Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora
Depoimento de Áurea Celeste Gouveia
Entrevistada por Comitê pela Memória, Verdade e Justiça
Juiz de Fora, 28 de Agosto de 2014
Transcrito por: Rute Dalloz Fernandes Elmor
Revisão Final: Ramsés Albertoni (23/03/2017)
Áurea: Meu nome é Áurea Celeste Gouveia, eu sou professora de cursos pré-vestibulares e 3º anos, sou também advogada, já advoguei muito, mas, atualmente, não estou advogando mais. Minha participação política começou na década de 1970, especificamente no ano de 1970 quando entrei para a universidade, entrei logo no D.A. e depois eu fui pro DCE; eu fui secretária de cultura na gestão do Paulinho, que era da engenharia. E também… a tendência mesmo era ir pra… APML (Ação Popular Marxista Leninista). Ah, a APML propunha, inclusive, ações armadas, mas em Juiz de Fora não houve isso, em Juiz de Fora era basicamente um lugar estudantil e a gente fazia o que era possível fazer naquela época, panfletagem, pichações, este tipo de coisa. É… de repente, em 1971, fizemos… voltando um pouco, em Juiz de Fora a gente fez bastante coisa em nível estudantil, muita, muita participação política, muita… conseguimos um apoio dos estudantes muito grande, nossa base era grande, tá… nossa base era bastante boa. Em 1971 o partido começou a cair no Brasil inteiro e caiu aqui também, mas Juiz de Fora foi um dos… creio eu, um dos últimos lugares onde caiu, então, nós fomos presos todos, mas… DCE inteiro foi preso, gente que não estava mais no DCE, também já formada, todo mundo foi preso. Mas eu não fui torturada fisicamente, eu fiquei… eu fiquei incomunicável, é… no… quartel, dias, é, obviamente vocês já devem saber, não tinha direito a advogado ou nada semelhante, nenhum direito era respeitado e você sabia, nos interrogatórios pelas madrugadas, interrogavam você de madrugada, né. Você sab… você sa…. Ameaça básica de mandar pra Belo Horizonte, de haver uma troca, é… torturavam aqui gente de fora e torturavam os daqui fora daqui. A norma, pelo menos na minha prisão, foi assim, eu não sei dizer pra você porque, de qualquer forma eu tive muitos amigos torturados, torturas bárbaras, é… sevícias mesmo…
Comitê: Você se lembra de nomes?
Áurea: Lembro. A Marilda, a Marilda… ela casou agora com um japonês, então, eu tô esquecendo o sobrenome, mas ela é assistente social, no Rio de Janeiro, tem muitos livros publicados. Maria Hermínia, no meu processo… Ma… Maria Hermínia, Marilda, muita gente foi torturada, e torturas horríveis, uma delas com cobra, negócio complicado, negócio muito ruim. Bom, a gente ficou preso, depois a gente… fomos soltos depois de algum tempo, é, alguns responderam… Todos nós respondemos processos, durante os dois anos em que durou o inquérito, o chamado inquérito, a gente foi preso várias vezes, é claro que perdemos emprego, claro que… eu, por exemplo, já era professora, comecei a dar aula no primeiro ano de faculdade e a gente não podia marcar aula, chegava o camburão e te pegava de novo. Então, como é que você vai manter uma vida profissional dessa forma, é… Não tem condição. Fora que eu morava na Rua Rei Alberto, né. E camburão não era muito de frequentar a Rua Rei Alberto, não… Então, digamos que a vizinhança passou a me olhar com olhos não muito agradáveis, correto. Claro que havia exceções, a família… por exemplo, que morava na mesma rua, começou a me receber… não é bem, não, quase como filha, cê tinha as pessoas que tinham uma compreensão maior do fato, mas a maioria… era bem complicado cê conviver ali.
Comitê: Esse julgamento era feito aqui em Juiz de Fora mesmo?
Áurea: Foi feito em Juiz de Fora, tinha julgamentos aqui.
Comitê: Local?
Áurea: Local, na Superintendência, ali na Praça Antônio Carlos. É… lotando. Nossos advogados disseram pra mim que quanto mais lotasse melhor seria, falei “No julgamento cê tá mais tranquilo, porque a fase de interrogatório que cê corre risco de ser torturado fisicamente”. Psicologicamente nós fomos todos barbaramente torturados, porque é uma coisa horrorosa se falar que você vai ser torturado daqui a dois minutos se você não confessar, tá. Como eu não fui torturada eu não acho nem vantagem falar pra você que eu não confessei, porque eu não fui torturada fisicamente, então, eu acho que é muito mais fácil você não… acho não, é efetivamente muito mais fácil você não se entregar e muito menos entregar as pessoas quando você não… não põem a mão fisicamente em você, fisicamente não me puseram a mão… então… resistir.
Comitê: E a família?
Áurea: A família é uma coisa interessante de ver, porque a minha mãe não tinha nenhuma tendência de esquerda, vamos dizer assim, o meu pai sim, mas meus pais eram separados. Então, a minha mãe sequer podia imaginar, a minha prisão foi assim uma coisa pra ela inimaginável, ela tentou, dentro do possível, levar advogado, você vê como ela tava completamente desarvorada. Eu sou filha mais velha, então, foi um trauma familiar. Ela, na época, arrimo de família, então, foi uma coisa muito complicada… muito complicada a família. Depois ela ficou contra, óbvio, a ditadura, porque a filha dela tinha sido atingida brutalmente, correto. Ela moveu céus e o mundo pra tentar me ver, só conseguiu me ver depois de uma semana e falou pra mim, na ingenuidade dela, que eu devia falar tudo que eu sabia, que então eu estaria livre, eu falei “Tá bem”. Falei isso, falar o que, correto? Ela não tinha a menor ciência, nada, então sofreu muito, né. Eu acho também que a minha irmã que vem logo após a mim, não tava na universidade ainda, eu acho que ela pegou muito esse rescaldo ainda, a mais nova não, que é a Joana, mas a Lúcia pegou muito isso, porque a minha mãe tomou muito conta dela com medo dela seguir esse caminho… (risos) vamos dizer assim. Se bem que ela nunca me falou nada, nunca me fez uma censura, nunca falou pra mim, nunca me censurou. Ela sabia que eu tava fazendo o que eu achava melhor pro meu país, correto.
Comitê: Na sua concepção, qual é a importância de eles abrirem esses documentos que estão guardados, que eles chamam de secretos?
Áurea: Total importância, tá. Não é questão de vingança, é questão histórica, ok. Eu não quero nada do Estado, não quis e não quero. Não sou contra quem pediu indenização, eu não pedi, nem vou pedir, tá. É… não é por aí que me satisfaz, ok. Não há nada que pague, tá. Eu não quero ser paga, mas eu quero que não sofram o que eu sofri. E você só não repete tragicamente o que já aconteceu se você pode ter ciência do que aconteceu, eu sou professora, eu quero que os meus alunos tenham, com documentos, ciência do que aconteceu. Eu tenho orgulho do que eu fiz, que era o que foi possível ser feito na época, já que nada era legal. E eu quero que eles saibam que houve uma ditadura, uma carnificina, e que pessoas sofreram, que pessoas morreram e que pessoas foram barbaramente torturadas, e que isso não pode acontecer de novo, com eles não e com ninguém mais no meu país. Eu acho que o que não é dito, pode repetir.
Comitê: Áurea, existe um projeto de lei no Congresso Nacional que quer formalizar, legalmente, no país, a chamada Comissão da Verdade, que todos os outros países, principalmente os países latino-americanos, já fizeram, né. Isso é histórico desde as épocas das guerras, das grandes guerras. Foram feitas também nos países da origem das comissões da verdade, pra apuração da verdade. Eu queria que você deixasse a sua mensagem pra que a gente pudesse aí forçar, realmente sensibilizar nosso Congresso, a respeito da necessidade da aprovação. O que que você acha a respeito disso?
Áurea: Eu sou professora de literatura, e literatura, obviamente, também é muito ligada à história. Você tem que saber a história do seu país pra não viver os mesmos erros. O Congresso tem obrigação, obrigação moral, obrigação de cidadãos que eles são, de aprovar essa lei, não há justificativa de espécie alguma que dê a eles base pra não fazer isso, eles estão com medo de quê?