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Tarcísio Delgado

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Tarcísio Delgado

Entrevistado por Comitê pela Memória, Verdade e Justiça Juiz de Fora

Transcrito por: Marcelo Riceputi

Revisão Final: Ramsés Albertoni (29/03/2017)

 

Tarcísio: Meu nome é Tarcísio Delgado, deputado, ex-prefeito e advogado. Eu me formei em advocacia em 1964, no ano do golpe da ditadura, e logo que me formei, entre outros tantos trabalhos, comecei a atender muita gente que estava sendo punida pela ditadura e que viria a ser cada vez mais. Logo, nesse ano mesmo ou no ano seguinte, 1965, eu tive de intervir aqui em juiz de fora a favor de um advogado que estava sem nenhum processo, preso incomunicável e que ninguém conseguia chegar a ele. Outros colegas da Ordem dos Advogados acharam que eu poderia, talvez, ter acesso a ele. E eu fui tentar, tive acesso e, para grande dissabor, vi que ele estava em uma cela comum, muito inóspita, sem nenhuma condição, e quando argumentei com o comandante da 2ª Seção do Exército de Juiz de Fora que ele, por ser advogado, por ter curso superior, merecia uma cela especial, o que eu tive de resposta foi que esse comandante mandou seu subordinado sair e dez minutos depois voltou dizendo que ele já estava em cela especial e pediu que me levasse, então, para ver. Então, eu fui levado por esse subordinado à cela que era a mesma anterior, apenas com uma tábua de caixote escrito “cela especial” e pregada na parede. É um negócio… doeu muito, mas… pouco se podia fazer na época. Alguns poucos dias depois, três ou quatro dias, foi liberado porque não havia nenhum processo contra ele; havia apenas uma denúncia falsa que, apurada por eles mesmos lá, chegou à liberdade dessa pessoa que estava presa incomunicável desta forma. Em seguida, fui procurado pelos mineiros da Morro Velho de Nova Lima, que tinham feito um movimento muito forte no dia da revolução, de resistência, com passeatas, com carreatas e com tudo, caminhando inclusive para Belo Horizonte, de nova Lima a Belo Horizonte a pé, pra tentar fazer resistência, e foram interrompidos no meio do caminho e presos, etc. Mas que no dia da revolução resistiram muito. E daí muitos foram presos, muito foram violentados, muitos foram presos sem nenhum processo e muitos acabaram chegando ao inquérito policial militar naquela época, envolvendo grande parte dos operários que estavam ali. Só em um processo eram 176 réus e eu tive, à época, a grande luta de fazer a defesa desse pessoal, e hoje, pra mim, a grande honra de ter defendido. Foi uma defesa muito difícil, durou anos, quase seis anos de processo. Eles indo, vindo. Tinham que vir aqui em Juiz de Fora, porque a Auditoria da 4ª Região era aqui. Tinham de vir de Nova Lima aqui. Tinham dificuldade até de vir, precisavam fazer uma vaquinha lá em Nova Lima, entre colegas, pra alugar um ônibus, dois, três ônibus, às vezes, pra vir aqui e responder ao processo. E responderam, durante um período grande. E eu fiz a defesa desse pessoal, durante todo o tempo. Primeiro, entrei com vários habeas corpus perante o Superior Tribunal Militar. Com isso, conseguimos liberar boa parte deles, e 44 deles foram, inclusive, até o júri final, o julgamento aqui na auditoria, em que nós fizemos a defesa e, nesse momento, afinal, foram absolvidos. Acabaram sendo absolvidos quase seis anos depois. Depois de passar por tudo isso. Era uma absolvição de fantoche, porque eles já tinham sido condenados no decorrer do processo, a todo tipo de desgaste. Nesse processo, violências, estupros e outras coisas ocorreu de maneira… monstruosa. Então, esse é o aspecto, a lembrança, que eu tenho, eu acho que coisas como essa e tantas outras mais não podem ficar em sigilo, não podem ser assunto de… nada secreto. Isso tem de se tornar público, é um direito das pessoas, da nação, saber disso. É um direito dos familiares dessas pessoas vítimas saberem disso. É um direito, mais do que qualquer coisa, humano, eles tomarem conhecimento disso. E por isso, é… eu… o que eu posso declara é… é isso. E outros casos que eu tive. Na auditoria, os sargentos que fizeram a rebelião de Brasília, também que sofriam da mesma forma. E outros casos mais, que nós defendemos na Auditoria da 4ª Região Militar. Defendi também, nesse mesmo momento, 4 funcionários dos Correios de Belo Horizonte, pela mesma forma havia feito, resistido, no dia da revolução. Resistido de maneira forte, formal, líderes sindicais, do sindicato lá em Belo Horizonte, eram funcionários dos Correios. Que também foram presos, violentados e tal. E acabaram vindo o processo aqui, pra auditoria, em que os defendi também. Então, é isso aí que me lembro, de maneira mais…

Comitê: Você lembra dos nomes das pessoas, Tarcísio?

Tarcísio: Ah, de muitas, né. De muitas.

Comitê: Poderia citar alguns?

Tarcísio: Dos Correios não vou lembrar, agora, não. Só se eu recorresse a… Mas de Nova Lima tem alguns vivos, tem lá o… Otacílio… Otacílio Correia. Que tá lá, vivo ainda. Não são muitos os vivos ainda hoje. Mas tem alguns. Mas na época havia… Orlando Correia, Militão, que eram tidos como comunistas perigosíssimos, eles tinham maior horror deles. É… Com um pouco de tempo eu poderia lembrar até de um… de um muito maior número de… é… estou tentando lembrar aqui, são muitos, né… eu lembrei aqui, de grandes líderes, do grupo lá, das lideranças sindicais, o… Alexandre, que era presidente do sindicato no dia da revolução. Alexandre… o sobrenome vai embora. Mas esse é um caso muito fácil de verificar porque tem processo, né, e… só pegar os nomes e tal, eu… se eu forçasse um pouco… deixa eu ver se me lembro de mais algum nome.

Comitê: Pra você é importante de abrir… tornar público esses documentos secretos?

Tarcísio: É, eu acho que isso aí é o mínimo que se quer de uma nação civilizada, né. O mínimo que se quer. Não pode ter, é… nomes nos processos, inquéritos, secretos, que mexeu com a vida e com a felicidade de tanta gente, né. De tantas famílias. Era muito duro, eu, na época desse período em Nova Lima, eu vi, eu estive muitas vezes com esposas, filhos dos acusados, aos prantos, traumatizados, passando necessidade. Grande necessidade. Porque eram operários da mina. Muitos presos, outros respondendo processos, outros demitidos do… do trabalho. Quer dizer, passaram por grandes privações. Violentas privações. Além de prisões, muitas delas absolutamente ilegais. Era muito comum, foi muito comum, no dia lá em que eles fizeram assembleia, pra resistir, foi preso uma grande quantidade, e alguns deles ficaram presos, dois, três meses, e depois, sem nenhum processo especial, foram liberados. Eram presos, ficavam presos e depois liberavam. Ficavam presos o tempo que eles queriam e depois liberavam. Sem inquérito, sem nada. Posteriormente foi aberto esse inquérito, formalmente e tal. Mas quando já não tinha mais esse nível de violência que foi feito em primeiro momento, com forças policiais invadindo casas, tirando o sujeito da cama, saltando pela janela com a metralhadora na mão, da casa. Invadindo a casa pra prender o sujeito, o sujeito não estava, tinha fugido, aí prenderam o filho do possível… acusado. Prenderam o filho, não tinha nada a ver, prenderam. Ficou preso um tempão. E assim por diante.

Comitê: Isso tudo sem mandado, sem nada?

Tarcício: Sem nada, sem nada…

Comitê: Então, consequentemente, quer dizer que, no caso, era sequestro? Pois se não havia mandado.

Tarcísio: É, era… era uma coisa doida.. Era uma violência, né. Uma arbitrariedade. Muitos deles tiveram suas casas invadidas pela janela. Batiam na porta, não abriam. Casas pequenas, casas de operários. Iam na janela, dava um… socava, abriam, saltavam pra dentro de casa, já com a metralhadora na… na cabeça da esposa, do filho, e tiravam o sujeito da cama. E levavam pra prisão. Coisas desse tipo. Não sei se tem mais, assim…

Comitê: Além dessa situação, Tarcísio, nós tivemos algumas pessoas daqui de Juiz de Fora, alguns estudantes, que foram presos, também, sem a família ser notificada… e que você teve uma atuação importante.

Tarcísio: Desapareceram alguns estudantes aqui em Juiz de Fora que estavam na…

Comitê: Congresso de Ibiúna?

Tarcísio: Congresso de Ibiúna. Eram oito. É… um dois oito foi liberado um pouco antes e sete ficaram, é… um tempo muito grande. Sessenta dias depois, as famílias, eles simplesmente tinham desaparecido. As famílias desesperadas aqui, sem ter a menor notícia. Não se localizava, sem ter informação nenhuma e… as famílias desesperadas, desapareceram! Até que, nesse… mais ou menos dois meses depois, é… um desses acusados, desses presos arbitrariamente, sem processo, sem nada… era de uma família conhecida, até de uma moça que era colega da minha irmã, então, minha irmã, desesperada, ouvindo aquilo, vendo aquilo na família, me falou “Oh Tarcísio, está acontecendo isso, isso e isso”. Eu falei “Ué, então vamos procurar ver”. Na época eu era deputado estadual. E aí, eu fui lá em Belo Horizonte, pros órgãos de segurança lá. Enfrentei, também, grandes dissabores e dificuldades. Conversas muito duras. Felizmente, comigo, pessoalmente, não passaram de conversas, de agressões verbais. Tem de ser sincero. Mas… muito duras, e… negando a presença deles. Até que eu fui, peguei o fio da meada e fui… jogando um contra o outro, ia no DOPS, do DOPS ia à repartição militar… do exército, de lá voltava pro DOPS, tornava ir lá, tornava ir cá, até que… eu peguei que eles estavam em Belo Horizonte. Tive uma informação de que eles estavam em Belo Horizonte. E foi muito difícil, é… localizá-los. Depois de muita luta. Pessoal do DOPS falava que estavam na repartição militar, eu ia na repartição militar, me falavam que estava no DOPS. Ficavam me fazendo jogo de burro. Mas eu era muito, também… pesistente. Eu não desistia fácil, quando eu cismava que tinha uma coisa qualquer… errada. E eu fui atrás, fui até pegar, conseguir ter com eles um contato depois de sessenta e tantos dias sem ninguém, família, conhecido, ninguém falar com eles, eu consegui falar com eles, lá, de uma maneira muito dramática, mas consegui. E falei com eles, vi que eles estavam, vamos dizer… bem… que estão vivos, pra família, pelo menos. E comuniquei à família que… tinha tido contato com eles, até conversei, eles… não tinham muito o que falar… tava… é… de uma forma constrangedora o nosso encontro. Mas foi bom no sentido de que, pelo menos, as famílias puderam tomar conhecimento que eles estavam vivos e estavam em Belo Horizonte. E, nos dias seguintes, liberaram. Também sem processo, sem nada. Dois, três ou quatro dias depois, quando viram que tinham descoberto, aí eles liberaram eles. Eles apareceram aqui em Juiz de Fora nas casas das famílias e tal. Não tinha jeito de conversar com eles, é… eu com eles… Eu… na verdade, esse caso dos estudantes eu nem fiz como advogado, não é porque eram meus clientes, né. Eu fiz porque com a condição de advogado eu tinha mais facilidade, tinha mais acesso. E sendo deputado estadual, me ajudava mais. Mas fui por… por amizade. Por achar que era uma coisa justa, né. Com o pessoal de Nova Lima, também. Que quando procuraram minha defesa… eram operários… eles mesmos diziam “Doutor, nós estamos aqui, mas… nós estamos desesperados, mas não temos dinheiro pra pagar. Pagar como? E nós estamos com um processo aqui”. Um processo muito trabalhoso. Eram doze volumes, cada volume dessa altura. Você colocava no chão, ficava da altura dessa cadeira, de volume de processo nesse caso de Nova Lima. Quer dizer, um processo difícil de se ver. E eu, naquela época, vivia do meu trabalho, então, eu tinha dificuldade porque o tempo era difícil de conciliar. Muitas vezes trabalhei até às quatro horas da manhã vendo processo, porque no dia seguinte já tinha outros afazeres. Mas eles estiveram comigo, me falaram que não podiam pagar, me passaram o problema deles. Eu apavorei um pouco, falei “Vocês me dão alguns dias, eu vou dar uma olhada no processo na auditoria e respondo a vocês”. E eu fui lá na auditoria, peguei o processo… Porque eu peguei quando o processo já tinha chegado aqui pra auditoria. O inquérito já tinha sido feito lá, arbitrariamente, tudo o que você puder imaginar tava no processo. Aí, eu olhei o processo e… alguns dias, na semana seguinte, liguei lá pro líder deles e falei “Eu vou pegar o caso de vocês. Vocês não podem pagar mas… eu me apaixonei pela causa de vocês, acho que vocês têm o direito de ter uma defesa, uma defesa cuidadosa e vou fazer a defesa”. E eu peguei e fiz… rigorosamente não ganhei um tostão desse pessoal porque eles não tinham como pagar, coitados, pra vir aqui era a maior luta. Ajudei algumas vezes com alguma coisa pequena, porque eu não podia ajudar muito, pra entrar na vaquinha lá pra eles poderem vir aqui… responder… ser interrogados. Eles tiveram de vir duas, três vezes durante o processo até o dia do julgamento, em que os 44 finais tiveram de vir também. O julgamento foi uma coisa que o livro retrata bem. O julgamento foi uma coisa muito dramática, porque 44 réus em uma salinha pra… mal cabia os 44. Ficou entupido de réu lá. Mas aí já estava em uma situação, vamos dizer, mais civilizada. Você tava ali, tinha defesa, tinha promotor, tinha os auditores vendo. E tinha uma coisa que acabou sendo um resultado bom, porque acabaram sendo absolvidos ali, unanimemente, quando tudo indicava que, não todos os 44, mas… o promotor costumava dizer “Os 44 não, mas 12 você não tira de jeito nenhum”. Chegou a falar comigo antes. Chegou até a me propor uma aposta, um jantar, que ele condenava doze. E eu tive de dizer pra ele “Doutor, isso não é problema de aposta, isso não é assunto de aposta. Eu vou tentar absolver todos, mas isso não é assunto de aposta”. E absolvemos. Esse momento foi até um momento interessante, muito emocionante. Eles já tinham pago, tinham sofrido pra caramba, quase seis anos, cinco anos e meio, quase seis, que eles estavam naquele negócio preso, soltos, questionados, interrogados, vindo aqui, então… mas… foi muito bom, eu acho que eu desempenhei bem o papel que eu podia desempenhar na época e ajudei muito.

Comitê: Tarcísio, parece que tem uma passagem interessante da estratégia que você utilizou com relação ao habeas corpus de alguns que estavam sentados na cadeira dos réus?

Tarcísio: Ah, sim. É… eu entrei com muitos habeas corpus durante o processo. Logo que eles vieram aqui, que estavam sendo interrogados, eu fui lá e vi o processo, eram 176 réus a essa altura e eu comecei a entrar com habeas corpus, e no primeiro habeas corpus que eu entrei, eu liberei cento e poucos, 104, parece. Então, já ficaram… já ficou um número menor. No decorrer do processo, uns dez ou doze deles morreram. Morreram. Eles tinham silicose, que é um negócio complicado, lá as pessoas morriam relativamente novos. Isso tudo tá no processo bem, ali. E… e os outros foram, eu fui tirar… bem pertinho do julgamento que tava marcado aqui eu entrei com o último habeas corpus. E nesse último habeas corpus eles liberaram, dos 44 que tinha, eles liberaram quatro… quatro. Tá tudo direitinho ali. Liberaram… três ou quatro. O Superior Tribunal Militar liberou. Mas liberou na véspera do julgamento daqui. Aí foi pro julgamento e eu falei pra eles “Vem todo mundo”, “Ah, mas saiu o habeas corpus”, “Mas vem. Fica quietinho e vem”. E eles vieram, inclusive os que já tinham conseguido habeas corpus, e eu tava com a certidão na mão, com o diário oficial. Quando abriu a sessão, eu pedi questão de ordem, falei “Meritíssimo”, porque a presidência na auditoria é um juiz togado, né. São quatro oficiais do exército e um juiz togado, que é o que dirige. “Eu quero pedir ao senhor uma questão de ordem. Pediria que o senhor me permitisse pedir pra se levantar fulano, fulano e fulano”, pelo nome. Não sei se eram dois, três ou quatro, eu sei que… tá detalhado ali, agora aqui tá… pedi que se levantassem. Aí se levantaram, esses. Aí falei “Meritíssimo juiz, estes eu vou pedir que o senhor peça pra se retirar, porque eles não podem mais estar sentado no banco de réu uma vez que já foram absolvidos por uma instância superior, tá aqui a certidão do tribunal”. O juiz pediu, mandei levar lá, e ele “Realmente, o senhor tem razão, pode se retirar”. E aí eles se retiraram. E eu usei isso muito na hora da defesa, na hora do debate, falei “Uai, e se eu tivesse conseguido habeas corpus pra todos ontem, vocês iam estar condenando eles aqui? Porque eu que levantei a questão, a defesa que denunciou que eles tinham sido… vocês nem tavam sabendo. E se todos, e se eu trouxe a certidão só dos quatro e todos foram, vocês vão condenar eles agora?”. Esse foi um dos argumentos, teve muitos argumentos demais. O argumento mais bonito foi mais no final, tá ali no processo, depois tem que ver o livro, essa parte pelo menos… porque eu, no final eu fui falando, falando… naquela época, a defesa era três horas de fala, você podia e tal… quando chegou a minha conclusão, eu falei “Meritíssimo, peço a licença. Peço a todos os réus que se levantem”. Aqueles 44, 42, 43.. “Que se levantem. Que coloquem as mãos espalmadas na direção do conselho, assim”. E aí todos levantaram, aí eu falei “Olhem nas mãos desses homens. Esses não são vagabundos. Esses não são comunistas. Esses não são nada. São operários da mina. Se mandar eles fazerem um gesto com a face, eles poderiam enganar. As mãos calosas não enganam”. E aí, foi por aí, eu sei que foi absolvido, dei graças a Deus. Foi o momento mais emocionante da minha vida, de todos esses momentos, porque quando o juiz deu a sentença final… que absolveu todo mundo… foi uma gritaiada, né, deles… uma choração, abraços. Eram 43 homens e uma mulher. A mulher, à época da ditadura, era secretária do sindicato, e era uma mulher muito ativa, uma mulata muito ativa, muito esperta, e ela tinha uma liderança grande por causa disso. E ela foi envolvida violentamente. E ela falava comigo “Doutor, como é que tá? Nós vamos absolver nossos colegas?”. E ela era uma das que estavam mais envolvidas. E eu falava “Ué, dona Maria, vamos tentar, mas… eu sou advogado, não sou juiz, eu vou tentar”. E no dia que ela veio pro julgamento, antes de entrar no julgamento, ela falou “Doutor, como é que é? Nós vamos ser todos absolvidos?”, e eu falei “Não sei. Pior que eu não sei. Espero que seja”. Ela pegou e falou pra mim assim “Doutor, se for condenado um que seja, eu fico com ele, eu não tenho coragem de voltar pra Nova Lima sem ele”. E começou a chorar, e aí, ela, mulher muito ativa, aí o… a sentença, o juiz… o juiz que elabora a sentença. O conselho dá a sentença e o juiz, togado, que era um cara muito bom. Diz que era um cara que tinha chegado novo aqui, um auditor, um cara… depois, inclusive, foi até homenageado aí porque ele era muito correto. E ele pegou e falou assim. Ele fez a sentença, assim, ele fez a sentença… meio dirigida pra causar um certo suspense na medida em que ele… a sentença era absolutória, mas ninguém de nós sabíamos, foi no conselho secreto. Ele pegou e fez a sentença “O conselho… reunido no dia tal… decisão decreta… resolveu… absolver os seguintes réus”. E começou a ler, parecia que tinha condenado no final, tá certo? Induzia a que tivesse algum condenado. E como os possivelmente condenados eram doze ou quatorze, então, nós ficamos esperando. Então, ele começou a ler um, dois, três, quatro… foi lendo. E a gente esperando parar os absolvidos e entrar os condenados. E eu fazia a contagem mental, claro, advogado, experiente, mas a “rai” da mulherzinha fez a contagem mental, também. A dona Maria, ela também fez. Na hora que ele começou a falar, os seguintes réus, ela foi “um, dois, três…” ela foi contando. Na hora que ele leu o último, 44, ela deu um pulo “Meu Deus”. Saltou e danou a gritar, arranjou uma bagunça dentro da auditoria doida, lá. E aí foi uma emoção muito grande, muito grande porque… os caras vinham sofrendo com as famílias. Então, é isso, eu acho que são coisas que… isso aí tá no processo, isso é público, não tem sigilo. Nesse aspecto. Inclusive, pra fazer o livro, eu retirei o processo do Superior Tribunal Militar agora, a dois, três anos atrás, quando eu estava concluindo o livro. Eu tirei o processo pra pegar dados, porque eu queria… o livro é um romance, tem muita ficção, mas a essência da história é a história dos mineiros, então, muitos dos dados, desses dados que tem de ser oficiais, eu quis que fosse o dado real. Então, peguei, inclusive o processo, fiquei com o processo por um bom tempo comigo, com vistas, pra ver e tal… E esses processos estão lá à disposição, esses aí, não tem jeito, não.

Comitê: Você podia citar o livro, Tarcísio, pra ficar gravado.

Tarcísio: “Tatuagem na alma”, que é o nome do livro e uma expressão usada por um personagem do livro. Esse é um personagem, é… do livro de Nova Lima. Que não era operário, mas era muito solidário aos operários, muito próximo e… que sofreu demais com o negócio dos operários. E que um dia ele me falando, eu conversando com ele, ele me falou “Doutor, eu estou doente hoje. Eu tenho problema cardíaco. Os meus colegas, na maior parte, são doentes, que têm silicose. Mas isso é uma coisa que pode ser identificada, é só tirar uma chapa e constata. Agora, a ferida mais dura é aquela que não tem como ser identificada. São as tatuagens na alma que eles fizeram em nós”. E aí eu tirei o nome dessa expressão.