. No quartel eu não fui. Eu ia para o DOPS.

Helena: Entendi.

Mariléa: Bom, eu fiquei incomunicável um mês. Eu fui ver o meu pai no dia 1º de janeiro, durante esse período inteiro eu não vi ninguém. Eu fiquei incomunicável. Eu acho que foi o período, né? Então foram 15 dias de intenso, mais intenso, depois eles foram sendo abrandados. Em fevereiro eu venho para Juiz de Fora, fico no quartel aqui perto do Museu Mariano Procópio, vou para uma acareação de várias pessoas que eu conhecia e que eu não conhecia, pouquíssimas pessoas eu conhecia, eram pessoas de Juiz de Fora. Sou ouvida aqui em Juiz de fora, eu não sou torturada fisicamente, eu tenho uns três interrogatórios, mas eram mais em função de Juiz de Fora. Mas Juiz de Fora pode-se dizer que foi uma coisa assim, tranquila para mim. Aí eu saio, talvez, 5 de fevereiro mais ou menos, uns três, quatro dias depois eu vou para a casa dos meus pais que moravam aqui, né? E aí que é quando eu digo que fico em prisão domiciliar, fico até maio em prisão domiciliar, sem poder sair de casa. Em maio eu sou liberada, posso sair da prisão domiciliar. Aí, o juiz da auditoria militar mandou um recado para mim que não era para eu voltar mais para Belo Horizonte, ou ficar em Juiz de Fora ou ir para outro lugar. Isso é maio de 1972. Eu saio, possivelmente em junho, vou para São Paulo, procuro a organização em São Paulo, eu não consigo localizar as pessoas, estavam todas elas em São Paulo, presas, inclusive, eu tinha um antigo ponto que eu tinha de São Paulo, eu tento ir várias vezes, nunca consegui. Então, em São Paulo, eu vou para a casa de algumas pessoas que eram até pessoas antigas ligadas a organização, mas que também estavam amedrontadas, mas que eram chamadas simpatizantes. E aí eu vou, tenho um contato com Dom Paulo Evaristo Arns, ele me pergunta, e aí os advogados dele, se eu quero sair do país, porque eles articulavam a minha saída. Aí, eu digo que não, que eu não ia sair. Eu fico em São Paulo, começo a trabalhar como free-lancer, porque eu não tinha documentos, consigo tirar uma carteira em São Paulo, de identidade. Eles tiram uma carteira para mim de identidade. Não é falsa, com o meu nome, meu próprio nome. Fico com uma carteira de identidade, mas não consigo trabalhar, começo a fazer pequenos trabalhos. Fico na casa de pessoas ligadas a igreja católica, mas em março eu volto a Belo Horizonte, porque aí eu entrego um processo, assim, porque tem um fato. Eu tentei me reaproximar de novo do INPS, do meu antigo trabalho. E aí me disseram que eu estava demitida por justa causa.

Helena: Por justa causa.

Mariléa: É. No dia 15 de janeiro eles me demitiram por justa causa e eu ainda estava presa, incomunicável. Meu pai conseguiu do general da 4ª Região Militar uma declaração de que eu estava detida, eu não lembro bem as palavras, mas detida para responder a um inquérito policial militar. Meu pai levou aquilo na direção do INPS, em Belo Horizonte, e eles não aceitaram. Ficou arquivado lá, mas não aceitaram dizendo que não, que eu tinha sido demitida por justa causa, porque eu não tinha comparecido ao trabalho. Bom, mais tarde, eu tenho um advogado, né? Vou constituir um advogado, esse advogado entra com um processo trabalhista, eu vou responder a esse processo trabalhista, já depois que tinha saído da prisão domiciliar, talvez em agosto, mais ou menos. Eu sou ouvida, mas a decisão é que… Eu perco meu processo trabalhista, então, logo em seguida eu já entro com um processo trabalhista e eu perco. Bom, em março de 73 eu tinha sido inquirida, eu tinha sido, não é inquirida, eu tinha sido…

Helena: Denunciada? Não, não sei…

Mariléa: Não, eu venho para o pro… Eu vou responder ao processo. Julgamento.

Helena: Aqui em Juiz de Fora?

Mariléa: Eu não consigo lembrar a palavra. Sou indiciada!

Antônio Henrique: Indiciada.

Mariléa: Eu sou indiciada. E eu sou indiciada em três processos. Um, que eles chamavam de movimento estudantil, um, da pequena burguesia e outro, do movimento operário. E o advogado consegue fazer um único processo, então, e eu fico em um único processo que é da pequena burguesia. Então, eu sou julgada e eu sou condenada a seis meses de prisão.

Helena: Você lembra o nome do advogado?

Mariléa: Afonso Cruz.

Helena: Afonso Cruz?

Mariléa: Afonso Cruz. Que mais tarde…

Helena: Que era de Belo Horizonte?

Mariléa: Que era de Belo Horizonte. Uma figura maravilhosa, que mais tarde morreu em um acidente, que também tinha sido preso nessa época comigo. Mas ele foi solto. Por que ele tinha sido preso? Porque ele já era do grupo de simpatizantes do Aníbal. Então, vários advogados, médicos, todos eles foram presos.

Antônio Henrique: Você respondeu em Belo Horizonte esse processo?

Mariléa: Meu processo foi aqui em Juiz de Fora, na Auditoria Militar, que foi a circunscrição de todos que foram presos em Belo Horizonte nesse processo de Ação Popular. Então, eu sou condenada a seis meses. Eu já saio dali para onde? Como não tinha prisão feminina… Mas aí, tem um outro dado que eu acho muito impo… Eu acho que já passei da hora.

Antônio Henrique: Não, tranquilo.

Helena: Fica tranquila, pode continuar.

Mariléa: Mas eu acho que a Comissão é importante ter isso registrado. Teve uma figura em Juiz de Fora, assim como teve Dom Paulo, em São Paulo e no Brasil inteiro, que foi fundamental, que foi Dom Geraldo Maria de Moraes Penido. Ele já tinha tido uma interferência quando as filhas do doutor Joaquim, que eram assistentes sociais e tinham sido presas em 64, que eram alunas do curso de Serviço Social, que teve uma prisão logo em 64. Ele foi fundamental nas nossas… Para as pessoas de Juiz de Fora e na interferência de pessoas de Belo Horizonte. Ele agiu junto do juiz auditor. O juiz auditor era um cristão cursilhista, Mauro Seixas, que era muito ligado a Dom Geraldo, e Dom Geraldo parece que teve uma influência muito forte no andamento dos trabalhos com esse juiz. Esse juiz dizia para o meu pai que ele achava que essa juventude era uma juventude que tinha sido enganada, que tinha sido levada, mas que era uma juventude assim muito utópica, mas que ao mesmo tempo tinha esperanças, que queria coisas boas. Enfim, um palavreado assim, meio forte, mas ao mesmo tempo meio florido. Mas, o que Dom Geraldo então consegue dele? Que as mulheres e os rapazes que tinham sido presos, todos eles, no meu processo, não ficassem em presídios. Então, eu vou para o Colégio Santa Catarina, que é onde eu tinha estudado, a Marilda vai para o asilo, as outras pessoas vão para Belo Horizonte. Tinha um médico, ele vai trabalhar no hospital onde ele trabalhava, ele era médico do hospital. A assistente social vai ficar também num outro colégio. Mais tarde, quando tem uma aluna de serviço social que também é condenada, ela é de Belo Horizonte, mas ela vai cumprir pena aqui também num asilo onde a Marilda tinha ficado e uma operária vai ali para a creche. Vai ficar na creche, fica ali na Barão de Cataguases1 e ela tinha uma filha pequenininha e a filha fica lá junto. Era uma creche de irmãs. Então, a interferência de Dom Geraldo, ela foi assim, fundamental. Tinha o ato humanitário dele, mas tinha um ato de solidariedade muito forte.

Helena: Padre Jaime também teve uma influência…

Mariléa: Ah, bom. Aí, tinha a questão da igreja né? Igreja católica, e aí, além do Dom Geraldo, eu acho que tinha, teve um circuito que as mulheres ali, Dona Leda, da Ação Católica, padre Jaime, tinha algumas freiras, então, tinha um grupo que tinha uma influência na cidade e que também, por seu lado, tinha restrições já a esse período ditatorial e que já começaram a entender que realmente existia tortura, né? Que existia uma exceção, muito forte. Que não existia direitos sendo prevalecente, né? Porque, na verdade, o que se dizia que aqueles jovens tinham feito? Nada. A peça de acusação era o quê? Que tinham distribuído panfletos, tinham feito reuniões, que tinham livros de Marx, de Lênin, que tinham participado de reuniões para discutir o que fazer do país, que eram contra o regime militar. Em cursos na lei de segurança nacional em função disto, né? Bom, então é onde eu vou cumprir pena, né? E o colégio Santa Catarina, a diretora do colégio Santa Catarina… Então, você começa a perceber como que ela também tinha uma atitude também ali naquele período com os alunos de tentar, nas aulas de, acho que é moral e cívica, né? Já apresentar alguma coisa da realidade do país. Mas as freiras sabiam quem eu era, porque que eu estava ali, mas os funcionários administrativos não sabiam e os alunos e os professores não sabiam. Mas, exemplo, eu podia ter visitas todos os dias, né? Então, o padre Jaime ia todos os dias, celebrar missa ali, eu ouvia meu pai. Aí, entra meus irmãos. Meus irmãos iam lá continuadamente todos os dias, praticamente me visitar. Eu tinha uma irmã de quatro anos que dormia lá comigo, mas os meus irmãos maiorzinhos sabiam, os outros não sabiam o que era aquilo, o que era, o que a irmã deles estava fazendo ali, né? Mas eu podia ter visita, então, esse período, ali, foi o período que não trouxe mais problemas nenhum para mim. Mas ele tem um problema, porque quando você esta num presídio com vários outros companheiros, eu acho que você trabalha melhor o processo que você vivenciou. Porque a tortura ficou muito presa em mim, o torturador estava muito preso em mim. Durante muito tempo, quando eu andava em São Paulo, eu via, eu via a fisionomia do capitão Portela, que tinha os olhos verdes. Todos os homens de olhos verdes que eu encontrava pela frente eu imaginava que fosse ele. Eu tinha um outro torturador que tinha o rosto todo cheio de chagas, de coisa que eu imaginava, que eu via aquele homem em vários lugares. Todos os monstruosos, eu achava que eram todos monstros. Então, eu, aquilo ficou muito forte, né? Aí, quando na minha casa eu não falei nada, quando eu não falava nada com as pessoas, então, eu me fechei, né? Me fechei mais do que eu era fechada com relação a essa fato que tinha acontecido. Então, eu acho, isso é o que eu penso, se eu tivesse ficado com todos os horrores num presídio, eu penso que eu, aquele corpo, é, que era o meu, ele estaria sendo ao menos repassado…

Antônio Henrique: Uma catarse.

Mariléa: Para os outros também que estavam ali passando por problemas, quer dizer, eu ia para uns presídios que depois eu vou ver, por exemplo, o presídio do Rio e de São Paulo, que as pessoas passavam. Eu, realmente, ali eu era uma interna, com todas as regalias. Mas eu acho que aquilo ali para mim, pessoalmente, politicamente e individualmente, psicologicamente, não foi bom, né?

Helena: Você nunca revelou nada disso para a sua família, para ninguém? Na época você não revelou nada?

Marilea: Sobre as torturas?

Helena: As coisas que você tinha passado. Você não revelou nada?

Mariléa: Então, eu acho que quando eu cheguei, é, minha mãe me perguntou alguma coisa, meu pai me perguntou, mas meu pai já me viu muito mal quando eu estava lá, minha mãe também foi. Eles me viram muito mal, eu acho que eles quiseram me preservar. Eu fui falar mais tarde para as minhas irmãs, um pouco mais velhas. Mas, na verdade, eu nunca falei muito, eu nunca falei o que foi, né? O ginecologista, quando ele perguntou… eu deixei de ir no ginecologista homem, passei a ir no ginecologista mulher; quando perguntou do mamilo, aí eu falei.

Helena: A razão?

Mariléa: Eu falei, olha, fui presa durante a ditadura militar, aí, eu sofri choque na mama e ela retraiu, e aí, “Tá, vamos ver, vamos olhar, vamos ver isso, tal. Na verdade não tem consequências”. Mas, não fiquei falando em casa. Como eu nunca voltei… Exemplo, eu e Marilda, que nós morávamos juntas, nós conversamos pouquíssimo sobre isto e eu conversei pouquíssimo com todas as outras pessoas, inclusive com os meus amigos, com as pessoas com as quais tinham sido presas ali junto comigo, né? Muito, devagar, vagamente, quando se encontra, se fala alguma coisa.

Antônio Henrique: Você tem… Qual, por que não falar? Você tem alguma ideia… O que você pensa, por que não falar? Eu digo assim, antes. Por que não?

Mariléa: Eu acho, eu tinha tortura, eu tenho… Eu não fiz análise.

Antônio Henrique: O que você acha assim?

Mariléa: Eu, eu não fui… Várias pessoas foram fazer análise, eu não fui fazer. Eu tenho impressão, essa é uma outra impressão também, que se eu tivesse ido, eu teria conseguido elaborar isso que você está dizendo. Bom…

Antônio Henrique: Mas isso era mais ou menos coletivo, né? Você não falava, mas os outros também não falavam?

Mariléa: Não falavam. Existe uma coisa que é o seguinte, você tem, aqueles homens… Porque eram homens, eu não tive uma mulher torturadora. Eu não vi mulher.

Antônio Henrique: Quantos, Mariléa?

Mariléa: Aí, eram cinco, seis, que se revezavam. Figuras monstruosas, assim as caras, as caras, eram todas pessoas que te chamavam, assim, a atenção, sabe? De pessoas feias. Podiam ser até bonitas, mas… Só tinha uma figura, que era esse tal de capitão Portela, que era um homem esguio, alto, de olhos verdes. Chamava atenção, um playboy, deveria ser um playboy aí na praça. O outro, ele se dizia que era o quê? Joaquim José da Silva Xavier e ele dizia o tempo todo que “Guerra é guerra. Guerra é guerra. Você perdeu, você está aqui, você perdeu. Você é uma boba, uma bobona”. Mas ele era mais bravo. O outro, era o capitão, não consigo lembrar agora, mas eu sei. É, ele dizia…

Antônio Henrique: Outro capitão? Mariléa: Eram os dois capitães. Major… Antônio Henrique: Major?

Mariléa: Casemir Vieira.

Antônio Henrique: Como que é?

Mariléa: Casemir Vieira. Isso está no meu processo.

Antônio Henrique: Tá.

Mariléa: Major Casemir Vieira e o capitão Freitas. O capitão Freitas e o capitão Portela, que se dizia que era Joaquim José da Silva Xavier. Eu não consigo saber o nome do capitão Portela, mas ele é dito o tempo todo por esse processo. Esse capitão Freitas, ele é capitão muito feio, muito feio mesmo. Chamava até atenção da feiura física dele, o rosto todo cheio de chagas e de coisa, de chagas não, é como se ele tivesse tido…

Helena: Cicatrizes.

Mariléa: Não, é como se ele tivesse tido varíola?

Antônio Henrique: Varíola.

Mariléa: E fica aquelas marcas? É, mas ele se fazia às vezes de bonzinho, então, era ele que chegava como se fosse pai, passava a mão no rosto, “Minha filha, por quê?”. Os outros passavam a mão no corpo, eu não, eu não tive sevícias, de estupro nem nada, mas eu tive mão no corpo, assim, o tempo todo, né? Mas porque isso é a forma de derrubar por completo, né? E te derruba. E então, esse capitão Freitas, ele era aquele que dizia “Vocês são muito jovens, você é muito jovem, você é muito bonita, você já deveria estar lá, noiva, casando, tendo seus filhos. Para que você vai mexer come essas coisas? Sai disso, resolve isso logo que você vai embora”. Ele fazia às vezes o bonzinho, mas você saía dele e ia para o outro. Mas o capitão, esse Portela, ele era o chefe, mas os caras, ele, a mim ele não me torturou fisicamente. Quem torturava eu acho que eram os caras do DOPS mais, os brutamontes mesmos, que te pegava, te punha ali sentada na cadeira, me punha sentada, me punha na coisa da água e punha o pé, o choque.

Antônio Henrique: Mas a mando do capitão Portela e ele na presença?

Mariléa: A mando do capitão Portela, provavelmente. Sim, o Portela via.

Antônio Henrique: Todos eles, os graduados não realizavam a tortura, não eram que realizavam diretamente a tortura, né? Era só ele, ficava fazendo interrogatório.

Mariléa: É, interrogatório, perguntava, por trás…

Antônio Henrique: No ato de tortura, no ato?

Mariléa: No ato de tortura. Esse Freitas, eu não me recordo em momento algum, nem ali no cantinho olhando. Eu não consigo lembrar, né? Mas esse Portela… E esse outro, esse Casemir Vieira, que eu não consigo ter na minha memória física como ele era, como, de que maneira ele era. Você perguntou…

Helena: Ele estava perguntando o nome dos torturadores…

Mariléa: Não, das figuras, né? Dos torturadores. Eles se revezavam, né? Acho que eles trabalhavam por turnos e eles tinham que torturar muitas pessoas, né? Porque era em conjuntos, eram salas, você entrava e saía, entrava um, entrava outro. Eles tentavam não deixar as pessoas se verem para as pessoas não se comunicarem. Não dizer o que um falou o que o outro deixou de falar.

Antônio Henrique: Mas Mariléa, são meio, umas perguntas meio esquisitas…

Marilea: Você estava me perguntando porque é que eu não falo.

Antônio Henrique: Isso. Você falou que ouvia muitos gritos, né? E obviamente você deve ter gritado, né?

Mariléa: Ah, muito, por isso que eu te falei…

Antônio Henrique: Então você percebia que era uma sequência. Saía de você, ia para outro, ia para outro.

Mariléa: Entrava outro.

Antônio Henrique: Você percebia isso?

Mariléa: Eu não consigo lembrar mais, mas eu tenho a impressão que sim, porque ali era um horror, o tempo todo, as pessoas… você tinha poucos momentos de pausa. Às vezes tinham momentos de sossego, assim como na Barão de Mesquita, o que eu ouvia de gritos, de música alta e de passos como se fosse aquela coisa, aquela marcha, é um negócio assustador, eu tenho isso. Então vamos voltar porque eu não falava. Isso ficou durante muito tempo na minha cabeça, durante muito tempo ficou na minha cabeça, as músicas altas. Eu não escuto música alta até hoje, não suporto música alta, eu não suporte rock alto, porque eu ouvia rock alto na Barão de Mesquita, tá? É, eu não, então, as figuras, quando eu vejo até hoje, esses vigilantes altos, forte, moreno, me lembra a figura dos torturadores. Então, a tortura ficou na minha cabeça, eu não tinha vontade de falar, eu queria esquecer aquilo ali, eu queria viver outra coisa, eu queria viver minha vida, sair, ir embora. E aí, teve uma outra coisa, como a Ação Popular acabou, eu fui chamada para entrar no PC do B e eu me circulei pelo PC do B, mas eu não entrei. Então, não entrei mais para organização nenhuma. Circulei pelo PT, no início dele pelo Rio de Janeiro e depois não entrei mais, eu tive outras militâncias que não é o caso aqui agora falar. Mas, então, é muito, então por que é que eu vou começar, só para concluir, a entender a questão da tortura e começar a falar? Há oito anos eu saio então do serviço social e vou trabalhar em uma unidade que é voltada para os Direitos Humanos, e essa unidade tem um trabalho que é um centro de referência que é de mulheres vítimas de violência doméstica. Aí, eu vou começar a fazer a relação do que a agressão de uma mulher, vítima de uma violência doméstica, tem com o seu… É um torturador. Aquela figura, principalmente masculina, que lhe tortura e que ela também não consegue às vezes denunciar ou não consegue se desvencilhar daquela pessoa que está ali lhe causando todo o tipo de mal. Eu vou atuar diretamente, mas eu vou coordenar um trabalho indiretamente, mas eu tive um contato muito forte com essas mulheres. Então, são essas mulheres, vítimas de violência doméstica, e ir trabalhar com os Direitos Humanos, é que vão me fazer desabrochar uma coisa que estava muito fechada e da qual eu não falava. Então, é a partir dali que eu começo a relatar algumas coisas. As pessoas minhas amigas, que eu fiz um novo círculo de amizade, ou de trabalho, elas vão levando susto quando elas descobrem um passado meu que não era tão passado, mas no qual eu não dizia absolutamente nada. Então, era assim um grande segredo, então esse grande segredo não era discutido na minha casa com a minha mãe, depois, mais tarde, com os meus sobrinhos e, mais tarde, no meu trabalho. Bom, mas aí tem um outro lado só, desde quando eu vou para o Rio eu tenho um companheiro que já não está vivo mais e que tinha sido um perseguido político, e ele também me ajudou muito, porque ele dizia absolutamente tudo que tinha passado com ele e que foi também anistiado. Então, foi essa pessoa que conseguiu ir me ajudando lentamente a ir mostrando e dizendo as coisas, então, tinha algum circuito que eu, e já dizia as coisas. Então, eu vou participar do grupo Tortura Nunca Mais, ali, as pessoas já sabiam o que tinha acontecido, mas exemplo, eu passei por alunos e mais alunos que foram descobrir o que tinha acontecido quando eu sou anistiada e aparece no jornal e na televisão. Mas eu sou anistiada há dois anos, mas eu ainda sinto alguma coisa do torturador em mim, eu ainda sinto, né? Então, só para concluir, por que eu a… me dispus a estar falando? Primeiro, que eu acho que para o país, para a história do país, para a formação política histórica do país, as comissões da memória da verdade elas são fundamentais, essa história, ela ainda é uma história totalmente desconhecida. Ela tem que ser desvelada e muito desvelada, né? As gerações, eu dei aula durante anos, eu falava sobre esse período e eu não me punha como sujeito deste período. Eu sempre fui extremamente critica, conscientemente critica, formei alunos críticos, eu fiz todas as críticas, ainda faço, mas eu era um sujeito que pairava no ar, né? Então, eu acho que isso tem que ser dito. Mas o início da minha formação política e ideológica foi aqui, né? Então, para mim, é muito importante eu estar falando, né? Eu acho que essa história, ela tem que ser construída em todos rincões do país das formas mais variadas. Eu sou daquelas que acha que os torturadores tem que pagar pelo o que eles fizeram, né? Eles praticaram danos irreversíveis. Físicos e psicológicos, né? Eu sou uma pessoa que tem um dano psicológico muito forte, mas eu quero que eles também sejam responsabilizados pelo coletivo do país. Pelo coletivo, a memória desse país ainda é uma memória falseada, né? Ainda não revelada na sua totalidade, então, eu penso que isto é extremamente importante. E aí, veja só, eu fui concursada em 1970, eu fiz concurso, eu fui aprovada, eu trabalhei, fui demitida como se fosse por justa causa, mas não foi por justa causa, foi por estar presa, ao mesmo tempo eu entro com processos, eu já entrei com três processos, primeiro administrativos, perdi os três e venho perdendo na justiça, e a justificativa da justiça, inclusive tem um juiz que ele não foi até, não usou os termos próprios: “Quem entra na chuva é para molhar”. Então, se eu entrei na chuva, eu tenho que arcar, eu tinha que saber que aquele meu ato político teria consequências, e isso, do Supremo Tribunal de Justiça, não é um desembargador, é de uma justiça ainda no nível secundário. E isso tudo, então, eu sei que igual a mim tem várias pessoas no país inteiro, operários, né? Bancários e outros profissionais que perderam seus empregos e que até hoje vão morrer sem que tenham tido os seus empregos reabilitados, reintegrados, por atos ainda discricionários, né? Então, eu ainda continuo tendo, né? Uma consequência, ainda, como se fosse 40 anos atrás, durante o período que eu estivesse sequestrada, presa e que perdi o trabalho que eu ganhei pelas minhas forças e condições. Então, eu acho que isso, eu acho que isso também tem que ser revelado, porque igual a mim, várias outras pessoas, né, ainda estão passando pela mesma situação. Então, eu fico também, para mim também é importante, eu acho que essa catarse, eu fico até feliz, né, em poder estar passando e revelando, porque não foi tranquilo, embora eu tenha vivido minha vida tranquila esse tempo todo, eu durmo, já passou, mas tem uma coisa muito fechada, então, não é tão tranquilo quanto se imaginava. Então, esse momento para mim, além dessa questão política e de revelação histórica, eu acho que também tem uma questão pessoal que é muito importante e aí eu também agradeço. Eu acho que é também de agradecer, né? A importância que isso significa.

Helena: Nós é que temos que agradecer, né?

Antônio Henrique: A nação que tem que agradecer…

Helena: Porque para o trabalho da Comissão também andar, também a gente precisa que as pessoas tenham essa disposição de que as pessoas venham aqui contar suas histórias. Muito obrigada!

Mariléa: Está certo, obrigada!