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Maria da Aparecida Oliveira Lopes

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Maria da Aparecida Oliveira Lopes

Entrevistada por Helena da Motta Salles e Rosali Henriques

Juiz de Fora, 22 de agosto de 2014

Entrevista 010

Transcrito por: Rodrigo Costa Castro

Revisão Final: Ramsés Albertoni Barbosa (04/10/2016)

 

Helena: Maria Aparecida, você podia começar falando onde você nasceu, onde mora agora, sua ocupação e contar pra gente a história do seu pai, falar o nome do seu pai e contar pra gente a história dele, porque é por causa dele que você está aqui com a gente hoje, né?

Maria Aparecida: Eu estou aqui pra contar a história do meu pai. Eu chamo Maria Aparecida Oliveira Lopes, nasci em Bicas. Atualmente, moro em Juiz de Fora. Trabalho em casa, sou do lar, sou viúva, e eu vim aqui pra fazer um relato sobre o acontecido em 1964 com meu pai, que eu sou testemunha que assistiu tudo e que viu tudo e que sofreu junto com meu pai e a minha mãe e meus irmãos.

Helena: Como é que era o nome do seu pai?

Maria Aparecida: Meu pai é Sebastião de Oliveira.

Helena: Sebastião de Oliveira. Ele era?

Maria Aparecida: Ele trabalhava na Leopoldina, Rede Ferroviária Leopoldina, né? Como meu pai era sempre… gostava de estar atuante nas coisas, né? Aí convidaram ele, teve uma eleição lá entre os amigos do sindicato, convidaram ele pra fazer parte do sindicato dos ferroviários. Aí, ele pegou, foi em casa, né, falar com a minha mãe. Minha mãe não queria, mas ele falou que ele queria. A minha mãe “Ah, mas eu não queria que você fosse”. Ele falou assim “Ah, mas eu vou porque é pra reivindicar direitos dos meus amigos, dos meus companheiros e, então, chegou minha hora e eu vou sim”, mas aí minha mãe “Então tá, se é isso que você quer, então que seja”. Aí…

Helena: Ele entrou substituindo?

Maria Aparecida: Ele entrou substituindo um amigo que chamou, porque viu que ele tinha capacidade igual ele. Porque esse que era… O Manoel do Couto, que era delegado na época, que convidou. E logo que ele entrou, ele afastou por motivo de saúde e ficou, e meu pai assumiu o lugar dele interinamente, né? Não pensando assim que fosse dar essa repercussão, porque ninguém pensava. Aí, meu pai foi e começou fazer o que ele fazia, reivindicação pra direitos dos ferroviários, né? Aí meu pai ia pro Rio, voltava pra Bicas, tinha as reuniões, que eles tinham as reuniões deles, que eles comentavam a respeito de trabalho. Os funcionários reclamavam com eles o que estava ocorrendo com eles, a falta, às vezes, de remuneração que eles tinham direito, dos serões que eles faziam, que antigamente se fazia muito serão e às vezes nem sempre eles recebiam pelo aquele horário a mais de trabalho. Então, o sindicato era desse projeto pra eles, pra reivindicar os problemas dos funcionários. Aí, quando foi em 1964, que deu logo essa confusão de pensar que o sindicalista era tachado como desordeiro, que eles queriam fazer discórdia, aquela porção de coisa. Aí, o primeiro a ser pego, em Bicas, foi o meu pai. Uma tarde, podia ser umas cinco e meia, seis horas da tarde, o meu pai chegou do serviço, tomou banho, aí tava sentado conforme do costume, que meu pai tinha uma mania assim de chegar, a gente ficava ali. Ele sempre conversava com a minha mãe, o meu pai. Tinha uma mesa grande assim, ficava um de um lado, outro do outro, conversando. A gente não participava do assunto. Só se chamassem a gente. Se não chamassem, a gente ficava… Então, eu falei “Mãe, eu quero ir na vó”, minha mãe falou “Pode ir, mas não demora não, não deixa escurecer muito pro você vir não”, eu falei “Tá”. E levei meu irmão menor comigo. Falei “Tô levando o Paulinho comigo”. É o meu irmão caçula. Ela falou assim “Tá bom”.

Helena: Vocês eram quantos irmãos? Cinco ou seis?

Maria Aparecida: Cinco irmãos. É, nós éramos, tinha mais irmãos, mas assim eu tô… Quer dizer, cinco! Cinco irmãos, né? Dentro de casa. Eu a única mulher, né? Desses irmãos todos… Então eu era a cabeça, meu pai ainda tinha mania de falar assim “Gente, o que tem na irmã de vocês, falta em vocês: a decisão, o jeito de decidir as coisas”. Porque eu que fazia mesa redonda. Quando eu queria falar alguma coisa eu dizia “Hoje tem mesa redonda aqui em casa, gente”. Aí a gente conversava a respeito de tudo. Nós éramos irmãos muito unidos. Muito mesmo. Então, aí deu aquela confusão, a minha vizinha saiu correndo, que o carro do exército tava parado em frente a minha casa. A minha vizinha viu, era comadre da minha mãe. Aí, viu eles entrar, bater, minha mãe abriu a porta, eles falaram o nome do meu pai. Aí, meu pai foi logo chegando, isso foi o relato que me fizeram porque eu cheguei depois que eles já estavam já com meu pai na mão, botando lá dentro daquele carro fechado deles. Um carro fechado verde, todo fechado. Então eu cheguei correndo, quando minha vizinha falou “Vai lá, corre, que a sua mãe está em desespero gritando muito. O seu pai está sendo levado. O pessoal do exército está levando o seu pai”. E eu falei “Por quê? Por quê?”. Eu vim falando “por quê” e correndo, o chinelo ficando pra rua e eu correndo. Ainda dando a mão pro meu irmão. Meu irmão correndo sem saber de quê, coitadinho. Então, eu cheguei lá, minha mãe, eu… Aí eu já pegando na farda do…

Helena: Do militar…

Maria Aparecida: Do militar que tava segurando o braço do meu pai, segurando arma de um lado e segurando o braço um de um lado, o meu pai no meio, um militar de um lado, um outro militar do outro, como se meu pai fosse o pior dos bandidos, sabe? Isso me dói quando eu lembro… Me dói muito de ver isso… Então, aí pegou eu perguntando “Onde vocês vão levar meu pai?”, eles não respondiam nada pra mim e o carro saiu. O meu irmão “Papai, papai!”, ainda queria correr, ir atrás, eu falei “Não”. Quando eu entrei minha mãe já tava caída lá no chão. Eu falei “Mãe, mãe”, os meus outros irmãos foram chegando do colégio, aí foi aquele desatino total. Aí, os vizinhos que eram mais chegados começou a chegar pra prestar socorro à gente, né? Aí começou a perguntar. Chamou médico, teve que chamar médico pra minha mãe, porque a minha mãe não voltava. Ficou tipo assim, morta, lá no corredor. Eu me lembro como se fosse hoje, um corredor que tinha assim, pra chegar da sala pra copa. A minha mãe caída lá, só respirando assim, ofegante, né? E custou, e o médico que chegou prestou socorro, levou ela pra cama. Eu lembro que minha mãe ficou uma noite fora do sentido. A gente achou que a minha mãe ia morrer. Aí eu ainda falei “Nossa, a gente perdeu o pai, ainda vai perder a mãe também”. Aí eu comecei a querer entrar em desespero, aí eu lembrei daquilo que meu pai falava, que eu era forte e que eu tinha que segurar. Porque quando ele entrou, que eu comecei a indagar pra onde que eles iam levar, ele falou “Não, fica com a sua mãe. Você tem que tomar conta da sua mãe”. Aí eu voltei, lembrei daquilo, voltei, né? E fiquei lá, acudindo a minha mãe. Aí o médico ficou lá o tempo inteiro. O médico era da Rede Ferroviária, que a Rede Ferroviária também tinha médicos que ficava no ambulatório, trabalhava lá dentro pra se tivesse, assim, algum acidente de trabalho, ele tinha médico, tinha tudo. Aí meu irmão correu lá, chamou. O médico foi, atendeu, olhou, falou assim “Sua mãe surtou”. A gente nem sabia o que era isso, né? Ele falou assim “Nossa, o baque foi tão grande pra ela, o que aconteceu?”, eu peguei e falei “Aconteceu isso” e contei o caso pra ele. Ele falou assim “Ela surtou. Talvez nunca mais ela volte a ser a pessoa de antes. Você se prepara pra você tomar conta dessa casa sua, pra você dirigir essa casa. Você como mais velha da casa…”. Aí eu respirei, fiquei ali, aí o pessoal ficou, a vizinha da minha mãe que era comadre ficou a noite toda ali com a gente. Aí, os meus tios foram chegando, porque aí o boato correu na cidade que meu pai tinha sido preso, né? Aí as pessoas que eram chegadas à gente deu apoio moral pra gente, foi chegando. Os meus tios ficaram arrasados. Eram dois tios que os irmãos também criados muito unidos. Criado, assim, conforme eu já falei de mãe viúva, que batalhou pra eles estudar, trabalhou pra eles ser o que eles eram, porque ninguém saiu pra vida errada, apesar de que antigamente as viúvas não recebiam nada. O marido morria, elas ficavam, tinha que trabalhar pra criar filho. Não tinha dinheiro, não tinha nada. Então, meu pai contava muito. Eles veneravam muito a mãe deles. Depois meu pai ainda demorou, meu tio mais velho demorou a casar ainda, porque tinha que ajudar a minha avó a criar os menores. Eu sei que esse negócio de 64 acabou com a nossa vida, acabou com os nossos planos porque a gente tinha muito plano, a gente tava no auge, assim, de adolescente, cada um tinha um plano, que a gente conversava sobre os planos que a gente tinha. Meus irmãos tinham planos, eu tinha planos de vida, de ter uma coisa melhor, né? E o meu pai sempre falando com a gente “Vocês estuda, que é o legado que vocês vão levar, é o estudo, a honestidade”, ele sempre falava “A honestidade é o melhor nome, a melhor fortuna que vocês vão ter pra vida de vocês é a honestidade. A honestidade ninguém tira”. Então, eu tenho isso comigo até hoje, criei as minhas filhas nessa base, mas meu pai foi preso, ninguém sabia pra onde que tinha levado, ficou a noite inteira. Os meus tios começou, assim, a ver que ia fazer, né? Aí, pegou os outros sindicalistas pra conversar, mas todo mundo com medo, se pegou um ia pegar o restante também, né? “Vão fazer isso, vão fazer aquilo”, aí que deu que tinha um vizinho que morava, que eu morava quando aconteceu isso, eu morava no bairro Santana, rua Zima de Souza Moreira, 127, no bairro Santana, ali. E tinha, na rua Zima de Souza, mesmo, ali, tinha um advogado. Aí foram lá, na casa desse advogado. Esse advogado era um homem muito experiente, era o melhor advogado que tinha na cidade, muita experiência, e relatou o fato pra ele, falou tudo pra ele. Ele falou assim “Eu tenho que descobrir pra onde que ele foi levado”. Aí começou a movimentar pra saber, aí conversa com um, conversa com outro. Por intermédio dessa pessoa que eu falei com você, que eu não sei se eu vou poder citar o nome…

Helena: Pode!

Maria Aparecida: Posso citar? Ele era general do exército. Então, ele falou que tinha, né, falou “Vocês tentam ver”. Esse advogado, esse advogado, ele era, como é que fala? Ele era cunhado desse advogado… Então, ele falou assim “Tem uma pessoa que vai poder me dar essa informação, eu vou nele agora”. Aí foi lá, ele disse “Já sei onde que levaram ele, eu vou atrás amanhã, eu vou atrás”.

Helena: O general Itiberê morava em Bicas?

Maria Aparecida: Morava.

Helena: Nessa época ele morava em Bicas?

Maria Aparecida: Morava em Bicas e na rua Barão de Catas Altas, Bicas. A casa ainda existe lá, porque a casa fica pra herdeiros, né? Então, foi lá, ele conversou, falou tudo, então, o advogado veio a Juiz de Fora, e falou comigo, porque a minha mãe… falou com meus tios, na minha presença “Seu pai foi levado pro QG, né, 4ª Região de Juiz de Fora, está lá”.

Helena: No QG ali perto do museu?

Maria Aparecida: É, no QG ali, perto do museu ali…

Helena: Perto do Museu Mariano Procópio…

Maria Aparecida: “Ele foi pra lá, ele está lá, com muitos outros que não são daqui de Bicas, mas tem gente de São Geraldo, tem gente de sindicato aqui da redondeza, pegou cabeça de sindicato aqui da redondeza quase todos. Então, mas pegou tudo assim, na calada assim. Aí ninguém, não dava nem tempo de avisar um pro outro não, que foi todo mundo pego de surpresa”. Aí, ficou lá, eu sei que meu pai ficou. Aí, o advogado entrou com um recurso, um pedido de perguntar por que o meu pai tava sendo levado pra lá, né? E aí eu não sei também o que foi relatado pro advogado, que o advogado só falou “Eu trago ele de volta. Ele não é nenhum… Ele não cometeu crime nenhum”. Mas ninguém dormiu, aí depois meu pai chegou, num outro dia, ele chegou de manhã… A gente escutou o carro desse advogado parar lá em frente de casa. Eu peguei, abri a janela. Aí eu vi meu pai entrar, tossindo muito. Aí quando ele entrou eu perguntei “Pai, pai, que eles fizeram com você? Eles te bateram? Eles fizeram alguma coisa com você? Eles te bateram? Eles te torturaram?”, aí ele não respondeu nada, ele só abaixava a cabeça, as lágrimas rolavam e ele não respondeu nada pra gente. Eu acho que não podia nem falar. Acho não, tenho certeza que ele não podia nem relatar o que aconteceu, mas é que ele tossia e quando ele tossia ele cuspia e eu vi que tava cuspindo sangue. Eu falei “Te bateram sim, pai, eles te bateram sim, pai”. Assim, é que antigamente tinha aquele respeito, ele não tirava a camisa, assim, perto da gente, nem nada. Aí a minha mãe falou assim “Seu pai tosse de noite, eles bateram no seu pai”. Minha mãe surtou, mas ficava naquela falação o tempo inteiro “Eles bateram no seu pai, mas eu falei com ele que eu não queria, eu falei com ele que não queria. Ele foi teimoso”. A gente falava “Não, mãe, não fala não, que ele já tá sofrido demais”, o pai ficava fechado no quarto pra poder chorar, eu não sei o que ele fazia. E o meu pai, um homem tão culto, tão inteligente, e a gente via ele definhando, sabe? Virava e mexia eles pegava o meu pai…

Helena: Ele foi preso mais de uma vez, então?

Maria Aparecida: Foi, virava e mexia.

Helena: Quantas vezes?

Maria Aparecida: Ah, que eu me lembre, três, quatro, cinco vezes. Aí, o advogado entrava em ação, trazia ele de volta. Aí, depois eles começaram a pegar depoimentos dele. Queriam saber de coisas que ele não, não sabia. Aí foi…

Helena: E das outras vezes ele vinha aqui pra Juiz de Fora também, pro QG aqui?

Maria Aparecida: Todas às vezes pra Juiz de Fora.

Helena: E mais ou menos quanto tempo que ele ficava preso, assim?

Maria Aparecida: Ah, ele ficava assim, base de dois dias, de um dia pro outro, ficava uma noite todinha, eu sei que a noite todinha até que… tinha interrogatório com certeza a noite toda, né? E aí ele chegava tão pálido, tão frágil em casa, que eu acho que a tortura que eles faziam, tanto psicológica, como ameaças, às vezes de falar o que não sabia, o que não tinha que falar. Eu só sei que meu pai falava “Gente, o que é que eu fiz? Eu só reivindiquei as coisas que os meus amigos, que os meus companheiros”, porque eles falavam companheiros, né, “Os meus companheiros de trabalho… a única coisa, o meu erro foi esse. É só esse”. Um dia o advogado foi lá em casa conversar com ele, “O meu erro foi esse”. Aí eles pegaram as papeladas toda do sindicato, aqueles papéis que eles tinham, ata de reunião, de tudo. O exército pegou aquilo tudo lá, né? Então, a gente ficou assim… nós não dormíamos em casa. A gente dormia nas casas dos outros, nos porão, pra falar, bem melhor dizendo, nos porões das casas dos ferroviários amigos. Mas cada dia num, nunca no mesmo. Isso foi falado pra gente fazer pelo advogado. “Vocês não vão dormir dentro dessa casa mais, vocês vão ficar o dia. É melhor que não ficasse nem de dia, mas fica o dia porque vocês estudam, mas à noite vocês não vão poder ficar aí não, vocês vão ter que sair”. Aí, então, a gente dormia aqui e ali, ia não sei aonde, né, não tinha casa…

Helena: Mas, aí, todos, ou só os filhos, ou seus pais também?

Maria Aparecida: Meu pai também…

Helena: Todos iam pra casa dos outros…

Maria Aparecida: Meu pai também ia pra casa dos outros, dormia. Aí tinha que ficar, assim, tipo um filme. Meus tios saíam na frente andando e falando com a gente que a gente podia ir, que não tinha carro, que não tinha ninguém na rua. A gente saía bem de noite e dormia nos porão, nas casas dos outros. Porque as casas quase todas tinham porão, né? A gente dormia nos porão. E a pessoa que acolhia a gente corria até risco por estar acolhendo a gente, mas aí eles falam “Não, a gente está junto nessa, nós vamos acolher vocês sim”. Aí a gente não dormia, a gente não dormia de noite. Eu não conseguia dormir. Eu tenho sequela de não dormir até hoje. Eu vejo bater na porta, eu levo susto, eu tenho trauma dessas coisas até hoje. Eu fiquei com isso na minha cabeça. Na minha memória, eu tenho isso gravado. Então, aí meu pai perdeu… Primeira punição que eles fizeram com meu pai: deram um balão de trinta dias dele no serviço, por ordem do comando. Balão de trinta dias. Ele ficou sem receber, uma casa cheia de criança.

Helena: Sem receber…

Maria Aparecida: Sem receber um mês. Férias prêmias que ele já tinha direito…

Helena: Perdeu também…

Maria Aparecida: Não recebeu também férias prêmias. Cassaram todos os direitos do serviço lá. Ele só não foi mandado embora, conforme muitos outros perdeu o serviço. Foi tachado como subversivo, comunista. Então, é assim, aquela discriminação, né? Meu pai era um homem que, assim, ele andava de cabeça baixa… Aí, meu pai foi transferido, sem ter lugar pra morar, sem ter lugar pra comer, pra Macaé, estado do Rio, pra trabalhar na oficina de Imbetiba, lá em Macaé. Aí, eles fizeram uma troca, mandaram um pro lugar do meu pai e mandaram o meu pai pro lugar desse outro. Aí o pessoal de Bicas acolheu esse, que não era do sindicato não, mas que não conhecia nada em Minas. Aí acolheram esse lá e a família desse e ele deu nome de pai, de mãe, e acolheram meu pai na casa deles, porque meu pai não tinha dinheiro, não tinha nada. Como que ele ia trabalhar, se ele tinha sofrido um balão e logo foi mandado embora, sem dinheiro, sem nada. Falou com ele assim “Você tem três dias pra você apresentar”. Ou isso ou… ou papai fazia isso ou ia embora, sido mandado embora sem direito a nada. Aí que nós ia ficar sem nada mesmo, meu pai pagando uma casa…

Helena: Isso foi em 1964?

Maria Aparecida: Foi em 1964 mesmo…

Helena: Aí, foi só o seu pai que foi pra Macaé ou foi a família toda?

Maria Aparecida: Foi só. Não tínhamos condições de ir, porque a gente tinha a casa lá em Bicas, a gente tava todo mundo estudando e não tinha condições financeiras. O meu pai não tinha condições financeiras pra alugar uma casa pra levar a gente. O meu pai foi, aí ele vinha de quinze em quinze dias, mas ele trazia tão pouco dinheiro, que não dava pra gente…

Helena: Você falou comigo antes, a gente estava conversando, você falou comigo, que por causa disso tudo que aconteceu com o seu pai, vocês chegaram a passar necessidade…

Maria Aparecida: Passamos!

Helena: Nesse período?

Maria Aparecida: Nesse ponto que eu vou chegar agora, nós passamos fome! Fome! A gente não tinha o que comer. Não tinha café da manhã. A gente tava acostumado a ter café da manhã e almoço. Domingo a gente tinha aquele almoço de domingo… Acabou tudo! A nossa vida acabou. Aí, que a gente fez? Meu irmão pra baixo de mim falou “Eu vou trabalhar. Eu vou parar de estudar e trabalhar”. Aí, ele começou a trabalhar num armazém. Aí, o outro pegou e acompanhou. Todo mundo parou de estudar pra poder trabalhar pra poder ter a alimentação pra gente. Aí, os meus tios já estavam pagando a casa e pagando o advogado. A gente não podia mais tirar nada dos meus tios porque eles também tinham família. Todo mundo foi trabalhar, todo mundo foi trabalhar. Os meus irmãos estavam tudo trabalhando. Aí, meu irmão, ele não recebia pagamento não. Ele trabalhava, ele tirava o pagamento dele em comida, em mantimento: arroz, feijão, coisas. Olha, a gente tomava leite, a gente já não tomava mais leite, porque não tinha como comprar mais. A alimentação da gente foi restrita, restrita mesmo. Gás, não tinha, porque não podia comprar. Aí, eu fiz um fogão de lenha no terreiro com os tijolos. Eu fazia comida no fogão de lenha lá no terreiro porque não tinha dinheiro pra comprar gás. Então, ficou assim. Aí, meu irmão ficava, tudo que ele fazia, aí entrou a época do frio, as coisas foi acabando tudo… Quando vai acabando e você não vai complementando, aí a gente não tinha coberta suficiente. Aquele frio que fez… Naquele ano fez muito frio, mas muito frio mesmo. Aí, a gente ficava tudo encolhendo, morrendo de frio. Eu passando mal, porque eu tinha problema de vesícula, eu passava muito mal. Aí, eu quando eu sentia aqueles mal por causa do frio, por causa também daquele trauma todo, eu comecei a sentir mal… Aí, meu irmão ficava… Eu sei que eu andava abaixada na casa, com dor, muita dor. Aí, meu irmão “Meu Deus, o que é que eu faço?”. Aí, minha mãe não agia nada. Ela olhava assim, pra ela aquilo era mesmo que nada, porque ela tava completamente fora do… Só tinha as horas do desespero… Tinha as horas do desespero. Mas aí, meu irmão chamava médico, o médico era muito humano. O médico me atendia, me dava injeção e falava comigo “Oh menina, mas você tá sofrendo demais, você está emagrecendo muito… Desse jeito assim você vai morrer, você não pode ficar assim por causa da sua mãe”. Me dava conselho “Você não é forte? Tira força!”. Aí eu ficava assim “De onde?”, eu perguntava pra ele “De onde?”, ele “Você sabe de onde”. Aí eu falei “Eu vou tirar força pra ajudar os meus irmãos e minha mãe”. Aí eu fui, mas sem poder trabalhar, eu queria também trabalhar, mas se eu trabalhasse quem ficava com a minha mãe. Aí, eu não pude. Aí, meu irmão abaixo de mim falou “Não, você fica em casa com a mamãe e eu vou sair pra trabalhar. Eu vou sair, o Álvaro vai sair e o Adílson também vai sair pra trabalhar. Nós três vamos trabalhar”. Aí, os três que ainda estudavam ainda foram sair pra trabalhar. Aí eles tiravam mantimento, né? Aí, quando foi na época desse frio que eu estou falando, muito frio, eu falei “Ai, eu não aguento de frio”. Aí tinha saco de linhagem, saco de estopa, você conhece? Que a gente tinha, que a gente tinha armazém que a gente fazia compra, que também foi cassado esse armazém da Rede Ferroviária da Leopoldina, que a gente fazia compra. Também não podia fazer mais compra. Tudo que era que a gente tinha foi cassado. Eu acho que eles queriam exterminar a gente também. Então, aí eu costurava aqueles sacos de estopa e saco de farinha de trigo. Aí a gente punha aquele saco de farinha de trigo de baixo e o saco de estopa pra gente aquecer do frio. A gente costumava fazer fogueirinha pra gente poder esquentar. Aí, um dia, pega a mãe e falou assim “Vocês vão morrer queimado porque vocês ficam levando fumaça pra dentro do quarto”. Aí, a gente falou assim, meu irmão falou assim “É mesmo, a gente não pode fazer isso não, porque a gente pode dormir de cansaço”. Depois que a gente começou a ir pros porão dos outro, aí já não tinha nem nada disso mais não. A gente ficava um no outro assim nos porão. O meu pai noutro lugar da gente. Aí, só ficava eu, minha mãe e os meus irmãos num lugar. O meu pai em outro lugar e a gente nem sabia onde. Por que senão, eles tinham medo de pegar a gente e bater na gente, porque minha mãe tinha medo que me pegava e fazia eu falar as coisas que eu não sabia. Mamãe “Eles vão te pegar, você não pode ficar, você não pode ficar aqui, você tem que ir embora”. Aí eu falei “Mas eu não posso ir embora porque eu tenho a senhora, mãe. Se eles tiver que me pegar, eles vão ter que me matar porque eu não vou te largar”. Aí ficou aquela coisa tudo durante um ano inteiro aquela coisa. Depois foi abrandando por meio do advogado entrando com coisa. Ele entrou com um habeas corpus pra ver se deixava meu pai um pouco em paz. Aí, isso tudo gerava, né, custos que meus tios custeavam isso, né. Aí ele foi tirado da gente pra Macaé. Aí, ele ficava e vinha de quinze em quinze dias…

Helena: Quanto tempo ele ficou em Macaé?

Maria Aparecida: Ele ficou de dois a três anos lá em Macaé.

Helena: Depois ele conseguiu voltar pra Bicas?

Maria Aparecida: Conseguiu. Porque ele aposentou. Porque ele deu infarto lá…

Helena: Ah, então aposentou por invalidez, por problema de saúde?

Maria Aparecida: Eu acredito que sim, porque não era passado isso pra gente. Era tabu, era um medo tão grande que ninguém comentava nada. Os meus tios não comentava, o meu pai não comentava. Eu via alguma coisa assim, que eu era mais velha, eu pegava. Hoje eu entendo muito mais do que antes.

Helena: Na época…

Maria Aparecida: Depois que eu fui adquirindo maturidade foi que eu fui juntando tudo e fui sabendo o porquê. Aí, por conta disso tudo que aconteceu, aí meu irmão saiu pra trabalhar, parou de estudar. Meu irmão queria fazer faculdade, queria fazer tudo. E era tudo pago antigamente, não tinha colégio público não. O nosso era porque era da Rede. Mas quando você terminava ali tinha que pagar o colégio particular. Mas aí, a Rede dava bolsa, a gente não podia perder o ano, a gente tinha que passar, porque se a gente perdesse o ano perdia a bolsa. Aí, o meu irmão já estava fazendo ginásio, né? Eu também já tava indo pra estudar, porque eu tinha parado, porque eu perdi. Eu tive um problema na visão, então praticamente quase que eu fiquei cega. Mas eu dei… eu tenho degeneração nessa vista aqui. Eu quase não enxergo dela não. Então, tudo isso acarretou bastante coisas pra gente. Aí meu irmão parou de estudar. Não podia mais estudar…

Helena: Todos pararam de estudar?

Maria Aparecida: Todo mundo parou de estudar, ninguém fez aquilo que queria fazer. Então, aí ficou, aí meu pai aposentou, mas ele não teve a remuneração de aposentado que ele tinha direito. Ele não teve o fundo de garantia que ele tinha direito, ele não teve as férias prêmias que ele tinha direito. Ele tinha muitos direitos que ele não teve. Ele aposentou com a aposentadoria bem baixa daquilo que ele tinha direito.

Helena: E depois que ele aposentou como é que foi a vida dele, como é que ele seguiu?

Maria Aparecida: A vida dele foi assim…

Helena: Quanto tempo ele ainda viveu?

Maria Aparecida: Meu pai era músico. Ele tocava, ele gostava de… Ele tinha até orquestra, no tempo que ele era bom, assim, não tinha nada. Ele tinha uma orquestra, porque meu pai era músico formado em conservatório e tudo. Então, ele fez uma de amigos dele que estudou junto, eles formaram uma orquestra. A orquestra chamava “Melodia Orquestra”. Tocava bailes, formatura, bailes de… Que em Bicas tinha muitas festas, muitos bailes. O meu pai era a orquestra que tinha melhor lá. Ele era muito requisitado pra tocar bailes, essas coisas. Era todo mundo de terno, eu lembro que era aqueles ternos todo passado, todo engomado. Essas orquestras boas mesmo, sabe? Então meu pai tocava, eu tinha o maior orgulho. Eu falei “Pai, eu não tenho o dom de tocar instrumento nenhum não, mas eu tenho o dom de cantar. Eu faço aula de canto”. Eu fazia aula de canto, então a professora minha falava “nossa, mas você tem uma voz tão bonita, mas você canta tão bem”. Ás vezes, até hoje, lá onde eu moro, eu canto, as minhas vizinhas “Nossa, quem tem essa voz tão bonita que canta assim?”. Eu falei assim “Uai, quem canta aqui de manhã cedo sou eu”, “Você canta umas música triste”, eu falei “Sou eu que canto”, disse “Oh, não sabia que era você”, eu disse “Eu fiz aula de canto, eu canto”. Aí, eu sei que ficou, parei com tudo. Eu queria ser advogada, meu pai até falava “Vai sim, você vai ser sim, porque você tem o dom da palavra, você tem o dom da palavra. Então, o que você tem falta nos seus irmãos: você tem decisão”. Aí eu decidia tudo na casa. Aí eu tomei as rédeas da casa, decidia tudo. Meus irmãos, coitados, recebia e me dava. O pouco que eles recebia me dava na minha mão. Meu pai vinha, o pouco que ele trazia ele dava na minha mão e eu que pagava as contas, luz, tudo que tinha pra pagar ali, armazém que comprava, que a gente comprava nas caderneta. Eu contava nos dia aproximando pra receber, porque eu sabia que ele vinha. Aí eu mandava somar conta, eu contava os dinheiro tudo, via o que dava pra isso, o que que dava pra aquilo, que que podia fazer, que que não podia. Então, a gente não teve vida pra gente não. Nós não tivemos, assim, adolescência boa, bonita. A gente tinha sonhos que foi interrompido. Aí meu pai foi logo adoecendo, meu pai não ficou bom, minha mãe louca. Minha mãe fugia de casa, minha mãe saía andando pras estrada, ela esperava a gente dormir… Isso foi quando abrandou, a ditadura abrandou, de estar pegando o meu pai lá, né? Aí, quando o meu pai olhava a minha mãe já não tava lá em casa. Aí, saía procurando, perguntando um, perguntando outro. Aí eles falavam “Não, a dona Neucina passou aqui sim, bem cedo”. Aí saía procurando… Andando, procurando minha mãe aqui, ali e ali. Ás vezes ela andava tanto que ela cansava. A última vez que ela andou tanto, ela andou de Bicas ao Retiro sem saber pra onde que tava andando. De Bicas ao Retiro. Olha que de Bicas ao Retiro, de ônibus, você anda bastante. Imagina a pé…

Helena: Você falou que na primeira prisão do seu pai que o médico falou que ela tinha surtado e talvez ela nunca mais se recuperasse…

Maria Aparecida: Nunca mais! Helena: Foi de fato o que aconteceu? Maria Aparecida: Foi de fato.

Helena: Ela não se recuperou?

Maria Aparecida: Não recuperou.

Helena: Daquele dia pra frente ela não voltou a ser a mesma?

Maria Aparecida: Não. Não foi mais dona de casa, não se cuidava mais. A gente é que tinha que falar, eu penteava cabelo dela. Eu falava “Mãe, vão tomar banho mãe. Mãe, vão pro banho, mãe”. Ela ficava, se você deixasse, ela não almoçava, não jantava. Ela ficava sentada num muro que tinha lá em casa o dia todo. Aí, tinha o irmão que era assim abaixo de mim. Esse que foi o batalhador da casa junto comigo, ele pegava ela no colo assim e falava assim “Vão pra dentro. Vão pra dentro minha mãe. Você já ficou aí muito tempo”. Ela falava “Me põe no chão, me põe no chão”. Ele falava assim “Não, a senhora está no braço de um homem. A senhora não vai cair do meu braço não. Pode ir, vamos lá pra dentro”. Aí levava ela lá pra dentro, aí eu falava “Mãe, o banho está arrumado, vamos tomar banho”. Ela falava assim “Pra quê? Pra quê?”, eu falei “Mãe, pra senhora ficar limpa, mãe. A senhora não pode ficar suja, a senhora tem que ficar limpa”. Aí ela falava “Eu não quero mais nada na minha vida. Eles me tiraram tudo que a gente tem. Que falta tirar mais? Não tem mais nada pra tirar de mim”. Só isso que ela falava “Não tem mais nada pra tirar de mim. Olha aí vocês. Eu não reconheço mais vocês como meus filhos. Quem é você?”. Eu falava “Mãe, eu sou sua filha”, “Você é minha filha?”. Aí ficava, assim, pensativa. Aí, teve uma época que ela ficou agressiva, ela ficou agressiva e foi quando começou a internar ela, que a gente não queria internar ela…

Helena: Em hospital psiquiátrico?

Maria Aparecida: Ela ficou agressiva. Aí, ela via as coisas “Ih, eles tão chegando! Agora eu quero ver se eles vão levar. Agora eles vão ter que ver comigo. Por que eu quero ver se eles vão levar seu pai, eu quero ver se eles vão levar vocês”. Aí, pegava pedaço de pau, ela pegava ferro, ela pegava as coisas. Ela foi ficando agressiva. A doença foi ficando pior, aí ficou no ponto de… Aí, eu vim internar minha mãe e a gente chorou todo mundo, porque ela ficou agressiva e naquele tempo usava chamar, era polícia que vinha. Ih, quando a polícia entrou então, aí que fechou o tempo lá em casa, porque ela tinha horror. Ela não podia ver polícia não. Ela falou assim “Eu não quero vocês aqui dentro da minha casa não. Que vocês querem mais? Quer me levar? Pode me levar, mas deixa os meus filhos”. Aí, eles vinham “Não, Dona Neucina, não”, porque era tudo conhecido da gente. Aí, tinha que dopar ela de injeção pra poder levar ela. E minha mãe era fortona, sabe? A mãe da minha mãe era italiana. Então minha mãe era fortona, sabe, era, assim, tinha corpo e tinha força. A gente não aguentava a minha mãe. Quando a minha mãe tava na fúria dela ninguém segurava ela não. Precisava de juntar uns três, quatro homens pra segurar a minha mãe na fúria dela. Aí, tinha hora que o meu irmão falava assim “Ela tinha que ter essa fúria no dia que eles levaram meu pai, que eu queria ver se eles levava. Eles ia matar ela, mas eles não ia levar ele”. Aí, ela defendia a gente naquela fúria, aí, depois ela começou a não reconhecer mais mesmo a gente. Aí começou a internar. Aí começou internar na Casa de Saúde Esperança aqui. Eu vinha aqui, sem conhecer Juiz de Fora, porque a gente não andava muito fora da cidade, né? Aí meu pai falava “Você tem que ver a sua mãe, você tem que levar roupa limpa pra ela, você tem que ver ela”. Aí, eu vinha todo final de semana, catando dinheiro aqui, ali e ali, de um. “Me dá um tanto, um tanto”, eu andava aqui sem dinheiro pra comprar uma água. Eu vinha da rodoviária lá em baixo até aqui no Alto dos Passos a pé pra chegar na hora da visita, pra poder trazer roupa limpa. E a gente não comia fruta pra poder trazer pra ela fruta. As coisas, assim, que ela gostava de comer, a gente trazia pra ela. Aí ela já tava mais calma. Mas teve um dia que eu vim, eu não pude ver ela. A enfermeira falou “Você não pode ver sua mãe, que ela está muito agressiva. Ela está num quarto fechado, ela já quebrou muita coisa aqui hoje. Então, você não vai ver ela”. Eu falei “Não posso ver minha mãe, por quê?”, eu falei “Eu vim de tão longe e não vou poder ver?”. “Não pode. Você não vai poder ver. Você deixa tudo aqui, que você trouxe pra ela, que ela não tem condição de te ver hoje não”. Eu falei “Não, mas se ela me ver ela vai acalmar…”. “Não, não vai não. Nós já dopamos ela, ela está dopada”. E ali mesmo onde eles dopavam ela, ali ela urinava, sabe? Ali ela fazia cocô, fazia xixi. Ficava tudo, sabe? Olha que degradação. Era uma mulher bonita, a minha mãe era uma mulher muito bonita, muito bem cuidada, porque minha mãe era muito caprichosa. Minha mãe era, assim, de forno e fogão. Ela trabalhava em casas quando ela era moça, ela trabalhava em casas de gente rica. Então, minha mãe sabia servir uma mesa como ninguém. Ela sabia o que era copo de vinho, o que que era talher disso, talher daquilo. Ela era da copa, porque tinha a cozinheira, da cozinha, e tinha a da copa, a que ia na sala. Inclusive, a minha mãe trabalhou na casa de uns políticos quando ela era moça, quando ela trabalhou, né? Ela trabalhou pra um político de renome que tinha e que ele morava… Ele tinha casa em Bicas, mas ele morava no Rio. Era um deputado. Minha mãe era companhia da esposa dele. Minha mãe conhecia muita coisa boa, sabe? Minha mãe frequentava as melhores coisas que tinha lá porque a dona levava ela como acompanhante dela, né? Levava ela pra tudo quanto era lugar, minha mãe conheceu muitos lugares. Apesar de não saber ler, minha mãe conversava com você, você não falava que ela era analfabeta. Que ela só assinava o nome, mas ela não aprendeu a ler, né? Então, a minha mãe era uma pessoa que sabia de muitas coisas, sem nunca ter frequentado escola, nem nada, né? Então, a minha mãe perdeu todo esse tino, perdeu também e nós também perdemos tudo, porque meu pai foi muito prejudicado mesmo. Ele sofreu muito, ele foi ficando doente, doente, doente… Minha mãe adoeceu, ficou louca e morreu louca, né? Porque ela morreu sem saber de nada. Ela morreu, não morreu… Ela morreu depois do meu pai! Porque meu pai morreu primeiro que ela…

Helena: Pois é, eu ia te perguntar isso. Depois que seu pai voltou de… Voltando um pouquinho, depois que ele voltou de Macaé, que ele aposentou, aí eles deixaram ele em paz ou ainda teve problemas, assim?

Maria Aparecida: Não, deixaram ele em paz…

Helena: Deixaram… Aí ele…

Maria Aparecida: Deixaram ele em paz, mas ele nunca esqueceu. Aí, o meu pai deu dois, três… Três infarto. Aí o último que ele deu foi fatal. Aí ele…

Helena: Morreu com quantos anos?

Maria Aparecida: Morreu com cinquenta e dois anos…

Helena: Cinquenta e dois?

Maria Aparecida: Cinquenta e dois anos. Ele aposentou com quarenta e sete anos e logo, nem aproveitou aquele pouco de dinheiro, todo mundo trabalhando dentro de casa, mas a vida não foi a mesma. Aí, os meus irmãos já tava trabalhando mesmo, anulou os estudos. Só o meu irmão caçula que ainda continuou porque ele não viu muita coisa que a gente viu, né? Aí a minha mãe…

Helena: Ele era pequenininho, não é?

Maria Aparecida: Ele era pequeno. Aí, a minha mãe ficou cega. A minha mãe morreu cega, sem enxergar, né? Aí eu comecei, depois comecei a namorar e tudo. Eu casei. Mudei pra Juiz de Fora. Foi aí a minha vinda pra Juiz de Fora, né?

Helena: Aparecida, me fala aqui uma coisa, é… Eu queria que você falasse um pouquinho.Você contou a história do seu pai e tal. Falasse um pouquinho o que você sabe do Manuel do Couto?

Maria Aparecida: Ah, tá…

Helena: Que era esse sindicalista que tava no sindicato que seu pai entrou pra substituir, porque a gente sabe que ele também foi uma pessoa…

Maria Aparecida: Ih, ele foi muito sofrido também…

Helena: É, pois é…

Maria Aparecida: A família…

Helena: Você sabe o que ele passou e tudo?

Maria Aparecida: A família toda passou muito aperto, a mulher passou muito aperto…

Helena: Ele foi preso também?

Maria Aparecida: Foi também. E ele…

Helena: Mas não junto com o seu pai?

Maria Aparecida: Mas ele foi cassado, não foi junto com meu pai não. Ele saiu mesmo. Foi banido do serviço. Eles tiraram ele do serviço. Ele era dado como morto. Aí o sindicato, pra ele não… Pra família não passar dificuldade, porque a sorte da Onir, eu conheci muito ela. A esposa dele chamava Onir. Ela, os irmãos dela era fazendeiros. Então, os irmãos dava suporte pra ela. Mas não dava todo suporte, dava algumas coisas que… Oito filhos, acho que eu me lembro que eles tinha na época, né? Então, ficava difícil, uma casa com oito crianças pra cuidar os irmão dar… Ela começou a vender roupas, vender coisas assim que os irmãos comprava pra ela vender. E ela sofreu muito mesmo. E ele tinha que ficar escondido. Ele não existia mais. Ele era, como é que fala… Ele era dado como morto, ela era dada como viúva pra ela poder receber uma pensão.

Helena: E ele foi preso, ele foi preso antes ou depois do seu pai?

Maria Aparecida: Depois do meu pai.

Helena: E aí você não sabe quanto tempo ele ficou preso?

Maria Aparecida: Não, aí eu não sei te informar não.

Helena: Mas aí depois ele ficou escondido?

Maria Aparecida: Ficou escondido.

Helena: Nesse período que ele era dado como morto…

Maria Aparecida: Não, ele ficava dentro de casa, ele saía só de noite. Ele ficava o tempo inteiro, assim, escondido mesmo. Vivendo, assim escondido, sem ninguém. Aí o pessoal, não falava nada, não comentava, pra eles poder conseguir que a família conseguisse alguma coisa. Porque o homem que tinha dado a vida dele inteirinha naquele serviço ali. Que sempre trabalhou ali e de repente ser banido de tudo, sem direito a nada e com a casa com oito crianças…

Helena: Quer dizer que ele ficou sem receber nada?

Maria Aparecida: Sem receber nada.

Helena: Por isso que eles fizeram isso: ele ficava escondido pra família… Pra viúva receber?

Maria Aparecida: Aí, ele era morto vivo, né? Morto vivo. Até isso a ditadura conseguiu fazer acontecer. As pessoas viver na clandestinidade, né? Que deve ter muitos que a gente não teve acesso na época, de saber. Eu sei de algumas pessoas, eu sei. Teve gente de São Geraldo, teve gente da redondeza… Que eles pegaram aqueles sindicato forte que era. O sindicato dos ferroviários era um sindicato forte, muito forte. Muitos do Rio eu conheci, do Rio, desapareceram, foi dado como morto também. Foi dado como desaparecido esse…

Helena: Que frequentavam sua casa?

Maria Aparecida: Que frequentava lá em casa. Um deles foi dado como desaparecido… Temístocles. A família não sabia dele…

Helena: Nunca mais apareceu?

Maria Aparecida: Até onde eu acompanhei, a família não sabia dele.

Helena: Aparecida, outra coisa: na verdade você suspeita, você acha que seu pai, pelo jeito que ele voltava…

Maria Aparecida: Ele sofria tortura…

Helena: Foi maltratado…

Maria Aparecida: Foi maltratado…

Helena: Agora, ele nunca contou pra vocês?

Maria Aparecida: Nunca contou, nunca relatou…

Helena: Vocês é que concluíam pelo jeito que ele chegava…

Maria Aparecida: Pelo jeito dele…

Helena: Que ele voltava…

Maria Aparecida: É, voltava cambaleando…

Helena: Voltava diferente?

Maria Aparecida: Diferente. Pálido, né? E tossindo, tossindo! Eu falei “Ai, o meu pai não tosse assim”.

Helena: E cuspindo sangue…

Maria Aparecida: Aí, cuspia assim… Escondia da gente. Aí, eu falava pra esse meu irmão “Eles bateram no papai”.

Helena: Ele nunca contou, nunca quis te contar…

Maria Aparecida: Aí eu perguntava “Pai, eles bateram em você?”, ele olhava assim pra mim “Não fala nada não, não pergunta nada, eu não posso te responder nada”.

Helena: E o Manuel do Couto, você sabe se ele foi torturado?

Maria Aparecida: Ele, eu também não sei. Porque a gente não podia nem comunicar. As famílias que tinha sofrido aquele atentado todo, a gente não podia comunicar uma família com a outra. Mal uma vez ou outra a gente sabia uma da outra assim, mas muito superficialmente, assim. Não podia, assim, ter aquele diálogo franco “Que foi que aconteceu com você? Que que eles fizeram”. Não, isso era um tabu mesmo. Ninguém podia falar nada, ninguém… Então, os meninos no colégio, eu lembro, que no colégio os menino ficava… As pessoas do colégio ficava olhando assim, aí cochichava um com outro, né? A gente sabia que tava falando do ocorrido da gente, né? Aí o meu irmão falava assim “Eles falaram do meu pai”, o menor. E chorava. “Eles falaram que meu pai é subversivo, que meu pai é bagunceiro e que meu pai é comunista. É, Aparecida?”, eu falava “Não, você não tem que ouvir”. Isso é bullying hoje, né? Hoje é bullying, né? “Eles fala isso, eles falou que não vão brincar comigo mais não”.

Helena: Discriminação, né?

Maria Aparecida: É, tinha discriminação. A gente era discriminado mesmo. Mas eu que sempre tive a minha cabeça erguida, eu não ligava. Eu falei “Eu sei o que eu sou, a minha consciência é o que me rege o meu corpo”. Então, eu sei o que eu sou e a minha consciência não me pesa em nada e eu vou andar de cabeça erguida, que eu não devo nada, eu não devo nada. Eu sou uma pessoa íntegra e eu não devo nada. Então, eu sei o que eu sou, isso me basta. Isso me basta. E o meu pai sempre falava “O que você vale pelo que você é” e eu sempre tinha isso assim, que ele sempre fala “Você vale pelo que você é, não pelo que os outros pensam que você é. Você tem que estar em paz com você mesma”. E ele só falava isso com a gente “Eu estou em paz comigo, eu sei que eu não sou nada disso que eles me acusam. Eu sei que eu não sou nada disso”. Então, ele sofreu muito, coitado, muito. Ele chorava escondido, ele chorava sozinho. Aí, quando ele deu uma trombose, também, que eu esqueci até de relatar, ele ficou sem movimento de perna e de braço. Aí, esse meu irmão levava ele no colo pra tomar banho, eu dava comida a ele na boca, que ele não pegava, né? E aí a gente só via as lágrima dele descer. Isso tudo foi originado por isso, pelo que ele sofreu, né? Aí ele teve internado aqui em Juiz de Fora, tinha a CentroCor, que era por aqui, pela praça Riachuelo ali. Eu sei que eu vinha visitar, era ali pela Praça Riachuelo. Tinha um hospital ali. Aí, o médico que cuidava “Nossa, mas seu pai é um homem… É muito sofrido, muito mesmo. Seu pai não vai aguentar mais baque nenhum não. Não comenta nada com ele não. Se vocês tiver alguma coisa que vocês sabe que ele vai ficar triste, não fala não. Procura resolver vocês mesmo sem levar nada pra ele, porque ele não tem estrutura mais pra saber de nada, nem pra agüentar”. Então, a gente resolvia tudo sozinho, tudo. E eu a cabeça da casa, né? Eu que articulava, nós vamos fazer isso, nós vamos fazer aquilo, a gente não pode, às vezes um queria fazer alguma coisa que não era do agrado, eu falava “Hoje tem mesa redonda”, eles falavam assim “De quê? Já sei, ninguém sai hoje”. Aí, a gente ia lá pra uma varanda que tinha nos fundo da casa, a gente fechava a porta da cozinha e aí eu falava “Oh, eu estou sabendo que você fez isso e isso, isso e assim, assim. Você sabe que isso não está certo, né? E o você sabe que eu estou tomando conta de vocês. E vocês sabe que isso se… Isso não pode chegar no ouvido do papai”.

Helena: Virou a chefe da família, né?

Maria Aparecida: É. “Papai não pode saber disso, então você procura não fazer mais. Você não está indo na aula, porque veio aqui que você não tá indo na aula. Por quê?”. Aí, que falava “Não, porque eles fica falando e cochichando e fica falando”. Aí, eu cheguei a conversar com a diretora do colégio, e falar o que eles tava fazendo com meu irmão, que o meu irmão não queria ir na aula mais, né? Aí, deu suspensão, aí eu que ia na suspensão… Eu que ia lá pra conversar, né? Muitas vezes eu ficava nervosa e eu brigava mesmo, porque eu ficava nervosa de ver a injustiça, aí eu brigava. Aí, eu sei que deu isso tudo, aí quando foi… Aí eu casei, meu pai ainda viu…

Helena: Ele foi ao seu casamento?

Maria Aparecida: Foi. Ele falou assim “Meu dever está cumprido”, eu falei “Por que, pai?”, ele falou “A única pessoa que eu tinha que casar era você, porque os meninos são homens. Agora, o meu dever está cumprido. Agora eu posso morrer”. Aí, eu vim pra Juiz de Fora e tudo, mas sempre indo lá. Todo final de semana eu ia lá, todo final de semana eu tava lá revendo e, aí, ele muito debilitado, muito doente… Meu irmão morre de desastre. Meu irmão falou assim “Aparecida, eu não aguento mais ver o que a gente era e o que que a gente ficou reduzido, a que nós ficamos. Eu não aguento mais, eu hoje vou sair. Eu vou ver…”. Não esqueço disso até hoje. Meu irmão tava trabalhando numa padaria, ele já era gerente da padaria. Ele falou assim “Amanhã eu vou pegar mais cedo na padaria amanhã”, e eu tava lá, né? Ele falava assim “Amanhã”, ele me chamava de Nega, “Oh, Nega, amanhã você me manda onde eu tiver, você me manda essa calça branca e essa camisa preta que eu não vou vir em casa amanhã não. Eu vou sair do serviço e vou pra Juiz de Fora, que eu vou ver o filme ‘O Exorcista’. Tá passando em Juiz de Fora e eu quero ver”. Então, eu falei assim “Uai, mas você vai daí mesmo”. Aí ele falou “Ah, mas eu estou esquecendo, eu vou num aniversário lá em São João Nepomuceno, de quinze anos. A menina é minha amiga e eu vou lá no aniversário dela. Ela me deu convite, eu vou. Eu vou de carro, a gente vai de carro”. Aí, eu peguei e falei assim “Mas eu acho que você não devia de ir, porque tá armando chuva e vai chover muito, aquela estrada é muito perigosa”. Aí ele falou assim “Não, eu vou. Ah, eu estou tão chateado da minha vida que pra mim tanto faz”. Ele falou assim comigo “Pra mim tanto faz. Eu vejo tantas coisas, a minha mãe, você… Agora até que você melhorou, né? Mas o meu pai, eu vejo meu pai desse jeito. Eu não quero ver mais isso não”. Aí, acabou que ele morreu de desastre. O carro capotou na estrada na hora que eles vieram embora. Ele morreu. Dois, ele e um outro amigo dele. Aí, aquilo foi a base pra acabar com meu pai. Aí, meu pai falou assim “Eu não aguento mais! A ordem natural das coisas é um filho enterrar o pai. Nunca um pai enterrar um filho”. E o pai chorou “Essa parte de mim vai com você”. Não deu um ano, meu pai morreu. Aí a nossa vida foi indo, foi indo e foi indo. Depois a minha mãe morreu também, né? E ficamos nós, o que restou de nós, né? Que agora nós somos só três, eu, o meu irmão, que mora em Rio Grande do Sul, e meu irmão que mora em Bicas. Só restou nós.

Helena: Oh, Aparecida, a gente agradece muito o fato de você ter vindo aqui fazer seu depoimento. Dessa forma, você está contribuindo muito mesmo pra Comissão Municipal da Verdade, tá bom?

Rosali: Muito obrigada!

Maria Aparecida: E eu queria que fizesse justiça, né? Pelo que a gente sofreu e pelo que a minha mãe, a família toda sofreu, né? Eu queria que fosse feito uma justiça, né? Pelo menos pela memória do meu pai, né? E pelo que nós sofremos, né?