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João Carlos Reis Horta (João Comunista)

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de João Carlos Reis Horta (João Comunista)

Entrevistado por Antônio Henrique Duarte Lacerda e Rosali Maria Nunes Henriques

Juiz de Fora, 07 de agosto de 2014

Entrevista 008

Transcrição e revisão: Fernanda Gutierrez

Revisão Final: Ramsés Albertoni (22/10/2016)

 

Antônio Henrique: João Carlos, em primeiro lugar, gostaria que falasse o nome, idade, profissão, qualificasse…

João Carlos: João Carlos Reis Horta, 79 anos, aposentado.

Rosali: O senhor nasceu em Juiz de Fora?

João Carlos: Nascido em Juiz de Fora.

Rosali: Em que data?

João Carlos: 17 de outubro de 1934.

Antônio Henrique: O senhor já deu um depoimento para…

João Carlos: Dei, para o…

Antônio Henrique: Para o Comitê, para o Comitê Municipal…

João Carlos: Foi.

Antônio Henrique: Comitê Nacional, né?

João Carlos: Não, não, municipal.

Antônio Henrique: Comitê Municipal da Verdade, que é ligado à Comissão Nacional da Verdade, né?

João Carlos: Não sei se era ligado…

Antônio Henrique: A intenção é fazer um acréscimo no depoimento, né? O que o senhor tem a dizer além do que… Então, o senhor fique à vontade pra dizer.

João Carlos: É o seguinte, porque quando eu estava preso no Rio, aí me levaram pro… pro DOPS. Eu tava na PE, me levaram pro DOPS. Lá tinha mais catorze presos políticos, lá, de várias organizações. Aí, no dia que eu cheguei lá, eu não tô sabendo de nada… Aí, me puseram numa solitária, eram cinco solitárias, eu fiquei em uma. Eu usava uma estratégia, enquanto tava preso, quando perguntavam meu nome, eu falava bem alto, para se tivesse algum conhecido, saber que era eu. Aí, me levaram pra lá. “Seu nome?”, falei “João Carlos Reis Horta”, “Sua organização?”, falei “Resistência Armada Nacional”. Aí, entrei na cela, me deram uniforme do DOPS, recolheram a minha roupa, me puseram na solitária, né. Aí falaram “Não pode conversar com ninguém, é proibido conversa”. Perfeitamente. Aí, puseram um aviso lá, “Preso incomunicável”, pregado na porta. Eram cinco celas de solitária, todas as cinco estavam ocupadas. Aí, quando foi no dia que eu cheguei, quando foi umas seis horas da tarde, abriram a cela, aí um cidadão de terno e gravata se apresentou pra mim e falou “Meu nome é Oscar Soares, eu sou comissário, estou de plantão”. Perfeitamente. Aí, ele disse assim “Você veio lá da PE, do DOI-CODI, né?”, falei “Vim”, ele falou “É, eles fazem as covardias lá e mandam para cá, né?”. Eu não respondi nada, né, não sei qual é a dele, né… Aí, ele falou “Você fuma?”. Na época eu fumava. Disse “Fumo”, “Tem cigarro?”, falei “Não”. Foi e me deu um cigarro. Eu acendi. Depois conversou com os outros que tinham chegado também. Depois, na hora que ele ia saindo, chamou o agente penitenciário e falou “Olha, vai lá embaixo e compra um maço de cigarro pra cada um. E depois das seis horas, que acabar o expediente, abre todas as celas, deixa eles conversarem com os outros presos”. Aí, o agente falou “Doutor, eles estão incomunicáveis”, “Estou te dando uma ordem, cumpre, e acabou”. Eu não estava entendendo nada, porque ele era comissário do DOPS. Aí, mandou comprar o cigarro, comprou. Quando foi seis horas abriram as celas, aí fui conversar com os outros presos, me apresentei a eles, né. Aí, um lá, o Adauto, que era da mesma organização da Dilma, da VAR-Palmares, ele já tava lá há dois anos. Aí, eu perguntei “Vem cá, e esse comissário?”, ele falou “Ih, pra eles, eles puseram o cara errado aqui, sabe”, falei “Por quê?, “Porque ele é contra isso, como ele é de carreira, eles não podem fazer nada. Pode ficar tranquilo”. Falei “E aqui?”, “Não, aqui não tem nada, não tem tortura, não tem nada não”. Falei “Poxa, menos mal. E você?”, ele falou “Ah, eu tô aqui há dois anos, eu sou da VAR-Palmares”. Aí conversei com os outros lá e me tranquilizei um pouco, porque já sabia que ali não havia tortura, né. Aí depois voltei para a cela, trancaram. Mas o dia inteiro eu ficava lá dentro, só abria lá para pegar o prato de comida ou então para ir no banheiro. Mas aí, à noite, a gente conversava um com o outro, falando alto, né. Aí, no dia que eu cheguei, quando perguntaram o nome, eu falei bem alto. Aí, quando foi de noite, falou assim “Oh João Carlos, sou eu, o Zé Sérgio”, “Ôpa, você que está aí?”, ele falou “Olha, a Ana Maria teve aqui”. Era a minha mulher. “Ela, fulana e fulana”, falei “E aí?”, falou “Não sei, elas saíram daqui, vocês entraram”, falei “Como é que ela tá?”, falou “Tá bem”, disse “Não tá machucada?”, falou “Não”. Então tá bom. Aí falei “E você?”, ele disse “Não, acho que eles vão me tirar daqui”. E de fato tiraram ele de lá. Aí, quando foi, passaram-se os dias… eu… aí comecei a fazer uma coisa, que eu comecei a ficar com medo de ficar deitado o dia inteiro e haver algum problema comigo. Então, a distância que eu podia andar era quatro passos pra lá e quatro pra cá. Então, toda manhã, andava, andava, até cansar. Pra me exercitar. E o espaço aqui, não dava para fazer assim não, era assim. Eu falei “Ah, eu tenho que andar aqui dentro, né, porque não tem outro jeito”. E eu fiquei trinta e cinco dias naquele inferno, né. Até que um dia… Antes de completar esses… Tinha um agente lá que trabalhava direto na diretoria do DOPS, e ele dava todas as informações pra gente. Então, ele chegou lá e falou “Você, vão te tirar daqui amanhã”. Aí, no dia seguinte, chegou lá, disse “Tira o uniforme e bota suas roupas”, eu falei “Eu vou pra onde, você sabe?”, ele falou “Olha, o pessoal da PE tá aí, tá, do DOI-CODI”, falei “Nossa mãe, outra vez…”. Saí, desci, me algemaram, aí descemos, entramos no carro deles, os caras tudo armado, metralhadora, não sei o quê. Me levaram pra PE, sem falar nada. Eu igual maluco, pensei “O que esses caras vão fazer comigo?”. Chegando lá, tiraram a minha roupa, fiquei nu, abriram a porta da “geladeira”, chegando aqui, até lembrei, era menor que isso aqui, era um lugar todo preto, todo escuro, você ficava deitado, um mau cheiro danado, de fezes, de urina, porque os caras que ficavam lá faziam as necessidades ali mesmo, né. Aí eu fiquei lá. Pensei “O que que será que esses caras vão fazer comigo aqui?”. E eles te deixavam lá, ligavam um som lá e, de repente, aquilo ia aumentando e você tampava… mas não conseguia… Te azucrinava o ouvido. E chamava geladeira porque eles ligavam o ar frio, aquilo ia esfriando, esfriando… Você nu… Você tremia de frio ali. Daqui a pouco parava, ia esfriando, e vinha um calor desgraçado. Então, era um contraste violento. Aí, quando foi no dia seguinte, de manhã, abriram lá, disseram “Veste suas roupas”. Aí vesti minha roupa, não fizeram, não deram porrada, não deram nada. Eu tô quieto. Saímos, chegamos lá fora, aí eu vi mais dois presos lá, eu reconheci, era o Amadeu, que era da minha organização, e o Júlio, algemados, um em cada outro. Entramos no carro, na Kombi. Eles fizeram, a Kombi que nós entramos, o banco que nós ficávamos sentados, a gente ficava de costas para o motorista, isso era a estratégia deles para a gente não fazer nada, algemado e com um negócio, com uma correntinha que prendia no chão, então, você não tinha movimento. Aí, fomos embora, tamos viajando. Quando chega em Petrópolis, na serra, o cara virou e falou assim “Olha, nós vamos a Juiz de Fora”. Na hora em que ele falou aquilo eu gelei, falei “Ih… Zé Paulo”, eles disseram “Nós vamos lá capturar lá o Zé Paulo Neto e o Avelino Koch Torres. E o João Carlos, como é da cidade, vai ser nosso cicerone lá”. Eles fizeram isso de sacanagem pra mim, tá. Falei “Nossa mãe, e agora?”. Aí, quando chegou aqui em Juiz de Fora, vocês não devem lembrar, não, ali na esquina da Halfeld, onde é a Arpel, ali era o Café Astória. Vocês chegaram a lembrar disso? Não, né.

Antônio Henrique: Não…

João Carlos: Ali tinha o Café Astória, o pessoal sentava ali para tomar um cafezinho. Na hora que eu vi o Café Astória eu falei pra ele “Olha, o pessoal que me conhece, se me ver aqui, eles vão me chamar”. Porque o carro era tudo sem placa, placa fria. Ele falou “Então abaixa a cabeça aí”. Aí eu abaixei, e eu vi logo um conhecido meu ali. Se me vissem, iam me chamar, pô. Aí fomos direto pro QG. Chegando, paramos na porta lá, aí, o sentinela disse “Identificação”. Aí, esse cara foi e tirou a carteira e mostrou pra ele. “Ah, capitão Acosta?”, “Não fala meu nome, poxa…”. Eu falei “Capitão Acosta, esse nome eu não vou esquecer não”. Aí, “Pode entrar”. Aí entramos, quando chegou na… lá, tiraram a gente, descemos, puseram a gente numa sala trancada, aí eu pude conversar com o Amadeu, né. Falei “Amadeu, como é que está?”, ele falou “Não aguento mais, não… estou com os rins inchados de tanta porrada… e choque”. Aí eu perguntei “E a Ana Maria?”, ele falou “Não, eu falei que ela não participava, não”, falei “Tá bom”, ele falou “Mas eu não tô aguentando, é muita tortura”, falei “Eu também, fizeram o diabo comigo, mas não levei isso que você levou, não…”. Aí, quando… aí, nós ficamos no quarto, né, aí nisso me tiraram. Quando foi à noite ele falou “Vem cá, entra aqui na Kombi”. Entramos na Kombi. “Nós vamos lá pro bairro Bom Pastor, lá mora o professor Avelino, né?”. E o Avelino era vice-diretor da Escola de Engenharia e ele tinha feito contato com a gente. Aí eu falei “Nossa mãe, agora é o Avelino…”. Não tem o Clube Bom Pastor? Tem aquela rua que sobe, é… Não sei o que lá, Batista de Oliveira, ele mora lá até hoje. Aí, parou o carro deles aqui e outro carro de lá, próximo da rua onde ele ia subir, né. Aí ele virou para mim e falou assim “Olha, quando o carro dele passar você fala ‘é esse aí’, aponta”. E eles faziam aquilo de sacanagem, porque eles já sabiam de tudo, era só para me tornar assim “dedo-duro”. Falei “Nossa mãe, e agora?”. Eu torcendo para ele não passar, né. Nós ficamos lá até duas horas da manhã e ele não apareceu. O cara danado da vida, “Esse desgraçado… Vamos embora”. Aí viemos embora. Falei “Pô, escapei dessa”. Aí, no dia seguinte, de manhã cedo, o Avelino foi levar os filhos dele no colégio, ali perto da… da Catedral, sei lá… Aí, depois, ele me falou que quando ele parou o carro, deixou os filhos lá e quando estava voltando, os caras disseram “Fica quieto aí. Avelino, né. Vamos embora”. Aí, ele ainda gritou “Olha, avisa à minha mulher aí que o exército está me prendendo, hein!”, aí o cara falou “Cala a boca!”, aí ele entrou. E ouviram lá do Centro Industrial, porque ele tinha indústria aqui também, de… negócio de geladeira. Aí, o levaram lá para o QG e, por sorte, eu ouvi o interrogatório dele lá. “Você teve contato com o pessoal da RAN, não teve?”, “É, me contrataram sim, mas não deu nada, não”, “Não deu nada o quê?”, “Não deu nada, não”, “Mas nós vamos saber isso direitinho, tá”. Aí eu ouvi isso. Falei “Bom, eu já estou liquidado, então, vou livrar a cara dele, vai ser agora”. Aí, quando me puseram na frente dele, “Quem é esse aí?”, falei “É o professor Avelino Gonçalves Koch Torres, ele é vice-diretor da Escola de Engenharia”, “Não, mas o que ele é?”, “Ele é meu amigo e é meu padrinho de casamento”, “Não, mas eu não quero saber isso, não. Eu quero saber a ligação com vocês”. Aí, eu olhei bem para ele, pro Avelino, e falei “Não, eu fiz contato com ele porque a organização mandou, mas depois a organização falou que não fizesse mais, devido à fragilidade ideológica dele. Ia por em risco a organização”. Aí mandaram eu parar, não contar mais com ele não. E olhei para ele para ver se ele entendeu meu recado. E ele entendeu. Aí ele falou uma coisa lá que… nossa mãe… quase me deu vontade de rir. Os caras lá falaram: “Mas você… esse contato… porque você não continuou lidando mais com esta organização?”, ele falou “Porque eu só acredito em duas organizações no Brasil”, o outro falou “Quais?”, “Na igreja e nas forças armadas”. Na hora que ele falou aquilo ele levou um sopapo no peito! Mas quase que eu ri… Falei “Ele é doido”. Olha, as duas organizações que ele falou que acreditava… Igreja e forças armadas… (risos) Aí, resultado: não levaram ele pro Rio, nem ele nem o Zé Paulo. Aí, esse cara vai e telefona pro coronel, chefe dele lá no Rio, falando com ele, e eu tava ouvindo a conversa dele. Fala “Oh coronel, não vamos levar não… O comandante da Região aqui, general, falou que se tiver processo vai ser aqui mesmo. Como é que eu faço? Ah é? Isso não vai dar em nada”. Aí desligou o telefone, aí virou pros capangas dele e falou “Pega esses três filho da puta aí…” Era eu e os outros dois, né. “Vambora pro Rio”. Aí entramos pro carro. Eu lembrei que ele tinha falado que se ele não conseguisse que iria matar a gente. Falei “Será que ele está lembrando disso?”. Ah, mas não deu outra. Quando chegou na serra de Petrópolis, já era de madrugada, falou “Bota o capuz neles aí. Deixa eu ver esse lugar”. Eu não tava vendo, né. Aí “Deixa eu ver se a arma tá boa…”. Aí ele atirou “pááá… pááá…”. Pra fora assim… que que esse cara vai fazer? Ele falou “Olha, para economizar munição…”. Ele pegou, levantou o capuz, colocou, senti aquele troço frio aqui… Falou “Uma bala só, uma munição só atravessa a cabeça dele e pega os outros dois…” Falei “Nossa mãe… chegou minha hora”. Eu senti aquele troço assim… Aí, “tac”… Porque ele tirava, pô, mas aquele “tac” lá que ele fazia… Ele fez três vezes isso. Aí dava tiro pra fora, tornava a fazer. Falei “Mas que cara desgraçado…”. Aí que eu vi que ele estava fazendo aquilo para tortura psicológica, né. Aí depois eles começaram a rir, “Comunista tudo medroso, hein, metido a guerrilheiro, né…”. Eu fiquei quieto, né. Aí chegamos lá na PE de novo, me colocaram na “geladeira”, não falaram nada. Quando chega no outro dia, dez horas da manhã, me deram as roupas, “Vambora”. Aí saí, entrei na Kombi, o motorista era o mesmo que tinha nos levado. Aí, aconteceu um fato esquisito, o motorista falou “Como é, vamos para Juiz de Fora?”, falei “Ué, vocês que decidem”, falou “Não, você vai pro DOPS de novo”. Quando entrei no carro ele falou “Você fuma?”, falei “Fumo”, “Você tem cigarro?”, falei “Não”. Ele foi e me deu um maço de cigarros e uma caixa de fósforos. Falou “Toma procê”. Olhei pra ele, falei “Poxa, obrigado”. Aí chegou lá no DOPS, me puseram lá, aí o pessoal “Oh João, como é que foi?”. Aí contei para eles o que que tinha acontecido. Falei “Desgraçados”, “Mas não te torturaram de novo não?”, falei “Não”. Aí contei o lance do motorista. Eles falaram “Ah, ele é motorista, né, ele tá sabendo o que tá acontecendo, mas ao mesmo tempo ele ficou com pena de você, né”. Aí me deixaram lá, fiquei quieto, né. Aí, aconteceu um lance… Lembrando, por falar nisso… Aí aconteceu um lance um dia lá, que eu fiquei assim… Eu lembro demais… Porque chegou um major do exército lá, me chamaram e falaram “Venha cá que o major quer falar com você”. Aí cheguei, o major tá lá, um escrevente, né. Falou “Olha, você foi preso em Juiz de Fora, é do Partido Comunista, a Livraria Sagarana”, falei “É”, “Muito bem, agora você está na Resistência Armada Nacional”, falei “É”. Aí, ele fez algumas perguntas lá, mas pelo que ele fez, as mesmas que já tinham feito lá. Aí disse “Assina aqui”. Assinei. Aí ele virou para mim e falou “Olha, agora, quando este processo chegar na Auditoria, você vai ser processado, aí eles lá é que te põem em liberdade. Tem alguma pergunta a fazer?”, falei “Tenho duas”, “Quais?”, falei “E a minha mulher?”, ele falou “Ah, é, eu não te perguntei qual era a atuação dela, foi bom você lembrar”. Na hora em que ele falou aquilo eu gelei… Falei “Nossa mãe!”, “Como era a atuação dela?”, falei “Não, ela não participava”, “Não participava? Mas vocês faziam reunião lá na sua casa, poxa, como é que ela não participava?”. Eu fui e dei uma de machista, né, falei “Ah, eu não iria deixar minha mulher mexer com isso, fala demais, ela ficava era fazendo café pra gente lá, o papel dela era esse mesmo”, ele falou “Olha, eu ainda vou interrogá-la, se ela disser o contrário vocês voltam, hein!”, falei “Tá bem”. Aí eu fiquei naquela, “Será que eles ainda vão interrogá-la?”. Eu não sabia, né… “E qual é a outra pergunta?”, falei “Major, tô há trinta e tantos dias nesta solitária aí, eu tenho que ficar lá?”, ele falou “Não, isso aí não é comigo, isso aí é o pessoal do DOPS aí que tem que liberar isso”. Aí foram embora e eu fiquei lá. Aí eu comecei a ficar tranquilo, porque eu já tinha feito, eu assinei, eu vi lá… Como é que é, Auditoria do Exército, não sei o quê lá… Falei “Bom, então eu não vou morrer”. Aí, passou uns dias, os caras abre lá e fala “Oh Horta, tem visita para você aí”, falei “Visita? Quem que é?”, “Ah, uma senhora de cabeça branca…”, falei “Minha mãe… Nossa… É agora”. A minha mãe talvez vocês conheçam de nome, ela já faleceu, mas a ASCOMCER, ela que fundou, o hospital tem até o nome dela, Maria José Baeta Reis. Aí eu falei “Nossa, minha mãe…”, aí o pessoal “Vai lá”, “Não, claro que eu vou. Pô, ela vai chorar, vai me ver eu aqui, dez quilos de emagrecimento, pô, a barba por fazer…”. Aí eu pedi lá “Deixa eu fazer a barba, pelo menos”. Aí ele trouxe o aparelho, fiz a barba, aí fui lá. Aí uma lição da minha mãe, na hora que abriu a porta, que ela me viu, ela deu um sorriso, me abraçou “Oh meu filho, que bom te ver!”. Eu chorei. Ela falou “Não chora não que você não é bandido, não, você tá aqui por questão política, eu tenho orgulho de você. Não tem nada que chorar, não!”, “Oh mãe… eu fiquei…”. Inverteu o negócio, achei que ela que tinha que chorar, pô. Aí ela veio com aquelas perguntas de mãe “Vem cá, te torturaram?”, falei “Não”. Nunca falei com ela. O que que ia adiantar eu falar para ela isso? Falei que me deram uns tapas, só, que não passou disso. “Não torturaram, não?”, “Não, mãe, não torturaram, não”. Eu não ia falar. Pra quê que eu vou falar isso pra ela? Falei “Não”, “E aí, eles te dão alimentação direitinho? Tem café da manhã, pão com manteiga?”, falei “Tem, pão, manteiga”, “E almoço, tem? E a comida é boa?”, falei “É”. Era uma desgraça a comida, que ela vinha lá da Frei Caneca, do presídio lá, até chegar lá, esfriava, tá. Aí ela falou “Você não quer comer um sanduíche, não?”, falei “Não”, “Quantos presos são vocês aí?”, falei “Nós somos quinze”, “Todos políticos?”, falei “Todos políticos”, “Ah, eu vou lá fora comprar”, “Não, não vai não…”, “Não, vou sim”. Aí ela foi lá, voltou com um embrulho, acho que tinha uns vinte sanduíches de misto quente. “Que isso, mãe?, “E os colegas seus aí?”. Eu olhei pra ela, falei… “Pô…”. Aí ela despediu, foi embora. Aí na hora que eu tô voltando… aí o Vieira, que era um canalha que tinha lá, era plantão dele, era um inferno o cara, tudo o que ele fazia para prejudicar a gente ele fazia. Ele não batia, não. Ele falou “O que é isso aí?”, falei “É sanduíche que minha mãe comprou pra mim”, “Não, mãe de comunista, deixa eu ver esse sanduíche, me dá um aí…”. Pegou, comeu. “Bom o sanduíche”. Aí ele comeu o sanduíche, eu olhei pra cara dele, falei “Oh Vieira, o major já veio aqui, já fiz o depoimento pra ele, vai mandar pra Auditoria. Ele falou que não precisa ficar em solitária não, que isso aí é com o DOPS aí…”, “Não, vou te tirar hoje, agora, da solitária”. Eu olhei, “Pôxa, um sanduíche misto quente, hein…” Foi o preço que eu tive que pagar. Daí… minha mãe… “Pô, mas sua mãe comprou pra todo mundo?”, falei “Comprou, come aí”. Aí ele me tirou. Aí eu saí da solitária, foi um alívio desgraçado. E tinha lá o Adauto, que era um preso político da VAR-Palmares, ele era gozadíssimo, ele divertia a gente… Tinha a solitária, tinha uma outra cela, que cabia no máximo três pessoas, e uma outra que cabia acho que uns oito. Aí o apelido delas era, a solitária era o Ratão, a cela pequena era Menchevique e a grande era o Maracanã. Eu falei “Ah, tá bom, uai. E eu fui pra onde?”, “Não, você vai ficar na Menchevique”, falei “Tá bom…”. Aí corri lá, não teve mais problema nenhum… E aconteceu um outro fato… Inusitado. Um dia a “famiage” de um dos presos foi lá visitá-lo, aí levou frango assado, maionese, mais não sei o quê. “Aí gente, dá para todo mundo isso aqui!”. Que beleza! Aí o Adauto falou “Mas falta um detalhe aqui”, “O quê?”, “Uma cachaça, para fazer uma batida de limão”, “Você está ficando maluco, rapaz, que cachaça…”, “Não, sabe quem tá de plantão hoje aí?”, “O Orlando”. Era um agente penitenciário que tudo o que era proibido ele fazia pra gente. Nós não podíamos ler jornal, ele dava o dinheiro, ele comprava os jornais pra gente. A gente não podia ouvir rádio, ele pegava, emprestava o rádio dele. Ele não aceitava um palito, um cigarro, nada. Falava “Não, vocês estão presos, eu não tô não, eu posso sair, vocês não”. Aí o Adauto foi lá “Oh Orlando…”, “Poxa, que festa, hein!”, “Mas está faltando um detalhe”, falou “O que que é?”, “Encher isso aqui de cachaça e batida de limão”, falou “Adauto, você está doido, vou trazer cachaça, vocês vão ficar bêbados aí, aprontar uma…”, “Aqui nós somos quinze presos. Duas garrafas de cachaça para quinze, misturada com água, vai dar duas doses para cada um”. Ele tanto fez que o cara comprou. Foi lá e encheu duas garrafas de plástico de cachaça. Aí aconteceu um negócio gozado… Pô, a gente preso um tempão… eu fiquei bêbado! Efeito psicológico, deve ser também. O outro começou a chorar, “Quero ir embora!”. Aí passou, né. Aí quando foi um dia, aí chegou um outro preso lá. Foi uma coisa horrível que aconteceu. O… como é que ele chamava, gente?… Eu lembro o nome dele… Ele chegou nervoso… Falei “O que que houve? Tá nervoso?”, falou “Não, nada não”. Aí, no dia que ele… Que o Orlando tava lá, que comprou os jornais, aí, na hora que ele tá olhando ele falou “Quê? O que que houve?”, “Poxa, esse rapaz tava preso comigo…”, “O que que foi, o que que aconteceu?”, falou “Não, quando eu fui preso…”. Ele sabia que esse Nerival, que era da ALN, ele perdeu o contato com os companheiros dele, porque uns morreram, outros foram pro exílio, outros foram presos. E ele ficou sem ninguém, então, ele o procurava sempre, para dar uma ajuda financeira pra ele. Falou “Mas aqui, rapaz… Diz que ele morreu num tiroteio. ‘Terrorista foi morto no subúrbio do Rio de Janeiro em tiroteio com a…’”, “Pô, ele tava preso na PE, pô… Eles mataram o cara”, falei “Como é que foi a prisão dele?”, falou “Ah, a prisão dele, ele telefonava lá pra casa, eu fazia contato com ele, eles ficaram sabendo disso. Aí me falaram ‘Você mora com quem?’ ‘Mora eu e minha mãe’, ‘Então vamos lá para sua casa. Vamos aguardar esse telefonema. Agora, se você vacilar, nós vamos levar sua mãe lá para a PE e você vai ver o que nós vamos fazer com a sua mãe, na sua vista, viu.’”. Aí ele falou “Nossa mãe do céu…”. Aí voltaram lá pra casa dele, passou dois dias o cara telefona, Francisco Jaques. “Oh Jaques, sou eu, o Nerival”, ele falou “Escuta, preciso de uma ajuda sua. Você tá onde?”, “Estou em frente ao seu prédio aqui, na Rua das Laranjeiras”. “Ah, tá bom, eu vou aí”. Aí os caras “Olha, não dá sinal para ele, não, hein”. Era uns seis caras, agentes da repressão, estavam lá com ele. Aí ele falou assim “Aí eu fiz a única coisa que eu podia fazer. Ele lá do outro lado da rua, é natural você ver um amigo seu, você dar um sorriso… Aí ele olhou pra ele bem assim e fechou a cara, fechou a cara, aí o cara entendeu”, falou “Tem alguma coisa errada nisso aí…”. Deve ter pensado assim. Aí ele viu dois caras vindo de um lado, dois do outro, três atrás do Jaques, aí foram arrancar a arma dele, os caras pularam em cima dele, deram porrada nele, ele caiu no chão… Aí tinha um vendedor de sorvete, picolé, ali, sei lá, falou “O que é que tá havendo aí?”, falaram “Ah, isso é um maconheiro”, falou “Maconheiro coisa nenhuma, eu sou da ALN, eu sou um guerrilheiro, eu luto contra a ditadura”, falaram “Cala a boca”, “Eles são da… Eles estão me prendendo…”. Aí levaram ele pra PE, o cara chegou na PE, o Jaques, falou que chegou lá… Eles eram muitos… Como é que se diz? Predestinado… Sei lá… Uma coisa… Chegando lá “Qual o seu nome?”, falou “Nerival não sei o quê… Sou um guerrilheiro da ALN e não vou dizer mais nada pra vocês”, falaram “Vai”, “Vocês podem me torturar à vontade, podem me matar, que eu não falo”. Eles torturaram, ele não falou, eles mataram ele. Aí o Jaques ficou apavorado, né, falou “Pô…” Aí um dia lá, num dia lá, tinha um outro agente lá…

Antônio Henrique: Só para tentar fixar: o que foi morto, o que estava no jornal é que foi um acidente?

João Carlos: Não… O que foi morto? Tava no jornal que foi um terrorista lutando contra as autoridades, trocou tiro. Mentira, ele estava preso, ele não trocou tiro com ninguém. Eles mataram ele, levaram, deram uns tiros nele e largaram lá e falaram que era terrorista. Tem um livro de Brasília, que é de graça, depois eu passo para você, você pede. Tem a relação de todos os mortos e desaparecidos, tá o nome dele lá, tá. Todo mundo lá… Aí, vai escutando. Aí, num dia lá, um que trabalhava lá junto no gabinete do diretor, chegou e falou “Olha, vai ser solto amanhã o João Carlos e o Jaques”, “Ah, vai?, “Vai, eu vi lá na mesa do diretor”, falei “Pô… Nem acredito…”. Aí, no dia seguinte, os caras chegam lá “Os cara tão aí pra te soltar”, falei assim “Pra me soltar?”, “Não, os caras são os caras da PE, tá…”, falei “Nossa mãe, mas PE? Não é pra gente ser solto?”. E tinha um… O chefe deles lá, um tal de Bolinha, um gordinho, covarde que só, tá… Aí algemaram a gente, isso era o quê… Dez horas da manhã. Algemaram, os cara tudo embalado com metralhadora, entramos no carro, aí “Vão voltar pra PE, né…”, falei “Puta merda… Tô vendo… Presidente Vargas, Tijuca”, falei “Vamos voltar pra PE…”. Aí, nisso, daqui a pouco eles param lá na PE, conversa com o sentinela, aí chama um oficial lá, aí… E eu tô ouvindo, nós estamos ouvindo… Falou “Oh idiota, você não tá vendo que eles vão ser soltos? É lá no Primeiro Exército, lá perto da Central, na Presidente Vargas”, “Ah, é, eu pensei que…”. Ele fez de maldade… Aí entramos de novo, eu olhei pro Jaques, falei “Cara safado esse cara…”. Aí voltamos na Central, na PE, o Primeiro Exército, tem aquela Central do Brasil lá no Rio. Aí eram onze horas da manhã, aí, uma sacanagem, na hora em que a gente desceu, cheio de gente, aí nós algemados, né, e eles com metralhadora apontando pra gente, todo mundo parando pra ver, né… Aí entramos, falou com o sentinela, mandou entrar, aí desce um oficial lá, mete o fumo neles “Que negócio é esse? O cara algemado, ele vai ser solto! Pra quê essas metralhadoras? Larga isso aí”. Aí tirou as algemas… Ele fez de sacanagem isso, só pra atemorizar a gente. Aí subimos, fomos lá em cima, aí deram café, água gelada, pra gente, né… (risos). Aí falou “Olha, a partir deste momento vocês já estão liberados, agora, não pode sair do Rio de Janeiro, não, de quinze em quinze dias tem que vir aqui assinar presença. Depois que o processo chegar na Auditoria, aí vocês não precisam vir aqui mais não, mas não pode sair da cidade”. Tá bom. Assinamos. Pode ir embora. Aí, nós tínhamos pego dinheiro com o pessoal lá da prisão, né, aí o Jaques falou “Você vai pra onde?”, falei “Ah, eu vou pra Laranjeiras, minha mulher trabalha no SESI…”. Falei com ele. Ele falou “Eu vou lá em Laranjeiras”, falei “Então vamos pegar um táxi”, “Então vamos”. Aí pegamos um táxi, descemos no Largo do Machado, aí o Jaques falou “João, vamos tomar a cerveja da liberdade?”, falei “Vamos”. Entramos num bar, pedimos uma pilsen extra, bebemos, aí ele virou e falou “Olha… Eu e o Aquino escrevemos muitos livros de história. Você que é livreiro, você pode pegar uns livros com a gente pra vender, vai dar pelo menos pra começar a ganhar um dinheirinho”, falei “Como é que eu te encontro?”, falou “Toda sexta-feira eu estou no Lamas, é ali na Rua do Catete”, “Ah, então sexta-feira…”, falou “Agora não, a barra tá pesada pro meu lado. Deixa passar uns dias”, falei “Tá bem”. Pô, vinte e poucos dias depois, tô em casa, ligo a televisão na hora do jornal, é: “Terroristas da ALN assassinaram hoje o professor Francisco Jaques, no Colégio Veiga de Almeida, na Tijuca”. Falei “Nossa mãe… Mataram o Jaques…”. Aí, depois que eu fiquei sabendo que os caras da ALN foram lá, perguntaram “Professor Jaques, onde é que é?”, “É naquela sala”. Aí eles foram lá, falaram “Professor Jaques, ALN”. E “tuf”” Mataram ele. Falei assim “Pior que a ditadura!”. O Aquino bem falou comigo “João, um dos que matou é o Meireles, que é professor agora no Recife. Tenho certeza. Ele é professor lá no Recife                             ”. Pô, eu gostaria de encontrar com esse cara… Falar “Olha, vocês… Você não vê diferença nenhuma para a ditadura, não… Poxa, como é que vocês vão matar… Ah, ele dedurou. Dedurou o quê? Você sabe como é que foi? Ele estava na casa dele, com a mãe dele, os caras ameaçando levar a mãe dele para a PE, você queria que ele fizesse o quê? Que ele desse um grito pelo meio da rua pro Nerival lá, que eles iriam prendê-lo? Vocês não podem fazer esse tipo de coisa, não, de jeito algum”. Aí eu fui lá no SESI, né, porque a minha mulher trabalhava lá, mas eu estava magro, barba por fazer, roupa suja, roupa quase um ano que tava comigo, mais de ano, né. Aí, cheguei na porta, o guarda, o segurança, disse “Onde é que você vai?”, “Vou falar com a minha mulher, “Sua mulher trabalha aqui?”, “Ela é a assistente social Ana Maria”. Ele ficou me olhando, desconfiado… Foi lá. Aí ela veio correndo me abraçar, vieram as colegas dela, me abraçaram. Ela disse “Ah, como é que está?”, falei “Ah, saí hoje”, “Poxa, vamos pra casa”, “Não, pode ir, vai com ele”. Aí fomos para casa. Falei “Olha, esta roupa aqui, joga no lixo, viu, tá fedendo a prisão”, ela disse “O que você vai fazer agora?”, “Agora? Eu quero ir na praia correr. Eu fiquei cinco, trinta e cinco dias numa solitária”. Aí, desci e fui na praia. Eu ficava correndo igual a um doido para lá e para cá, dava um mergulho… Eu tava… Andar que eu queria, correr. Depois voltei, tomei um banho, aí saímos. Falei “Você tem dinheiro aí?”, ela falou “Tenho”, “Então vamos comer num restaurante qualquer aí”. Aí fomos lá, comemos, e eu tentando… Eu fiquei assim… durante mais de um ano eu não podia ouvir palavrão. Porque lá na PE os torturadores só chamavam a gente com palavrão: “Seu filho disso… sua mãe é isso…”. E aquilo lá me marcou. Então, quando eu tava com os amigos, tomando cerveja, se o cara falasse palavrão eu ficava… Eu lembrava daquilo. Eu fiquei um tempão traumatizado com esse troço, custei a… E outra coisa, devido às torturas, também, eu sentia o seguinte, de vez em quando, quando eu tomava, eu bebia, aí de manhã, embriagado, eu acordava assustado: “Pô, tem alguém aí, são os caras de novo”. Mas era na minha cabeça. E sabe o que eles fizeram comigo? Um dia eu chego em casa, uns quinze dias depois que eu tava solto, chego em casa, a hora que eu vi, a porta tava arrombada. Eu olhei aquilo, falei “Opa”. Aí peguei o elevador, desci, chamei “Ô Zé, quem entrou lá no apartamento? A porta tá arrombada”, ele falou “Ah, não vi não”, falei “Tá, uai, vem cá”. Aí fomos lá. Deixa eu ver o que que eles roubaram… Os livros estavam todos no lugar, tudo. Abri o guarda-roupa. Aí levaram umas joias da minha mulher, aliança, mais não sei o quê… Eu tinha lá em casa um cassetete de madeira, que foi do meu avô, eles levaram. E tinha um punhal também, de um cara que teve lá do nordeste, um punhal grande, assim, que eles chamam de peixeira, levaram também. E uma máquina de escrever que eu tinha comprado. Levaram a máquina. Era portátil. Aí falei “Vou lá no Modesto”, que era meu advogado. Fui lá. “Modesto, aconteceu isso, isso e isso”, ele disse “Você tem nota fiscal da máquina?”, falei “Tenho”, ele falou “Vai agora lá no Distrito Policial, leva a nota fiscal, fala que assaltaram a sua casa e levaram esta máquina”, falei “Por quê?”, “E se eles usarem esta máquina para escrever um troço qualquer?”, falei: “Ah, é…”. Aí levei lá, fiz a queixa, eles foram lá e tentaram tirar. Tudo palhaçada. Impressão digital. Aí falei “Esta máquina aqui é a nota fiscal dela. Está aqui, levaram”. Aí tiraram xerox. Mas nunca eles fizeram nada. Ficou por isso mesmo. Acabou. Aí, nesta época eu trabalhava com a Importadora Santiago, eu fazia assinaturas de revistas técnicas, de medicina, de… para médicos, principalmente. Assinatura de revista importada, né. Aí eu falei “Pô, agora ninguém vai arrumar emprego para mim, né…”, pensei comigo. Eu vou me apresentar lá. Aí fui lá. Cheguei lá, perguntei “O Santiago tá aí? Fala que o João Carlos quer falar com ele”, ele falou “Oh João, entra aqui, vem cá, como é que é? Que dia que você saiu?”, falei “Saí ontem. Vim trazer esse material aqui”, “Uai, por que, não vai trabalhar aqui mais não?”, “Ah, não sei, você que manda”, ele falou “Não, vai trabalhar comigo. Não interessa, não. Ou você não quer?”, falei “Não, querer eu quero, eu preciso”, “E faz o seguinte…”. Aí ele me surpreendeu. “Vai sábado lá em casa, tomar um whisky lá comigo, conversar”, falei “Tá bom”. Aí, no sábado eu fui lá, beber um whisky lá com ele. Aí ele falou “Não, não tem nada a ver, não, você continua trabalhando comigo lá e… Você tem que ganhar seu dinheiro, né…”. Aí, aos poucos eu fui voltando à vida normal. Aí aconteceu um outro negócio. E ficou uma briga entre o exército e a marinha, porque na nossa organização tinha militar do exército fazendo parte e tinha oficial da marinha que fazia parte da organização também. Então, eles brigavam para ver quem tinha direito de processar a gente, se era a Auditoria do Exército ou a Auditoria da Marinha. E, com isso, eles foram… Nós saímos… Foi até 1977, aí a política da ditadura começou a modificar, com o Geisel, porque os americanos já tinham mudado de governo, esqueci o nome dele, que era o presidente lá, ele entrou com aquele negócio de direitos humanos, aí, o Geisel, com aquele negócio de “abertura lenta, gradual e segura”. Segura para eles, né, para não acontecer igual na Argentina. Porque lá eles estão morrendo na cadeia, os generais. Aqui, eles negociaram para sair. E conseguiram, tanto é que não deu em nada para eles, né. Eles que fizeram a Lei da Anistia, fizeram de um modo que… Melhor para eles. Aí, quando foi em 1977 iniciou o processo. Demorou uma semana. Aí quando foi… Ah, é, tem um fato… É, aí iniciou o processo. Quando foi na sexta-feira, eles se reuniram para dar sentença. Aí falaram “Olha, vocês podem descer, vai demorar aqui para dar a sentença. Volta mais tarde aqui”, aí eu falei “Ah, vou ficar aqui”, o Modesto falou “Não vai ficar aqui não”, falei “Por quê?”, “E se te condenarem? Vai com o pessoal, vai tomar um chope, eu fico lá”. Aí ficamos lá embaixo. Quando foi cinco e pouca voltamos. Aí voltamos. Chegamos lá, tinha uma moça descendo, perguntei “Vem cá, já deram a sentença?”, “Deram”, “O que que deu?, “Condenaram cinco por pegarem em armas mais violentas, deram doze anos para eles”, “E o resto?”, “Absolvidos”, falei “Mas quem são os cinco?, ela disse “Amadeu, José Sérgio…”, falei “Poxa, doze anos, nossa mãe!?”. Aí, eu fui embora, mas antes eu queria despedir do pessoal. Aí cheguei e falei “Oh gente, infelizmente aconteceu isso…”, eles disseram “Olha… Pensei que fôssemos pegar trinta anos… Doze anos tá bom”, “Rapidinho dá, isso é rápido”, falei “Isso é muito doido, doze anos…”. A sorte deles… era 1977, né. Dois anos depois veio a anistia. Aí eles foram liberados. Aí o Hermes, esse que eu estive preso com ele aqui, nunca esqueci isso que ele falou para mim… No dia em que eles saíram eu fui lá esperá-los, né, na porta do presídio. Aí falei “Oh Hermes, o Brizola voltou”. Porque ele era ligado… Ele estava ligado ao Brizola, né. “E você agora, vai entrar no partido do Brizola?”, ele falou “Não.” Ele trabalhava na Caixa Econômica, lá em Porto Alegre. Ele disse “Eu vou a São Borja, na minha terra”, falei “Por quê?”, “Ah, eu entrei na clandestinidade em 1965. Saí de férias e estou voltando agora. Nós estamos em 1969. Fiquei três anos preso em Juiz de Fora, sete anos preso aqui no Rio”, “E o que você vai fazer?”, “Ah, eu vou em busca do meu passado, meus amigos… Meu pai já morreu… Uma irmã minha já casou, tem filhos… Eu quero ver todo mundo. Depois vou ver o que eu vou fazer”, falei “Esse cara, vou te contar uma coisa…”, dou muito valor a ele, porque ele foi a Porto Alegre, a São Borja, voltou para o Rio. Depois começou a trabalhar na… Como é que chama? Na previdência da prefeitura do Rio. Aí, eu fui algumas vezes lá tomar café com ele lá. Aí um dia eu cheguei lá e falei “E aí, Hermes, como é que está?”, ele falou “Bem. Hermes não, tá, Doutor Hermes”, falei “Por quê?”, “Formei em direito”, falei “Poxa… Te admiro… E agora?, “Ah, agora vou trabalhar no jurídico aqui”. Olha só o que ele conseguiu! Aí, quando foi agora, tem uns três anos atrás, eu fui lá. Eu estava no Rio, pensei “Ah, vou lá ver o Hermes”. Falei “Onde é que é o jurídico?”, “É ali”, eu disse “Eu quero falar com o Dr. Hermes’, “Ah, ele aposentou”, falei “Ele aposentou?” (risos). O desgraçado conseguiu pegar o tempo de Caixa Econômica todo, juntou negócio de prisão… ele arranjou um rolo lá… aposentou. Falei “Puxa vida, que legal que esse cara fez!”. O Amadeu, que ficou preso, esse que eu falei que sofreu “pra burro”, né… O Brizola voltou, foi ser governador, o Amadeu se elegeu deputado estadual, mas em consequência das torturas, ele estava lá perto de Rezende, no Estado do Rio… Não sei se vocês viram, teve uma época em que eles estavam fazendo a emancipação de vários lugares, acabaram emancipando… Ele tava lá ajudando. Ele se sentiu mal. Se sentiu mal, em vez de o levarem para um hospital, foram levar lá para o Hospital Getúlio Vargas… Ele teve um problema no coração… Morreu. Mas para mim isso foi consequência do sofrimento dele. Só pode ser, porque ele morreu… Ele devia ter o quê? Acho que ele não tinha cinquenta anos ainda. Porque a… a tortura… Eu fiquei, por exemplo, eu fiquei… quase um ano, eu não podia ouvir palavrão. Me… me dava… Por causa deles. Tinha hora que eu acordava de madrugada, eu ficava tendo alucinação, achando que os caras estavam atrás de mim. Custei a me libertar disso, viu, porque lá, as torturas que eles fizeram lá, não só comigo, todo mundo. Uns piores, né. Eles pegavam, tinha uma lá que eles me pegaram, tinha uma tina d’água, me empurraram a cabeça, tudo cronometrado… Eu” Hummm… arf… arf…”. Aí eles riam, né, “Gostou? Quer mais água?”, aí faziam isso, né. E choque, né. O choque era… Uma desgraça aquilo lá. Te dá um troço, você treme todo com o choque, tá. Qual que é pior? Não existe qual que é pior, não. Qualquer uma é ruim. O choque elétrico, o afogamento, a tal de “geladeira”, nossa senhora… Coisa horrorosa… Que foi o general Sylvio Frota que trouxe para cá no Rio, ele que trouxe da Inglaterra para cá, esse sistema de isolamento em que eles te deixam lá dentro, você fica doze horas quase sem comer, preso lá dentro. Aí, daqui a pouco os caras falam “Almoço”, te dão almoço. Aí você come. Daqui não deu duas horas ainda “O jantar”, “Mas eu almocei agora…”, “Que almoçou agora… Você almoçou na hora do almoço”, “Ah, é?”, “É”. Aquilo… Você vai… Desestruturando… Você perde a noção de tempo, tá. Na que eu estava lá no dia, com uma sede desgraçada, aí os caras abrem lá “Abre a mão”. Dois comprimidos. Aí pegam uma caneca, eu com uma sede danada, “Enche a caneca d’água”, aí, na hora que eu vi a água eu bebi… Tomei a água, eu estava morrendo de sede, né. Aí, “Enche de novo a caneca”, enchi, “Toma o comprimido”, falei “Puxa…”, deixei debaixo da língua, né. Aí tomei. Aí voltei para lá. Aí falei “E agora? Tomo ou não tomo esse comprimido? Que será? Que diabo que é isso aqui? Será que é para me matar? Ah, não, isso não deve ser não… Ah, que se dane! Vou engolir esta porcaria”. Engoli. Quando eu saí, tinha um psiquiatra amigo meu, eu contei para ele. Ele falou “Não… aquilo ali era um comprimido para te dar um relaxamento mental, para ficar mais fácil de te interrogar. Porque aí você perde as suas defesas, aí você fala”. Falei “Mas me deu medo, viu, tomar aquele troço, achei que podia ser para me matar…”, “Não, lá eles matavam quando eles quisessem. Não precisava de dar comprimido para matar não… Igual fizeram com o outro, te matam, dá um tiro, depois te enfiam em um buraco lá no subúrbio e falam que você morreu brigando, lutando contra eles…”. Quando eu fui preso, eu tava chegando em casa, era cinco e meia da tarde. Eu lembro disso porque a minha mulher tinha telefonado… Ela tinha falado comigo que nesse dia ela iria estar fazendo um tratamento de dente lá no Largo da Carioca e queria que eu fosse lá. Falei “Então eu vou lá, que horas?”, “Sete horas”, “Tá, eu vou lá”. Aí eu acabei meu trabalho mais cedo, eram cinco e pouca, falei “Ah, eu vou em casa deixar a pasta lá, tomar um banho e vou lá”. Aí parei no Bar do Espanhol, tomei um guaraná, tava quente, aí vim andando. Aí tava o Zé, porteiro, com dois caras com ele. Aí eu falei “Oh Zé, e o Fluminense, o nosso Fluminense?”, “É, tá bom, né”. Mas ele falou um “tá bom” não muito bom. Aí eu falei “Quem será esses caras que estão com ele?”. Mal imaginava, né… Eu morava no quinto andar, entrei no elevador. Na hora que eu abri a porta um cara disse “Olha, se mexer, morre”, aí eu falei “Que isso?”, ele falou “Pô, esse cara ainda para pra tomar guaraná, pô…”, falou “Bota essa pasta devagarzinho no chão”, eu fui falei assim “Ah, não tenho dinheiro”, “Que dinheiro, rapaz, nós somos da repressão, nós somos do governo”, falei “Nossa mãe…”. A gente tinha consciência de que você sendo preso, você podia ser morto, que você ia ser torturado e que podia ser morto. Falei ‘Nossa, e agora?”. Aí abriram a porta, me deram um soco nas costas, eu caí no chão… “Cadê o Hermes?”, falei “Não sei”, “Vai falar. Você sabe onde ele está”, falei “Não sei”, “Vai falar. Nós vamos te arrebentar aqui dentro”. E eu sabia onde ele estava, eu morava na Rua Ferreira Viana e ele tava na Corrêa Dutra, rua paralela, né. Falei “Como é que eu vou sair dessa? Meu Deus do céu, e agora?”, “Anda, fala logo”, “Não sei”, “Sabe. Nós queremos o Hermes”. Aí, eu lembrei “Espera aí, o Hermes morou em Sepetiba”, aí depois de eles baterem bastante, eu falei “Peraí. Eu já fui lá uma vez, mas eu não sei o nome da rua”, “Chama o doutor lá”. Quando eles falavam doutor, era o chefe da equipe, era um oficial do exército, né. Aí ele veio. “Ele vai falar. Onde é que ele mora?”, “Ah, na praia de Sepetiba”. Aí me deu um tapa no peito “Nós já estivemos lá naquele aparelho lá, não tem ninguém lá não”, falei “Ah, então eu não sei, o único lugar que eu sei que o Hermes mora é lá. Eu fui lá uma vez, só que eu não sei o nome da rua”, “Você não sabe?”, “Não sei, eu sei que é lá que ele mora. Tanto é que eu não queria falar, mas… O que que eu vou fazer?”. Aí eles aceitaram. Aí, quando nós fomos soltos, que eles foram soltos, eu falei “Hermes, como é que você foi preso, lá na Corrêa Dutra?”, ele falou “Ah…”. Ele estava no primeiro andar, né, quem morava lá era o Rogério e a Maria, que foram presos também. Eles chegaram lá, educadamente, bateram na porta: tum, tum, tum. Aí ele falou “É a polícia. Ninguém bate na porta assim, não… poxa, não tinha campainha… você não bate na porta assim tum, tum…”, ele falou “Poxa, eu vou embora”. Pegou a arma dele, enfiou aqui, pulou a janela, caiu na marquise, e tinha mais caras lá embaixo, ele vai, pula, ele caiu no meio dos caras. Os caras não esperavam, assustados. Ele desceu para pegar a praia do Flamengo para correr. Nisso, na hora em que ele está correndo, um cara na esquina falou “Oh Hermes, para aí, que eu vou te matar”. Ele virou para o cara, o cara com uma arma apontada para ele. Aí ele foi e parou. Aí os caras “tchuf”, jogaram ele, ele caiu no chão, tiraram a arma dele. Aí ele levou o maior susto. Ele estava fazendo um curso no SENAI, de… curso negócio de máquina, de motor… de automóveis, para a organização, tá. Aí na hora em que ele olhou assim, um professor dele. Ele olhou e falou “Hermes, eu sempre desconfiei de você.” Aí ele olhou, poxa, o professor era… Diz que nunca imaginou. “Você, com a sua cultura, fazer curso de mecânico… Não faz sentido”. Ele falou “Poxa, o cara, professor, estava a serviço dos caras”. Aí que ele foi para lá, foi ser torturado. Esse que eu falei que foi do Rio Grande do Sul, que formou em direito.

Rosali: Ao todo, quanto tempo o senhor ficou preso em Juiz de Fora, na primeira prisão?

João Carlos: Em Juiz de Fora, nós ficamos aqui oito meses. Mas aqui em Juiz de Fora não houve nada fisicamente contra a gente, não. Agora, lá, não… Lá eu fiquei um ano e quatro meses mais ou menos, no total. A semana que eu passei na PE foi… Eu não queria nem um dia… Porque aquilo lá era o inferno. No DOPS não, no DOPS não houve violência física, não.

Antônio Henrique: Na PE é que houve, né?

João Carlos: Na PE… na PE, lá, no dia em que eu cheguei lá, vou te dar o nome do cara aqui. No dia em que eu cheguei lá, aí eles me levaram, aí entrei lá no corredor, aí o cara “Seu nome.” Fui, dei meu nome, tal. Aí entregou pra esse capitão. O capitão falou “Olha, aqui é casa do inferno, viu. Você tava numa guerra, você perdeu. Nós temos dois tipos de diálogo, de alto nível e de baixo nível. Você vai conhecer o diálogo de baixo nível”. Ele abriu a porta, entraram dois caras grandão, e ele falou “Conversa com esse comunista aí. Ele é guerrilheiro, pô, ele vai conversar com vocês”. Eles só não davam aqui, mas me espancaram daqui pra baixo, soco, mais soco, “Anda rapaz, reage!”. Aí pararam, falou “Esse é o de baixo nível, agora você vai ver o diálogo de alto nível”, falei “Nossa, que que é agora?”, pensei comigo. Aí, ele sai, aí entra um camarada que eu vi logo que era oficial do exército, cabelo cortado certinho, uma prancheta na mão, “Tsc, tsc, tsc… Eu sou contra violência, um absurdo, tô vendo que você é um moço que tem nível cultural, um absurdo a violência, sou totalmente contra. Você vai conversar comigo em alto nível, conversar… Você é de Juiz de Fora, você morou lá?”, “Morei”, “Tinha uma livraria, Sagarana?”, falei “É”, “Partido Comunista?”, “É”, “Agora aqui no Rio você tá na luta armada?”, falei “É”, “Então você vai fazer o seguinte, vai me dar a relação do nome das pessoas de sua relação que política e ideologicamente pensam igual a você”, falei “Nossa mãe, que que esse… Nossa mãe…”, “Vamos conversar?”, falei “Peraí, deixa eu me organizar aqui”, “Não, não tem pressa, não”, falei “Peraí… e agora?”. Se bobear eu entrego tudo, né. Aí, a minha sorte chega lá, bate na porta, “Doutor, estão te chamando lá porque chegou peixe graúdo aí, pro senhor ir lá depressa”. Quer dizer, uma pessoa importante que eles tinham prendido, né. Falou “Toma aqui a prancheta, faz a relação aí, depois eu pego”, falei “Tá”. Aí peguei aquele negócio, joguei embaixo de uma mesa lá, sentei lá no chão e fiquei quieto, né. Não sei quanto tempo passou, depois abriram a porta, “O que você está fazendo aí?”, eu falei “Ah, sei lá, me puseram aqui, pô…”, “Vem pra cá”. Aí me levaram. Esse outro cara eu nunca mais vi, felizmente, tá, felizmente. Outro fato que aconteceu lá, na PE, um dia me chamaram lá, me pegaram, me levaram em uma sala cheia de fotografias, “Você conhece alguém aí?”, de cara eu vi que conhecia um médico psiquiatra que trabalhava lá no SESI, falei “Não conheço, não”, “Esse aqui?”. Apontaram direto nele, “Ah, devo conhecer…”, “O que ele é? “Ele é médico”, “Ah, eu conheço muitos médicos, trabalho com livros de medicina…”, “Não, mas esse aí é diferente. Você tem relacionamento com ele?”, falei “Não… Eu tenho relacionamento com eles era puramente comercial. Eu vendo livros, livros de medicina. Ele sendo médico, já vendi livros para ele. Posso ter vendido mais algumas vezes”. Tá bom, morreu aí. Aí, quando eu saí da prisão, no dia seguinte eu liguei para ele, “Oh Jorge, é o João Carlos”, “Pô, você saiu? Que beleza! É meu aniversário hoje, isso é um presente! Vem aqui em casa, tomar um whisky aqui comigo”, falei “Tá”. Cheguei lá, ele me apresentou uns amigos dele, aí me levou em um quarto, “E aí, como é que foi?”, Aí eu fui e contei, falei “Olha, me chamaram lá, tinha um retrato seu lá…”, ele falou “É?”, falei “É, mas eu falei que não te conhecia, que eu podia conhecer muitos médicos”. Ele dava aula na PUC. Falou “Ah, eles foram lá na PUC”, “Foram, te interrogaram?”, “Não, foram no reitor, perguntaram a meu respeito”, aí o reitor falou “Não… Ele é professor aqui, por quê?”, “Não, porque esse… Nós temos certeza que ele é subversivo…” (a entrevista é interrompida pelo celular do depoente). Mas aí, onde é que eu tava falando mesmo?

Rosali: Médico do SESI.

João Carlos: Ah, aí ele falou “Ah, eles me chamaram, eles foram lá na PUC, conversaram com o reitor, aí perguntaram a minha posição política com os alunos, lá, como é que era. Ele falou ‘Não, ele não tem posição política, não, ele dá aula de psiquiatria, psicologia, esses negócio, ‘Mas o senhor tem certeza?’, ‘Absoluta’”. Aí depois o reitor chamou, “Olha, vieram te perguntar aqui… Você com essas posições de esquerda aí, tá…”, ele falou “Ah…”. Mas não chamaram ele mais não. Aí ele ficou… Falei “Então tá bom, menos mal”. Mas a repressão, eles estavam muito organizados, viu, a ditadura, negócio de informações, quanto às informações, demais da conta, mas muito mesmo. Tanto é que, no sequestro do embaixador americano, eu tenho até o livro, quero ver o dvd do pessoal que fez o sequestro, aquele Franklin Martins, que foi ministro do Lula, ele que organizou. Aí falaram “Ah, vamos pedir o fulano, pedir o ciclano”, “Ah, põe pouca gente, poxa, embaixador americano…”, “Ah, bota esse aqui”, “Mas quem é esse aí?”, “É de Belo Horizonte”, “Mas ninguém conhece ele”, “Não, eu conheço sim, diz que ele é ótimo, um guerrilheiro da Corrente”, “Mas como é o nome dele?”, “Ah, não sei, só sei que o apelido dele é Xuxu1”, “Xuxu? Mas como é que nós vamos achar o Xuxu?”, “Rapaz, se ele está preso, eles acharam. Bota aí que a repressão acha”, “Então, eu vou escrever Xuxu mas vou escrever assim, olha ‘Shu-shu’”, “Mas por quê?”, “Aí eles vão pensar que deve ser um chinês, ou um vietcong… (risos)”, “Então vamos”. E puseram. E no dvd é gozadíssimo, o… aquele jornalista Flávio Tavares… Eles pegaram treze no Rio. Aí faltava esse Xuxu e o Gregório Bezerra, lá no Recife. Aí o Xuxu eles levaram ele pra Paraíba e pegaram ele na Paraíba. Aí o Flávio Tavares “Quem é esse maluco aí que tá chegando aí, assumindo a Internacional Comunista?”, falou “Ah, é o tal de Xuxu…”, falou “Mas vai ficar aí assumindo a Internacional Comunista, ele já tava indo embora, para…”. Aí pegaram o Gregório, a posição do Gregório Bezerra foi assim… Fora do comum. A maior parte dos comunistas foi contra a luta armada. Depois viram que tinha razão. Porque um dos caras que foi preso em função do sequestro, quando ele foi preso, o coronel pegou ele por aqui e falou “Desgraçado, sabe quantas organizações de esquerda vocês são? Trinta e sete organizações de esquerda. Sabe quantas nós somos? Uma. Vocês não vão ganhar isso nunca”, falei “Ele tinha razão. Eram várias organizações, a MR-8, Colina, mais não sei o quê… cada uma tinha um objetivo. Então, era impossível… E eles eram uma só, apoiados pelos americanos”. Então…

Antônio Henrique: O João Carlos, à época em que você conviveu em Juiz de Fora, na época da sua primeira prisão, você ficou sabendo de casos de tortura aqui em Juiz de Fora?

João Carlos: Não. Fiquei sabendo depois.

Antônio Henrique: Sim. E mesmo depois, ficou sabendo, aqui, tortura aqui?

João Carlos: Depois, é. Ah, a Dilma. A Dilma teve aqui.

Antônio Henrique: E além dela, alguém que fosse das relações, das suas relações?

João Carlos: Não, não… A Dilma teve aqui uma época, foi torturada lá no quartel, do Q.G…. Que eu sei daqui de Juiz de Fora, quando o… Penitenciária de Linhares, ela, naquela época, ficou só de presos políticos. Tinha um coronel, Ralf Greenwald, que já morreu, esse cara era um canalha, tá. Ele vivia bêbado. A mulher dele largou dele porque ele vivia bêbado, esse cara. Ele, volta e meia… Isso, um cara da penitenciária, um agente penitenciário, falou comigo… Sabe o que esse cara fazia? Chegava lá de madrugada, dava tiros para cima, soltava os cachorros para ficar latindo lá em cima dos presos… Aí, um dia, o Aquino falou comigo que ele chegou lá, foi lá na… Abriu a cela de um sargento…

Antônio Henrique: O Aquino também ficou aqui, preso, o Aquino também ficou preso aqui?

João Carlos: Não, ele ficou preso no Rio, ele ficou preso no Rio. Mas ele falou comigo que… O Aquino falou comigo… Ah, não, o capitão que esteve aqui que falou comigo, o capitão, ele era gaúcho. Falou “João, quando mataram aquele sargento, ele chegou lá de madrugada, aí abriu a cela do sargento, tava ele e mais quatro, só militar. Aí virou para ele e falou assim ‘Olha, sua mulher está na cidade aí’, ‘Ela vem me visitar?’, ‘Vem, deve estar com algum homem aí, em um hotel aí, porque ela é safada, né, você sabe disso…’” Falou com ele. Ele foi… o cara… ele fez menção de pular em cima dele, ele meteu uma coronhada e deu um soco nele lá. Aí esse cara falou “João, de madrugada, eu vi ele carregando o corpo dele em um lençol, levando lá, e aí falaram que ele se suicidou”, falei “Que isso…”, ele falou “Foi”.

Antônio Henrique: O Milton?

João Carlos: É, o Milton. E o livro da… desse… de Brasília, essa menina aí, a Daniela Arbex, ela é danada esta menina. Ela levantou tudo desse Milton, sargento Milton. Telef… Foi lá, perguntou lá e falaram “Não, esse cara já… o corpo dele foi transportado para o Rio Grande do Sul”. Aí ela conseguiu o telefone, ligou para a família e falaram “Não, o corpo dele nunca chegou aqui”. Ela descobriu que ele estava enterrado como indigente aqui no… na… Você sabe disso, né.

Antônio Henrique: Hum-hum…

João Carlos: Ele está enterrado aqui no cemitério como indigente. Eles mataram ele aqui.

Antônio Henrique: Mas isso é… É só de ouvir dizer a posteriori, né, bem depois que…

João Carlos: É, é, ah, muito depois, muito depois.

Antônio Henrique: Oh João… tem mais alguma coisa a acrescentar?

João Carlos: Não… Espera aí. Eu queria que vocês tomassem nota aí, tá. Esse capitão que pegou revólver, que fez isso… O nome dele, Wanderley, com “ípsilon” no final. (pausa)

Antônio Henrique: Hum.

João Carlos: Agora eu vou soletrar para você: Telle, com dois “ll”, Telle, “c”, continuando, “c”, “h”, “e”, “a”, Tellechea, sei lá.

Antônio Henrique: “C”, “h”, “a”.

João Carlos: “C”, “h”, “e”, “a”. Tellechea.

Antônio Henrique: Aham.

João Carlos: Acosta.

Antônio Henrique: Ah… O Acosta…

João Carlos: Tá aqui, olha, capitão de engenharia do exército… (pausa).

Antônio Henrique: Hum-hum…

João Carlos: Servia, é… No DOI-CODI/RJ, 1973.

Antônio Henrique: Aham…

João Carlos: Conhecido como doutor Acosta.

Antônio Henrique: Hum-hum.

João Carlos: Tem mais aqui, peraí. (pausa) Isso aqui é tudo torturador, a relação que está aqui.

Antônio Henrique: Esse torturou o senhor?

João Carlos: É, com o negócio de revólver. Tá aqui outro de Juiz de Fora, Juvenal Antunes Pereira, sargento do exército, serviu no quarto RO 105, Juiz de Fora, Minas Gerais, 1967.

Antônio Henrique: O Juvenal era…

João Carlos: Hein?

Antônio Henrique: O Juvenal era… sargento?

João Carlos: Sargento. É… Como segundo sargento servia em Brasília em 1969.

Antônio Henrique: Hum-hum.

João Carlos: Tem mais aqui. (pausa) Juiz de Fora. Itiberê Gouvêa do Amaral.

Antônio Henrique: Ah, o general Itiberê…

João Carlos: General de Divisão, comandou o 4º BI e a 4ª RM em Juiz de Fora. Era conivente.

Antônio Henrique: Hum-hum.

João Carlos: Agora, esse aqui que é incrível, esse não é de Juiz de Fora, não, olha só, Dulcídio, não sei se vocês gostam de futebol, Dulcídio Wanderley Boschilla, 1º sargento da PM de São Paulo, comissionado no DOI-CODI de São Paulo, conhecido como “juiz”. Em 1987 integrava o quadro de árbitros da Federação Paulista da CBF (risos) Tem mais… (pausa) Aqui, olha, agora, esse nome dele não está completo, não, viu. Está só Alan, “a”, “l”, “a”, “n”, Alan. Investigador da Polícia Federal, lotado em Juiz de Fora, 1964. (pausa) Agora, esse aqui que é incrível, não tem nada a ver com Juiz de Fora, mas olha só isso aqui, Adriano Augusto Castro de Magalhães, capitão de corveta da marinha de guerra, era do corpo de fuzileiros navais, servindo no CENIMAR, da repressão da marinha. Em 1985 era pastor de um templo protestante no Estácio, bairro do Rio de Janeiro… (risos) O cara, de torturador virou pastor… Agora, quer ver…

Antônio Henrique: Ah, o Rubim Santos Leão Aquino…

João Carlos: Hein? Agora tem mais de Juiz de Fora aqui, quer ver? Ah… Médicos.

Antônio Henrique: História das sociedades.

João Carlos: Aqui, olha, médicos. Acusados de falsificar, falsificarem laudos. Foram os médicos mineiros: Marcos Antônio Nagem Assad, morreu há pouco tempo, e Nelson Fernando de Oliveira, ele tá com noventa anos, ele tinha consultório ali no edifício Brumado, o filho dele é dentista lá, mas tá aqui, assinava atestado.

Antônio Henrique: Estes nós temos.

João Carlos: Quem?

Antônio Henrique: Estes médicos nós temos.

João Carlos: Ah, você tem?

Antônio Henrique: A fichinha deles.

João Carlos: Tem outro aqui, quer ver, daqui de Juiz de Fora. Esse eu faço questão, Joaquim Simeão de Faria Filho.

Antônio Henrique: Ah, o Joaquim, o Simeão.

João Carlos: Promotor auditor da 4ª Região Militar. Esse cara é tão canalha… Ele já morreu essa peste… Quando eu fui solto em Juiz de Fora, que eu mudei para o Rio, eu já estava na organização lá. Aí um dia eu vim aqui em Juiz de Fora, aí a Ana Maria, minha mulher, disse “Vamos comer uma pizza lá na Churrascaria Palácio?”, na Halfeld, falei “Vamos”. Aí, de noite descemos, logo que nós estávamos entrando, o Simeão tava saindo. Ele frequentava lá. “Opa, como é que é, tudo bem? Como é? Está morando no Rio?”, falei “Estou”, “E a política?”, falei “Não, não quero saber de política, não. A coisa é ganhar dinheiro”, “Muito bem, gostei de ver, isso mesmo. Esquece…”, “Não, já esqueci, há muito tempo…”. Isso foi em… Eu sei que uns… Depois que eu fui preso me trouxeram a Juiz de Fora para prender o Zé Paulo, né. Aí, na hora em que ele me viu lá, ele ficou… Ele deve ter pensado “Desgraçado, não tá mexendo mais com política, né…” falei “Política, não, meu negócio é outro…” (risos). Deixa eu ver se tem mais um aqui. (pausa) Agora, você que mexe com… agora, você quer ver uma coisa? Esse negócio, não deixa de tomar nota, não, mas vou só te contar esse aqui, o delegado da polícia federal Thacyr Omar Menezes Sia, militou no comando de caça aos comunistas. Esse cara era tão canalha que o sobrinho dele, o Menezes, meu amigo, esteve preso, tá, foi preso em Belo Horizonte… O Menezes hoje mora no Rio. O tio dele, sabendo que ele estava lá… que se dane… Está aqui, olha. Agora, esse aqui, olha, só para constar para você, ainda mais você que é de história… (pausa) Aqui, olha… Segundo o general Hugo de Abreu, olha só, enviamos um grupo de oficiais do 1º Exército à Inglaterra para aprender o sistema inglês de interrogatório. O sistema inglês foi introduzido no país pelo general Sylvio Frota, então comandante do 1º Exército. Apesar disso, Frota ganhou a fama de ser contrário às torturas nos presos políticos. Esse desgraçado desse Frota, eu estava preso lá na PE, aí, um dia eles me mandaram fazer a barba, fizeram a barba, me deram a roupa, “Põe a roupa”. Aí, subiram, porque a cela era lá em cima. Eu não estou entendendo nada. O que está acontecendo? Daqui a pouco abre a porta, “Ah, o general tá aí”. Era ele, foi olhar os presos. O cinismo dele… Olhar a gente lá em cima, né… Porque que não desce para olhar lá embaixo? Aí ele olhou com uma cara de nojo para a gente, disse “Estão todos bem, né?”, eu olhei e falei “É… Bem…”. Outra coisa, o médico, como é que esses médicos atuavam? Quando eu estava lá na PE, aí, logo eu subi, né, aí chegou um cara lá e falou “Olha, eu sou médico”. Com um esparadrapo aqui pra gente não ver o nome dele. “Você está sentindo alguma coisa?”, falei “Estou. Eu levei um soco aqui…”, “Não quero saber o que você levou. Onde está doendo?”, aí eu falei “Ah”. É porque já sabe a causa, eu estou falando… Ele quer saber o efeito? Para o médico eu tenho que falar a causa. Se eu cortei o dedo eu falo “Cortei com a gilete, cortei assim…”, “Não, eu quero saber onde está doendo”. Aí me deu uns relaxantes musculares, sabe. Agora, o que eu gostaria que você tomasse nota para você, como professor de história. O livro que eu te falei é este aqui, olha, autor, toma nota aí, Rubim Santos Leão de Aquino.

Antônio Henrique: É, esse eu conheço.

João Carlos: Hein?

Antônio Henrique: Esse eu conheço.

João Carlos: Conhece ele? Ele morreu tem pouco tempo. Leucemia. Leucemia não, diabetes. Você conheceu ele?

Antônio Henrique: Não, não. Eu conheço as obras dele.

João Carlos: Ah, esse aqui é dele, olha, é “Um tempo para não esquecer – 1964-1985”.

Antônio Henrique: Nós já temos, né, Rosali?

João Carlos: Agora, espera aí. Agora eu vou te dar… Editora Achiamé. “A”, “c”, “h”, “i”, “a”, “m”, “e”. Caixa postal… é… 50, 0, 583… 500… 5, 0, 0, 8, 3, “r”, “j”. Aqui deve ser CEP, né, 250-970.

Antônio Henrique: Essa aqui, com o nome… Nós temos esse livro, acho que já temos.

João Carlos: Tem, olha, www… Que é a… tem www.achiame.com.

Antônio Henrique: Hum-hum.

João Carlos: E vale a pena, hein. E esse que eu falei que a Eliane mandou, trabalhava com ele. Ele tem vários livros, dele. Tem muitos livros dele, depois que o Jaques morreu, ele fazia questão de constar o nome do Jaques lá. O Jaques, mataram o Jaques, ele era mais novo do que eu, o Jaques devia ter o quê? Acho que ele não tinha trinta anos, ainda, tá… Eles mataram o Jaques. A ALN matou. Agora quero deixar com vocês outra coisa aqui… Peraí…

Antônio Henrique: Então podemos encerrar, né, o depoimento?

João Carlos: Podemos.

Antônio Henrique: Aí, o senhor mostra as coisas…

João Carlos: Quer ficar com isso aí para a Comissão?

 

Notas

1 Mário Roberto Galhardo Zanconato