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Avelino Gonçalves Koch Torres

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Avelino Gonçalves Koch Torres

Entrevistado por Comitê pela Memória, Verdade e Justiça

Juiz de Fora, 28 de Agosto de 2014

Transcrito por: Rute Dalloz Fernandes Elmor

Revisão Final: Ramsés Albertoni (31/03/2017)

 

Avelino: Eu me chamo Avelino Gonçalves Koch Torres, sou ex-engenheiro, eu tô aposentado na engenharia, ex-professor universitário e atualmente eu desenvolvo uma consultoria de gestão de qualidade, eu fiz uma pós-graduação em engenharia da qualidade, eu faço consultoria nessa área. Eu gostaria, nessa excelente oportunidade, de poder narrar os acontecimentos que, de certa forma, são importantes pra essa proposta da Comissão da Verdade, fazer algumas referências às minhas posições anteriores. Na minha infância, antes dos 10 anos de idade, nós vivíamos sob a ditadura do Getúlio Vargas e nessa ditadura eu vivi, como criança, o problema que é um autoritarismo e as consequências de uma ditadura. O meu pai teve que abandonar a família e ir para o interior de São Paulo, porque senão ele seria preso e não tinha como manter a família naquela situação, e o meu tio, que era sócio dele, ficou aqui e foi preso e me marcou profundamente. A prisão era ali na Rua Batista de Oliveira, onde hoje é o Instituto Estadual de Música, era a polícia ali, eu me lembro de ir lá levar bolo pra ele, porque naquela época a ditadura não era assim tão… tão eficaz (risos), permitia que as pessoas levassem bolo, minha família levou um colchão pra ele, que era melhor que o colchão… Bom, de certa forma, isso me marcou, depois, aí na minha cabeça, no meu contexto ficou uma marca muito negativa de ditadura e eu passei a ser um antiditadura, para ficar bem claro a minha posição. Bom, depois eu tive uma atividade como estudante de engenharia, participava do Diretório Acadêmico e nós tínhamos posições muito claras, principalmente na renúncia do Jânio em que nós fizemos uma reunião no DA e votamos a favor da posse do Jango. E nessa oportunidade eu tinha um desentendimento com meu pai, porque o meu pai ele era… ele foi integralista, então, o problema dele com a ditadura do Getúlio foi exatamente ele ser mais fascista que o Getúlio, então, era fora da minha linha de pensamento. E quando eu desci do Diretório Acadêmico, no dia ele sabia que ia ter a votação no Diretório Acadêmico, ele encontrou comigo em frente à galeria… ali, e perguntou “Como é que foi a votação?”, eu falei “Foi aprovada a posse do Jango, nós recomendamos a posse do Jango”, ele falou “Eu já sei, eu sei que o resultado foi por unanimidade, então cê votou a favor da posse”, eu falei “Votei”. Aí ele não falou nada, ele foi na polícia e me denunciou como comunista. Então, aí eu rompi com ele. E isso também me marcou muito, porque um autoritarismo é… que veio apenas reafirmar aquilo que eu passei a lutar contra. Bom, como… Como é… professor, porque eu formei em 1961 em engenharia civil, em 1962 eu comecei a lecionar como professor da engenharia, em 1964 eu estava lecionando, e naquela oportunidade alunos estavam em sala, vinha o pessoal da polícia ou do exército, eu não sei identificar o que que era naquela oportunidade, retirava o aluno de sala e levava para ele depor, compulsoriamente. Dentre esses alunos tem uns quatro que eu procurei defender, apoiar. Eu confesso que eu não lembro o que eu fiz. Eu só, eu só lembrei disso porque há questão de um mês atrás um deles, que corresponde comigo pelo Skype, me pediu determinada opinião, eu dei determinada opinião, ele virou pra mim…. Ele escreveu pra mim que “Que bom que você ainda continua com uma posição muito clara, porque eu não posso me esquecer que você me defendia contra a ditadura naquela época”. Eu não sei o que eu fiz, mas eu tenho o nome dele e tenho o endereço, talvez fosse interessante, mesmo via Skype, ouvir o que ele tenha a dizer, mesmo daquela época, que eu não tenho os detalhes, é muito difícil lembrar disso, foram coisas muito esporádicas que ocorreram. Bom, então, como professor eu fui indicado, em mil novecentos e… deve ser 1971 ou 1972, como coordenador do Curso de Engenharia civil da Faculdade de Engenharia, o coordenador do Curso de Engenharia civil, ele automaticamente seria um membro do CEPE (Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão). Então, o primeiro CEPE da universidade, que foi formado pelo reitor Gilson Salomão. Ele indicou esses coordenadores que, posteriormente, eles eram votados pela comunidade. Então, ele indicou e dentre esses, eu fui indicado para coordenador do Curso de Engenharia Civil. Eu entrei, então, nesse CEPE, eu conheci o padre Jaime Snoek, que é um holandês que mora na Igreja da Glória, infelizmente ele está com Alzheimer, perdeu toda a memória, não tem como… que ele teria informações riquíssimas para fornecer numa oportunidade dessa. Mas eu tô narrando isso porque, posteriormente, tem um fato que ocorreu entre minha família, ele e eu na época da minha prisão que foi muito importante. Bom, então, nesse CEPE, eu não permaneci muito tempo, porque logo em seguida foi proposto a votação do sistema de crédito pra a universidade e quem aprovaria o sistema de crédito era o CEPE, então, isso entrou em discussão. Então, capitaneado pelo professor Murilo Amaral, Murilo Gonçalves do Amaral, foi feita a proposta para aprovar o sistema de crédito sem o conceito de qualidade. O conceito de qualidade no sistema de crédito faz com que o nível intelectual e o nível de ensino seja cada vez melhor, quer dizer, o aluno só faz tantos créditos em função das aprovações anteriores, se não houvesse o conceito o nivelamento seria por baixo, quer dizer, qualquer aluno poderia fazer a quantidade de créditos que seria definido oficialmente. Então, eu fui contra isso, discuti, briguei e procurei me informar. Qual foi a minha surpresa quando eu constatei que a proposta que eles estavam fazendo era a cópia do sistema de crédito da Universidade de Houston, sem o conceito de qualidade. E eu deduzi que este esquema seria o esquema vigente na época, que era o esquema do MEC-USAID, quer dizer, era imposição de valores através do MEC-USAID. Então, quando eu vi que eu não conseguia maioria e quando foi… eu não me lembro se… não, deve ter sido aprovado, eu fui contra e eu renunciei ao CEPE e saí fora, achei que aquilo era uma palhaçada, era um… uma mentira institucionalizada, que aquilo que ia ser aprovado já tava decidido, era só homologar, então eu não concordei. Mas nestes debates eu fiz muita amizade com o padre Jaime. O padre Jaime veio para o Brasil em 1958 para trabalhar os sindicatos como membro da igreja, da esquerda da igreja católica holandesa, então, nós fizemos uma amizade muito boa nessa época. Como professor na faculdade de engenharia, em 1972, eh… 1972, eu entrei na chapa pra diretor da faculdade de engenharia. O candidato a diretor era o professor José Renato Abrão e eu, vice-diretor. Nós fomos eleitos e naquela época era a lista, não sei se era… ou uma lista qualquer. Essa lista ela ia para o Ministério da Educação e o ministério indicava quem seria empossado. E, logicamente, essas pessoas passavam pelo crivo do SNI. Então, em novembro de 1972 eu fui nomeado pelo presidente Emílio Garrastazu Médici. Eu tenho o diploma, não achei para xerocar pra vocês, mas depois eu posso passar pro Tio Carlinhos, eu vou procurar. Eu fui nomeado vice-diretor da faculdade, em março de 1973 eu fui preso como subversivo. Então, essa situação criou uma situação constrangedora pra eles. Como é que uma pessoa que passa pelo crivo do SNI é nomeado pelo presidente da república, você pega dezembro, janeiro, fevereiro, março, quatro ou cinco meses depois é preso, truculentamente, como subversivo. Isso gerou, de certa forma, um procedimento no meu processo que foi muito… eu imagino que tenha sido muito particularizado. Eles não queriam dar divulgação a isso de jeito nenhum. Eu tava sendo processado, então, eu trouxe a cópia do Diário Mercantil que eu vou passar pra vocês o que foi publicado. Quando tinha a audiência do meu processo, a notícia vinha não com meu nome completo, às vezes era até Avelino Torres, às vezes Avelino Gonçalves, no meio dos processos do soldado que roubou gasolina do outro, que não sei o que e tal. E aquilo ficava ali no meio e foi tão… foi tão camuflado meu processo que Wilson Cid fez um livro sobre a esquerda na universidade e eu não sou citado e nem sabe da minha existência… então, porque o negócio ficou incubado. E outra coisa também interessante, na faculdade de engenharia, onde eu militava normalmente, nunca ninguém me perguntou o que que aconteceu comigo, nunca! Professores que eram compadres meus, amigos, ditos amigos, nunca, “Pera aí, o que aconteceu com você? Porque que aconteceu com você?”. Todo mundo tinha medo de perguntar, eu imagino, porque ficou assim, foi como se me pusessem em uma campânula e ninguém chega perto e ninguém pode perguntar, se conversar muito vai pegar lepra. Não sei o que que vai pegar, é um elemento contagioso, então, também, na universidade, a não ser as pessoas que na época da minha prisão, procuraram minha família e… solidariedade e ajudaram com meus filhos que eram pequenos naquela época. Bom, então eu quero deixar muito claro essa… essa situação da minha nomeação e anterior a minha nomeação. A campanha do João Mar… professor João Martins Ribeiro, João Martins… é Ribeiro não é? João Martins Ribeiro para reitor da universidade. Eu fui coordenador da campanha dele. Então, fica bem marcado isso aí. Eu fui coordenador da campanha do professor João Martins que foi eleito reitor, vencendo a eleição, derrotando o candidato do professor reitor Gilson Salomão, que era o professor José Rafael, médico José Rafael. Então, nós derrotamos o candidato do professor Gilson Salomão que era um reitor de elevado prestígio na época. Fica bem assinalado isso pelo que vai, que eu vou narrar pra frente. Em 1964 eu montei uma empresa de refrigeração industrial junto com dois sócios, que não interessa nominar, no caso, é só citação. Nessa empresa trabalhava o Zé Pedro Reis Horta que é irmão do João Carlos e foi onde eu fui apresentado ao João Carlos e, posteriormente, eu estreitei uma relação com o João Carlos, porque ele era uma pessoa que valia a pena conhecer, não sei hoje se vale a pena conhecer (risos), ele era uma pessoa muito bacana e ele logo em seguida, em 1967, ele montou não sei com quem, na época não fiquei sabendo, e não interessava, a livraria Sagarana, e nessa livraria, via João Carlos eu comprei muitos livros que, de certa forma, me deram condições de estudar a parte de ideologia contrária e ideologia vigente, é a tal coisa, se você é contra determinada ideologia cê vai procurar quem é contra essa ideologia que deve ter alguma informação que te vale a pena. Então, o João Carlos foi, de certa forma, o mentor da minha… do meu conhecimento e fixação ideológica. Agora, tem uma coisa, um acontecimento que é engraçado, senão ridículo, porque quando eu comecei a ter uma atuação com o João Carlos e outros elementos pra tentar brigar contra a ditadura, em termos, eu peguei os livros e pus em duas malas, e a casa onde eu morava, quando solteiro, morava minha irmã casada e eu tinha condição de entrar na casa sem que ninguém visse, então, determinado dia, domingo, que não tinha ninguém, eu levei as duas malas, entrei na casa, fui no forro da casa e pus as duas malas no forro da casa; não quis falar com ninguém, porque eu raciocinei se, por acaso, por qualquer eventualidade, alguém descubra essas malas e vão interpelar minha irmã e meu cunhado, eles podem com toda convicção dizer que não sabiam que não têm nada com aquilo, não têm nada a ver, e seria uma maneira mais espontânea de não ser envolvido numa coisa que eles não tinham nada com isso. Na época que eu tava preso, meu cunhado resolveu reformar o telhado, achou as duas malas lá, com aquele trauma todo, de eu estar preso, ele ficou apavorado e pegou as malas, mandou a empregada dele levar lá para a Cachoeirinha, hoje Santa Luzia, queimaram os livros todos lá. Então, eu perdi tudo aquilo que seria importante ter pra consulta e pra aperfeiçoamento intelectual, perdi tudo. Bom, então vem aí agora a fase da atuação num grupo mais estruturado. O João Carlos, determinado dia… se você… se eu tiver falando errado e quiser acrescentar você acrescenta João Carlos. João Carlos determinado dia falou comigo assim “Olha, tem uns presos aqui no QG que são da Guerrilha do Caparaó”. Eu não acreditava na Guerrilha do Caparaó, eu achava que era uma invenção da ditadura para fazer uma atuação mais violenta. Eu não sei se o João Carlos sabia, ou não sabia, como é que ele soube, mas ele me falou isso. Aí eu falei pra ele “Eu tenho vontade de conhecer esse pessoal, eu quero ouvir deles se houve a Guerrilha do Caparaó ou não”. Aí eu constatei que houve mesmo essa guerrilha, porque o João Carlos estava preso no 10º, aqui em Juiz de Fora, eu fui visitá-lo, aí ele positivou que tinha mesmo o pessoal desse movimento do Caparaó. A partir daí, depois que o João Carlos saiu da cadeia nós continuamos em contato, aí surgiu a oportunidade de, juntamente com Zé Paulo, eu Zé Paulo e João Carlos começarmos a estruturar um grupo em Juiz de Fora. Então, a partir desse conhecimento e o João Carlos fora da prisão, nós começamos a fazer um contato, eu, ele e depois entrou o Zé Paulo e depois entrou o Zé Cláudio, então, éramos nós quatro que fazíamos algumas reuniões em Juiz de Fora pra tentar ver o que que nós poderíamos estruturar nessa proposta de brigar contra a situação vigente. É… nessa oportunidade eu tive três vezes no Rio, onde eu conheci o Amadeu. Eu encontrava com ele geralmente na livraria Entre Rios… Entre Livros, e nós tivemos reuniões assim de papo informal, mas um certo… uma certa vontade de que eu entrasse no movimento por parte dele, por indicação do João Carlos. Depois é… eu… Lecionava também em Barra do Piraí, na Faculdade de Engenharia de Barra do Piraí, que eu tinha vendido minha parte na empresa de refrigeração e resolvi a ser só professor. Então, eu entrei para a Faculdade de Engenharia de Barra do Piraí e continuei lecionando na universidade, numa tentativa de viver sendo só professor. Bom e nessa… ida a Barra do Piraí surgiu… aí eu não me lembro como, a possibilidade de um outro elemento do grupo encontrar comigo em Barra do Piraí e fazer reuniões sábado à tarde, que era o de codinome Teixeira, Júlio Ferreira Rosa, que tinha o codinome Teixeira. Então, eu fazia algumas reuniões, aos sábados, com ele, e ele tentava me aliciar para o movimento. Eu confesso claramente que eu tinha uma certa resistência de me filiar de peito aberto ao movimento, porque o movimento de propunha a atuação violenta, luta armada. E eu pra matar uma formiga era problemático, ainda mais pra entrar numa luta armada. Então, eu não me via de corpo inteiro em um processo desse. Então, eu tinha uma determinada resistência mas, de certa forma, tava sendo importante e interessante essas reuniões, esse convívio, inclusive eu me propus a dar uma contribuição financeira, eu dava duzentos cruzeiros, eu não sei se era cruzeiro, o que que era. Eu dava uma importância pra ajudar a financiar as publicações que, uma delas, era um jornalzinho que se chamava Independência ou Morte, que tinha uns artigos muito bem escritos e ideologicamente muito bem posicionados.

Comitê: E a outra era o Prisma!

Avelino: É, o Prisma, eu recebia alguns exemplares do Prisma também e participei desse nível. Com o Zé Paulo nós fizemos uma reunião dentro do meu carro. Uma, e a segunda reunião foi num apartamento lá no Bairu, que a família tinha viajado e ele tinha pedido emprestado o apartamento e nós fizemos a reunião lá. Não mais fiz reunião nenhuma com ele, nem encontrei com ele. Bom, então eu estava, de certa forma, querendo ver o que que seria proposto para mim participar, porque eu pegar em arma, isso aí não era minha jogada, não tinha condição disso, mas eu poderia ter alguma participação. Tava nesse meio tempo quando o padre Jaime chegou lá em casa e falou comigo, “Oh Avelino, o Amadeu foi preso”. Eu num sabia que ele sabia que eu conhecia o Amadeu. É interessante isso, né? Eu falei “Oh padre Jaime, quem é que falou com o senhor que o Amadeu foi preso?”, “Ah não, foi a Francisca”. Francisca era uma ex-irmã de caridade, da esquerda também, casada com Narciso, ex-padre, também da esquerda, que tiveram a informação no Rio que eles tinham sido presos. Bom, quando eu soube que ele tinha sido preso, no dia seguinte, eu peguei todas as publicações que eu tinha, jornalzinho, Prisma e tal, e queimei tudo lá em casa num balde e tirei toda possiblidade de encontrarem qualquer coisa lá. Porque é claro que a possibilidade de eu ser atingido no processo era evidente pelas minhas ligações com o Amadeu. Então, vejam aí o padre Jaime já comparecendo efetivamente de uma maneira muito humana e muito… Olha que ele, ele foi lá especificamente pra isso, pra me falar isso. Então, donde eu concluo, ele tava sabendo de tudo, sem que eu informasse, sem que… eu não sei de onde ele obtinha essas informações. Não sei se foi a Francisca que mandou me falar, não sei. Bom, quer dizer então, aí eu fiquei numa certa expectativa. Na quinta-feira… quinta-feira dia 26 de maio de 1973, o Zé Paulo foi preso à noite… não! Foi preso de manhã, quinta-feira de manhã ele foi preso. E eu não fiquei sabendo de nada. Então, eu tô levando a minha vida normalmente, de noite eu virei pra minha mulher e falei assim, eu não sei porque que isso veio na minha cabeça, “Vamos dá uma voltinha aqui em torno da minha, da nossa… aqui no bairro, vamos dá uma volta pra gente descansar um pouco?”. A gente pouco fazia isso, mas não sei porque aquilo veio na minha cabeça. Aí eu saí, passeando com ela, quando eu cheguei em uma pracinha perto da minha casa tinham umas pessoas estranhas assentadas no banco, mas nem me chamou atenção. Eu vi aquelas pessoas, passei por elas, desci a rua, passei em frente ao clube Bom Pastor, tinha uma Kombi parada no Bom Pastor, eu passei pela Kombi, voltei com ela. Depois eu fiquei sabendo que aquelas pessoas que tavam na praça era do grupo que tava encarregado de me prender.

Comitê: DOI- CODI.

Avelino: DOI- CODI. E na Kombi, dentro dela, tava o João Carlos que era encarregado de me apontar. Eles não me conheciam, então, José Carlos… eu achei que ele tivesse me visto passar e ficou… não falou nada, ficou quieto. Na época cê me falou isso, hoje você falou que não me viu, mas eu acho que você me viu sim. Bom, mas de certa forma, passado. Aí nós voltamos pelo mesmo caminho, passei na praça e tavam as mesmas pessoas lá. Eu achei estranho, aí já eram 11h da noite quando nós voltamos, mas fomos pra casa. Bom, de manhã eu levava as minhas duas filhas menores, uma de 7 anos e outra de 9 anos para o Colégio Saci, ali na Rua Espírito Santo, que é em frente onde hoje é a entrada do estacionamento da Catedral. Quando eu… eu tinha um Fusquinha, quando eu desci do Fusquinha…

Comitê: Que colégio que era?

Avelino: Saci Pererê, ali na Rua Espírito Santo, em frente onde hoje é a entrada do estacionamento da Catedral. Bom, na hora que eu desci, que eu passei, que a minha casa não tinha porta na garagem, eu passei o carro, eu percebi que tinha uma pessoa que tinha vindo que ia tocar a campainha. Quando eu desci do carro, ele saiu correndo lá pra praça. Eu achei aquilo tudo muito estranho, mas também não dei por elas, saí num Fusquinha e fui até o colégio. Não vi que eu tava sendo seguido, não vi nada. Quando eu cheguei no colégio, eu me lembro perfeitamente que a Rua Espírito Santo, naquela época, dava mão pra baixo, ao contrário do que é hoje. Então, eu entrei e desci… Não, dava mão pra… essa, essa mão… mão pra cima, ao contrário da mão de hoje. Eu entrei, subi na Espírito Santo, parei em frente ao colégio e tava olhando assim, porque a gente sempre olhava pra ver se as meninas tinham entrado, se não tinham… tinham que entrar. Pra ter certeza que elas tinham entrado. Então, eu tava olhando assim, quando eu vi que elas desapareceram, eu vi uma arma aqui no meu pescoço. Eu virei assim e o cara falou “Desce do carro”, aí eu falei “Mas o carro vai ficar aqui na rua?”, “Não, nós levamos o seu carro também”. Então, desci do carro, atrás do carro tava parado uma Kombi. Eu me lembro que a Kombi, no vidro, tinha umas faixas, né, pintadas. Então, essas faixas impediam que você visse qualquer coisa dentro da Kombi. Me puseram na Kombi, imediatamente me puseram um capuz e mandaram eu deitar no chão, deitei no chão e a Kombi rodou, rodou… uns 20 minutos. Eu não tenho noção de tempo porque pela tensão que você fica você num… eu imagino que tenha… deve ter rodado uns 20 minutos. Determinado momento eu vejo que a Kombi dar uma parada, ouço um portão de ferro abrindo, a Kombi entrou, parou e me tiraram. Eu, inocentemente, crente que já tinha chegado no local, uso a mão para tirar o capuz, um cara “Oh seu filho da puta, tira essa mão do capuz! Subversivo filho da puta!”. Eu falei “Ih!” Pus o capuz no lugar e fiquei quieto. Aí, não me inquiriram, mas mandaram eu tirar a roupa toda, eu fiquei só de capuz. Aí, eles me puseram dentro de uma câmara frigorífica e fecharam. Eles me puseram… tinha um tamborete no meio da câmara, eles me levaram, eu assentei naquele tamborete, mas como eu fui fabricante de câmara frigorífica, eu percebi que eu tava num ambiente mais ou menos conhecido. Quando eu vi a porta fechar, eu sabia o barulho de trinco de câmara frigorífica, aí eu fui devagarinho, devagarinho, levantei o capuz e aí vi que eu tava dentro de uma câmara frigorífica. Acontece que o evaporador da câmara frigorífica é externo, então eu levantei, fui lá e reduzi o termostato. E aquilo que eles tavam pretendendo que eu ficasse lá, com -10° e tal, eu reduzi bem pra um pouquinho acima de 0° que eu… e se eles voltassem, eles iam admitir que era defeito da câmara, aí eu fiquei quieto, fiquei lá. Não sei o tempo que eu fiquei, sei que eu fiquei um tempão lá dentro daquela câmara, aí eles me tiraram de lá e começaram a inquirir. Perguntaram, e eu só de capuz. Aí a pessoa perguntava e eu falava “Não sei”. Na hora que eu falava “Não sei”, eles “pouf”, um soco na barriga. Só na barriga, só me atingiram no abdômen. No rosto, nada, no braço, nada, só no abdômen. Bom, e aquilo durou num sei quanto e tal. Acabou aquele negócio, acabou aquilo, aí eu fui… eu fui ser inquirido por um fulano que aí já não tava mais agredindo, eu acho que foi no dia seguinte, aí eu num sei. Eu sei que… eu sei… o tempo eu não tenho a dimensão dele. Eu sei que depois disso, depois desse fato, aí eu fui inquirido por um fulano, aí ele já sentado numa mesa e eu do outro lado da mesa. Aí, ele começou a me fazer uma porção de perguntas, eu virei pra ele e falei assim “Esse mundo é muito gozado, viu? Você que devia tá no meu lugar e eu no seu lugar, que eu sou um privilegiado, eu sou um bem sucedido na vida e você é um fudido na vida”. O cara ficou me olhando assim e ele não sabia o que ele ia falar, ele ficou… ele esperava tudo, menos ouvir aquilo. Então, ele ficou desmontado e eu, sem querer, eu desmontei o cara pra ele me inquerir muito, então, ele não inqueriu muito, ele ficou sem graça, ficou sem saber o que fazia e tal. E aquilo ali, eu me lembro, que não demorou muito.

Comitê: Você se lembra do nome de alguém?

Avelino: Só do capitão Costa, só, que era o chefe dos torturadores. Bom, então, isso acabou, eu sei que depois mandaram eu por a roupa e me puseram em uma cela sozinho e me forneceram a comida que eu não consegui comer, naquela altura do campeonato não dava pra comer nada. E veio aí o dia seguinte, foi só inquérito, só perguntas, só tirada de informação, mas sem, sem nenhuma agressão física, mas com a seguinte ameaça “Você era para estar na PE do Rio, no DOI-CODI, por questões que impedem a nossa vontade, você não está lá, mas você pode voltar pra lá a qualquer momento, desde que você não forneça as informações que nós precisamos”. Isso, a partir daí, isso diariamente era dito mesmo no inquérito com o major Lauro Bassi Lindenberg, que era o chefe… o militar que foi responsável pelo meu inquérito. Ele também, uma pessoa muito delicada, muito educada, inclusive me falou que estudava no Granbery, que estudou no Granbery, eu também estudei no Grambery, aliás, eu esqueci de citar isso porque no Grambery nós aprendemos o valor da liberdade, então, eu tinha isso introjetado em mim também. Quando ele me falou que estudava no Granbery, eu falei “Pois é major, eu estou defendendo a democracia que nós aprendemos no Granbery, o senhor também aprendeu, o senhor também foi gramberiense”. Aí, criava aquele constrangimento, mas ele tinha que cumprir a missão dele, não adiantava eu também fazer apelação, porque não dava resultado nenhum. Esse é um dado que eu queria passar… e por causa disso a Leninha foi chamada pra ser inquerida, porque ela foi encontrada lá em casa e o Lula já tinha sofrido um processo antes e nós tínhamos hipotecado solidariedade a ele.

Comitê: Ele levou umas porradas feias também.

Avelino: É, ele levou, levou porrada não, enfiaram um cabo de vassoura no rabo dele. Eu fiquei livre disso tudo que esse cara sofreu, que o Lula sofreu, por causa de Dom Geraldo. O peso da autoridade de Dom Geraldo fez com que eles não me levassem pro Rio. E os caras me agrediram no abdômen só e muito pouco, porque se eu aparecesse com marcas seria problemático.

Comitê: Se eles te levassem pro Rio, nossa senhora!

Avelino: É, eu sei. Bom, outra coisa que eu quero falar, pode ligar aí. Eu fui preso no dia 27 de março de 1973, sexta-feira… abril, de abril, 27 de abril de 1973, no sábado, a minha mulher que era aluna da universidade, ela tinha uma prova, então, ela resolveu ir fazer a prova pra evitar o mínimo, que a fofoca fosse maior do que já estava, porque se ela não fosse fazer a prova podiam elaborar “n” coisas que ela quis evitar, então, ela foi fazer a prova e pediu a Leninha, atual esposa do Lula Sansão, que ficasse lá em casa com as minhas filhas, quando ela estava lá, chegou lá o pessoal do DOI-CODI pra revistar a casa, tiraram todos da casa e bateram a casa de cabo a rabo pra ver se achava livro, publicação, inclusive, não deixaram meus filhos entrar em casa, ficaram todos fora durante todo o período que eles estavam dentro de casa. Eu fui paraninfo da turma de 1965, da qual pertencia o Renê, Renato, que é uma pessoa que, como aluno, foi diversas vezes retirado de aula pela polícia ou pelo exército, não sei por quem, pra ser inquerido, e também essa turma eu tenho um cainho muito especial por ela porque eu vivi uma situação delicada. Depois disso eu não tinha como me empregar, quem é que vai querer dar emprego pra um subversivo, então eu não tinha como. Eu recorri a meus ex-sócios propondo eu voltar pra empresa, mas eles disseram que não, que era melhor eu não voltar pra empresa, então eu continuei descalço. Determinado dia eu estava em casa, chega lá dois alunos dessa turma que eu fui paraninfo, o Júlio Cézar Oliveira Horta Barbosa, o Júlio Corneteiro, que é uma pessoa com uma integridade espetacular, que eu tenho profunda admiração por ele, e o Pedro Ludovico Esperança Cézar também, que foi professor da Faculdade de Engenharia e é também da turma que eu fui paraninfo, essas duas pessoas chegaram na minha casa e viraram pra mim e falaram assim “Olha, nós te indicamos pro cê ser consultor de uma empresa de Belo Horizonte, você aceita?” (risos). Claro que eu aceitei, naquelas circunstâncias, então eu fui pra Belo Horizonte. Depois eu fiquei sabendo que o dono da empresa, que se chamava, infelizmente já morreu também, é…. Márcio Augusto Menezes, ele, quando o Júlio Cézar, que trabalhava na empresa junto com o Pedrinho e falaram com ele a meu respeito, ele virou pra eles e falou assim “Olha eu adoro trabalhar com subversivo, porque subversivo resolve as coisas com muita eficácia, a minha irmã foi presa também, ela é subversiva e ela resolve tudo com muita eficácia (risos), então, esse moço aí deve ser bom, eu quero trabalhar com ele”. Duas coisas eu quero registrar, a primeira coisa é que o juiz auditor do meu processo é Carlos Augusto Cardoso de Moraes Rego, dois ou três dias depois do meu julgamento, esse juiz apareceu na minha, casa, pessoalmente, sozinho, virou pra mim e falou assim “Olha, você não foi condenado aqui, mas há grande risco de você ser condenado em Belo Horizonte… em Brasília! A única maneira do risco ser menor é você me dar tanto em dinheiro, que eu vou resolver isso”. Dentro da minha casa na presença da… Carlos Augusto Cardoso de Moraes Rego, de família tradicional aí… Então, isso eu queria registrar. Desliga aí que tem outra coisa que eu pensei. Ao terminar esse depoimento, eu queria registrar a importância dessa Comissão da Verdade. Geralmente as histórias são feitas, descritas e registradas pelos vencedores. Essa Comissão tá dando uma oportunidade dos perdedores também exprimirem a verdade dos acontecimentos que ocorreram efetivamente ou até mesmo a sua visão dos acontecimentos. Isso é de suma importância porque a história vai ter uma característica de verdade muito mais efetiva. Então, mesmo que os vencedores que escreveram essa história até agora deem uma versão, existe uma versão em paralelo aqui que pode corrigir algumas distorções da narrativa. Então, eu quero parabenizar vocês do Comitê de Juiz de Fora que tomaram essa iniciativa. Eu vacilei, cê viu que eu vacilei pra vir, porque eu não tava afim. Isso aí já era um baú enterrado, falei “eu vou desenterrar um baú, não é uma boa”, e é uma coisa tão marcante que aconteceu um negócio comigo que eu até morri de rir anteontem, porque eu acordei, acordei durante a noite, coisa que eu não faço, eu durmo direto, acordei de um pesadelo, eu sonhei que o DOI-CODI tava atrás de mim (risos), aí eu acordei, minha mulher acordou “O que que é isso?”, eu falei… (risos) aí nós morremos de rir. Aí, infelizmente, as marcas são… você acha que se sublimou, mas isso aí não consegue sublimar. Quando você trás à tona as coisas, o negócio fica difícil de você controlar. Então, eu quero agradecer por ter contribuído com isso que tá sendo feito aí que, pra mim, é um passo importantíssimo em termos de resgate daquilo que tava escondido.