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Renato Henrique Dias

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Renato Henrique Dias

Entrevistado por Fernanda Sanglard e Paulo Roberto Figueira Leal

Juiz de Fora, 13 de janeiro de 2015

Entrevista 005

Transcrito por: Danilo Pereira

Revisão Final: Ramsés Albertoni (29/12/2016)

  

Fernanda: Renato, bom dia. A gente queria agradecer você por ter aceitado o nosso convite. Eu queria começar pedindo pra você se apresentar, dizer onde você nasceu, quando você nasceu, em que cidade e tudo, e um pouquinho sobre a sua profissão, a sua ocupação.

Renato: Nasci aqui em Juiz de Fora mesmo, no dia 17 de junho de 1949. Tenho hoje 65 anos. Sempre morei em Juiz de Fora, sempre trabalhei em Juiz de Fora e formei também em comunicação aqui na Universidade Federal de Juiz de Fora, pela Faculdade de Comunicação, era Jornalismo na época. E sempre trabalhei também aqui em Juiz de Fora, trabalhei no Diário dos Associados, como estagiário, depois como jornalista profissional e no… depois fui pra Tribuna, em 81 consegui a Tribuna, eu fui convidado pra ir pra lá, eu fui pra lá trabalhar na Tribuna como secretário de redação. Já ocupei todos os cargos que você possa imaginar em uma redação, menos editoria de esporte. Não sei porque cargas d’água nunca trabalhei nessa área, mas todos os setores, de editor-geral até os setores de estagiário, guardando as proporções, eu tive essa experiência. Na fotografia também eu nunca tive… nunca trabalhei com fotografia não. Mas enfim, é basicamente… a minha família é da região de Piraúba, Guarani e regiões, e meus pais vieram pra cá, casaram aqui em Juiz de Fora mesmo e a gente sempre morou… morou, vivemos, trabalhamos, toda a minha família esteve enraizada mesmo, o cordão umbilical nunca foi cortado, foi sempre aqui mesmo. É assim mais ou menos?

Fernanda: Claro, sim.

Paulo: Renato, no momento do golpe você tinha 15 anos…

Renato: Eu acho que é isso mesmo, é. Eu sou ruim de matemática, eu não tenho ideia…

Paulo: Você tem lembranças daquele dia do golpe militar, como era o clima na cidade naquele momento? Você ficou sabendo do golpe…

Renato: É até interessante, eu me lembro sim, sabe por quê? Porque eu estudava à noite num colégio… eu não sei mais o nome do colégio, sei que ficava na Rua Braz Bernardino esse colégio. Aí, então, no dia do golpe… a gente ficou sabendo por ouvir dizer, porque a gente não tinha acesso, vivia na pobreza que dava, porque nem rádio em casa a gente tinha, sabe? Então, não sei exatamente como a informação chegou até a mim. Eu sei que eu fui à escola nesse dia, eu estava no ginásio, na escola nesse dia, e tinha um professor lá… ele falou, assim, que não haveria aula, entendeu. Porque tinha havido, não sei se falou… não vem ao caso, que havia um fato complicado no país. Então, mas andando na cidade, por exemplo, eu morava lá no bairro Nossa Senhora Aparecida, onde tinha… pra ir pra Braz Bernardino, não via nada de diferente, entendeu? Via sim passando carro militar, mas… Juiz de Fora é uma cidade de região militar, então, pra gente era normal. Mas eu sabia, tinha informações, na minha adolescência, que a coisa estava se complicando através do governo João Goulart, que a coisa não estava boa, entendeu. Embora eu não podia nem imaginar que Juiz de Fora fosse o centro, o gerador, a cidade geradora de um golpe, nem podia passar pela minha cabeça. Foram essas questões de dificuldade de informação. E eu me lembro que quando eu cheguei em casa, meu pai falou assim, comigo assim ”Aconteceu isso, entendeu”, “A escola pai, não teve aula hoje”, ”Ah, porque aconteceu isso, isso e isso…”. O meu pai trabalhava, nessa época, como atendente no IAPI, Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, aí meu pai trabalhava nessa época lá. Então, ele falou assim “Houve isso e tudo mais, e agora fica na sua”. Entendeu? Não havia assim nenhum tipo de orientação, “Poxa, a barra está pesada, vamos sair na rua”. Mas eu fico com medo, eu, particularmente, fico com medo, logo está, que eu fico três dias sem ir à aula, três dias. Quando eu voltei pra aula, a professora falou assim “Poxa, você faltou três dias”, eu falei “Eu estava com medo, estava com medo desse negócio que estava acontecendo aí”, a professora “Mas isso não tem nada a ver não, ué! Eles fazem as coisas lá e a aula continua aqui, não tem nada a ver”. Desses detalhes eu me lembro, essa foi a primeira experiência, o primeiro contato que eu tive com o tal golpe de 1964. Eu era um adolescente despreocupado, começando a ficar preocupado apenas com os… amava os Beatles, os Rolling Stones, né. Já estava começando a pensar que queria ter um cabelo comprido, essas coisas que meu pai não deixava, por sinal, não é. E já querendo a viver minha vida de roqueiro, de adolescente, independente dessas coisas. Mas não teve, assim… frontalmente eu nunca tive contato direto com o tal do golpe não.

Fernanda: E quando você teve consciência Renato, de que o golpe desencadeou uma ditadura militar, de fato que estava acontecendo em questão de momento histórico e político do Brasil? Quando que…

Renato: É, isso aí… Aí vem um detalhe. Com a incapacidade, incapacidade não, desculpa, com a impossibilidade de ter acesso à informação por questões financeiras… a gente não tinha nem rádio em casa, entendeu, então, simplesmente já era meio complicado… as informações eram dirigidas, se bem que… dizem, historicamente, que não havia censura nesse período inicial do golpe. Mas por incrível que pareça, eu só fui tomar consciência de que nós vivíamos sob o poder dos militares, sob um golpe, quando eu comecei a ler “O Pasquim”, entendeu. Aí então, lendo aqueles artigos, análises, a crítica deles, aquela ousadia deles de fazer um combate ao golpe dos militares, ao regime em si, é isso que começou a me alertar. Nesse tempo eu estava com 19, 18 ou 19… eu fiquei em um vácuo, entendeu. As coisas estavam acontecendo e não tinham a menor importância pra mim. Eu continuei fazendo meu… a nossa condição social era muito baixa e eu tinha que carregar almoço pros outros, engraxar sapato, entendeu. Parei um tempão de estudar, porque eu não tinha condições de fazer… de pagar colégio. Tomei pau duas vezes nas escolas públicas, porque não tive acesso a… na época chamava admissão, para entrar para o ginásio. A minha mãe é quem se esforçava para pedir nos colégios particulares bolsa de estudo para a gente. Então, foi assim que a gente conseguiu chegar a tal ponto. Eu só fui estudar, só fui fazer comunicação com 23, 24 anos, fiz vestibular com 23, 24 anos, entendeu. Mas o que me interessava nessa época era rock, eu gostava de rock, Jovem Guarda, a música dos Beatles… isso me dizia alguma coisa na época. O que estava acontecendo politicamente não tinha… Quando eu comecei a ler, por acaso… comecei a trabalhar no escritório da Livraria Zappa, era livraria, papelaria e tipografia Zappa, e eu trabalhei em um escritório, entendeu. E lá é que eu comecei a ter acesso ao jornal “O Pasquim” e comecei a… “Opa, o que está acontecendo, gente, que isso, que barra pesada é essa?”. Eu buscava opinião, o movimento… a própria Veja, que na época era uma revista séria, a própria Veja e tudo mais, para poder conseguir informações e formalizar na cabeça que nós estávamos sendo vítimas de uma opressão, de uma repressão, de um golpe militar já há algum tempo e que nós vivíamos sobre um regime militar.

Fernanda: Esse trabalho seu no escritório foi em que ano mais ou menos? Esse trabalho que você mencionou em que você pode ter acesso às revistas…

Renato: Foi mais ou menos em 1968. Um detalhe, eu fui servir o exército em 1968, o ano que não acabou, como eles falam, não é. E eu fui servir o exército… eu estava servindo o exército no 10º, ali na 1ª Companhia, entendeu. É muito comum, era muito comum você sair… ia sair cinco horas, mas tocava corneta lá. “Pode voltar, nós estamos em…”. Senão, nós não podíamos sair, entendeu? Não podia sair do quartel, tinha que ficar de prontidão, sempre de prontidão, “Não pode sair”. Aí a gente ficava lá um dia, dois dias… “Ah, está liberado, pode ir embora”. Porque em 1968 o pau estava comendo, não é. Manifestações aqui e ali e tudo mais, então, o exército começou a segurar, a apertar. Foi até que surgiu o AI-5, foi em 1968, não é. Então, aí, começou a pegar. Muitas vezes, lá no quartel, eu tive… a gente via presos políticos que estavam lá no 10º, entendeu? Muitas vezes, a gente tomava conta de visitas, esposa, filhos, parentes de presos políticos. A gente ficava acompanhando a conversa deles, mas o contato que eu tive assim… e completamente alheio, entendeu. Eu era muito despreocupado realmente com o que estava acontecendo. Quando eu saí do exército, que eu fui trabalhar lá na Zappa, é que eu, a partir das leituras de jornais e de… eu comecei a ler Jornal do Brasil também, que era um grande, a grande informação na época pra gente era o Jornal do Brasil… e comecei a ler opinião, “O Movimento”, “O Pasquim”, jornais alternativos, aí que eu comecei a ter a consciência de que o movimento estava acontecendo, ou seja, três, quatro anos depois do golpe.

Fernanda: Você lembra, no 10º RI, na sua atuação lá, se havia algum lugar específico para os presos políticos ficarem dentro do quartel ou tinha…

Renato: Não, eram celas comuns. Eu me lembro que tinha uma cela que era pra soldados que faziam… que tinham problemas e ficavam detidos, não é, ficava preso, ficava detido. E tinha uma outra cela… isso eu me lembrei… que ficava ao lado assim, onde ficavam os presos políticos. Se você me perguntar, assim, quantos que eu vi lá, eu não tenho a menor ideia, mas se bem que eu convivi com isso, isso eu… A gente tomava conta quando eles recebiam visitas, a gente ficava na sala acompanhando pra… não anotava nada, só ficava acompanhando, entendeu. Fazia revista nas celas deles, banho de sol deles, tomando conta, só isso. Essa é a minha experiência como…

Paulo: E na universidade? Você teve já um contato maior com questões que envolvem…

Renato: Na universidade? Quando foi… depois que eu fiz vestibular, quando eu comecei a estudar aqui, aí começou a ter esses movimentos mais ou menos no início da década de 1970, depois de 1968, quando a barra pesou mais… movimentos estudantis, que com toda a sinceridade, pra mim, não tinha o menor efeito. Participava, aqui na praça cívica se reunia aquela multidão de estudantes pra ouvir discursos, pra… pedir… pedindo o fim do regime militar, esse negócio todo, mas para mim, aquilo ali era apenas estar lá, entendeu. Não tinha propriamente essa questão assim de ser “poxa, tem que acabar com isso, tem que fazer isso, tem que fazer aquilo”, não tinha. Eu estava lá. Eu estava apenas me sentindo na obrigação de estar lá, porque havia alguma coisa errada, sabe? Mas acontece que nesse… participação efetiva eu nunca tive.

Fernanda: Você chegou a… você não chegou, então, nesse período estudantil na universidade a integrar DAs, DCE ou algum partido político?

Renato: Não, não. Participar de direção de DA e DCE eu nunca participei. Participava, isso é certo, das manifestações, passeatas, aliás, ali no campus mesmo. Saia daqui, ia lá pra cima na engenharia, voltava, fazia concentração na Praça Cívica… Aquele monte de gente, grito pra cá, grito pra lá, “abaixo a isso”, “abaixo a aquilo”, mas apenas como participante. Aplaudia, vibrava, gritava e tudo mais, mas não tinha nenhuma participação específica, entendeu? Não passei por nenhum tipo de organização, ou seja, estudantil, seja o que for, que desse uma participação mais efetiva, ideologia, ou seja, o que for.

Paulo: Na imprensa, você chega no final dos anos 1970, isso?

Renato: Isso.

Paulo: Os veículos em que você trabalhou tinham alguma posição, uma linha editorial especificamente definida em relação ao regime?

Renato: Tá. A resposta que eu vou te dar aqui agora é por conhecimento posterior ao fato. Ou seja, na época Juiz de Fora tinha dois jornais basicamente, o Diário da Tarde e o Diário Mercantil. O Diário da Tarde era um jornal mais popular, com sangue, crime, corpos na primeira página… O Mercantil era o jornal que era “metido”, em aspas, mais sério. Até a diagramação dele era igualzinha à do Jornal do Brasil, ele fazia um jornal que atendia à sociedade. E Juiz de Fora é uma cidade extremamente conservadora. Essas coisas que eu estou te falando é uma concepção de hoje, hoje mais recentemente, porque na época eu não tinha a menor condição de emitir isso, entendeu? Eu não tinha a menor condição, mesmo. Então, mas eu depois a gente vendo, lendo livros de hoje, que já foram publicados, que mostravam o conservadorismo dos jornais refletindo o conservadorismo da própria cidade, ou seja, reflete a cidade ou faziam as vontades da cidade, porque a mudança que houve na comunicação foi muito grande. Antigamente, os jornais faziam a cabeça das pessoas, a mídia fazia a cabeça das pessoas, hoje a gente vê o contrário, entendeu? A força popular hoje, vamos dizer entre aspas, é muito maior e é ela quem manipula realmente a vontade da mídia. E, por informações, a gente sabe que os próprios jornais aqui aderiram, aderiram ao golpe, como grande parte da imprensa nacional aderiu ao golpe. E nesse reflexo, eu não tinha realmente pegado. Eu folheava um Diário Mercantil, um Diário da Tarde, mas não fazia… “Poxa, eles aqui estão falando sobre o general tal”. Para mim não tinha a menor importância. Encontrava coluna social lá, “o general recebeu essa homenagem tal”, então, eu não tinha a menor informação. Esse negócio é muito interessante, porque você pode estar pensando assim “Poxa, o cara é completamente alienado. Viveu a adolescência alienado, viveu a pós-adolescência também alienado, entrou pra universidade alienado…”. Mas não, uma concepção eu tinha, entendeu? Que era errado o que estava acontecendo, isso é ponto pacífico. Quando eu comecei, pelo que eu te falei, pelas leituras do “O Pasquim”, “Veja”, “Jornal do Brasil” e tudo mais, eu percebia que tinha alguma coisa errada, mas acontece que, acima de tudo, vinha aquela vontade de me superar profissionalmente, de ser um jornalista, entendeu? O que viesse disso, seria consequência natural da minha formação e não de uma ação política, de uma ação de grupo, isso pra mim não tinha…

Paulo: E ao chegar nas redações, no final dos anos 1970, os veículos tinham uma posição mais crítica em relação, não apenas à experiência da própria ditadura, mas à aquela imposição relativamente… pela campanha pela anistia. Como que era o clima das redações quando você chegou, no final dos anos 1970?

Renato: Eu comecei a trabalhar como estagiário…

Fernanda: Em qual jornal, qual foi o primeiro jornal em que você trabalhou?

Renato: Diário da Tarde, é o Diário dos Associados, que é o Diário da Tarde e o Diário Mercantil. Mas, antes disso…

Fernanda: Mas as redações não eram juntas, não é?

Renato: Oi?

Fernanda: As redações não eram juntas?

Renato: Eram juntas.

Fernanda: Eram juntas?

Renato: Eram, em frente onde… tudo é meio gozado quando eu faço essas coisas assim, dou depoimento em… bate-papo com estudantes, tudo pra mim é ex, o “ex-Diário dos Associados”, que ficava em frente ao “ex-Excelsior”… entendeu. Tudo é ex, não é? Aí então, o detalhe é o seguinte, que antes disso eu comecei a sentir uma imensa vontade de ser jornalista, deu aquele estalo assim. Quando eu saí do exército, eu falei assim “Agora eu tenho que seguir minha vida, né cara. O que eu quero ser? Jornalista”. Através de uma figura que me era… eu não tinha um contato pessoal com ele, ouvia ele no rádio, via ele em matérias do jornal, o José Carlos de Lery Guimarães, que me fez a cabeça em termos profissionais. Pois bem, eu falei “Vou ser jornalista quero ser igual ao José Carlos de Lery Guimarães”, entendeu. E nesse meio tempo, então, eu fui conversando com o César Romero, então, junto com ele… ele já tinha fundado a Gazeta Jovem, que era um jornalzinho impresso em mimeógrafo e tudo mais… Então, um dia eu encontrei com ele, aí eu falei “Oh César, você não quer que eu te ajude, não? Eu faço algumas matérias pra você e tudo mais”. E começamos a trabalhar um tempão, uns dois ou três anos, a gente fazia… mimeografava, entendeu? E tudo mais. Era um jornal ligado à promoção de festas e tudo mais, Bom Pastor, aquele negócio todo, sem nenhum comprometimento, mas era divertido. Era divertido, porque você tinha contato com pessoas que começavam, por exemplo… era o prefeito, imagine… eu nunca imaginei poder sentar frente a frente com o prefeito, entrevistar o prefeito. Essas coisas foram me abrindo um espaço para isso. Com José Carlos de Lery Guimarães, ele tinha um suplemento… eu estou falando isso de antes de começar a trabalhar no Diário dos Associados, tá. Ele tinha um suplemento no Diário Mercantil que chamava Junior e, um dia, na maior cara-de-pau, eu cheguei lá e falei assim “Quero falar com José Carlos Guimarães”, “Pois não”, “José Carlos, é o seguinte, eu queria…”, eu não era jornalista, eu não era nada na vida, entendeu. Eu queria fazer alguns artigos, algumas matérias pro Junior… estava com 20 e poucos anos. Aí, ele falou assim “Claro, ué!”. É um cara assim, completamente maravilhado com a profissão, e mais maravilhado ainda com o que gostava na profissão. “Claro, Renato! Eu vou te dar uma pauta aqui, vai ter um baile aí, um DA de Economia, DA de Engenharia…” Tinham muitos bailinhos na época, não é. “Você vai lá e cobre pra gente, pra ver quem estava presente, fala como é que foi… pra mim também”. Aí, eu comecei a trabalhar um tempão também, sem nenhum vínculo empregatício, entendeu. Mas tinha o meu nomezinho lá, “agora tem o meu nomezinho lá!”, entendeu. No texto, não é? Aí, acontece… a coisa foi evoluindo, eu entrei para a universidade… quando eu estava no segundo período, terceiro, não, quarto período, no segundo ano, aí pintou uma vaga lá no Diário dos Associados, de estagiário na área de polícia. E polícia na época era polícia mesmo! Era de subir morro, de ver cadáver no chão, escorregar em sangue, esse negócio todo. Aí, eu fui pra lá. Aí, você perguntou sobre a redação. Bem, a questão é a seguinte, quando eu cheguei lá, por ser um estagiário, por não ter nenhuma parte de decisão, eu fui conhecendo o pessoal que trabalhava lá como o Wilson Cid, o Eloísio Furtado de Mendonça, o Cavaliere, mais gente… o Ricardo, um monte de gente. Mas eu não tinha noção do que estava… o Marin Melquíades, que era editor-geral do Diário da Tarde… então, mas era aquele negócio… “Renato, olha, saiu aquele negócio…”. Eu não via nenhum clima, não via nenhum clima assim de “repressão”, entre aspas, na redação. Combinasse que não existia mais censura prévia. Eu comecei a trabalhar em 1977, não existia mais a censura prévia. Então, não tinha… ninguém na redação, e nem mandar material pra Polícia Federal, pra ela poder liberar ou não liberar. Isso não existia. Mas existia realmente resquícios da mão, da mão do poder ali dentro da redação. Tanto assim que, determinadas matérias… o pessoal percebia isso, não tendo nenhuma decisão, nenhum contato direto com as matérias, mas a gente percebia que “opa, deixa isso aqui pra depois, depois a gente trata sobre esse assunto, deixamos pra lá”, entendeu. E tinha também os interesses da empresa, como toda empresa, tem seus interesses, não era privilégio deles. Dito, eles seguravam a matéria por interesse deles, particulares, que não eram necessariamente relacionados com a ditadura, entendeu? Agora, isso, a gente sentia isso na redação, principalmente entre as pessoas que viveram intensamente essa época, viveram intensamente essa mudança, a gente sentia que havia um certo cuidado, um certo cuidado ao trabalhar determinadas matérias. E tinha também um outro lance, que esse eu estive lá naturalmente, de credenciamento. Isso eu vi… eu vivi, sabe? Porque eu fui fazer cobertura, fazer iniciado pra isso… Quando o Figueiredo… não me pergunte o ano, porque eu não vou me lembrar não… quando o Figueiredo esteve aqui em Juiz de Fora para inaugurar a nova BR-040. Então, aí o Geraldo mandou lá pra 4ª Região o pessoal credenciado. Nem todos foram credenciados, nem todos foram autorizados a sair para trabalhar. Isso me chamava a atenção. “Mas por quê? É um trabalho de reportagem e tudo mais”. Aí, que eu fui aprendendo essas coisas e sabendo que o clima de instabilidade, ou de governança da ditadura, criava esse tipo de empecilho também para o seu próprio trabalho.

Paulo: Na redação havia colegas com militância partidária, com militância política, ou não?

Renato: Se eu tive?

Paulo: Alguns colegas da redação tinham militância partidária?

Renato: Tinha, tinha alguns que tinham militância partidária, sim. Eram mais na época minha de estudante, os próprios DAs, entendeu. Não me lembro de partido, nem tinha partido, era o MDB e Arena, não é. Então, não tinha essa filiação partidária específica não. Apesar de que o pessoal que era contra o governo ia para o MDB, não é, e o pessoal que era a favor ia pra Arena. Mas só essa dicotomia, só, não me lembro assim de pessoas que tivessem atividades não. A gente tentava, e é um detalhe interessante, através de sindicato, Sindicato dos Jornalistas daqui de Juiz de Fora… da historiografia, entendeu, e não uma coisa participante. Eu queria deixar bem claro por eu estar com… quando eu consegui uma vez, em plena ditadura, foi um negócio fantástico, uma entrevista com um general da 4ª Região Militar aqui, foi até na data de 7 de Setembro. Aí, eu comecei a conversar com ele sobre política, sobre todos os assuntos em geral, e ele respondendo numa boa, foi a manchete do jornal na época, e aquilo tudo foi “Opa! Estou contribuindo de uma forma ou de outra”, entendeu. Parecia o documentário de um período. Na verdade, a minha grande preocupação era essa, não tinha assim… Aí você pode perguntar assim “Por quê?”. Essas são questões que eu não me preocupo em entender, nem quero me preocupar, ainda mais agora, me preocupar em entender por que aconteceu isso. É por medo? Pode ser por medo, desconhecimento de causa, desinformação, tudo isso. Tortura! A gente ouvia falar em tortura assim, um negócio tão distante, tão distante. E esses problemas nem saíam nos jornais, na verdade. Mas um negócio tão distante, que ouvir falar nisso…

Fernanda: As prisões saíam no jornal, Renato? A tortura não, mas as prisões. Havia um acompanhamento do jornalismo policial, jornalismo de política?

Renato: Saía. Por exemplo, aqui mesmo, quando tinha preso ali na Penitenciária de Linhares… tem presos políticos, em uma época ainda… a gente mesmo, uma vez convidaram os jornalistas para irem lá ver a situação que eles estavam, porque um deles eu acho que tinha denunciado os maus-tratos, a alimentação, não estavam no lugar ideal… então, a própria penitenciária, com o aval dos militares, abriu lá para os jornalistas verem, entendeu… como viviam os presos. Não eram muitos lá não, uns três ou quatro só, mas que conviviam lá, e tudo mais. Isso não tinha. Pra mim essa coisa era assim, tão distante, tão fora do meu contexto, do meu mundo real, ou irreal, não sei, que a minha preocupação era a seguinte, “tenho de ser instrumento de documentação disso”, meu objetivo é esse. Como está esse exemplo, quando… nós temos que trabalhar durante a greve, porque alguém tem que divulgar essa greve, porque, senão, não adianta ter greve sem entrar pra história. Já é a preocupação de fazer o jornal de hoje… se passa despercebido, mas daqui a 10, 20 anos, alguém vai buscar estudar para se informar ou pra pesquisar alguma coisa assim, entendeu Esse que era o…

Paulo: Nesses momentos, 1978, 1979, tem as greves do ABC, em 1982 a primeira eleição pra governo de estado… esses momentos geravam uma tensão na redação?

Renato: Não.

Paulo: Ou alguma dúvida sobre o quanto o regime de fato tinha abrandado?

Renato: Quando começaram as greves, principalmente no ABC, o material que chegava pra gente era material de agência, não é. Agora, aqui em Juiz de Fora a gente nunca teve assim um impacto, por trabalhar em Juiz de Fora, por estar sempre em Juiz de Fora nunca teve esse impacto muito grande. Eu me lembro de uma greve de… manifestação de estudantes, que eu fui cobrir também aqui no Parque Halfeld, por questões de aumento de ônibus. Aí foi aquele monte de estudantes igual aconteceu em 2013 agora, aquele monte de estudantes, eu até fui mordido por um cachorro, entendeu. Mas sem nada que tivesse… é claro que esse movimento… é claro que tinha uma visão política, era óbvio, ninguém é tão ingênuo que não pode imaginar isso, não é verdade. Nem eu, na minha santa ingenuidade, poderia imaginar “ah não, é só por causa de ônibus mesmo, ninguém está preocupado com o regime”, não. Mas acontece que era só movimentação localizada, realmente… eram estudantes espancados, a gente via lá nas manifestações… eu tive uma mordida de cachorro e tudo mais, mas a gente não tinha… eu não via essa questão de um perigo tão grande assim. Até por Juiz de Fora ter sido a geradora de toda essa situação, entendeu.

Fernanda: Hoje, Renato, só pra gente finalizar, como você avalia, com a sua visão, toda essa sua experiência relativa aos diversos cargos que você assumiu nesse período intenso, atuando como jornalista? Como você avalia o posicionamento em geral desses jornais nessas diversas fases, até 1984, as Diretas e 1985 quando o Sarney, na verdade, assume?

Renato: Por exemplo, a minha primeira experiência em redação no Diário dos Associados, Diário da Tarde e o Diário Mercantil, ela me traz essa lembrança do distanciamento, ou seja, não tinha mais censura prévia, mas tinha a censura do medo. “Ah não, não vamos mexer com isso não porque isso pode gerar problemas pra gente”. Como gerou em 1982, 1988, 1989 e 1990 foi gerado de ser processado por uma questão de divulgação de informação. Mas… que era informar. Bem, quando… então, essa questão do Diário dos Associados, eu acho, vendo hoje o foco histórico da história, eu vejo o seguinte, é que, de uma forma ou de outra, o fato de jornais de Juiz de Fora terem, historicamente, terem aderido ao golpe, ou aclamado o golpe logo no seu nascedouro, eu acho que… “Aqui, olha, não se preocupa com isso não”. É uma província. Aqui ela gerou o golpe, mas aqui não teve repercussão nenhuma não, “A imprensa ali não é problema nosso, não é problema da gente”, entendeu. Eu penso assim, historicamente… Bem, da minha experiência na Tribuna, na Tribuna já era em 1981, eu me lembro que nós tivemos um problema logo no jornal, que teve um clube de teatro de rua… eu esqueci o nome do grupo, eles se apresentavam aqui em Juiz de Fora, aí o nosso fotógrafo foi pra lá fazer uma porrada de foto e tudo mais, aí tomaram as fotos dele, não podiam publicar as fotos. Logo depois, você liga, entra em contato… não militar que fez isso não, foi civil mesmo… aí, depois, sempre liga pra um aqui, liga pro delegado, “está bem, essas coisas acontecem”, e ele libera. Mas assim, diante destes fatos, de uma forma ou de outra, mínimos que eu participei sem nenhum tipo de envolvimento maior que possa interferir na minha vida, na minha vida profissional com relação à ditadura, o que eu vejo é o seguinte, que o papel nosso daqui, de Juiz de Fora, ele foi relativamente, a não ser gerado o golpe, ele foi, de uma forma ou de outra, “enxoxo” diante da grandeza do que aconteceu, entendeu. Mesmo os movimentos estudantis, mesmo os movimentos sindicais, eles eram “enxoxos” diante da grandeza do que estava acontecendo. Por quê? Porque, de uma forma ou de outra, a força da informação vinda das agências, dos grandes jornais da época, o Jornal do Brasil, Folha, O Globo, Estadão, Estado de Minas, eles sufocavam uma posição, um posicionamento de um jornal de interior, como era em Juiz de Fora. E a própria imprensa em Juiz de Fora, aí é um aspecto crítico, não se importava com isso, fazia o que tinha de fazer, ou seja, alimentava as informações básicas para poder servir à comunidade. Só depois, eu me lembro, quando pintou esse lance da cachorrada no Parque Halfeld, em que eu fui mordido e tudo mais, eu me lembro que houve um editorial contra aquilo, mas é pontual. Pelo menos, que eu me lembre, posicionamento assim forte contra… se houve a favor também não me passa pela cabeça, por que não tinha… no sentido de oposição, mas pelo menos está dando ali, está mostrando, por “a” mais “b”, que a coisa está errada, sabe. Havia mais vontade dos profissionais do que propriamente da empresa, ou das empresas em trabalhar nesse tipo de informação, não é. Ou de ideologia, digamos assim. Eu não via isso, eu não via isso no jornal onde eu trabalhava, nos jornais em que eu trabalhei, entendeu. Não via.

Fernanda: Renato, a gente agradece a sua participação, o seu depoimento, foi ótimo. Vai ser uma contribuição importante pra nós.

Renato: Antes da gente falar, eu estava pensando nisso tudo, não é. Eu falei assim “Oh gente, como a gente pode tratar… como a gente poderia contribuir com isso de forma mais efetiva?”. Mas, na verdade, a gente… “Mas poxa, que papel, que grande papel que a gente tem!”. Mas tem determinadas coisas, quem sabe, com uma palavrinha, uma frase, um período, um depoimento, um olhar, uma reação, um gesto, que você faz é… “Opa, isso é importante pra poder formar um grande mosaico, um grande mosaico”. Então, eu me sinto assim, entendeu? Como se fosse uma… como eu te falei, eu falei com vocês, eu me sinto e me sinto sempre, na minha condição de jornalista, como um historiador, entendeu. “Eu estou aqui para documentar”. Eu via o que eu via e publicava, estava lá, está documentado, assinado o nome da matéria, está documentado. Agora, na forma efetiva, forte, vibrante como até gostaria, porque dentro de mim eu acho que a gente, de uma forma ou de outra, a gente foi muito omisso, muito omisso como jornalista, como profissional, a gente acabou sendo muito omisso diante das barbaridades que aconteceram e que agora estão vindo a tona aí, com muita força. Quando eu li, há muitos anos atrás, aquele “Brasil: nunca mais”, da Arquidiocese de São Paulo, eu falei assim “Meu Deus, esse é o meu país? É no meu país que aconteceu um negócio desse?”. Eu não consegui acabar de ler o livro. Quando você lê lá “O relatório das torturas, os depoimentos”. Sofreram… filhos sofreram vendo pais e vendo mães sendo torturados, eu falei “Meu Deus, não é possível!”. Eu fechei o livro e nunca mais abri esse livro, entendeu. Eu acho, com toda a sinceridade, que, de uma forma ou de outra, talvez pela própria estrutura do trabalho da gente, estrutura das empresas que a gente trabalhava, a gente se acomodou. Entendeu? A gente se acomodou. Nunca esse processo da Lei de Segurança Nacional, que a gente foi envolvido, que na época era o… ele para mim teve uma conotação de estar lá dentro, nos bastidores da coisa. Senti o que é dar um depoimento na Polícia Federal, o que era um depoimento pros militares da justiça militar, entendeu. Isso tudo. Até algum tempo depois, em cima disso tudo, até escrevi um livro, mas buscando… “Poxa, essa informação é legal, essa informação é ruim”, e tudo mais, do que propriamente como um comportamento ideológico. E isso eu acho que é um empecilho na minha capacidade de falar assim “Poxa, eu ajudei esse país a sair desse estado de coisas que estavam”, sabe, fiz a minha parte, mas eu podia ter feito muito mais. Mas a estrutura pela própria cidade que eu moro, que eu sempre morei, pela estrutura dos jornais em que eu trabalhei e tudo mais, eu não vejo como eu poderia ter feito mais que isso.