Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora
Depoimento de Marilda Villela Iamamoto
Entrevistada por Antonio Henrique Duarte Lacerda e Helena da Motta Salles
Juiz de Fora, 01 de agosto de 2014
Entrevista 007
Transcrito por: Rute Dalloz Fernandes Elmor
Revisão Final: Ramsés Albertoni
Helena: Marilda você poderia começar falando um pouquinho sobre seus dados pessoais e também, depois, sobre a sua história, o que levou à sua prisão e os fatos pelos quais você passou que justificam você ter sido convidada para dar esse depoimento.
Marilda: Bom, eu sou hoje Marilda Villela Iamamoto, meu nome de solteira é Marilda Soares Villela. Nasci em Juiz de Fora. Eu sou assistente social, formada na Universidade Federal de Juiz de Fora, pela Faculdade de Serviço Social. Atualmente sou professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da UERJ, também sou aposentada, professora titular aposentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Moro no Rio de Janeiro. Atualmente, eu tenho duas inserções que eu queria registrar. Eu colaboro com a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, numa pesquisa financiada pela FAPERJ, sobre a repressão no campo no Estado do Rio de Janeiro. É uma articulação da UFRJ, da UERJ e da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. A segunda inserção minha que eu queria registrar é o Projeto Memórias Reveladas, né? Eu estou no projeto desde a sua criação, na Comissão de Altos Estudos e também no concurso de teses e monografias, sobre o período da Ditadura Militar. Então é isso que eu queria registrar.
Helena: Agora, você poderia nos contar a história de sua militância, da sua atuação política, o que levou a que você fosse presa no período militar.
Marilda: Bom, essa história começa certamente em Juiz de Fora, né? Eu participei da igreja católica, da esquerda católica, através da Ação Católica, Juventude Estudantil Católica, Juventude Universitária Católica e participei ativamente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Serviço Social no período dos quatro anos que eu estive estudando, 67 a 71, né? E aí participei do diretório das atividades do DCE, me recordo da invasão da Reitoria, pela Polícia Militar, na época da gestão, que tava na direção do DCE o Paulo Villela Nomar, e depois a gestão do Renê Matos. Então, a nossa atividade era atividade voltada contra a reforma MEC-USAID, por mais verba na educação. Ah, eu lembro claramente da luta pelo ingresso dos estudantes excedentes, que passavam no vestibular, mas não tinham oportunidade de ingressar porque não havia vagas, então, a luta por mais vagas. Nesse tempo também eu tive uma inserção… Nessa época a UNE tinha as executivas estudantis, era por áreas de formação profissional, né? Então, tinha a Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social que eram executivas vinculadas à UNE que, por sua vez, já estava na ilegalidade nesse período, e eu representei a faculdade de Serviço Social por um bom tempo, como representante do Serviço Social na executiva que articulava a formação acadêmica e o movimento estudantil.
Helena: Foi na gestão do José Luís Guedes?
Marilda: Não. Eu entrei em 1967, foi depois do Guedes, eu acho que foi ainda na… Ah, você está dizendo na gestão da UNE? Ah, não! Já era o grupo… Quer dizer, a Ação Popular, ela teve uma inserção privilegiada no movimento estudantil nesse período, após 64, e aí eu não… Honestino Guimarães, Jean Marc, eu não lembro assim totalmente os nomes não. Tivemos também uma participação na UEE, na União Estadual dos Estudantes. Enfim, tivemos a presença dos estudantes de Juiz de Fora no Congresso da UNE, acho que 1968.
Helena: Em Ibiúna.
Marilda: Ibiúna.
Helena: Você esteve em Ibiúna?
Marilda: Não, eu não estive em Ibiúna. Quem esteve representando a faculdade foi a Elizabeth Andrade Romero, mas eu lembro que a gente fez uma ampla mobilização na cidade, entramos nos ônibus, denunciamos as prisões, fizemos pequenos comícios, né? Então, a luta política estudantil era uma luta política na universidade, extrapolava pra sociedade a denúncia da ditadura, algumas denúncias públicas e uma aproximação à Ação Popular, posteriormente Ação Popular Marxista Leninista que vem também da esquerda católica, então, nesse campo aí que eu me situei. A nossa geração foi uma geração que se beneficiou amplamente da emergência da cultura dos anos 1960, a ditadura foi incapaz de abafar a cultura, então, eu me lembro da gente acompanhar o teatro, o “Liberdade, liberdade”, “Morte e vida Severina”, os concursos da música popular brasileira, “Emergência” do Chico Buarque, do Caetano, do Tropicalismo. Então, eu acho que foi uma geração muito privilegiada, porque viveu a política. Uma presença muito forte em pensar a sociedade brasileira, em decifrar essa sociedade. Eu me lembro que no curso de Serviço Social nós fazíamos o grande debate da esquerda daquele momento, que era rever os clássicos da revolução brasileira, que é o Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré, Moisés Vinhas e outros, naquela grande polêmica: como explicar a revolução brasileira. O país é um país feudal? Um país capitalista? Isso era a base que sustentava a luta entre as estratégias políticas, dentro das organizações de esquerda, com propostas possíveis de encaminhamento pra luta política. Eu acho que o Serviço social teve essa presença, assim importante, né? No movimento estudantil local, a gente participou um pouco de UEE, eu tive no congresso da UEE, que a polícia cercou em Belo Horizonte, foi fechado pela polícia, a gente teve um apoio importante dos padres dominicanos. Enfim, foram essas as atividades. Eu nunca participei da luta armada, não tive nenhum vínculo com a luta armada, eram as atividades que hoje o movimento estudantil faz numa instância democrática, do regime democrático, pelo menos nos estados de direito, com toda tranqüilidade, que naquele momento a gente vivia essas restrições.
Helena: Você se lembra do ano que você entrou na AP?
Marilda: A minha presença na AP foi muito diluída, deve ter sido lá pelos anos 1969, 1970, eu não tenho assim uma lembrança forte, porque a minha militância, ainda que tivesse vínculo com a AP, era muito do movimento estudantil, entendeu? Então, eu acho que é por aí 1968, 1969. Porque era uma coisa muito interessante na época, esse ingresso na AP é interessante. Porque pra ingressar na AP você tinha que aceitar, mas pra aceitar você tinha que conhecer, mas não podia conhecer antes de você entrar, entendeu? Então, tinha um tal de um documento base, feito pelo Padre Vaz, que a gente precisava conhecer, mas só podia conhecer depois que tivesse dentro. Então, eram coisas assim bastantes curiosas nesse processo. Então, assim, eu acho que foi esse movimento, é o movimento que a Mariléa fez um depoimento aqui, né? Eu tive uma forte interação com a Mariléa na faculdade, com Maria Emília Lisboa Pacheco no DCE, com Luiz Antônio Sansão, com Renê Mattos, com o Paulo, o Paulinho, num lembro o sobrenome, é Paulinho Parceiro. Enfim, eu acho que foi essa a história de maior força política naquele momento, em que certamente a reação da repressão foi muito desproporcional às atividades que de fato nós realizávamos que eram essas atividades próprias do movimento estudantil. Bom, quando eu me formei, em 1971, eu tinha 21 anos de idade, e eu me formei e fui imediatamente pra Belo Horizonte, fui convidada para dar aula na Universidade Católica, então Universidade Católica de Minas Gerais que era UCMG, hoje PUC-Minas. Comecei a trabalhar e fiz um concurso para o, então, Instituto Nacional da Previdência Social, hoje o INSS, um concurso público como assistente social, passei a ser lotada na Coordenação de Bem Estar, no serviço de assistência ao menor excepcional. Comecei a trabalhar como assistente social. Importante eu registrar isso, porque isso tem desdobramentos na minha história política daí derivada. Então, eu tinha esses dois vínculos de trabalho em Belo Horizonte e fui presa, fui sequestrada na porta da minha casa, eu dividia apartamento com a Mariléa Venâncio Porfírio, nós morávamos no bairro da Floresta, na Rua Mármore, e um dia, pela manhã, eu sabia que eles estavam me seguindo, estavam me seguindo, eu cheguei a avisar a direção da faculdade. E aí eu fui sequestrada, encapuzada, colocada num fusca no banco de trás, e deram várias voltas na cidade comigo, até que eu subi umas escadas e por acaso eu reconheci onde estava, porque eu entrei no DOPS, porque quando eu mudei para Belo Horizonte eu morei numa pensão exatamente em frente ao DOPS, então, na hora que eu vi as escadas e tal eu imaginei que podia estar ali. Bom, isso foi no dia… Eu fui presa no dia 02 de dezembro de 1971 e fiquei presa no DOI-CODI, DOPS DOI-CODI, até 04 de fevereiro de 1972, ou seja, dois meses e dois dias. Eu fiquei por conta do DOI-CODI. Quando eu cheguei, eles não tinham imediatamente nada contra mim, eles perguntaram se eu era a Mariléa, porque eu acho que eles estavam procurando a Mariléa, e nos dois primeiros dias tive, sim, interrogatórios subsequentes, o dia inteiro, 24 horas sem comer, com dificuldade, sem água, enfim, esse tipo de pressão nos dois primeiros dias, sem dormir, mas no terceiro dia começaram as torturas. Eu vou falar um pouco disso, eu tenho um documento que eu fiz que eu registro, isso eu acho que não é fácil de dizer e eu queria dizer o seguinte, antes de continuar o relato do processo. Eu fiquei até esse ano sem falar, na tortura, tinha muita dificuldade de encarar o tema, até que eu andei conversando com algumas pessoas, um psicanalista que fez uma tese afirmando a seguinte tese: “A tortura não é pra falar, a tortura é pra calar, pra calar pro resto da vida”. A hora que eu tomei consciência disso, eu falei assim “Então, eu vou falar”. Então, o primeiro depoimento público que eu fiz, sobre a tortura, público que eu digo, assim, em auditório público, foi esse ano, março desse ano, na aula inaugural da pós-graduação da PUC-Rio, em que o Conselho Federal de Serviço Social também está estimulando resgatar um pouco a história dos assistentes sociais que tiveram, num período, envolvimento na repressão, então eu resolvi falar. Então, foi o seguinte, nesse período, no terceiro, quarto dia começaram as torturas físicas e começaram com muita pressão, me tiraram dum quarto mediante agressões físicas, tapas no rosto, telefone, me jogaram numa sala com a máquina de choque, aplicaram choque nos dois dedos, simultaneamente, tinha um médico do lado pra ver até onde a gente aguentava, né? E rodava a máquina de choque, eu sei que eu pulava que nem uma bola, assim, literalmente. E fui interrogada privilegiadamente pelo capitão Portela, que tinha o codinome de José Joaquim da Silva Xavier. Então, a partir desse momento foi um período de, não sei, uns 15, 20 dias subsequentes de todo tipo de agressão. Foi choque nos dedos, nas mãos, acareações e a questão apertou, assim, do ponto de vista da agressão, com o vínculo com movimento estudantil de Juiz de Fora. Nesse período, o que eu passei? Eu passei uma noite, por exemplo, com o pau-de-arara armado pra escolher, o que eu preferia, choque ou pau-de-arara? Eu sofri muitas agressões, assim, eu fui inquirida, tiraram roupa, ameaçaram choque no seio, choque na vagina… Agressões, agressões do ponto de vista da minha pessoa enquanto mulher. Então, a ideia de ser dependurada… E as pessoas ameaçavam, por exemplo, se você não quisesse ser dependurada, a gente pode te dar um remedinho, você desaparece, a gente desaparece com você. Então, ameaças, assim, violentas de morte, tipo assim, me deram um cálice uma noite pra tomar um remédio, passei uma noite acordada com sete homens num quarto. Eles disseram que eu tinha que tomar e trouxeram um líquido num cálice que eu tinha que tomar. Se eu não tomasse, embaixo tinha os cães do DOI-CODI, ameaçavam de te jogar junto aos cães. Eu sei que eu consegui sair do quarto que tinha sete homens e entrei no corredor, aí, foi uma visão de cena de horror, muita gente deformada, as pessoas com muito hematoma, assim a pessoa sendo… com uma mangueira, né? Que colocavam na boca pra as pessoas terem que aguentar aquela, enfim, a água, aquela coisa. Música muito alta pra abafar os gritos. Então, foi realmente uma noite de horror, essa noite no DOI-CODI. Fora isso…
Antônio Henrique: Marilda, eu posso perguntar qualquer coisa?
Marilda: Pode, o que você quiser.
Antônio Henrique: E ameaças de estupro?
Marilda: Não, ameaça de estupro não. O que eles fizeram foi o seguinte, tiraram minha roupa, me interrogaram, rasgaram minha blusa, me interrogaram seminua, essa coisa de ameaçar o choque no seio, na vagina, de escolher, aí nesse momento eu tive uma crise emocional muito forte. É um tratamento muito desrespeitoso da minha condição de mulher, mas ameaça de estupro não. Depois desse processo, assim de muita tensão, vinham a técnica da psicologia, adequada à tortura, não só o médico apoiando a tortura, mas o psicólogo, depois que você levava uma pauleira de agressão física, psicológica, emocional e tal, aí vinha um bonzinho, uma pessoa que se dizia um psicólogo, que não apoiava aquele tipo de método, mas sempre insistindo nas mesmas questões, de que a gente poderia falar com tranquilidade, sempre inquirindo as mesmas questões e muitas questões que a gente não tinha informações. Esse era o dilema, porque a minha militância em Belo Horizonte foi praticamente inexistente, porque eu fui pra lá em fevereiro, fui presa em dezembro, eu nem conhecia as pessoas que foram envolvidas no meu processo, eu conhecia os colegas que eram da minha profissão. Então, eram pedidos de informações que eu não tinha como fornecer. Então, eu queria salientar isso, como não só a medicina, mas também a psicologia estiveram à serviço da tortura. À época, o Cenimar, uma pessoa do Cenimar era especialista em Ação Popular, então, naquela época eram álbuns com fotos de pessoas, pedindo que a gente as identificasse. Não era um policial, era um militar, da marinha, que era um especialista em Ação Popular. Então, isso era outra questão. Ah, uma outra coisa importante também, eram todos os mecanismos utilizados pra você não saber o que era verdade, o que era ameaça, ou seja, eles diziam “Você está conosco, aqui ninguém ouve nada, você não tem nenhum contato externo, nós fazemos guerra é guerra”. É a ideia da ideologia da segurança nacional, né? A segurança e o desenvolvimento, a metamorfose da ordem e do progresso e a segurança aparecia internamente como guerra, interna, e portanto, você está numa guerra, tudo é permitido. Então, uma noite saíram, por exemplo, comigo, num DC-14, que era aquela caminhonetona, né, com uma máquina de choque, cheia de homens, e me puseram numa estrada à noite, achei que eles iam me matar, que iam me estuprar, sei lá. Aí, eles estavam me usando como isca pra procurar outras pessoas, pra me apresentar, pra me por na porta da casa da pessoa que eles estavam buscando. Então, isso foi uma coisa muito forte, eu nunca entrei mais numa DC-14 (riso). Isso aí foi muito forte. Então, são esses mecanismos, por exemplo. Algo assim que eu acho que é muito importante e que permanece hoje, né? É a invasão de domicílio, quando eu cheguei no DOI-CODI eles imediatamente descreveram nosso apartamento, que eu dividia com a Mariléa, como estavam as disposições dos móveis, a lista de compras, era um apartamento antigo. E tinham documentos, assim, livros, né? Eu não tinha nada que me comprometesse no apartamento, porque eu sabia inclusive que estavam seguindo, estavam de olho, mas tinha um livro, eu lembro até hoje, “A Sociologia de Marx”, de Henri Lefebvre, da Forense, e que era a grande subversão daquele momento, a prova. E ao lado desses livros, tipo esse, anexaram uma série de outra documentação e atribuíram a mim, como se fosse tirado da nossa casa. Então, ou seja, você teve a invasão de domicílio muito clara e comprovada. Nesse tempo eu fiquei, eu não sei quantos dias, no DOI-CODI, depois eles me levaram, eu e a Mariléa, pra uma noite, que eu acho que tinha muita gente, pra uma cela de delegacia de bairro, no Horto, que tinha bicho, que tinha barata. Passamos a noite com frio. Enfim, jogaram a gente lá e abriram no dia seguinte. Depois disso eu fui para o 12º Regimento de Infantaria, em Belo Horizonte, a Mariléa também foi, mas cada uma ficava num quarto separado, fechado e com uns soldados com metralhadora na porta. Então, pra você ir ao banheiro você tinha que bater e o cara te levava com a metralhadora junto. Eu sei que eu fiquei muito tempo com problema intestinal, enfim, constipação. Era muito difícil você saber que você estava ali com uma pessoa com metralhadora o tempo inteiro. Então, nós ficamos nesse lugar bastante tempo, e sempre assim, todos os dias chegavam os agentes do DOI-CODI, pra fazer uma visita, pra dizer que a gente podia voltar para lá a qualquer momento, que a qualquer momento eles podiam buscar a gente, seja para esclarecimento, para acareação pra começar tudo de novo. Então, isso aí esse processo aí foi de 2 de dezembro até 4 de fevereiro, 2 de dezembro de 1971 a 4 de fevereiro de 1972, foram 2 meses e dois dias. No período do ano novo eles deixaram a família entrar, não, a família foi, mas não deixaram entrar. Depois deixaram uma vez ter contato com a família, ou seja, estive incomunicável esses dois meses, né?
Helena: Mas sua família sabia onde você estava?
Marilda: Sabia. Ah, eles usaram isso também, a minha mãe estava na minha casa quando eu fui presa. A minha mãe tinha 64 anos e tinha problema cardíaco, eles usaram muito isso também, né? Inclusive ela teve um infarto no dia que eu fui julgada aqui, na 4ª Circunscrição da Justiça Militar. Então, eles jogaram muito com isso. Logo que eu fui presa, como não tinha ainda nada contra mim, eles deixaram rapidamente eu encontrar minha mãe e meu pai por interferência de um professor da PUC-Minas, que dava Estudos dos Problemas Brasileiros, lembra? EPB, que era um militar que foi lá e me disse que provavelmente eu seria liberada, mas aí quando deu a conexão com o movimento estudantil de Juiz de Fora, eles resolveram me guardar. Então, nesse dia eu falei pro meu pai assim, silenciosamente, que ali tinha tortura. Bom, uma coisa interessante dessa coisa de tortura em Juiz de Fora é que tinha um francês, que eu não me lembro, tinha um nome francês, um capitão na época, que depois veio pra Juiz de Fora, e eu o encontrava frequentemente na rua.
Helena: Aqui em Juiz de Fora?
Marilda: É, frequentemente na rua. Assim, esses encontros com torturadores, eu tive 3 que me marcaram muito. Assim, esse francês que eu sempre cruzava com ele aqui na Avenida Rio Branco, não sei o nome, era um nome francês. Ele veio servir em Juiz de Fora e até eu cheguei um dia, estava com a minha mãe e meu pai e falei “Olha, esse é um torturador”. Depois, uma vez eu estava em São Paulo, imediatamente após esse período de Belo Horizonte, eu estava na rodoviária, uns torturadores, mas mais qualificados, capitão, coronel, não sei, me abordou na rodoviária, perguntando para onde eu ia, o que eu estava fazendo, isso realmente foi a terceira coincidência, foi atroz. Eu fui pra Belo Horizonte, primeira vez que eu fui a Belo Horizonte…
Antônio Henrique: Mas você não lembra o nome desse de São Paulo?
Marilda: Não, mas se eu fizer um esforço eu chego lá. Eu tomei um táxi quando eu cheguei na rodoviária, pediu, dei o caminho, a hora que eu olho no espelho era um agente do DOI-CODI, que não era desses qualificados, era… não sei, menos qualificado, que tomava conta dos presos políticos. Eu fiquei com muito medo, sabe? Muito medo, porque eu o reconheci, não sei se ele me reconheceu. E pra onde que ele ia me levar, né? Isso em plena ditadura militar. Bom, então esses foram os 3 encontros com ex-torturadores. Bom, não acabou não.
Helena: Esse do táxi você desceu quando você reconheceu, aí você pediu para parar e desceu?
Marilda: Desci.
Helena: Pediu para parar, desceu?
Marilda: Pedi para parar e desci.
Helena: Aparentemente, ele não te reconheceu?
Marilda: É, pelo menos ele não…
Helena: Não demonstrou…
Marilda: Diferente do da rodoviária, que me identificou, e desse aqui que, certamente, me olhou me reconhecendo, porque foram vários encontros casuais, né?
Helena: Esse da rodoviária, e aí, ele te perguntou onde você ia?
Marilda: Não, era um motorista de táxi.
Helena: Não, o da rodoviária.
Marilda: Era um motorista de táxi que eu perguntei, eu não vi a fisionomia e no meio do caminho que eu olhei no espelho… E aí eu identifiquei e vi que ele era um agente.
Helena: Não, não. Sim, mas o que te abordou.
Antônio Henrique: O capitão.
Marilda: Ah… o da rodoviária de São Paulo?
Antônio Henrique: É.
Marilda: O que tem?
Helena: Perguntou, e aí?
Marilda: Ele perguntou pra onde eu ia, da onde eu estava vindo, eu falei que eu tava viajando e tal, que eu tava aguardando alguém, e saí, mas com muito medo, com muito medo, porque, bom, então, assim, São Paulo, Belo Horizonte, Juiz de Fora, essas coincidências. Quando a gente estava no regimento de infantaria tinha um amigo, não vou contar essa história (riso), que estava servindo, um amigo daqui de Juiz de Fora que estava servindo lá e era oficial do dia, mas que não chegou a nos visitar não.
Helena: Mas era ligado lá ao esquema de repressão?
Marilda: Não, ele era…
Helena: Estava só servindo ao exército.
Marilda: Estava servindo e era oficial do dia, não tava ligado à repressão não. Mas foi uma coincidência assim muito assustadora, porque tinha a coisa do silêncio, né? Do despertar, a corneta tocava o despertar, todos os oficiais faziam formação no pátio e do quarto que a gente estava, a gente via, né? Ah, uma coisa interessante…
Helena: Mas você identificou ou alguém daqui de Juiz de Fora.
Marilda: Sim. Uma coisa interessante também que é uma coisa da solidariedade dentro do Exército, bonita, foi um dos oficiais do dia que estava responsável, ele falou assim “Olha, eu tenho um amigo, Matta Machado – que posteriormente foi morto -, então você não preocupa não, esse depoimento que você faz nessa fase de tortura e de coisas falsas. Esse registro e tal que você tem que assinar, depois você vai ter a possibilidade de rever isso na Justiça”, enfim. Sabe, então foi uma coisa assim muito bonita da parte desse colega. Mas, dos nossos amigos aqui de Minas que assessoravam o movimento estudantil, um deles foi assassinado e ficou desaparecido, que é o Gildo. O Gildo era um dos vínculos da União Estadual dos Estudantes, com estudantes de Juiz de Fora, o nome dele agora me foge, o sobrenome. Mas ele foi morto. Ele desapareceu, né? Outra pessoa que tinha contato conosco…
Helena: Você tinha muito contato com o Gildo?
Marilda: Sim, o Gildo era pessoa muito próxima nossa, vinha pra cá, ia pra casa da gente, enfim.
Helena: Mas aí ele tinha a ver com a UEE, não com a AP?
Marilda: É, mas as duas coisas eram a mesma.
Helena: Ele era da AP também?
Marilda: Era. Tinha uma outra pessoa que realmente foi uma mulher admirável, que não abriu a boca, só que só disse o nome assim, não deu informação, nada além do nome dela. A Jussara, quando um dia que a gente tava no 12° Regimento, eles mandaram arrumar as coisas porque nós íamos pro DOI-CODI. Nós não sabíamos pra onde. Aí chegaram lá, nos colocaram num camburão de polícia, naquele carro que tem aquela parte atrás, eu, Jussara, que era uma das pessoas da UEE que dava assessoria aqui em Juiz de Fora, e a Mariléa. Aí, foi já no final, uma viagem para Juiz de Fora, mas a gente só descobriu no meio do caminho para onde a gente ia e levou 8 horas, furou pneu, entendeu? Ou seja, um clima de terror, né? Um clima de terror. E a gente lá atrás naquele…
Helena: Espaço atrás.
Marilda: Naquele espaço que é de…
Helena: Carroceria.
Marilda: Carroceria. Aí, a gente veio, nos levaram pra 4ª Região Militar, ali no Mariano Procópio, nos colocaram na cela coletiva e foi quando fomos chamados pelo general que afirmava “Não existe tortura, não sabia de tortura, que aqui não tinha tortura”.
Helena: Você lembra o nome do general dessa época? O nome dele?
Marilda: Eu acho que é aquele…
Helena: Ariel?
Marilda: Não, não era Ariel não, eu não sei, eu não lembro, o de 1964 era o Mourão, né? Mourão Filho. Eu sei que esse General sustentava que não… porque todos eram de Juiz de Fora.
Helena: Itiberê.
Marilda: Itiberê… que não tinha tortura, que ele não tinha conhecimento, que a gente podia ficar sossegada que não teria tortura em Juiz de Fora, e realmente não teve tortura física não, teve aqueles fatos degradantes que você conhece, muita acareação muita… muita tristeza.
Helena: Muito interrogatório?
Marilda: Muito interrogatório e tal. Aí, nós ficamos aqui um período, acho que uma semana, não sei quantos dias, não me lembro mais, e depois liberaram a gente, isso aí foi dia 4 de fevereiro de 1972. Me liberaram, nos liberaram, né? Nesse período eu perdi o emprego. Eu era assistente social do INSS e eles me demitiram.
Helena: Por abandono.
Marilda: Por abandono de serviço porque eu faltei mais de 15 dias e estava nas mãos do Estado brasileiro. Isso foi promulgado, a minha demissão por abandono de serviço por ter faltado mais de 15 dias, né? Aí, o que acontece, nesse período fizeram a 4ª Circunscrição Judicial Militar de Juiz de Fora, né? Assim, o juiz auditor, Mauro de Silva Telles1, acho que é isso… aceitou.
Helena: Seixas, né?
Marilda: Seixas.
Helena: Mauro Seixas, me parece.
Marilda: É, Mauro Seixas.
Helena: Depois tem as anotações ali.
Marilda: Tem as anotações. Acatou a denúncia contra e aí implicou no julgamento, isso foi um ano depois, mas nesse ínterim, entre o período do inquérito policial, que foi até esse período, e o julgamento em que eu fui condenada a 6 meses de prisão, eu voltei a dar aula. Eu voltei para a Universidade Católica de Belo Horizonte. Esse juiz me autorizou o retorno à Universidade.
Helena: E a universidade, não colocou problema?
Marilda: Não, não colocou problema, e nesse meio tempo a polícia, quer dizer, o exército, exigiu a aplicação, que o reitor Dom Serafim Fernandes aplicasse o decreto 477. Vocês lembram que o decreto 477 era contra pessoas que tivessem atos subversivos, alunos, professores, e implicava a expulsão da universidade pelo período de 5 anos, de qualquer universidade brasileira. De professor, eu era professora, e também de alunos. Nós tivemos três pessoas conhecidas nessa época do 477. Foi uma colega, assistente social, Maria Rosângela Batistoni, um colega do movimento estudantil daqui de Juiz de Fora que me foge o nome… Luís Carlos, Luís Carlos, eu tenho aqui no documento. Enfim, finalmente a universidade nos absolveu. Primeiro, porque eles estavam baseando a expulsão em inquérito policial, que era suspeito, não tinha ainda julgamento. Segundo, porque nós estávamos sendo julgados duas vezes pelo mesmo fato, uma de forma administrativa e outra judicial e que não tinha provas suficientes arroladas para qualquer… Então, a reitoria bancou, não aplicou o 477, mas tive que fazer a defesa, conseguir advogado, enfim… mas a universidade, é uma coisa importante isso, a PUC, a PUC-Minas, inclusive, me manteve como docente, de licença, sem vencimento, durante um bom tempo, não me demitiu, não me demitiu. Então, aí entra a história do julgamento, né? O julgamento foi dia 22 de março de 1973 e eu fui julgada e condenada a 6 meses.
Helena: Aqui na 4ª Região?
Marilda: Na 4ª Região. Fiquei presa até 13 julho de 1973. Não tinha prisão feminina em Minas naquele período, a igreja interviu, interveio Dom Geraldo de Moraes Penido. Eu fui cumprir minha pena no Instituto João Emílio, aqui no Bom Pastor. E uma coisa importante, em cima também dessa universidade, na época, a diretora era…
Helena: Diretora da faculdade de Serviço Social?
Marilda: É.
Helena: Madre Altiva?
Marilda: Não.
Helena: Madre Altiva foi depois.
Marilda: Eu não sei se era Madre Altiva, era Elisa Melo, eu acho. Elisa Melo. Ela pediu autorização ao juiz da 4ª Região e me enviou dois estagiários de serviço social e nós fizemos o projeto de implantação de serviço social na instituição. E orientei dois trabalhos de conclusão de curso na cadeia.
Helena: Ela conseguiu isso, que você continuasse trabalhando lá dentro?
Marilda: Foi muito bonito isso e eu tive um apoio enorme da Terezinha Viegas, que era uma das freiras, né? Ela é irmã do Padre Viegas, foi uma mulher fantástica nesse período. Quero registrar aqui que, no julgamento, minha mãe teve um infarto.
Helena: Durante o julgamento?
Marilda: Não é pouca coisa, né? Não é pouca coisa. Esse processo teve repercussões claras assim na minha vida profissional, eu me casei e fui morar em um município em Santa Catarina, Criciúma. Na prefeitura, quando eu chego lá, eles todos sabiam da minha ficha policial, né? Isso foi depois da prisão, depois de cumprir pena.
Helena: Você lembra o ano?
Marilda: Isso foi em 1973, 1974, né?
Helena: Quer dizer, já haviam informado tudo a eles lá?
Marilda: Eu cheguei e fui procurar um emprego na prefeitura, e o prefeito Odamir Barreto sabia, sabia de toda minha situação, enfim, mas ele me contratou assim mesmo. Aí, eu abri o jogo mesmo e ele me contratou, mas teve uma enchente em Tubarão e eu tive que trabalhar com os militares, eles assumiram a prefeitura, tomaram conta da cidade, fizeram intervenção de guerra.
Helena: Por causa da enchente?
Marilda: Não, vala coletiva pra enterrar as pessoas, eu era assistente social da prefeitura e eu tive que coordenar toda defesa civil, porque não tinha defesa civil naquele momento com os militares no poder. E até que eu fiz isso, até que no final eles exigiram que eu fizesse a avaliação da enchente, fizesse uma pesquisa em sete dias, todos os municípios afetados da região, porque foi Tubarão que encheu. Eu falei que eu não tinha condição técnica de fazer, que eu não faria. Aí, eu pedi demissão, né? Então essa foi uma coisa. Depois, uma outra consequência foi quando eu fui trabalhar no interior de São Paulo, aí, foi uma coisa da igreja mesmo… Instituto Paulista de Promoção Humana (IPPH), fui eu e, então, meu marido e ficamos três meses, no 4º mês eles nos demitiram por caça às bruxas, né? E aí ficamos os dois desempregados. Então, foi uma sequência de muitas… nessa enchente, meu marido, invés de cuidar das aves, ele era engenheiro agrônomo, especializado em zootecnia, ele priorizou o atendimento às pessoas, com isso, ele também foi demitido. Então, foi um período assim muito atribulado de um profissional migrante, né? Decorrente desse processo.
Helena: No seu caso, eles pediram a pesquisa em sete dias como uma forma de forçar sua saída?
Marilda: Não sei, entendeu? Não sei bem, mas eu pedi demissão, mas eles me deram uma carta de referência. E as damas do carvão me deram um anel de brilhante (risos). Carvão, porque era uma região carbonífera, as “Damas do Carvão” é porque eu trabalhava, eu assessorava uma entidade de assistência social da elite local também. Bom, isso é fantástico porque, ah, eu vou ficar contando caso… quarenta anos depois, no ano passado, eu tinha uma pessoa que me ajudava, que atendia as pessoas, os mendigos, pessoas, enfim, o projeto era eliminar a mendicância nas cidades.
Helena: Isso onde?
Marilda: Em Criciúma. E essa senhora atendia as pessoas, e passado 1973, 1974 para 2013, faz as contas.
Helena: 40 anos.
Marilda: É, um dia, me liga essa senhora que tava em uma reunião de assistentes sociais e falou que tinha aprendido a fazer não sei o quê com a Marilda, aí perguntaram qual Marilda, aí ela deu o nome e aí as pessoas…
Helena: Te procuraram?
Marilda: Não, a Marilda Iamamoto e tal, ela conseguiu o meu contato, aí ela me ligou e mandou toda a documentação do que aconteceu com os meus projetos de trabalho que eu desenvolvi na época na cidade. Com o atendimento à enchente o prefeito ganhou um financiamento fantástico do governo federal, com o qual ele reformou a cidade, aí, na época, a gente assinou uma instituição que tinha toda a parte de formação profissional pra adolescente, mas que tava desativada, aí me trouxe a história dessa instituição, o encanto das crianças, enfim, e jornais, recortes de jornais de todas as frentes de trabalho desse período, muito emocionante, né? Bom, mas voltando à história, em 2001, não, eu tentei, como eu reagia a isso do ponto de vista dos meus direitos. A primeira iniciativa foi pedir a reintegração do INSS do ponto de vista administrativo, que a constituição, depois de 1988, me permitia. Então, eu fiz, ganhei no Estado de Minas Gerais e perdi em Brasília com aquele argumento de sempre: você entrou na política porque você quis, você foi subversiva porque você quis e assuma as consequências, né? Aí, isso passou algum tempo e, em 1997, eu entrei, ainda antes da Lei da Anistia, ainda com base no artigo 8º da Constituição, com processo na justiça, isso em 1997, foi um processo que eu entrei já por um caminho, já no Rio de Janeiro, pedindo a minha reintegração. Bom, isso rolou. Até este ano quando ele foi concluso, de 1997 a 2014.
Helena: Você finalmente conseguiu?
Marilda: Aí ele foi pro Supremo Tribunal Federal, eu tive o parecer favorável e eu estou sendo reintegrada ao INSS depois desse tempo todo, para aposentar. Não sei quais as consequências disso ainda. Mas, nesse meio tempo, eu tenho duas coisas para contar. Uma, eu fiz um depoimento a Comissão de Organização dos Torturados do Estado de Minas Gerais, ligados às vitimas de tortura do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos da Secretaria do Estado de Justiça dos Direitos Humanos. Isso foi em 2001, em que eu fiz um relado da tortura, mais detalhado do que eu contei aqui. Quando eu saí da tortura, a igreja estava acionando com a denúncia da tortura, né, e pediu que eu escrevesse, eu escrevi, mas não consegui, não tive força para concluir e dei para uma pessoa guardar os depoimentos, foi escrito a mão ainda, né? E, quando em 2001, 30 anos depois, quando eu tive que fazer esse depoimento, eu procurei essa pessoa e perguntei se ela tinha o papel ainda, ela me disse que tinha. Então, eu só consegui fazer um depoimento muito detalhado porque eu tinha o registro daquele período. Eu queria dizer uma coisa que eu escrevi, está aqui, eu digo o seguinte no final desse depoimento, é um depoimento grande, 10 páginas.
Helena: E isso ficou guardado 30 anos?
Marilda: Não, eram minhas anotações do que ocorreu na tortura e que eu transformei nesse depoimento, né? Só transformei porque tinham aquelas anotações. E eu disse o seguinte, certamente as marcas e os sofrimentos que ficaram na vida de muitos não podem ser eliminadas ou ressarcidas, elas desafiam o tempo, atualizam-se permanentemente, enraizadas na história de vida e nos corações de muitas famílias brasileiras. Entretanto, o mais importante é que as denúncias dos atos violentos e arbitrários do passado iluminem o presente, seus desdobramentos futuros na defesa e aprofundamento do regime e nos valores democráticos, e que o interesse das grandes maiorias se constitua de fato no desafio permanente da construção de uma nova nação brasileira, sob os princípios éticos da grande política. Então, eu acho que é isso que me moveu a ter força pra fazer esse depoimento em Minas. Então, isso aí. Eu tive o reconhecimento da tortura. Eu quis responsabilizar o Estado de Minas Gerais e consegui.
Helena: Você conseguiu, você foi indenizada?
Marilda: É, foi trinta mil reais naquele período, mas o importante era que o Estado assumisse a sua responsabilidade como torturador, né? Outro dado importante foi o pedido de anistia. O pedido de anistia, eu entrei com o pedido de anistia em 2002, porque o processo, esse tal da reintegração, estava parado eternamente, aí eu fui anistiada em 25 de outubro de 2006, publicado em 2007. Eu tenho aqui também a ata de julgamento, muito detalhada, muito bem feita, com todas as denúncias de tortura, enfim, muito bem documentada, né? Eu tinha um grande amigo, meu cunhado, que trabalhou muitos anos no INSS, ele foi fiscal e ele foi uma pessoa que me apoiou decisivamente nas denúncias, porque ele buscou toda a documentação, então, informou todos os processos, hoje ele é falecido, o Paulo Monzani. Eu queria fazer uma homenagem pra ele (choro).
Helena: Terminamos Marilda, você prefere terminar?
Marilda: Não, tem mais coisas. Bom, então, o que eu queria salientar… Eu acho que tá terminando sim. São esses fatos, eu não sei se vocês querem mais alguma coisa, eu acho que as coisas mais importantes estão ditas, né? Eu acho o seguinte, eu acho que é importante resgatar, por mais difícil que seja, porque o inconsciente não tem tempo, as coisas se atualizam, mas eu acho que é importante a gente, primeiro, atribuir transparência ao que ocorreu no interior da ditadura, é importantíssimo abrir os arquivos, é importantíssimo que essa história negra, essa história difícil da política brasileira tenha visibilidade. É por isso que eu acho que a gente tem que resgatar a memória, tem que atribuir visibilidade e não só pra esclarecer o passado, mas no compromisso de evitar que as novas gerações tenham consciência dessa história, pra que isso não se repita. Eu acho que Memórias Reveladas tem um lema importante, pra que não se esqueça, pra que nunca mais aconteça. Então, eu acho que isso é a responsabilidade política, que a gente tem de fazer denúncia. Eu acho que é importante que segmentos médios, que tiveram uma facilidade da denúncia, né? Hoje eu estou trabalhando nesse projeto da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, junto com a universidade. Eu acho que isso vai ser muito mais difícil com os trabalhadores, principalmente os trabalhadores rurais, em que tem uma particularidade, você não tem só a repressão estatal, você tem a violência privada, você tem as milícias privadas. Então, o público e o privado se misturam e esse privado não tem registro. Então é muito difícil. E são pessoas que também não têm uma presença forte, assim. Inclusive naquele livro da identificação dos torturados, a questão do campo é muito frágil, porque é difícil. Então, a gente está fazendo um trabalho assim, no caso do Rio de Janeiro, de buscar os arquivos do Estado, buscar e identificar os nomes, pra procurar os nomes nas fotos, tanto da luta pela terra quanto do sindicato dos trabalhadores rurais, porque tem outro lado, eu sou assistente social, mas eu também trabalho com a questão agrária, então, acho que é muito importante que a Comissão da Verdade procure ver o que ocorreu com o sindicato dos trabalhadores, o que ocorreu com os trabalhadores rurais.
Helena: Vocês já conseguiram algum resultado?
Antônio Henrique: E os urbanos também.
Marilda: E urbanos também… Nós estamos conseguindo sim, algumas. Estão buscando assessores sindicais daquele período. Procurando os arquivos dos sindicatos, os arquivos do Estado. Enfim, é buscar agulha no palheiro, né? Mas temos algumas identificações importantes.
Helena: Que de fato a classe média intelectualizada tem mais visibilidade.
Antônio Henrique: Marilda, porque teoricamente a classe baixa não seria enquadrada na Lei de Segurança Nacional?
Marilda: Não, Eu acho o seguinte. Eu acho que seria.
Antônio Henrique: Dependendo da…
Marilda: Eu acho o seguinte, a ditadura… O professor Octavio Ianni tem uma análise que eu gosto muito, a ditadura do grande capital. Ele disse o seguinte, foi uma contrarrevolução, uma dupla contrarrevolução, foi uma contrarrevolução contra o avanço do movimento agrário, sindical, das ligas, dos sindicatos, da luta pelas reformas de base, contra os trabalhadores rurais; e foi uma contrarrevolução que Florestan chama de autocracia burguesa contra o estado de direito e as conquistas democráticas, ainda que precárias, que tivemos de 1946 até 1964. Porque o que move a ditadura, pra mim, na minha análise, que eu consigo entender desse processo, foi a abertura do Brasil ao grande capital, a ditadura do grande capital e pra isso você teve que obter ordem e progresso, ou seja, segurança e desenvolvimento, e daí cercear…
Helena: Calar a oposição.
Marilda: Calar a oposição e aí, certamente, os trabalhadores rurais e os urbanos nas mais deferentes, nos seus mais diferentes seguimentos, foram profundamente atingidos, além dos estudantes, da classe média, enfim, dos segmentos médios. Então, eu acho que esse processo, ele tem sentido, a tortura, tudo isso eu acho que é um embate clássico muito forte que nós tivemos nesse processo, de defesa da hegemonia da abertura pro grande capital, você teve um salto na expansão capitalista brasileira nesse período. E isso implicou um custo muito alto, no Brasil grande, de milagre brasileiro, em todo esse processo, que se expressou, do ponto de vista da maioria da população, como arrocho salarial, como perda da qualidade de vida, tem o seu outro lado, que é o reverso e o inverso no Brasil grande da…
Helena: Crescimento com arrocho.
Marilda: Então, eu acho que é isso. Eu não sei se vocês querem saber mais alguma coisa.
Antônio Henrique: Marilda, você tem informação? Porque todas as informações que a gente tem, é assim, Juiz de Fora não teve tortura… Na época em que você estava, logo… puxando pela memória, você ouvia falar em tortura em Juiz de Fora? (pausa)
Helena: Porque existe uma ideia de que, assim, as pessoas eram enviadas para Belo Horizonte, principalmente Belo Horizonte, e lá elas eram torturadas e aqui não havia tortura.
Marilda: É verdade.
Helena: Mas têm murmúrios de que aqui também teria havido tortura, mas a gente não tem nenhum indício mais claro disso. Você lembra de ter ouvido alguma coisa sobre isso, de tortura aqui, ou no QG, ou na Penitenciária de Linhares ou em outro lugar?
Marilda: Linhares eu não sei. Linhares eu acho que, na época, inclusive, teve uma pessoa, ligada à Comissão da Verdade, que foi presa em Linhares. Eu realmente, eu não tenho informação. Mas eu sei que nós tivemos foi pressões, mas tortura…
Antônio Henrique: Psicológica.
Marilda: É.
Antônio Henrique: Que é até…
Helena: Que é tortura também.
Marilda: Lógico.
Helena: Mas, assim, maus tratos físicos, nesse sentido, não né? Porque é uma interrogação, essa questão está rondando a Comissão. Houve ou não houve tortura aqui? Entendeu?
Marilda: É. Eu não tenho conhecimento.
Antônio Henrique: Só, assim, só pra me esclarecer. O capitão bonzinho é o capitão Freitas?
Marilda: É. Tinha o capitão Portela, tinha um tal de doutor Lucas, que eu não sei…
Helena: Que é um médico que acompanhava.
Marilda: Não, que era um torturador.
Antônio Henrique: Ah, não era médico não?
Marilda: Não, esse doutor Lucas, capitão Portela… não eram médicos não. Tinha um francês, Verlangieri2.
Helena: Ah, Verlangieri, uma coisa assim?
Marilda: Algo assim.
Antônio Henrique: É.
Marilda: Esse é o tal.
Antônio Henrique: Ele era torturador também.
Helena: Que conduziu, aqui, o IP de muita gente. Major Verlangieri.
Marilda: Major Verlangieri. Ele é que veio pra Belo Horizonte.
Antônio Henrique: Era torturador.
Helena: Ah, ele era torturador?
Marilda: É, do grupo do DOI-CODI.
Helena: Do grupo que tava lá?
Marilda: É. Nunca o vi torturando, assim, não me torturou, mas ele também conduziu o IPM nosso lá e era do grupo do Portela.
Helena: Entendi. Eu lembro dele. Você falou da Jussara também. A Jussara… você lembra o codinome dela?
Marilda: Não lembro. Desde então eu não lembro nomes, eu não guardo nomes. Eu te conheço hoje… eu não guardo nome de aluno, imediatamente eu deleto, entendeu?
Antônio Henrique: Mecanismo de proteção.
Helena e Antônio Henrique: Mecanismo de proteção.
Helena: Porque a Mariléa se referiu a uma pessoa que viajou com ela pra Juiz de Fora…
Marilda: É essa mesma.
Helena: Mas ela não falou Jussara, ela falou outro nome, por isso que eu estou perguntando se era o codinome da Jussara… Entendeu?
Marilda: É, deve ser.
Helena para Antônio Henrique: Você lembra o nome que ela falou, eu esqueci o nome…
Antônio Henrique: Não.
Helena: …da pessoa que viajou com…
Marilda: Se falar pode ser que eu lembre. Ela se chamava…
Helena: Você falou que ela resistiu bravamente à tortura, não falou nada.
Marilda: Nada, só o nome. Eu a vi toda deformada.
Helena: No DOI-CODI?
Marilda: É.
Marilda: Jussara Martins.
Helena: De Vitória.
Marilda: De Vitória.
Helena: Ela era muito ligada ao Marcos.
Marilda: É, o Marcos… nós nos reencontramos, né? O Marcos é um colega que dava assessoria à UEE e também à Ação Popular. Médico, nos reencontramos há algum tempo, foi muito bonito o reencontro.
Helena: Ele mora aonde?
Marilda: Ele tá em Belo Horizonte, ele trabalha com altas tecnologias em medicinas de primeiro mundo.
Helena: Ah, é?
Marilda: É. Sempre a mesma figura muito ativa.
Helena: E dela, você tem notícias? O que aconteceu com a Jussara?
Marilda: Não.
Helena: Não, né?
Marilda: Não.
Helena: Não sabe nem se está viva ou se tá morta, você perdeu…
Marilda: Não, nunca mais tive notícias da Jussara.
Helena: Mesmo assim a viu toda inchada, foi lá em Belo Horizonte…
Marilda: Toda roxa, com a cara toda roxa, roxa.
Helena: Em Belo Horizonte.
Marilda: É. Não era olheira não. Ela deve ter levado muito soco na cara, porque telefone, soco no ouvido a gente levou, agora… O dela era roxo, tudo preto assim. O que mais? Acho que é isso. Acho que é importante esse processo, né? Porque é um desafio que transcorreu a vida. Eu estou com 65 anos, nasci em 1949, vou fazer 66 e acho que meu compromisso é o mesmo e isso me dá muito alento pra viver, ou seja, eles não me envergaram (riso). Isso se expressa sobre vários ângulos, né? Eu entrei no campo da política profissional, escrevi muita coisa, muitos livros, que é uma forma que eu tenho de expressar meu compromisso, trabalhei muito com os assistentes sociais brasileiros, latino-americanos, numa perspectiva de uma leitura crítica da sociedade, de resgatar o potencial da teoria social crítica, pra pensar e decifrar…
Helena: Os compromissos básicos estão firmes aí.
Marilda: É. Os compromissos éticos, teóricos e o desafio de decifrar a sociedade e de contribuir para a elucidação desse período difícil da sociedade brasileira, mas que não é único, esse Brasil me deu muitas ditaduras.
Antônio Henrique: Muitas.
Marilda: Muitas ditaduras, em que as democracias são interregnos num quadro de luta. Então, eu acho que desenvolver uma cultura política democrática é absolutamente fundamental pro futuro. E eu me dediquei a isso no campo profissional, assessorando as entidades nacionais, as instituições brasileiras de ensino, o Conselho Federal de Serviço Social, dando cursos, rodando a América Latina afora, enfim, eu acho que nessa perspectiva, que é uma militância teórico-política, mas é um compromisso que a gente…
Helena: É uma forma de militância também. Isso aí, né? Terminamos?
Marilda: Terminamos. Muito obrigada. Queria agradecer a oportunidade, eu acho que é obrigação da gente registrar. E quero dizer o seguinte, isso que eu estou registrando não é só uma história de vida pessoal, isso é expressão pessoal de uma realidade que foi coletiva numa geração, e eu acho que eu registro com esse espírito, por isso mesmo, uma das coisas pelas quais eu me silenciei nesses tempos, e hoje, quando as pessoas ficam sabendo assustam, é que eu acho que a gente não pode fazer disso nenhum ato de heroísmo, pessoal. Mas que chega um certo momento que é importante revelar. Revelar pra criar o debate, pra elucidar o passado e os caminhos do presente e do futuro. É nessa direção que eu faço esse depoimento, ele é difícil pra mim. Vocês perceberam, não é fácil, mas eu acho que necessário. Eu agradeço essa oportunidade.
Helena: Nós é que temos que te agradecer, porque o trabalho da Comissão só existe se as pessoas vierem falar.
Marilda: Está bom, muito obrigada.
Antônio Henrique: Obrigado você Marilda.
Notas
1 Mauro Seixas Telles
2 O capitão Arthur José Walter Verlangieri conduziu o Processo 32/70 na 4ª Auditoria Militar a respeito do jornal manuscrito “Até Sempre 3”.