Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora
Depoimento de Gilney Viana
Entrevistado por Cristina Guerra e Fernanda Nalon Sanglard
Juiz de Fora, 28 de Janeiro de 2015
Entrevista 027
Transcrito por: Vanessa Luiz de Oliveira e Daniela Miranda dos Santos
Revisão Final: Ramsés Albertoni (19/11/2016)
Fernanda: Gilney, boa tarde. Obrigada por ter aceitado o nosso convite, o convite da Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora. E eu queria começar pedindo para se apresentar, a sua idade, quando nasceu, onde nasceu e, enfim, como começou o seu envolvimento com a militância política e pelos direitos humanos.
Gilney: Não, eu quero começar agradecendo o convite da Comissão da Verdade Municipal de Juiz de Fora, é, dizer que eu me sinto honrado de fazer esse depoimento. Eu tenho uma ligação política, afetiva também, com a cidade de Juiz de Fora e, particularmente, com o bairro de Linhares, onde eu passei sete anos e cinco… seis meses preso, mas é uma parte da minha vida que ela é muito importante. E eu não tenho memória deste período, apenas do que eu sofri, mas também daquilo que eu vivi, você entendeu? E isso é muito importante. Segundo, quer dizer que a minha história talvez não seja muito diferente de outros companheiros e de outras companheiras que assumiram uma visão de esquerda, uma visão socialista, comunista, alguns eram democratas cristãos, ou eram cristãos revolucionários, é… com várias categorias de opções que existiam na época, mas que sonhavam, alguns sonham, até hoje, como eu, em construir uma sociedade mais justa, mais democrática, que tenha uma outra base de relação entre os humanos. Eu, hoje em dia, costumo dizer que entre os humanos também e entre todos os seres vivos e todo o meio ambiente em que a gente vive, eu acho isso muito importante. Aprendi isso um pouco em Linhares, depois eu posso falar sobre isso. É, e eu aprendi isso, a minha opção eu construí foi quando eu vim para Belo Horizonte, ao final de 1959 e inicio de 1960. É, quando eu fui morar numa pensão, eu tinha 14 anos, e eu ia fazer o curso de vestibularzinho para o Estadual, onde eu acabei sendo admitido e, nesta ocasião, eu conheci um rapaz que era um comunista e ele morava nessa pensão, e ele levava o jornal do Partido Comunista, ele ficava lendo lá, ele fazia uma agitação lá. Eu tinha muita curiosidade assim, e ali, naquela ocasião eu tomei a minha primeira posição política à esquerda, eu apoiei o general Lote contra o Jânio Quadros, e aí eu posso fazer uma reminiscência da minha família, que meus pais, particularmente o meu pai, porque a minha mãe não tinha uma opinião política formada, ou pelo menos não a expressava, é, ele era lacerdista, ele era udenista. É gente que vem desde a época de que resistia a ditadura Vargas, pelo lado da direita, a UDN, então, era gente onde a minha formação ali de infância era muito conservadora, agora, meu pai tinha um mérito, obstante dele ser conservador, ele não era esse pieguismo religioso, católico, que no interior existia muito, e que era muito ligado a uma Igreja conservadora. Como ele tinha, acho que ele era maçom, ele não gostava muito de padre, você entendeu, então, tinha esse outro lado, o que não nos obrigava a frequentar a igreja, só moderadamente, se fosse no domingo na igreja ou fizesse aquele cerimonial pra ele já era o bastante. Aliás, ele não ia à igreja, só quando houvesse festa. Então, é… a ruptura que eu fiz com a minha família, inicialmente, que era lacerdista, e era udenista, foi quando eu apoiei, apoiei é um modo de dizer, porque eu ia nos comícios do general Lote, você entendeu, que era do PTB, apoiado do PSD, mas também dos comunistas, entendeu. Eu acho que foi a primeira luz de esquerda que eu tinha na esfera da política, na esfera da compreensão da sociedade eu já tinha um ensinamento que eu aprendi de criança, que eu reparava muito é que na minha própria família e no ambiente que eu morava, nós tínhamos um ambiente de fazendeiros e meu pai atendia, ele era um farmacêutico prático, não tinha dinheiro, ele era um classe média do interior, ele atendia os pobres, os ricos iam na outra que era mais chique, na outra farmácia. Então, ali eu… sabe que ali eu tive uma compreensão, uma percepção de que esse mundo estava mal dividido, certo, mas eu não tinha uma crítica, isso eu fui adquirir um pouco mais tarde. Então, eu sou nascido em Crisólita, Minas Gerais, meu pai quando… em Minas Gerais, aqui no Vale do Mucuri, quase chegando em Jequitinhonha, e meu pai foi o primeiro prefeito da cidade de Águas Formosas, da qual Crisólita era um distrito muito pequenininho, você entendeu. Isso eu nasci em 1945, quando veio a redemocratização pós-Vargas foi final de 1945, meados de 1945, mas a eleição municipal só foi em 1947 se eu não me engano, meu pai tomou posse em 1948, meu pai se elegeu pela UDN, você entendeu, e meu tio também, udenista, se elegeu deputado. Então, era uma tendência de políticos conservadores, e eu fui romper com isso. Eu fui um político que, político no sentido de assumir a política enquanto uma opção de vida, não de vida profissional, mas de vida ideológica, de pensamento, de ação, é, pela esquerda. Nessa ocasião, em 1960, eu não pude fazer a entrada no Colégio Estadual porque eu tinha perdido o vestibular, o exame de admissão. Foi uma desgraça para o meu pai, porque o meu pai ele sabia que o Colégio Estadual era o colégio onde a elite estudava, e aqueles de classe média, os mais pobres tinham que fazer um esforço para entrar porque era muito seletivo. E… mas eu fiz no outro ano e voltei a entrar no Colégio Estadual, voltei não, quer dizer, consegui entrar em 1961. Então, eu estudei no Colégio Estadual de 1961, 1962, 1963 e 1964. Em 1961, quando eu entrei para o Colégio Estadual, aí é que eu conheci o povo de AP e do PC, você entendeu, eu trabalhei, tinha um pessoal que trabalhava com favela e eu comecei a trabalhar com eles, com favela, você entendeu, e nas ocupações dos morros de Belo Horizonte, e ali eu me eduquei, eu aprendi o que era a vida de quem era excluído, e quem era trabalhador, mas ganhava muito pouco e não tinha acesso a uma casa decente, a esgoto, água era muito difícil, provável era de ter encanada, mas geralmente não tinha, essas coisas eu aprendi na vida. Aí, foi quando eu entrei em contato, na minha sala do Colégio Estadual, que naquela época as salas do Colégio Estadual tinham trinta alunos mais ou menos, 30, 31, 32, não eram salas muito grandes não, muito numerosas, lá, quando eu, lá já tinha um pessoal que estava entrando para o Partido Comunista Brasileiro, naquela época não tinha criado o PC do B ainda. Então, naquela sala, quando hoje eu olho a foto minha no colégio, geralmente tinha esse macete de você tirar uma foto da sala, não sei se hoje ainda é costume nos colégios, e ali eu conheci vários companheiros que entraram para o Partido Comunista, tinha uma base do Partido Comunista só nessa sala, só nessa sala praticamente tinha uma base do Partido Comunista, eu vou citar dois que eram dessa sala que já faleceram você entendeu, Fernando Sana Pinto, que militou comigo na base do Partido Comunista Brasileiro, lá no Colégio Estadual, depois em 1962 ele rompeu e foi pro PC do B e continuamos amigos, até… depois, ele rompeu, veio a fase maoísta do PC do B, a Ala saiu dessa disputa, negócio do maoísmo. E ele foi pra Ala. Depois, no final, com esse negócio, ele entrou pra luta armada urbana, aí ele criou um outro grupo menor, que também tinha essa tendência de divisão desses partidos pequenos. O outro era o Herculano Mourão Salazar. Todos os dois estão na lista de prisioneiros daqui da penitenciária de Linhares. Eles… o Herculano também militou no PCB, depois foi para o PC do B e Ala. Ele acompanhou o Sana Pinto, todos os dois eram meus amigos muitíssimo. E depois, muito mais tarde, no golpe de 1964, eu convivi com o Sana Pinto na prisão do DOPS e na Penitenciária de Neves, e depois aqui, em 1972, ele veio pra cá, ele tinha sido preso em São Paulo e veio tirar um tempo aqui em Linhares, depois também, o Herculano.
Fernanda: Seu Gilney, voltando só um pouquinho, quando do golpe de 1964, que memórias você tem desse 31 de março de 1964? Como o senhor tomou conhecimento de que de fato o Brasil estava passando por aquela situação política e que era um golpe para a deposição do Jango?
Gilney: Olha, eu em 1964, eu já era um militante de três anos dentro do partido, já era do Comitê Distrital Secundarista, eu era do PCB, e era um ativista. Era daquele que frequentava sede, que ia para as atividades do partido de massa, essa coisa toda. Então, ali, ainda tinha isso, ainda era da ala esquerda, porque tinha um congresso convocado e eu era da ala esquerda do PCB. Daquele pessoal que não quis sair do PCdoB esperando o congresso. Essa era a coisa. Então, o que aconteceu? Aconteceu o seguinte, é que muita gente falava da proximidade de golpe, mas ninguém se preparou pra isso, nem o PCdoB, nem a POLOP. Meus amigos também de POLOP, que eu posso depois falar sobre eles, e nem a AP, que era recém-organizado, saindo da JUC… JEC… JOC… você entendeu? E que tinha um crescimento exponencial, porque tinha uma potência muito forte, tanto no meio estudantil como no meio operário, depois até no meio camponês. Então, eram pessoas que tinham uma tendência de radicalização política, mas eu diria que tinha muita agitação e pouca organização. E eu digo mais, quem tinha mais organização era o PCB, e o PCB acreditava muito no esquema militar do governo, que era do Assis Brasil, e no seu próprio esquema militar, que o PCB tinha um esquema militar, era o único partido que tinha, na verdade, um esquema militar, que já vem da FEB, da guerra… esses troços todos, sabe. Então, ninguém se preparou para o golpe, “O golpe tá vindo, tá vindo”, e quando veio… pegar de surpresa, não exatamente, mas pegou desprevenido, que é diferente de surpresa, você não se previne para aquela coisa. Então, foi um choque brutal. O golpe foi decisivo não só para a esquerda, não só para mim, mas para o Brasil. Porque a contradição era que a tradição, entre você integrar o Brasil no modelo de desenvolvimento que os Estados Unidos estava puxando, e você ter um processo de nacional desenvolvimento, que poderia ter uma posição mais independente. Não era problema de capitalismo não, capitalismo não. Era problema de você ter um projeto nacional que não fosse a reprodução de um estado semicolonial que era a limitação que os Estados Unidos, o império, impunha. Acontece que, naquela época, o fato de você querer independência, o império interpretava como se você estivesse aliado com a União Soviética, na disputa comunismo versus capitalismo, essa coisa toda. Então, eles não aceitavam meio termo, era difícil, você entendeu, e, particularmente na América Latina, depois da Revolução Cubana, com todo o acirramento das contradições, eles temiam que o Brasil caísse numa posição à esquerda, por isso o golpe era inevitável. Porque a classe trabalhadora estava avançando com suas lutas, foi constituído o Comando Geral dos Trabalhadores que era uma central única, foi constituído as Ligas Camponesas, o Grupo dos 11, a CONTAG que reuniu os sindicatos na fase do Jango. Então, você tinha uma efervescência de luta de classe real, não era só a questão de que a esquerda agitava, as massas agitavam. Então, é isso que metia medo na elite mais conservadora que identificava toda agitação como comunismo. Na verdade, se fosse comunismo seria, a meu ver, ótimo! O problema é que não era, era uma agitação sindical. A agitação tinha uma visão assim crítica, lutava por reformas de base, mas isso era tolerável num regime capitalista, pelo menos razoavelmente progressista. O problema era que isso era incompatível com a visão conservadora onde Minas, aí particularizando, era um centro importantíssimo do golpe, aqui nós tínhamos um partido social democrata, o PSD, muito forte. E tínhamos, para azar nosso, uma UDN forte. Eram os dois partidos que eram os mais fortes, e eles, de uma certa forma, se uniram para apoiar o golpe, o PSD, num certo grau de constrangimento, porque tinha expectativa de voltar à presidência, em 1965, com Juscelino Kubitschek.
Fernanda: O próprio Magalhães Pinto esperava…
Gilney: O próprio Magalhães. Todos eles eram pré-candidatos, mas eles temiam que o Brizola fosse candidato, que o Arraes fosse candidato, que saísse outra candidatura à esquerda que pudesse brotar dessa conjuminância que estava se formando. Então, o golpe se tornou inevitável. Eu vou dizer uma particularidade como eu percebi o golpe não só nessa visão macro, mas no micro, na minha vida privada. Eu morava na Rua Aimorés, ali perto da Olegário Maciel, que é perto do campo do Atlético. O campo do Atlético não existe mais, mas a sede do Atlético ainda existe lá. Eu não quero fazer propaganda do Atlético não, porque eu sou cruzeirense, viu, mas eu, às vezes, até frequentava ali, nunca fui radical nessa posição de torcida não. Sou na política, no futebol não. Mas logo ali, na rua Curitiba, era o comando da ID-4. E o comando da ID-4 era o centro do golpe em Belo Horizonte. Assim como o comando aqui na… como é o nome desse..?
Fernanda: 4ª Região…
Gilney: Do parque aqui da 4ª Região. Ele, ali perto do parque, como é que é?
Fernanda: Isso.
Gilney: É…
Fernanda: Na praça Antônio Carlos, ou perto do museu…
Gilney: Não, 4ª Região Militar, que hoje foi transferida para Belo Horizonte. Mas era ali no lugar até…
Fernanda: Na praça Antônio Carlos…
Gilney: … muito bonito.
Cristina: Onde tá passando caminhão?
Gilney: É, coisa ali. Me desculpa não saber o nome da praça. Mas, então, eu morava ali perto e eu vi que 29 já tinham cercado a rua. Trinta cercou, e a tropa tudo anormal… lá. E perto… o colégio que estava logo acima do Atlético Mineiro, onde hoje é a Assembleia Legislativa, tinha um colégio munici… estadual lá, tinha sido ocupado pela direita. O Bragança, que é um general da direita, ele já tinha mobilizado uma juventude, que depois ficou conhecida como os Amarelinhos, eles eram anticomunistas. Tudo ali perto de casa, você entendeu? Então, eu vi isso, então, eu percebi que a coisa desandou, aí eu não fui ao colégio mais, porque o golpe aconteceu no colégio estadual, né. Mas eu já era um bancário, eu trabalhava no Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais. Então, eu deixei de ir no banco por um certo tempo, mas depois eu fiquei com medo de perder o emprego, aí, eu voltei ao banco, e, nesta ocasião, o exército fez uma razia no colégio estadual e prendeu muita gente. Ele foi lá e catou as fichas, tinha gente infiltrada, e viu quem era de esquerda, quem era do PCB, POLOP, EAP, JUC, PCdoB.
Fernanda: Logo em seguida.
Gilney: Não, isso tudo no mesmo dia.
Fernanda: No dia 31?
Gilney: No dia 31 eles começaram a prender, você entendeu? No dia 1º já muita gente foi presa. Então, você vê o seguinte, que… mas eu não fui preso nesses dias. Eu também não fui ao colégio, não fui ao trabalho. É…
Fernanda: Como você ficou sabendo que as tropas estavam se deslocando?
Gilney: Isso eu vi pela rádio, né. Lá eu vi o quartel que comandava o golpe em Belo Horizonte, era perto da minha casa. Então, eu via a movimentação deles, olhava de longe quando ia lá, reparava.
Fernanda: Comandado pelo general Guedes.
Gilney: É, general Guedes. Então, o que aconteceu? Eles prenderam vários companheiros de esquerda, chegaram até meu nome por infiltração, por alguém falou sei lá o que, não sei porque. Mas também você tem que olhar que, naquela ocasião, o PCB tinha uma política de legalidade de fato no pré-golpe. Então, era muito comum você dá seu nome no PCB, não tinha problema, tinha caso de… nós fizemos campanha de filiação, a gente não dava… como diz? Ninguém precisava infiltrar, era só acompanhar que você sabia quem era do partido naquela época. Tirando os serviços especiais e as bases que eram ligadas a um órgão superior, o resto era muito devassado, muito percebido pela repressão. Então, o golpe foi desastroso. Por causa de que cortou a hipótese de um Projeto Nacional Desenvolvimentista, ganhou esse projeto integracionismo com o império. E cortou também a trajetória daqueles que eram candidatos e mesmo apoiaram o golpe. Eu conto que, aqui em Minas… Minas tem umas particularidades muito interessantes, ainda tinha um… O Magalhães queria ser presidente da república, o JK queria ser presidente da república. Nenhum foram mais, porque o que acontece, mesmo aqueles que apoiaram o golpe, tinham a lógica dos civis golpistas, mas só que tinha a lógica dos militares golpistas que era muito mais de longo prazo do que a deles. E esse conflito vai se desenvolver em 1965, e em 1966 que eles acabam com tudo isso e fala “Olha, não tem eleição mais, a coisa é eleição indireta”. Acabou com os partidos antigos, com o Arena e o PMDB. Então, acabou com as fantasias dos golpistas civis, que acabou sendo… o máximo que eles conseguiram, o quê? Ser ministro dos ditadores generais.
Cristina: Oh Gilney, quantos dias você fica preso em 1964? Logo depois do golpe.
Gilney: Sim, eu fui preso no dia 30 de abril, então, 30 dias depois do golpe, ou no trigésimo dia do golpe. Eles foram em casa, uma patrulha do… na verdade, gente do exército civil. Tinha uma gente lá em Belo Horizonte, muito conhecida. Toda a esquerda conhecia essa gente. Ele trabalhava para o Cenimar, mas como aqui em Belo Horizonte não tem marinha, então, ele trabalhava para o Cenimar, mas ele no golpe passou a trabalhar com o exército. Para o serviço de informação do exército, S2 do exército. Então, eles foram lá, o cara do Cenimar que chama Sarmento. Muito conhecido, só esse Sarmento derrubou, só ele, acredito, a metade da esquerda de Belo Horizonte ele derrubou, só ele. Porque ele tinha um arquivo do Cenimar, provavelmente tinha outros agentes, mas ele era o cara conhecido que chefiava. Ele, mais um agente que tem o nome Casadei, eles foram lá em casa e encontraram o meu pai, que já tava aposentado, já tava inativo, não exatamente aposentado. E perguntou, meu pai os recebeu “Ah, queríamos conversar com o seu filho”, “Mas o que é que é?”, “Não… esse negócio de estudantes”. Não falaram nada para ele não, né. “Não, ele tá no banco”. Aí, eles foram no banco, meu pai também não tinha maldade e/ou também ele não tinha percepção do que eu era, ele não queria ver também né, por causa do conservadorismo dele. Eles foram lá no banco, o banco, naquela época, era no vigésimo segundo andar do BEMGE, que é um banco ali que é na praça Sete. Chegaram lá, a secretária foi lá dentro e me chamou, quando eu vi, eu conheci os caras, falei “Eu tô preso, né”. Tentei dar uma enganada neles, mas não tinha… “Ah, tem que pedir meu chefe, não sei o que…”, ele falou “Não, não!”. Aí já me levaram preso, aí eu fui pro… Eles me levaram diretamente para o quartel. Ainda tentaram ir na casa de um ou outro pra prender mais gente, mas quando eu desci já tinha um jornalista preso, que era o Otaviano Lage. Que eu não sei se ainda está vivo, até uns anos atrás ele estava. E… (pausa) zanzou com a gente para lá e para cá, depois parou lá no… acho que passou no 12, depois me levaram pro QG da 4ª… ID-4, Divisão de Infantaria. E lá… Eu vou contar isso paralelo com minha prisão pelo exército. Então, eu fui preso pelo exército em 1964, depois eu fui preso pelo exército em 1970. Em 1964, todo mundo uniformizado, com galão, ih… Me interrogando lá, eles não me torturaram literal… me tiraram um… Antes de eu entrar lá, eles fizeram simulação, falaram que iam fuzilar, “Tirar você da salinha escura, chegar lá e pá, pá”. Na verdade, não fuzilaram ninguém, mas para um cara de 18 anos não era também uma… Não era algo agradável, era uma tortura psicológica. Ih! Chute de soldado, não era uma tortura sistemática, era mais maus-tratos. Simulação e a tortura, o outro era maus-tratos. Porque tem diferença entre maus-tratos e tortura, você entendeu? Tem diferença entre uma violência, que pode ser até muito grave, e a tortura que pode não ser tão violenta e pode ser mais… Não deixar de ser tortura. Tortura tem que ter propósito, sem propósito não tem tortura, é violência sem…
Cristina: Gratuita, né?
Gilney: Gratuita, ou por outras razões. A tortura você quer desestruturar as pessoas para tirar informação ou para neutralizar uma ação militar dele, coisas deste tipo. A surpresa era as perguntas, general perguntando preso, estudante de 18 anos. Oficial, todo mundo bonitinho, fardado. “Quem era o cara do Partido Comunista lá no Palácio da Liberdade?”, eu ia saber?. Aí, começou aquelas perguntas idiotas que o serviço de informação vinha à gente, assim falando “Quem ia envenenar a água que servia Belo Horizonte?”. Que era um reservatório que tinha lá na Sea. Só faltava, como diz os comunistas de antigamente, me perguntar quem incendiou o Reichstag, em Berlim. Que é uma coisa da tradição comunista internacional. Então, veja bem, eles também tinham uma certa dificuldade de entender a lógica. Eles sabiam quem prender e tudo, mas eles ainda não tinham um aprendizado. Quando eu fui preso, de 1970 eu fui preso por uma patrulha do exército que trabalhava pelo DOI-CODI, fui interrogado por uma equipe do exército, comandada por um capitão do exército… por dois capitães do exército. Capitão Gomes Carneiro e capitão Perdigão.
Cristina: Mas eu acho que aí a gente vai pular. Em 1964, quanto tempo você ficou preso?
Gilney: Ah sim. Vou voltar.
Fernanda: Foram dias?
Gilney: Eu fiquei dezesseis dias. Fiquei nesse quartel…
Cristina: Sem tortura…
Gilney: Não, só essa tortura psicológica do fuzilamento simulado que… naquela época, me meteu um pouquinho de medo, mas…
Cristina: Isolado ou com outras pessoas?
Gilney: Não, tinha mais pessoas comigo. Tinha alguns presos lá que eles botavam em um quartinho escuro. Aquele quarto deve ser da guarda, até. E falava “Tira esse daí que ele vai ser fuzilado”. Mas não fuzilava ninguém, era mais para meter medo na gente, porque aí depois ele levava a gente para o interrogatório. Depois, eu fui para o DOPS. No DOPS eles me interrogaram, mas a partir do que eu tinha falado no exército. Que eu admiti que era do partido, mas… coisa assim.
Cristina: Só dezesseis dias aí…
Gilney: Aí eu fui do DOPS, eu fui para a Penitenciária de Linhares. De…
Cristina: Não, de Neves.
Gilney: … desculpa, de Neves. Então, lá…
Fernanda: Isso foi em seguida, você não foi liberado logo depois…
Gilney: Não, não… Aí, quando… aí, lá para o dia 16 de maio, por aí. O dia preciso eu não tenho porque eu não tenho documento, mas eu suponho ser 16 de maio. Eu fui solto, aí falaram “Não, você vai ficar preso em casa”. Aí, eu fiquei uma semana lá, depois eu falei “Ah… eu não vou ficar aqui não”.
Cristina: Ficou na clandestinidade.
Gilney: Não, eu era ainda… Eu não tinha condição de clandestinidade naquela época. Aquilo eu voltei para o colégio, depois de uns trinta dias sem ir ao colégio, e voltei para o trabalho, que eu era um bancário.
Cristina: Não teve nenhum problema?
Gilney: Não. Nesta ocasião, o presidente do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, que era o doutor Paulo Camillo de Oliveira Penna, que hoje é um patrono da industrialização mineira e tudo assim. Era um professor da Faculdade Secundária de Ciência Econômica. Então, ele era um cara assim… esclarecido, supostamente um democrata, coisa desse tipo. Então, ele, os comunistas do banco, ele não deixou ninguém botar… botar a mão não teve jeito, que as autoridades foi lá e pegou, mas ele não pôs ninguém pra fora. Nem a mim, nem o Edmundo Fonseca, nem o… esqueci. Tem alguns outros que eu não vou falar o nome porque… Para a privacidade deles, eles tão aí vivos, então, eu não vou falar. Mas o Edmundo é gente muito conhecida.
Fernanda: Depois disso você já responde processo ou…
Gilney: Eu respondi dois inquéritos, um do PCB e outro do PCdoB. Porque eles não sabiam direito o que eu era, pois eu frequentava muito a sede do PCdoB. E, segundo… depois eles unificaram isso em um processo onde tinha muita gente, inclusive gente de POLOP, foi uma… eles não tinha muita distinção, esse processo ele ficou rolando na auditoria.
Fernanda: Aqui de Juiz de Fora?
Gilney: De Juiz de Fora. Foi a primeira vez que eu conheci a auditoria em Juiz de Fora, foi em 1964. Meu primeiro advogado…
Cristina: Então, esse processo foi um das 155 pessoas… porque no nosso depoimento o doutor André Nunes fala desse processo.
Gilney: É possível que seja.
Cristina: Ele até citou o Pelé…
Gilney: É possível. Eu não vi a declaração dele.
Fernanda: Não foi com o Betinho, não foi um processo junto com o Betinho?
Gilney: Não, não. Esse eu…
Fernanda: Não é o Betinho Duarte que eu estou falando, não. Estou falando do Betinho da campanha da Aids, da fome.
Gilney: Não, não me lembro.
Fernanda: Nada disso?
Gilney: Não, não. Acho que não. Mas tinha muita gente nesse processo. Tem um cidadão aí que hoje ele é professor da universidade, ele escreve muito em jornais aí, do Diários dos Associados. Eu vou falar o nome dele porque hoje é pessoa pública, um tal de Sacha Calmon. Que hoje virou um conservador reacionário que é uma coisa impressionante. Bem, cada um que tome a posição que bem entender. Mas ele era de esquerda, né. Mas ele, pelo que eu sei, e outros que eram advogados, eles depois se formaram e eles mesmos defenderam as suas causas. E acabaram esses processos não indo adiante, foi… acabou paralisado.
Cristina: O juiz não deixou ninguém com o processo.
Gilney: É, ele foi um processo que não foi adiante, mas foi o meu primeiro processo na justiça militar.
Fernanda: E, aí, o Mário Seixas Teles…
Gilney: Nessa época não era o Mário Seixas Teles, não. Esse primeiro processo, se eu não estou enganado, era um juiz anterior ao Seixas Teles.
Fernanda: Era, né?
Gilney: Era.
Cristina: Waldemar…?
Gilney: Acho que era o Waldemar.
Fernanda: Jacaré Engomado?
Gilney: Eu não me lembro, não, porque eu só vim aqui uma vez. Uma ou duas vezes. Naquela época o código era diferente, depois a ditadura muda o código penal, o processo penal militar. Naquela época, tinha qualificação e interrogatório. Por sinal, quando eu fui interrogado em 1970, eu achei que era o mesmo, e não era. Aí, eu quebrei um pouco a cara. Ainda bem que eu não ia falar nada, eu conto depois essa história de 1970. Então, pra você ver, eu fui… meu primeiro processo, meu advogado é o Obregon Gonçalves, que alguém me indicou, eu não me lembro quem.
Cristina: E o promotor, o senhor se lembra quem era o promotor?
Gilney: O promotor eu não sei se era o Simeão de Faria.
Cristina: O senhor teve algum contato com o promotor?
Gilney: Promotor?
Fernanda: Durante a audiência, o julgamento?
Gilney: Não, não, eles me interrogaram lá, aquela coisa costumeira, não tem nada de anormal naquela época.
Fernanda: Nesse processo você foi absolvido ou teve que cumprir pena?
Gilney: Esse processo não teve julgamento.
Fernanda: Ah, tá.
Gilney: Esses advogados, que eram estudantes, depois viraram profissionais.
Fernanda: … processo.
Gilney: Eles, não sei como é que chama, não, mas eles anularam… arquivaram o processo. Por isso, por aquilo, algum argumento jurídico.
Cristina: Por erro…
Gilney: Por erro, porque perdeu prazo, porque não tem não sei o quê… Essa coisa que tem no meio jurídico, né.
Fernanda: E aí você entra pra medicina quando?
Gilney: Ah, sim. Eu passei de ano no Colégio Estadual, passei primeiro, porque também eu estudava, eu não era um vagabundo. Segundo, porque eu também… os professores… Eu tinha prova que eu não tinha feito, eles deixaram eu fazer fora da época, eles foram assim… Atenciosos comigo. Não me deram nenhuma nota gratuita, mas me deram prova fora do prazo, pois sabiam que eu não podia estar lá. Então, isso foi muito bom. O vestibular de 1965, eu queria fazer medicina. Eu não fui aprovado porque me recusei a estudar botânica “Eu não vou estudar botânica nem genética”. Mas naquela época as provas eram individuais, você tinha que ter nota 4 ou 5, não me lembro. Acabei sendo reprovado em botânica na biologia, não passei. Mas passei em química, na filosofia. Que eu tinha interesse também em fazer química. Mas nem me matriculei, eu falei “Ah, eu não vou fazer esse troço não. Eu quero fazer medicina, eu não vou perder o meu tempo com isso não”. Mesmo porque eu trabalhava, e eu já era dirigente partidário, então, meu tempo era muito corrido pra eu ficar perdendo tempo com química. Então, eu fiz o vestibular de 1966 e fui aprovado. Aí, eu entrei em 1966 na medicina.
Fernanda: Fazia a prova e entrava no mesmo ano?
Gilney: No mesmo ano, lá era… Fazia em um mês e no outro mês você matriculava, era coisa simples.
Cristina: Mas e a militância?
Gilney: Aí, nesta ocasião… Só pra contar o negócio de medicina, eu estudei até 1968. Em 1968 eu já era do comando da Corrente e eu não tinha tempo para a medicina mais, então, o que é que aconteceu? Eu peguei e frequentei muito pouco o curso nessa ocasião, eu já vinha arrastando lá, porque a medicina é um curso muito puxado. E eu ainda trabalhava, ainda era dirigente de partido e agitava. Então, era muito corrida a minha vida. Aliás, a minha vida…
Fernanda: O partido que você era, era o PCB ainda?
Gilney: Não, aí, eu vou te contar como é que era a coisa do partido. Então, eu sempre tive uma vida muito agitada e, geralmente, eu faço duas, três, quatro coisas ao mesmo tempo. Eu não faço uma coisa só. Então, isso tomava meu tempo. Pois bem, então eu fiz muito mal a coisa, a medicina. Além disso, tinha a agitação na escola. A escola de medicina tinha uma base clandestina da AP, uma da POLOP e uma do PCB. Não tinha do PCdoB, mesmo assim, depois, entrou gente do PCdoB. Esse pessoal que era de POLOP, da medicina, virou Colina, certo? Vou dizer só os mortos, pra gente não ficar nominando pessoas vivas, que às vezes pode não gostar. Embora, está tudo nos processos, então, não tem nada que… aliás, tem gente assumida, então, não tem problema. Mas o Murilo, que era da medicina, Murilo Pinto, filho da Carmela Pezzuti. Era uma das coordenadoras lá da Colina, né? Do comando… de POLOP, depois da cisão da POLOP… Carmela Pezzuti. Então, era nós da Corrente, que nós éramos PCB, rachamos e fundamos a Corrente, Corrente Revolucionária de Minas Gerais. Então, era eu, Mario Alberto Zanconato e outros mais que tão no processo da Corrente aí, que você vai ver, da medicina, que eu não vou citar nome porque não sei se eles vão gostar ou não.
Cristina: O Zanconato1 é o Xuxu?
Gilney: É o Xuxu.
Cristina: Ele também é médico.
Gilney: Naquela época ele estuda, estava no 5º, 6º ano, coisa assim. 5º ano eu acho, 4º ano. Não me lembro mais em que ano ele tava. Mas ele era um pouco mais avançado que eu. Acho que era 4º ano. Então, eu fiquei ali. Depois, final de 1968 eu já estava mais ou menos na clandestinidade, já frequentava até minha casa, eu já tava afastado e a medicina não fui mais. E depois, em 1969, quando eu já entrei na clandestinidade, eles me aplicaram o 477, que é a expulsão da universidade. Esse detalhe depois eu posso contar a vocês.
Fernanda: Mas aí, nesse meio tempo, você já estava na Corrente?
Gilney: Aí, você tem que olhar que quando o golpe cortou o processo do V Congresso do PC, obviamente que, quando veio a reorganização do partido pós-golpe, ele já se deu no meio da luta interna, de uma forma muito acirrada. E a contradição era de um polo revolucionário, enquanto polo reformista, que tinham uma expressão assim daqueles que foram marchando a violência revolucionária e aqueles que acreditavam no caminho pacífico. Então, essa foi a divisão que, mutatis mutandis, ela ocorreu na POLOP e na… e no PCdoB e também na AP. A AP tem particularidades por causa do maoísmo e não sei o quê, que é um barato bem particular que ocorreu também no PCdoB. Tanto o processo de maoísmo dentro da AP como da… são semelhantes, e isso ajudou depois o pessoal de AP, a maioria fundir com o PCdoB, porque, por causa da influência chinesa. Naquela época falava assim “Você é da linha chinesa”, “Você é da linha russa” ou “Da linha soviética”. Então, eu era da linha chinesa, porque eu era muito simpático com o maoísmo, sempre fui. Até hoje eu acho que o Mao é um grande líder revolucionário, você entendeu? É… (pausa) Então, eu peguei e… (pausa) Mas quando nós começamos a reestruturação do PCB, obviamente que os quadros mais antigos, na clandestinidade ou preso, eles já teve um processo de, vamos dizer assim, natural. Natural de que os mais jovens foram assumindo, por exclusão. Mas tem um processo de luta política muito acirrada, porque quando o cara sai da cadeia ele quer dominar o partido. Então, foi uma guerra dentro do PCB. Então, no PCB, é, aí o processo, o comitê central, ele manteve o congresso, manteve enquanto ele pode, porque ele viu que não tinha mais jeito de controlar a luta interna. Nesse processo é que constituiu uma corrente revolucionária dentro do PCB, cê entendeu? Que dividia tanto a comissão executiva, como o secretariado, como o comitê central. E, depois, esse pessoal vai dar racha, vários rachas. Nós rachamos aqui e fundamos a Corrente Revolucionária de Minas Gerais. Alguns racharam e fundaram o PCBR, outros racharam e foram pro PCdoB. Aí, tinham outros rachas também, que fundaram as dissidências, né? E coisa desse tipo, o Agrupamento Comunista de São Paulo que vai dar o embrião da ALN, entendeu? Então, nós, é, aqui em Minas tem uma particularidade, é… (pausa) da POLOP saiu Colina e do PCdoB saiu Corrente. É… todos nós começamos assim na Corrente, com uma linha mais chinesa e caímos na corrente cubana, que era o Foquismo. O pessoal de Colina, que rachou POLOP, eles começaram uma posição, assim, que não era bem Foquista, mas era de defender luta armada, contra o… depois eles caíram no Foquismo de novo. Então, foram as duas organizações e as outras organizações tiveram… diferentes, entendeu? Formação como ter aa agitação de massa. Acreditava que a agitação de massa era capaz de derrubar a ditadura e criar ambiente para uma guerra revolucionária tipo chinesa, que é o substrato do maoísmo e da linha, da estratégia de guerra revolucionária prolongada, e o PCdoB, que sofreu também essa coisa do racha, da Ala ele vai para a guerrilha, vai impulsionado pela luta interna. Agora, eu queria fazer um comentário muito interessante sobre essa nova geração de esquerda que, de um lado, influenciou a velha. Quem ficou na velha foi influenciado por isso. E a nova, ela tinha uma característica muito interessante, com suas diversas linhas, é que existe uma compressão de que o golpe teve o sucesso em grande parte porque a esquerda não tinha uma visão de resistência ao mesmo, certo? Aí, tinha ilusão de classe, ilusão de pacifista e essa coisa toda. Mas, mesmo quem falava que não tinha, eu acho que tinha, porque quando a gente não tem, a gente prepara, quando tem, não prepara, certo? Então, a segunda característica é que você tem uma geração de militantes que você muda de linha política num curso de curto prazo e que muda a vida das pessoas, é algo impressionante. Eu vou dar três exemplos, três exemplos, de três organizações, então, não é de a, b ou c, de a só. Primeiro, que não era minha organização, mas era uma organização de uma companheira que tá aqui, da AP. A AP lançou campanha de proletarização de ir para a fábrica no campo, é uma puta estratégia revolucionária.
Fernanda: Como é que é, campanha de quê?
Gilney: Era uma campanha de proletarização. Você era quadro de estudante, você tinha que ir para a fábrica, ir pro chão de fábrica. Isso não é fácil não, é um gesto revolucionário que muda a vida das pessoas de uma radicalidade. Agora, nós que éramos os guerrilhistas, você pega um cara que trabalhava no banco, depois vai assaltar banco. E pra nós, tua cabeça, né? Você deixar de ser estudante para ser operário, ser camponês, é um… Você deixa de ser um cara que anda na rua normalmente para, depois, você viver só sobre norma de segurança e andar armado, isso é uma coisa… Depois, o próprio PCdoB tirar seus… jogar numa guerrilha que tem um disputa teórica hoje, se foi Foquista, se foi guerra popular, isso é uma briga lá, entre eles. Mas é um… Eu dou um valor muito grande, muito grande.
Fernanda: Como é que se tinha acesso a arma nessa época? Como que isso…
Gilney: A arma é sempre fácil de alcançar, poucas, é fácil. Arma muito pesada é difícil, você entendeu? Sempre…
Fernanda: Vocês tinham algum treinamento? Vocês fizeram treinamento?
Gilney: Fizemos. Se você ler os depoimentos de gente falando sobre os treinamentos, ah, tem muito treinamento aí. Eu mesmo treinei bastante. Eu não vou falar o nome das pessoas comigo, não porque eles não possam assumir, mas por precaução. Mas o último verão que eu passei, que eu fui pra praia, eu fui com um amigo meu… aí nós fomos lá pra Bahia e nós levamos três armas. Tem que treinar, bicho. É a última férias nossas, então. Quer namorar? É a última namoradinha. Quer ver família? É a última. Então, acabou. Daí pra lá você tá lascado. Não tem retorno mais. Tua vida vai ser. Então, nós levamos uma, tipo, três armas, uma dessas, uma arma longa, uma dessas assim de repetição e arma leve também e treinamos lá adoidado, né? Atiramos. Foi bom que eu aplumei minha pontaria. Mas, é… Não compara com treinamento militar mesmo, né? Onde você dá muito tiro, muita… Era muito voluntarismo, né, bicho?
Fernanda: E a proposta, o ideal, que tinha atrás disso era o quê?
Gilney: Não, aí não. Aí você tem que entender nossos pensamentos estratégicos. No caso da Corrente, e que depois nós fundimos com o grupo Marighela dentro da ALN, integramos à ALN, depois todas aquelas nós fomos pro Rio e integramos. Isso foi em 1969. Então, a Corrente teve uma existência de dois anos, 1967, 1968 e um pouco de 1969. É a mesma coisa de Colina, também teve dois anos, e até menos de nós, porque logo eles caíram, mais cedo, e se integrou também mais cedo com a VPR pra dar VAR-Palmares.
Cristina: Eu não sei se você poderia relatar algum assalto a banco. Poderia? Houve algum…
Gilney: Olha, eu vou te contar.
Cristina: Algum detalhe, porque era uma coisa muito amadora, não é?
Gilney: É, mas a gente aprende. Certo?
Cristina: Só pra gente ter uma noção de como é que funcionava.
Gilney: Olha, deixa eu te falar uma coisa, eu não aconselho ninguém ficar andando armado, porque eu não acho que é o caso. Mas a gente não sabe nada do que vai acontecer no futuro, das próximas gerações. Tudo pode acontecer. Pode acontecer uma circunstância histórica que se implanta, uma ditadura, e o povo tem direito a resistir, pegar em armas, você entendeu? Mas, essa transição é muito dolorosa, é isso que eu tava falando pra você. Depois eu volto no negócio de estratégia geral. É, eu vou te contar um episódio que aconteceu comigo. Eu vou te contar um que aconteceu com o meu cunhado. Eu estou falando de mim e de quem ficou morto, porque eles não pode me contestar, como diz o outro (risos). Mas não é por isso, é para proteger quem, eventualmente, tá vivo. É… (pausa) comigo, uma vez, você sabe que pra você fazer um assalto a banco, uma farmácia, uma bomba, um não sei o quê, qualquer lugar que você quiser, um quartel, você tem que ter meio de locomoção. Você tem que ter carro. Então, esse é o primeiro problema. Então, a primeira coisa, você tem que assaltar é o carro. É a preliminar. Então, primeiro teste de um guerrilheiro bom, tem que saber pegar um carro.
Cristina: Vocês usavam um termo que não era assaltar. Como é que era?
Gilney: É, mas assaltar é que eu tô usando no termo de militar. Você tomar de assalto. Mas, no caso, expropriar é o termo que a gente usava. A gente expropria quem tem, em favor de quem não tem, certo? Então, é… e você, a primeira ação, a ação mais elementar que você tem na guerrilha urbana é você tomar um carro de uma pessoa. Isso parece simples, mas às vezes não é tão simples assim, não. Porque você não sabe quem tá no volante daquele carro, dentro daquele carro. Já ouvi casos de companheiro que já morreu por causa disso, companheiro que já foi, que levou, os dois foram fuzilados, mas não morreu, você entendeu? Só pra pegar um carro. Pra você ver que a coisa parece simples, mas não é. Então, nós consideramos pegar um carro, tomada de assalto do carro com uma ação, uma ação, você entendeu? Então, você tinha que ter normas, aquela coisa toda, você tem que aprender a fazer isso. É, mesmo porque nós íamos armados, não era você roubar, furtando de uma forma sorrateira, embora nós fizemos isso também, de furtar carros sem arma, certo? Mas isso aí já é outro assunto, entendeu. Foram outros mecanismos que nós também já fizemos isso. Mas, em uma certa altura, nós precisávamos de um carro e fui eu e mais dois cidadãos, mais dois companheiros e nós fomos assaltar um carro, tomada de um carro, e lá no… naquela época era comum os rapazes, as moças, sei lá o quê, fazer programa de dentro do carro, parece que hoje tem motel, mas não precisa mais disso, né? Naquela época… (risos) naquela época era muito comum, você entendeu. Então, ia lá pro Alto da Mangabeira que, antigamente, era um descampado. Sabe quando começou a abrir o Mangabeira lá em cima, lá na… Você conhece Belo Horizonte? Aquele morro que sobe lá, depois da avenida Afonso Pena, lá em cima? Começou a abrir, isso foi na década de 1960, final de 1960 que eles começaram a abrir aquele ali. Então, não tinha casas, só ficava as ruas e, às vezes, as pessoas iam lá namorar. Então, vamos nós lá pegar na Mangabeira, pegar gente namorando lá, entra no beco, porque nós não estamos de carro. E aconteceu uma coisa desagradabilíssima, e foi muito importante na minha vida. É… na verdade, e lá é meio escuro, não é uma coisa muito clara, o que dificultou também, é… a tomada do carro… (engasgo) desculpa, e também o sucedido. Na verdade, quando abri a porta do motorista, né, e pus a arma na cabeça dele, na verdade, houve um movimento estranho, não sei o que é que houve, você entendeu? E, na verdade, dispararam um tiro, é aquela história assim, por causa disso eu peguei três anos de cadeia, tá! Então, mas eu não assumo o tiro não, tá. É, mas eu peguei três anos, três anos ou três anos e meio, não me lembro mais.
Cristina: Ele morreu?
Gilney: Não. Passou pelo cidadão, como se tivesse passado dentro da boca dele assim e atingiu a moça que estava no outro banco assim, no banco do carona, e pra sorte da moça atingiu no braço porque provavelmente ele tava numa posição assim, né? Atingiu no braço assim, e quando eu percebi que tinha atingido a moça, eu… tiramos o rapaz, eu corri pro outro lado pra ver a moça. Eu fui atender a moça. Quando eu fui atender, sabe o que aconteceu? Ela falou assim “Gilney, você tá querendo me matar?”.
Cristina: Ah, ela era sua amiga.
Gilney: É, olhe bem que coisa mais… que coincidência muito rara, né? Uma coisa desse tipo. E… (pausa) é bom que se diga que naquela época o meu nome era Gilney, depois é que eu mudei para Gilney, quer dizer, eu mudei pra Augusto, depois pra Gilney, você entendeu? Então, “Gilney, você quer me matar?”, eu falei “o que, pelo amor de Deus”. Era uma moça que tinha trabalhado lá em casa durante uns dois anos, mas não trabalhava mais não, já tinha uns seis meses, um ano que não trabalhava lá. Não sabia onde ela tava mais, nem nada. Foi uma coincidência muito ruim, mas teve consequências gravíssimas. Eu fui atender lá, né? Pelo menos pra alguma coisa a medicina serviu, né? Pelo menos pra ver ferimento. Mas eu via que não tinha atingido o tórax dela, né? Então, eu falei “Ah, vai no pronto-socorro e, por favor, não fale meu nome não”. Bem, era a mesma coisa que falar “Vai lá e fala meu nome, né?”. No pronto-socorro o que acontece? Quem cobriu polícia sabe disso, tem sempre uma polícia pra fazer BO, e esses casos lá, e ela logo abriu o bocão “Não, foi Gilney que me deu o tiro. Ele estuda medicina, ele mora lá na rua da Bahia, tal, tal”.
Fernanda: Vocês roubaram o carro assim?
Gilney: Sim. Aí a coisa deu uma ingresia (?) lá, que eu já não me lembro direito como é que foi. Eu sei que aquilo atrapalhou minha vida e, no dia seguinte, a polícia tava lá em casa, e logo depois da polícia veio o exército, né? Só bobó, né?
Cristina: (não identificado)
Gilney: Não, aqui eu respondia sabe quantos? IPM eu não respondi, porque eu tava clandestino e o IPM correu solto. Processo, gerou oito processos da Corrente. Respondi oito pela Corrente. E… é… vou te contar um outro fato assim, pra você vê como que é o negócio de fazer uma ação urbana que é simples quando tudo dá certo, quando não dá certo, a coisa fica complexa, você entendeu? Nós assaltamos o banco lá de Ibirité. O assalto foi uma belezinha, tudo certinho e tal, vamos embora, você entendeu? E quando o carro do que estava transportando os companheiros, ele… (pausa) É aquela história, cheia de curva. Acontece que, logo depois que saíram, um caminhão, a cidade é pequenininha, todo mundo se conhece, apareceu um caminhão e ele falou “Ah, eu vou atrás desses caras”, e o caminhão veio atrás. O guarda, um polícia, entrou e veio atrás do carro. E aconteceu, por uma circunstância que eu não vou contar aqui, o carro atrasou, o carro atrasou assim porque ele fez uma volta, se ele não tivesse feito a volta, o caminhão não teria pego não. Mas você sabe aquele azar que acontece na vida da gente, que ele falou “Eu vou dar uma volta em tal lugar assim e volto pra pista”. Quando ele tinha voltado pra pista, o caminhão… (pausa) Sabe como que é? Aquela coisa assim, outra coincidência, né? Terrível. E o caminhão jogou, o cara jogou o caminhão em cima do fusca e, nesse momento, o Antônio José de Oliveira, muito conhecido como Tonhão, que era meu cunhado, foi meu cunhado, ele era o comandante da ação e ele tava com uma pistola Colt 45, que é uma pistola muito boa, uma pistola de uso pra oficiais do Exército, oficiais das Forças Armadas. E essa pistola, ela é muito boa, mas ela tem, toda arma tem seus segredinhos, né? Depois que você destrava ela, você precisa ter cuidado com ela, que ela dispara. Então, quando ele destravou, ele queria dar tiro no caminhão e, com o choque, disparou a arma e atingiu a rótula dele. Então, o que aconteceu, ele ordenou a fuga, porque não tinha jeito de andar mais com o carro, o carro tava… você entendeu? E nessa fuga, como é que ele podia fugir com a rótula destroçada? Ele não consegue. Foi terrível. Eram cinco companheiros.
Cristina: O Pimentel era da Corrente?
Gilney: Não, Pimentel era de Colina, e eu era de Corrente. Nós não temos, fazíamos coisas juntos. Mais tarde começou a fazer coisas juntos, mas era…
Fernanda: O Márcio Lacerda era?
Gilney: Larcerda sim, mas ele não tava nessa ação não. Não tava não. Então, sabe o que aconteceu? Um dos companheiros tentou levar o… alguns tentaram, mas depois um companheiro tentou levar o Antônio. Era um homem de mais uns 75 quilos, era um jovem, então, você arrastar um homem de 75 quilos na cacunda, meu filho, haja. É preciso ser amigo do diretor do filme, né? Pra você sair dessa e o cara atirando atrás d’ocê? Não ia dar certo.
Cristina: Mas vocês eram amadores, né, não tinham experiência…
Gilney: Mas deixa eu te falar uma coisa que você precisa confiar, ideologia é uma coisa muito poderosa, entendeu? Ideologia é uma coisa muito poderosa, ideologia é uma coisa seguinte, se você aceita aquilo e politicamente você falou “vou fazer isso”, aí você compensa uma porção de deficiências. Óbvio, tem coisas técnicas que você não pode aprender na marra, não adianta que você não vai aprender. Mas ela supera muitas… ela te dá energia que é uma coisa poderosa, você entendeu?
Fernanda: Algumas coisas davam errado, tinha algum arrependimento depois, individualmente?
Gilney: Não tem tempo de arrepender, você tá na guerra. Você tem que olhar que esse é um ambiente de guerra. É, eu costumo dizer “Os outros não estão na guerra, mas nós estamos na guerra”. Então, você raciocina como uma pessoa que tá em guerra. Então, você vive com norma de segurança. Aí, você tem que viver com norma de segurança, você vive de aparelho, você não pode, acabou namoradinha, mamãezinha, papaizinho e não sei o quê. Acabou tudo. Você entendeu? Só vive daquele coisa, entendeu? Então, é… E guerra, ao contrário do que parece nos filmes, nos filmezinhos que passam aí, guerra não é aquela ação que todo dia você faz, não. Guerra é assim, é ações com grandes períodos de pausa, com guerra, de preparação com guerra. Toda guerra é assim, entendeu? Mesmo as mais acirradas tem esses fluxos, porque não existe essa história de “oh”, não existe. Isso não existe em guerra, só em filme que existe. Você vê filme real de guerra, você entendeu? Até da II Guerra, que foi mais acirrada, com a Alemanha, e tudo tinha pausa, tinha preparação, tem Estado-Maior, e guerrilha é assim mesmo. E guerrilha tem uma lógica, que é uma lógica específica de guerra, de que você ataca quando você tem chance de ganhar. Tem chance de perder, você não ataca. Você pega o inimigo desprevenido, você tem que… Tem toda uma lógica de guerrilha. Então, você… agora, quando você, o inimigo te coloca em uma situação de cerco, aí, maninho, aí, você tá, é o começo da derrota. Isso foi no Araguaia, foi na… no pessoal da guerrilha urbana, depois que eles cercaram, aí ou você fura o cerco e se vira um pro outro ou ali você vai ser dizimado, porque o inimigo não tem compaixão. Não tem. Não existe essa história de compaixão. Saiba o que eles fizeram não só no Araguaia, mas nos companheiros aqui que resistiram até o final, são coisas pavorosas, coisas que tem que tirar as crianças da sala pra poder falar. Mas deixa eu te falar, nós tínhamos uma estratégia, nós pensávamos assim, “Primeiro, uma ditadura, você aliava uma luta contra a ditadura, contra a luta, contra o capitalismo”, e alguns achavam que isso gera uma luta socialista e outros não, que era uma libertação nacional, lutavam contra o império, né, o imperialismo, e lutavam contra a ditadura. Tinham várias visões, mas era comum de achar, principalmente quem tá ai na luta armada, que era quase impossível você derrotar a ditadura sem a luta armada. Esse era o “x” da questão.
Fernanda: Mas tinha outra parcela das esquerdas também, que era muito contrária à luta armada, né?
Gilney: Tinha outra parcela. O PCB era contrário, quem ficou no PCB. Pessoal do… tem grupos trotskistas que eram contrários. Não que eles foram contrários à violência revolucionária, mas a violência revolucionária concebida por eles era a violência de massa, você entendeu? Com grandes greves, insurreição, coisas desse tipo, você entendeu?
Fernanda: E essas escolhas, Gilney, dos locais que seriam feitas as ações? Como que era feito, se seria banco, se seria loja, boate?
Gilney: Deixa eu te falar…
Fernanda: Como era feito isso?
Gilney: No início a gente tava aprendendo, né? E ninguém ia ensinar pra gente, a gente tinha que aprender por nós mesmos, você entendeu? E, eventualmente, um ou outro que tinha feito alguma coisa trazia algum ensinamento, mas era gente nossa, você entendeu? Que também teve a primeira vez. Assim, como um soldado que vai pra guerra, ele fica ali brincando naquele quartel que tem, dando tiro, o dia que ele vai pra trincheira, ele, “hã!”. A guerra é horrível, porque não tem nada a ver com esse treinamento, então, é a mesma coisa da guerrilha, você fica ali discutindo e tal, ou então, vai treinar, subir um morro, ir num canavial, ir não sei aonde e lá fazíamos vários treinamentos, mas no dia que você sai pra ação, que você sabe que o inimigo pode vir em cima de você, aí você tem que… aí você tem que não só preparo técnico e ter coragem, ter decisão, você entendeu?
Fernanda: Eu quero saber assim, mas o banco, por exemplo, a escolha de determinada agência ou outra, tinha alguma relação com o envolvimento político daquelas pessoas que estariam ali, ou não?
Gilney: Não. Deixa eu te falar. Teve no início, a gente primeiro, é, tinha uma visão, que isso é coisa de Marighella, que depois todo mundo adotava, que Marighella falava assim, criou certos conceitos que são, não são leninista e são um pouco diferentes dos guevaristas, entendeu? Mas era uma parte mais parecido com guevarista. Ele falava assim “Que a ação fazia a organização”. Não precisa de organização pra fazer a ação, não. “Ah, você não sabe? Vamos fazer ação que aprende”. Tô te respondendo um pouco do que Marighella. É assim que Marighella fazia. Pode ser coisa maluca, mas era assim que era. A ALN adotou isso. O cara… então, vamos que você vai aprender.
Cristina: Mas tinha assim… Muitos militantes saíram do Brasil para passar por treinamento…
Gilney: Sim. Ainda vou chegar no…
Cristina: (não identificado)
Gilney: Ah, sim, mas isso já foi nós próprios da Corrente que criamos, uns seis ou sete companheiros pra Cuba, que voltaram já integrados na ALN.
Cristina: E aí sim, ia instruir os outros…
Gilney: Sim. Mas deixa eu te falar uma coisa, essa coisa de treinamento de Cuba… (pausa) é, para o Marighella tinha um valor estratégico, era pouco tático. Não é? Porque ele foi lá e ensinava o outro, não. Marighella era da estratégia que ele ia lançar na guerrilha rural. Ele fazia o exército, tanto é que o pessoal que treinava em Cuba, da ALN, era o exército, 1º exército, 2º exército, 3º exército e 4º exército. Era assim, você entendeu? Um pouco parecido com Montonero. Montonero era exército, só que era mais militarizado que a gente porque, das organizações militares brasileiras de esquerda, a ALN foi uma das mais… Embora a VPR tinha origem militar propriamente dita, mas o esquema deles de funcionamento era menos militar que a ALN, cê entendeu? Porque lá eles fundiram um pouco com esses quadros de POLOP e tudo, que deram uma… um teor um pouco diferente pra eles. Mas nós não. E então, é… isso teve importância, mas tinha muito mais importância para você qualificar tecnicamente do que… Mas a maioria de nós foi feito assim, sem qualificação, era imediata. Agora, como que você selecionava o alvo? O alvo, como a gente achava assim que… Marighella falava assim “Nós temos que espalhar a guerra revolucionária na cidade, pra depois nós irmos pro campo”. Ele é o inverso do Mao Tsé-Tung. Mao Tsé-Tung falava “Vai pro campo, volta pra cidade”. E ele falava, “Não, vão pra cidade, vai pro campo e volta pra cidade”. Depois ele desenvolveu “Não, vai ser campo, cidade”, você entendeu. Porque o Brasil é urbanizado, não sei o quê… Ele tem umas teorias lá que eu não vou reproduzir aqui. Então, o Brasil é uma coisa que influenciou muito a todo mundo e depois influenciou muita gente no mundo, no mundo.
Fernanda: Você tinha que causar esse caos…
Gilney: Você tinha que causar uma situação. E o Marighella era o único cara na esquerda brasileira que falou assim “Não, nós temos que botar terror no inimigo”. “Você é terrorista?”, “Pro inimigo eu sou terrorista”. Eu não tinha medo de assumir isso não. “Para o inimigo eu sou terrorista, eu não sou é pro povo”. E ele falava na boa “não”, e quem entende de teoria de guerra, não tem medo disso, porque teoria de guerra, vou te falar assim, todo exército em guerra tem tática de terror, você entendeu. O que você faz hoje com drone, você mata indiscriminadamente, é pra você causar terror na população, pra ele não dar apoio pro guerrilheiro emburradinho. No Afeganistão, no Iraque, é assim, você causa terror. É óbvio que a coisa era seletiva. Não. Mas nós não éramos terroristas, no sentido clássico, de como é hoje, que você pega alvo civil que não tem nada a ver com a guerra. Isso nós nunca fizemos isso. Nunca foi feito.
Fernanda: É feito pra não atingir. Mas se atingisse…
Gilney: Não. Às vezes há casos. Há casos de tiroteio que atingiu uma pessoa, você entendeu. É…
Fernanda: Mas havia o risco…
Gilney: Não. Sempre há. Mas deixa eu te falar uma coisa, dessa lista que a direita faz, que o… faz no site dele falando que a direita matou, tem um livro agora, “Casa da vovó”.
Fernanda: Já li.
Gilney: Você já leu? Desmistifica todos aqueles que nós falávamos. Foi bom que um jornalista fez isso, porque nós falamos às vezes, você não tem crédito, porque você tá querendo desmoralizar o inimigo, então, você às vezes fala coisa, pode não ser comprovado. Mas ele falou “não”, desses setenta que ele tá falando aí, mais de sessenta, uns sessenta, tudo foi morto circunstancialmente, não foi nada da esquerda, nem nada. Até coisas que eles mataram, nego que tá vivo eles põem lá.
Cristina: É. Isso tem.
Gilney: Mesmo porque é uma característica que nós sempre tivemos de assumir o que nós fizemos. E, às vezes, nós da ALN, assumíamos coisas que tem grupo que fez e não assumiu. Você justiçar companheiro… (pausa) é difícil… (se emociona) muito difícil, difícil mesmo.
Cristina: Eles dizem que os camponeses foram dizimados, né? Porque os camponeses apoiam os ditos “terroristas” brasileiros.
Gilney: Sim, agora, eles fizeram crime de terror igual na guerra que teve agora do Vietnã, que eles tiravam a população masculina da aldeia, da vila. Tirou. Agora que eles fizeram isso. Antes da ofensiva final, foi fundamental. Porque eles não nos derrotaram no combate militar, estrito. Eles nos derrotaram com informação, com infiltração, com tortura, você entendeu. Nem a tortura não nos derrubou. Agora, infiltração… (pausa) a infiltração, essa infiltração dizimou a gente. Com cachorro, com… Foi terrível. E aí é aquela história, um grupo armado, guerrilheiro, se não tiver inteligência. Eles custaram a ter inteligência, porque inteligência militar não é essa coisa de ficar analisando, pegando documento, o que que você pensa que…Isso aí é só uma fase da inteligência. Inteligência militar boa mesmo é você saber o que o inimigo pensa, saber o que ele vai fazer, você infiltrar nele, você entendeu. Você não ter pressa, como eles tinham, de início, de dizimar a gente, você entendeu, pra saber toda a consequência. Até… eles aprenderam, eles fizeram… Quem leu Manhães, leu “Casa da Vovó”, leu… (pausa) o trabalho… Uma coisa terrível.
Fernanda: Qual processo desses casos que você contou? Qual resultou na sua prisão e na sua vinda para Linhares?
Gilney: Olha, eu, quando começou esse negócio do assalto numa atuação que nós fizemos com outro carro, aí eu passei pra clandestinidade cerrada. Não saía de casa de dia, nem a pau. Só saía de noite, com duas pistolas também, você entendeu. Senão os caras iam me matar. Aí ficou aquela, “cara violento”. Aí, inventaram que eu atirei em não sei quem.
Fernanda: Eram duas por quê? Se uma não funcionasse pegava a outra? (risos)
Gilney: Deixa eu te falar uma coisa. Não sei se você já usou arma. Você já usou arma? Não aconselho ninguém a usar. Você sabe por quê? Porque eu tenho a mão muito curta e revólver geralmente o cabo é muito arrebitado pra trás, aí fica uma dificuldade de… você gasta muita energia assim, e acaba perdendo a pontaria. A pistola ela não. A pistola ela é, tem mais embocadura, mesmo quando a pistola é grande, 45, tem embocadura boa. Agora, tem pistolas aí… que são pistolas americanas modernas, boas, muito boas. Os revólveres brasileiros são bons, as pistolas não. As pistolas americanas são boas. Então, você tem uma… Mas eu usava 1265, ela é… 6.5, acho que é isso, você entendeu? São pistolas leves, fáceis de carregar e tudo fácil de dissimular, porque eu pegava ônibus e você andar assim… Mas tem um caso assim que eu vou contar, negócio de pistola, que uma vez eu tava no aparelho, escondido lá, só saía à noite. Isso aí, assim (risos), igual ao Rambo, com duas pistolas. Geralmente, usava um casaco porque aí eu colocava a pistola assim, ou às vezes eu colocava nos dois, no bolso aqui. Então, escondido. E uma vez eu fui na casa de uma pessoa, de um simpatizante, certo. E… (pausa) na verdade eu fui lá pra conversar com o cidadão, era uma forma de ligação política, vê se podia apoiar, aquelas coisas todas. Vou contar só o caso pela metade porque não interessa aqui e a pessoa não tem nada a ver com a guerra, então, proteger as pessoas que nos ajudaram. Não devo ser leviano com quem nos ajudou na situação mais difícil, mesmo que não tenha dado certo. Mas quando eu sentei no sofá da casa dele, e a pistola apareceu assim, e a mulher viu, a mulher dele, e ele tinha duas crianças, a mulher correu pra cozinha chorando, coitada. Calei minha boca. Falei “Vai lá conversar com a tua mulher”, aí ele falou “Ah, não dá procê…”. Aí eu ia falar o quê? Falei “Muito obrigado”. Aí eu tinha que voltar pro aparelho de novo. Voltei de novo, então, eu fui lá voltar e tal, coisa assim acontecia, né, a pessoa é solidária, né, mas ele sabia que ia colocar em risco a família dele, certo? Eu acho que ele agiu corretamente. Mas é, mas foi descuido meu, porque só faz essa gracinha… a pistola via… também, em 1960, as coisas aparecem mais, né, foi desagradável pra mim, mas eu acho que foi justificado pra ele, pra mulher dele, ele tinha que proteger os filhos dele, a mulher dele, ele, tá certo. Aí, quando você é guerrilheiro você tem que sair, vão procurar outra alternativa, não tem tempo ruim não, você tem que achar alternativa, não tem essa história de mamãe eu quero, papai me acuda, não. Aí eu fui pro Rio, fiquei um ano no Rio, São Paulo/Rio, Rio/São Paulo, aí eu trabalhei com o Marighella e o Marighella me deu algumas tarefas. Ele falou “Quando acabar essas tarefas você vai pra Cuba”, aí quando acabou essas tarefas eu ia pra Cuba, quando eu ia pra Cuba eu, eu… Foi exatamente quando assassinaram o Marighella. Eu encontrei com o Marighella no dia 30 de outubro ou 29, lá no Rio, depois eu encontrei com ele no dia 2 de novembro em São Paulo, no dia 4 ele foi assassinado.
Fernanda: Novembro de 69?
Gilney: De 1969. Aí, foi um trauma muito grande, mas é aquela história “Cai um comandante, sobe outro” isso não tem, é a lógica da guerra, coisa que o Marighella nos ensinou e a vida também nos ensinou, então, nós… Mas eu caí numa situação muito difícil lá, que começou a queda da ALN, aí eu saí do aparelho da ALN, eu tava no aparelho, eu mesmo pedi pra sair, falei “Oh, eu vou sair daqui, porque”, eu falei. Olha, o cara sacava porque eu tava muito procurado também, mas não por São Paulo, eu era muito conhecido aqui no… Mas eles estavam disseminando as informações, né, aí eu fiquei, passei um período muito difícil, aí eu falei “Vou voltar pro Rio”. Quando eu voltei pro Rio aí, quando eu estava, é aquela história, guerra é uma coisa terrível, guerrilha e a repressão são uma coisa muito interessante. Às vezes, quando você acha que tá mais seguro, é a hora que você cai. Foi exatamente quando eu falei “Porque aqui eu tô bem, tô bem, vou continuar o trabalho X, Y”, foi quando a repressão chegou e me pegou, no dia 18 de março de 1970. Eu morava com a Efigênia Maria de Oliveira, que é irmã do Tonhão, aquele que no assalto de Ibirité comandava o assalto, ele levou o tiro, e eu não terminei a história, vou terminar, cê entendeu. Ele foi levado, ele pegou e falou assim “Deixa que eu me seguro, pode ir que eu vou me segurar aqui”. Ele ordenou o pessoal ir embora e ficou lá. Ele pegou e deu dois tiros de 45 no peito. O cara teve três tiros de 45 e não morreu.
Fernanda: Ele era seu cunhado?
Gilney: Foi meu cunhado.
Fernanda: Ele era casado com a sua irmã?
Gilney: Não. Eu me casei depois com a Efigênia, é isso aí, com a irmã dele, com quem eu fui preso um ano depois no Rio de Janeiro, nós morávamos juntos.
Fernanda: E a Efigênia também era militante?
Gilney Viana: Também, também militante, da Corrente, depois integramos a ALN. Aí, e ela respondeu ao processo da Corrente, e aqui, da ALN junto comigo.
Fernanda: Vocês foram presos no caso?
Gilney: Nós fomos presos, quando eu cheguei ela já estava no DOI-CODI sendo torturada.
Fernanda: DOI-CODI do Rio?
Gilney: Do Rio, fomos presos no Rio. Nós morávamos num aparelhozinho nosso ali no Engenho Novo, e logo eu percebi, eu falo por mim, né, no caso, né, que quando você vivia na clandestinidade você tinha horários que você tinha que cumprir. No ponto, você tinha tolerância de três minutos, cinco minutos, acabou, você vai embora.
Cristina: Você está falando do Rio, tinha uma casa no Cosme Velho perto da família do Roberto Marinho, você sabe desse relato? Que mataram todo mundo nessa casa…
Gilney: Não. Sei da história do Cosme Velho, mas não sei se tem nada a ver com Roberto Marinho, não.
Cristina: Não, a casa era perto de onde o Roberto Marinho morava, e aí mataram todo mundo na casa.
Gilney: Não, aí não sei, acho que foi um pessoal de… que eles mataram lá no Cosme. Essa história hoje já está relatada nesse livro, é uma história meio tra… A repressão fez trampo com essa história, essa história se tem… isso aí já tem relato na “Casa da Vovó” e tem relato na Comissão da Verdade, pode averiguar. Mas, no caso, eu percebi que estava sendo levado pro DOI-CODI, porque eu morei muito tempo, tem um tempo ali, principalmente nos seis meses que eu fiquei no Rio, eu fiquei muito na Tijuca, e a Tijuca, o DOI-CODI é na Tijuca, ali, detrás da praça Saens Peña, rua Barão de Mesquita. Então, eu vi que era pra lá que eles estavam me levando, eles me encapuzaram, quando eu morava numa vila eles, desgraçadamente, eu não vi também, eles não entraram dando tiro, obviamente, na vila, eles entraram na minha casa dando tiro, não sei porque, mas eu tinha uma arma realmente e alguém falou que eu tava armado, ou supunha é… pela minha história de vida. Atiraram, é… quando você atira dentro de um quarto, um quarto pequenininho, isso dá um estalo tão grande, e principalmente de tiro de pistola, e foi tiro de 45, é… dá um estalo muito grande, você fica assim meio, eu ainda, tentei eu tive uma reação assim, é… vamos dizer, não foi heroica não, foi, sabe, reação automática, se dá um pulo pra tentar pegar alguma coisa, certo, foi isso. Eu vou contar um folclore dessa minha prisão, antes da coisa mais barra pesada. É que eu estava esperando a minha companheira, então, eu estava lendo as cartas militares de Lênin pro comitê de Petrogrado, que são as coisas belíssimas da época da Revolução Russa, sendo que eu tinha achado num sebo, cê entendeu. E aí, quando eu tinha olhado pra rua, olhava, olhava pra vila, né, pra ver se tinha alguma coisa de estranha, estava aproximando o horário limite, mas eu não queria sair sem o horário limite, foi uma besteira minha, se eu tivesse saído antes não tinha sido preso. Mas é aquela, você não pode sair e ficar fora, mas eu não podia sair dali, senão a pessoa ia ficar sem contato, você não pode fazer isso também. Então, quando eles me deram o tiro, lá dentro da casa, eu tinha uma razão, mas eles caíram em cima de mim, assim, de supetão, que eles tinham cercado a casa, não tive capacidade de reação e aí logo me algemaram, me deram umas porrada e algemaram com tanta força que cortou meus pulsos, entrou mesmo assim porque foi arrastando assim, então, forçou. Isso não é nada não, então, com o sangue quente você não tava sentindo dor, mas depois você vai ver que tava sangrando, que diabo que era. Então, eles me arrastaram ali e a vila, muita gente da vila, as mulheres falaram, olhar lá. Que é que tá havendo, é terrorista, assaltante de banco? Aí, né, vazou. Aí me arrastaram, puseram no carro e pum, puseram um… ou no quartel, né, e na entrada do DOI-CODI, não sei porque fizeram isso, porque tem muitas coisas malucas que a repressão faz, o cara tirou o meu capuz e perguntou “Como é seu nome?”, aí eu falei “Marco de Freitas não sei de quê”, aí ele falou assim “Há, é Marcos! Vem cá que você vai ver quem é Marcos, tá Augusto!”. E ainda me chamando pelo nome de guerra (risos). Aí eu falei, é, tá bom, já achava que eles sabiam que eu… Aí, isso foi mais ou menos umas 21h30 da noite, aí eles me torturaram até às 6h do outro dia. A noite inteira pau-de-arara, porrada, era choque, sacanagem, todo o tipo de coisa.
Fernanda: Você era interrogado ou não?
Gilney: Não, sendo interrogado, exceto a primeira rodada que eles pelo menos dão de quebra, cê entendeu. Normalmente nu, todo mundo fica nu lá. Eles ficam vestidos, nós ficamos nus, pra você tentar desmoralizar. Pra mim que sou homem, nem, você sente um constrangimento, as mulheres, geralmente, é mais constrangimento, é até meio desmoralizante, porque as pessoas, também ofendem moralmente, sexualmente, essas coisas tudo. Isso eles fizeram com a companheira Efigênia, e ela pegou uma infecção, é genitália, que ficou tempos pra curar, em função das torturas.
Fernanda: Você assistiu à tortura dela, Gilney?
Gilney: Não assisti, mas eles abriram pra eu ver ela saindo de lá do pau e arrastaram. Aí, ela saiu e eles me puseram. Aí, naquela ocasião quem foi o chefe do… da equipe de tortura é o capitão Gomes Carneiro, e que foi o cara que torturou gente da Corrente, gente de AP, gente do PCB, gente da Colina, aqui em Minas Gerais. Ele tinha saído de Minas, tinha ido pro DOI-CODI do Rio, cê entendeu. Então, é um cara que me conhecia, eu não sei se isso é sorte ou azar. Sinceramente, até hoje eu não sei. Porque você ter um torturador que te conhece ou um cara que não te conhece, não acho que faz diferença não. Mas tinha um detalhe, tudo que eu falava de Corrente ele sabia, ele falava “Tá mentindo, pode colocar no pau-de-arara”, então, tinha essa desvantagem. A vantagem é que quando eu falava uma coisa que ele sabia, ele falava “Ah, o cara tá bem, tá falando o que eu sei”, torturador tem essa cabeça. E a minha linha de comportamento sempre foi a seguinte, da ação da Corrente, que já estava na Auditoria, eu falei, do que era da ALN, eu não falei. Então, eu não… em função da minha prisão, não houve nenhum nome novo que eu tenha dado, não houve nenhuma prisão, nenhum aparelho, não que eu não soubesse. E eles queriam um ponto com o Élcio Pereira Forte, que era o Ernesto, que é um cara que nós fundamos juntos a Corrente e é um cara que também foi ferido numa ação. Num cerco policial ele saiu, ele atirou no tenente, filho do tenente feriu ele, e ele foi pro Rio.
Cristina: Aqui em Juiz de Fora?
Gilney: Aqui que eu falo é em Belo Horizonte.
Cristina: O Élcio é parente daquele Arnaldo?
Gilney: É primo do Arnaldo, é Drummond, Arnaldo Fortes Drummond é o nome dele. Ele é primo do Ernesto, Élcio Pereira Fortes, vou falar Ernesto porque nós conhecíamos ele como Ernesto.
Fernanda: Boa parte dessas pessoas que você está citando, Gilney, é de pessoas que tiveram documentos encontrados, ou parentes, nas coisas encontradas na Auditoria, de grupos parecidos. Isso leva a crer pra gente que foram, pelo menos, prisões muito envolvendo a Corrente, basicamente.
Gilney: É, eu vi um noticiário falando que tinha um pessoal de Corrente, de Colina, né… Mas deixa eu te falar, quando eu, porque esse pessoal todo…
Fernanda: Seus documentos foram recolhidos?
Gilney Viana: Mas deixa eu te falar, não, porque não tinha documentos, cê tem que olhar que eu tava clandestino, o que é que eu fiz, eu tentei mandar para a minha família, mas não deu certo, porque, por segurança, acabou não indo. Então, eu só tinha documento falso, só pegaram comigo documento falso, que eram documentos forjados, coisas desse tipo, documento verdadeiro meu não tinha não. Tinha o que eu deixei em casa, coisa assim de estudante, não sei o quê, aquelas coisas antigas da juventude.
Cristina: Podia tentar chegar em Juiz de Fora, senão a gente não vai conseguir chegar ao final.
Gilney: Ah, é verdade, senão não acaba.
Fernanda: Do DOI-CODI do Rio você já veio pra cá?
Gilney: Não, eu fui… aí do DO-CODI eu fui pro DOPS, porque o DOI-CODI já tinha adotado uma metodologia diferente do que eles aprenderam aqui em Minas, então, eles ficavam, por isso que você entrevista o pessoal de Corrente, de Colina, de AP, era inquérito que durava seis meses, aquela coisa torturante, coisa ridícula, cê entendeu. Informação é… “Que dia que você foi lá receber o papel?” (ironia) Isso era coisa de aprendiz de torturador. Os torturadores profissionais, que depois eles viraram, eles falaram assim, “Eu quero ponto, aparelho e nome”, acabou, “Depois eu te entrego lá pro DOPS e o DOPS vai fazer o… Escreve aí o troço que você falou ou a ação sua”, e ele vai lá, como é que eles falavam… Isso aí é do DOI-CODI, ia lá pro inquérito, que era feito pelo DOPS, e eles falavam assim pro cara do DOPS, que era gente experiente, torturador também, “Consta isso no depoimento dele, o resto foda-se, tô nem aí, põe aí pra encher de cadeia, se ele negar, trás ele de volta!”. É assim, então, o jogo no DOPS lá no Rio era assim, nego leva ele pro DOI-CODI de novo.
Cristina: Nesse aprendizado, é… Você teve algum contato com esse Daniel, Dan Mitrione? Assim, soube de algo?
Gilney: Não, não, Dan Mitrione, ele…
Cristina: Desse curso que ele dava, que até gente morria.
Gilney: Curso pra polícia, né, pra polícia, mas não, não, acho que ninguém de nós teve.
Cristina: E os chineses também…
Gilney: Os chineses não tem nada a ver, aqueles eram comerciantes.
Cristina: Pois é, mas pelo contexto…
Gilney: Mas em 1964, mas nem esses, os chineses estavam no Rio, eu tava em Belo Horizonte, então, eu não, eu… O Dan Mitrione eu nunca soube, soube depois quando os Tupamaros o sequestraram, torturaram e depois o submeteram a um tribunal revolucionário e executaram ele. E, mas, então, a história dele teve um fim também, né… no Uruguai. Sim, mas então, eu saí do DOI, fui pro DOPS, no DOPS eu fiquei lá uns dois, três dias, sei lá, e eu fiquei 40 dias sem comunicar minha família, minha família só soube da minha prisão 40 dias depois, eles podiam ter sumido comigo, e só soube no dia 1º de maio de 1970. Eu já tava com quarenta dias de prisão, mais de quarenta dias de prisão, trinta, dezoito…
Fernanda: E você estava onde?
Gilney: Eu estava, e aí eu fui pro DOPS, do DOPS nós fomos pro presídio provisório, que é ali na Frei Caneca e depois nós descemos pra Ilha Grande. Aí você vai no camburão, vai de trem até Mangaratiba, põe você dentro de um barco lá dentro, fica uns caras de metralhadora lá em cima, aí cê vai lá no Abraão, que é o porto lá na Ilha Grande, aí você chega lá, o cara “apaga geral” você, linguagem de cadeia que eu tô falando, “apaga geral”. Vou te contar essa pra você ver como é que é a cadeia. E é assim, chefe de segurança foi receber a gente, era uma turma da ALN, MR-8 e da… é ALN e MR-8 que descemos, entendeu. Eram uns 20 e tantas pessoas, companheiros militantes, e, enfim, eles julgam à beira. Aí, nós descemos, aí, quando nós saímos lá, cê entra num caminhão no porto do Abraão pra você atravessar a ilha e ir lá pra Ilha Grande, certo? Hoje é ponto turístico, cê entendeu. E o cara tava na chuvisqueirinha, cê molhado lá, aí o cara pagou uma gelada lá, falou “Olha, aqui é prisão de segurança máxima”. Não sei se ele falou negócio de terrorista… “Comigo não tem disso não, aqui a lei sou eu”, e bateu no peito “Aqui a lei sou eu. Aqui é onde o filho chora e a mãe não ouve. Já tá avisado…”. Quem enfrentou o DOI-CODI, então… Vão bora e a mãe não ouve, um discurso que ele tava habituado a fazer com presos comuns, cê entendeu. Que pra nós não refrescava, como é que era “a lei sou eu”, e era isso mesmo, esse cara ele não era o diretor, era o chefe de segurança, a lei era essa, aquelas arbitrariedades. Aí, eu fiquei lá uns dias, aí, a umas duas semanas, e não vou contar o que aconteceu lá, mas teve também suas peripécias lá na Ilha Grande, aí eu voltei. Aí, quando chegou um dia lá, eles, assim… final do expediente, vamos dizer, à noitinha, antes de ir pra tranca, o chefe de segurança, um guarda lá de segurança falou assim “Gilney Viana”, mexendo na grade assim, aí eu “Sou eu”, “Prepara que amanhã cê desce”. E lá era a gente fala desce ou subir, ou ir pro continente, que é ilha, aí cê vai pro continente, vai pro continente. Aí eu vim pra terra, aí eu tô indo. E eu tinha um temor muito grande de que eles me levassem pra São Paulo, mas eu achava que eles iam me levar pra Juiz de Fora, por uma razão muito simples, porque nós sabíamos que, pelos jornais, estava próximo o julgamento da Corrente, tinha essas convocatórias, essas notícias, coisas assim. Então, era o mais provável. Então, a única preocupação minha era, eu fui, desci, fui pro DOI-CODI e aí nós veio pra cá, aí quando eu vim pra cá eles me puseram no quartel general, tinha um quartel…
Fernanda: Você veio sozinho ou vieram mais pessoas?
Gilney: Vieram três pessoas, eu, o Salatiel Rolim e um tenente de Caparaó que eu esqueci o nome dele. Esse Rolim é um cara que foi perceber…
Fernanda: E quando você deu entrada aqui, você lembra da data?
Gilney: Lembro, mas, quando eu cheguei, eles não me levaram direto pra penitenciária, eu fiquei mais ou menos uns sete dias, uma semana, no quartel do QG e porque eles tinham o… eles me fizeram… praticamente dois dias, me interrogaram, eu tinha oito processos, eles me interrogaram em sete processos, praticamente tudo de uma vez, seis de uma vez e o outro. Aí ficaram lá me…
Fernanda: E teve algum tipo de agressão, Gilney, nesse quartel, mesmo que não comparado ao DOI-CODI?
Gilney: Não, não teve. Teve um caso assim muito estranho, assim de intimidação na época. Era um cara, oficial do exército, que passou por lá e eu saquei que ele era torturador, quando eu cheguei, ele lá, aí o pessoal falou esse aí é o major, famoso major Portela, torturador, sádico…
Fernanda: Daqui?
Gilney: Ele tava aqui, mas essas torturas que eu sei é de Belo Horizonte.
Fernanda: Major Portela?
Gilney: Major Portela.
Fernanda: E ele tava trabalhando aqui em Juiz de Fora?
Gilney: Não sei dizer se ele tava trabalhando, por que ele tava lá no quartel. Ele me olhou, ficou lá e comentou com o outro assim, não vi porque não deu pra ouvir o que ele comentou não, mas ele pagou, ficou assim mais ou menos, mas não me torturaram não, fizeram o interrogatório e depois me levaram pra penitenciária, no dia 26 de maio de 1970 eu entrei em Linhares e só fui sair no dia 19 de agosto de 1977. Sete anos e três meses, maio, junho, julho, agosto, e três meses. Eu vivi em Linhares, direto, tem vez que eu saí pra ir pro DOI-CODi, pra ir pro Rio responder inquérito lá, processo, uma vez eu fui pra Belo Horizonte, lá no DOPS, fiquei lá uns vinte e tantos dias.
Fernanda: E você saiu pra outros lugares em Juiz de Fora?
Gilney: Saí. Em Juiz de Fora eu só saí pra auditoria, que era normal, né, era muito comum ir pra auditoria e, normalmente, pra você ir pra auditoria é… eles também, particularmente a AP e o DOI-CODi, eles se consideravam também em guerra conosco, então, eles tinham um tratamento de prisioneiro mesmo de guerra. Então, eles, pra tirar você da penitenciária, você tinha que ter uma revista total no seu corpo, às vezes constrangedora, você ficava nu.
Fernada: (não identificado)
Gilney: Não, primeiro você ficava nu, né, e você tinha que olhar a genitália, às vezes olhava o ânus, cê entendeu, e o cabelo, boca, ouvido. Vão ver o que você tem dentro do ouvido, é coisa de guerra mesmo, coisa de Guantánamo, cê entendeu, não tem conversa. E você, toda vez que você saía ou entrava pra penitenciária era feita essa revista, toda vez, religiosamente, não tinha conversa. E se você saísse…
Fernanda: Ainda que você fosse escoltado, ficasse todo mundo do seu lado?
Gilney: Não tem conversa, isso aí é rigor.
Cristina: Essa revista, a dedicatória… as visitas todas passavam pela revista?
Gilney: No caso de Linhares aconteceu até maio de 1970, foi quando eu cheguei, as visitas eram feitas naquele hall de entrada, então, os guardas ficavam vigiando ali, e tinha uns bancos, ficavam sentados ali, e houve um incidente onde o pessoal de Colina tentou passar um tipo de uma denúncia de tortura para um familiar, e a polícia, os guardas viram e tentaram capturar a coisa. Isso gerou um inquérito, isso foi em 1970, em 1969… não, que o pessoal chegou no finalzinho de 1969 aqui, então, isso foi em abril de 1970. E aí, eles fizeram o inquérito, fizeram a investigação, o S2 entrou, o DOI-CODI entrou, não sei o que eles tavam mandando comunicação pra fora, como é que barra isso, aí, construíram o tal do parlatório. O parlatório ali era assim, como dali daquela pilastra até ali, eles fecharam uma jaula que tinha uma grade dupla, assim, de uns 25cm, de tal forma que você não tocava os familiares e nem podia passar nada pros familiares. Igual essas cadeias americanas que têm aí, do cara telefonar lá pelo vidro, pela grade. Então, quando eu fui receber visita lá, em Juiz de Fora, já recebi no parlatório.
Fernanda: Só assim. Os seus familiares, parentes, pra virem visitar como era o procedimento? Era só chegar em Linhares ou tinha que pegar uma autorização?
Gilney: Não, primeiro você tem que olhar assim, era uma cadeia, uma penitenciária sob… administrada pelo exército, controlada pelo exército, a administração direta era feita, inicialmente, por um padre lá, não sei o que, que foi o primeiro a… vindos da época que eram só presos comuns e um pouco de Caparaó que ainda misturou com presos comuns, era um cara cidadão lá que eu nem sei opinar sobre ele, mas era um tipo administrador tradicional, casa de recuperação que era tido, né, que ele achava que se rezar alguma coisa, nego ia recuperar, essas bobagens, desculpa… não é que rezar não tenha importância pras pessoas, mas o cara achar que impor reza vai… aí não dá, né, se o cara reza com sua consciência, aí tudo bem, agora, fazer por causa de rito da própria repressão isso é bobeira, né. Depois, quando eu cheguei a Linhares, já era… já tinha mudado a administração para a administração militar, então era o coronel Val… o capitão Valter que me parece que era um tipo de setor de inteligência deles, cê entendeu, então, era um cara assim de fino-trato e que achava que ele entendia de esquerda, que entendia de repressão, que entendia de lidar, sei lá, acho que ele achava que sabia fazer o jogo, cê entendeu, que os caras de inteligência, às vezes, acha isso, cê entendeu. Por isso que eu falo que eu acho que ele era da inteligência. Mas a administração direta voltou a ser do exército. No início de Caparaó, que era só a galeria A, a administração era do exército, a galeria A. Depois de abril de 1970, aí voltou a administração direta da penitenciária pro oficial do exército, pro capitão Valter, ele ficou até setembro de 1971, quando eles falaram que teve o famoso motim, tentativa de motim, aí eles tiraram o capitão Valter e puseram um tenente, Valdemar Peterson, que era um oficial da polícia do exército, conhecido por ficar batendo em soldado recruta na rua, dizem que até assassinou um recruta na rua, cê entendeu.
Cristina: Valdemar?
Gilney Viana: Valdemar, Valdemar Peterson. Então, é quando eu cheguei, eles já tinham um rigor carcerário. Era o seguinte, visita só pelo parlatório, então, eu já recebi visita no parlatório, então, você, e todo o material que entrava e saía da penitenciária tinha que ser vigiado, se for determinado tipo de material tinha que passar pelo QG do exército, pela S2 do exército. Aqui tinha um tipo de… igual o serviço americano do exército, eles copiaram do exército americano, que tinha um tipo assim de… tradicionalmente, o exército tem quatro serviços e quatro tipo de repartições, aí, o americano criou, como eles perderam a batalha da comunicação, eles criaram o quinto, que é tipo uma comunicação pública ou coisa desse tipo. Então, eles criaram o… (falha no áudio) mas, na verdade, era o S2, que era o DOI-CODI adaptado para cuidar de preso. Então, o que eles faziam, toda a comunicação nossa passava pelo S2, toda, se escrevia pro juiz passava pelo S2. É… pergunta pro juiz porque que ele deixava passar a comunicação pelo S2, pelo exército, entendeu. E coisas ridículas, então, tudo era controlado pelo exército, então, depois é… aí eles começaram… família pra visitar tinha que ir no exército, no comando do exército, aqui não chamava Procópio?
Fernanda: Sim, Mariano Procópio.
Gilney: Mariano Procópio, que tinha o QG, desculpa, agora eu lembrei o nome, eu tive que gastar o meu fosfato aqui pra lembrar o nome do Mariano Procópio, ou Procópio Mariano?
Fernanda: Mariano Procópio.
Gilney: Desculpa. Então, passa lá, você pedia licença antecipada, eles autorizam, você ia lá, você arranjava um jeito de ir, pegava ônibus, de carro, até gente a pé já foi na penitenciária pra visitar, não sabia direito, há é ali, vai andando, ficava duas horas andando até chegar lá. Naquela época a penitenciária era na zona rural, o bairro de Linhares não chegava até a penitenciária, hoje já chega, né, não chegava. Então, era uma penitenciária, o seguinte, é semelhante à Ilha Grande, só que Ilha Grande tinha o barulho do mar, né. Aqui, se você ler algum relato que eu fiz, até tem um poema desse livro que eu trouxe, é, fala assim, se ouvia de noite o barulho do trem que passa aqui no centro de Juiz de Fora, às vezes se ouvia apito, era tal o silêncio, e era uma penitenciária, depois que eles tiraram as companheiras você não ouvia voz de mulher, o que pro homem é ruim, entendeu.
Cristina: Olha só a companheira. Quando você chegou lá tinha mais ou menos quantos presos políticos?
Gilney: É aquela história, eu não fiz a conta na época, mas, depois, eu acho que tinha uns, no chutômetro, eu acho que tinha uns oitenta presos políticos.
Cristina: Homens e mulheres?
Gilney: Mulheres tinha, eu acho que tinha, eu não me lembro assim, exatamente, quando eu cheguei, na semana que saiu um tanto de mulher.
Fernanda: Mas era alas separadas?
Gilney: Separadas. Ali tem cinco galerias, três no lado direito de quem chega, que era a A, a B e a C, é do lado de cá, do lado esquerdo é a D e a E. Então, você tem a galeria C, se eu não estou equivocado, a minha memória não me trai, era a galeria de rés-do-chão, do lado esquerdo, há dois do chão do lado direito, ela tem um desvio assim do terreno, então, ela é a rebaixada. Então, você tem três aqui e dois aqui, cê entendeu, num formato de U. Então, as mulheres ficavam… as companheiras ficavam na galeria feminina, a gente chamava de galeria feminina, galeria das meninas, e lá, das galerias de cá, gritava pra de lá. Aí, cê imagina o tanto de sistema de comunicação que foi bolado, né, porque a repressão é esperta, mas cê pode ver que se te puser numa cadeia, até numa surda, se acha um jeito de… uma hora você acha um jeito de se comunicar, ou, então, se morre lá dentro, cê entendeu.
Cristina: Mas aí, nesse período aí, as mulheres foram embora.
Gilney: Em setembro de 1971.
Cristina: E aumentou… a população carcerária aumentou?
Gilney: Não, a população carcerária só foi diminuindo por uma razão muito simples, primeiro, porque a repressão, ela teve um pico de 1970 a 1971, cê entendeu, e depois de 1972 ela começou a… aqui em Minas, então, aí cê tem que olhar que o pessoal de Brasília que vinha pra cá não veio mais, ficou lá em Brasília, então, você não tinha esse afluente e, depois, as prisões foram diminuindo, e depois elas ficaram extremamente seletivas, cê entendeu, sem contar que tem algumas que eles passaram a não prender, a desaparecer ou assassinar e falar que o cara resistiu à prisão. Então, você diminuiu aquele… então, a tendência foi diminuir a população carcerária daqui.
Cristina: Quando você estava lá tinha menores presos em Linhares?
Gilney: Que eu saiba não.
Cristina: Não. Estrangeiros?
Gilney: Estrangeiros tinha, estrangeiro, o Ramon era estrangeiro.
Cristina: O Ramon era de que nacionalidade?
Gilney: O Ramon era espanhol, cê entendeu, era do grupo de Brasília.
Cristina: Argentinos?
Gilney: Olha, teve uma vez, ouvi falar que teve um argentino lá, mas eu não me lembro disso. E, às vezes, falava que tinha uruguaio, mas não era, era um brasileiro que morou muito tempo no Uruguai. Era um cara que eu conhecia, era um cara que era de Pelotas… cê entendeu.
Fernanda: Quantas pessoas, em geral, tinha em cada cela?
Gilney: Uma, era individual, era individual, ou então, se você…
Cristina: Quando o Milton morreu também era individual. Isso muda em algum momento, não, ou o tempo inteiro as celas eram individuais?
Gilney: Só agora com os comuns e a partir de uns cinco anos pra cá que virou de dupla, mas, antes, era individual, exceto, parece que houve uma circunstancia que, quando trouxeram o pessoal, era um grupo maior do que cabia, e eles puseram dois em uma cela durante algum período. Acho que me falaram isso, foi no início de 1969, cê entendeu, parece que houve uma coisa desse tipo, eles botaram um no chão, porque lá só tinha uma cama, né, parece que teve um caso assim. Mas, logo depois, essa coisa traumatizou, teve algum caso desse tipo, mas eu não peguei, aí já era individual.
Cristina: Tem algum relato de violência?
Gilney: Há tem…
Fernanda: Então, vamos voltar a Linhares, que é o ponto que parou. Antes de documentos, ele estava falando de violência, dos casos de violência.
Cristina: Que teve casos de violência.
Gilney: Primeiro, que em Juiz de Fora, em Linhares, nós tivemos casos, tem um caso do… que houve a tentativa de motim que eles identificaram, que foi um movimento de resistência que a gente fez lá dentro e eles bateram no… no Nilo Sérgio. Acho que podia parar um pouquinho pra eu tomar uma água, porque a minha garganta tá seca.
Cristina: Eu ia pedir agora…
Gilney: Eu vou repetir isso porque ficou ruim. Quando houve aquele episódio, primeiro, eles entraram lá com extrema violência, cê entendeu, e fizeram humilhação, saquearam, e fizeram todo tipo de coisa, ameaça, e então, implantaram um terror ali.
Fernanda: A Polícia do Exército ou a PM?
Gilney: A PM, o exército não entrou, não. Mas o exército que tava comandando a coisa.
Cristina: Isso foi em qual dia?
Gilney: Isso foi em setembro de 1971. E foi quando mudou, foi a segunda mudança no regime carcerário, do civil pro militar, e do militar de inteligência pro DOI-CODI, do torturador que foi. Aí começou um período de aonde ele implantou o seguinte, primeiro, ele ameaçava, sempre mandando a gente pra tortura, cê entendeu, segundo, ele não queria reconhecer a gente como presos políticos, não, vocês são terroristas e terrorista não tem direito.
Fernanda: Ele quem?
Gilney: O Valdemar Peterson. Vocês não têm direito, cê entendeu. Há direitos humanos. Não tem negócio de direitos humanos não, direito de preso é ficar preso. Essa é a filosofia do cara. O cara era muito grosso, cê entendeu, foi um período difícil. Pra quebrar a gente eles dividiam e faziam punições sucessivas. Eu devo ter ficado… eu não sei calcular direitinho, mas um ano e pouco, um ano e meio eu fiquei só no tranca dura, somando todas as minhas punições, mais de um ano certo, só de tranca dura. E aí, eu aproveito pra falar desse regime carcerário e dos documentos, cê entendeu. Os documentos é, assim, os documentos de denúncia de tortura, nesse sentido Linhares é pioneiro nisso, é pioneiro em fazê-lo sistematicamente, porque quando o pessoal das organizações que caíram em 1969 vieram para Linhares, eles estabeleceram… primeiro, eles organizaram o coletivo, isso é muito, o coletivo dos presos políticos. Isso é uma tradição de comunista, de esquerda, na cadeia você organiza um coletivo pra negociar coletivamente ou representar perante a administração carcerária, cê entendeu, ou com quem administra sua prisão, e então, isso era muito importante. Segundo, era política das organizações, o coletivo incentivava que todo mundo fizesse denúncia de tortura, todos nós fizesse denúncia de tortura. Então, no início, isso foi feito por organização porque isso envolvia é… tem um processo que é, eu só vou falar passando aqui, todas as organizações passaram por um período de autocrítica, de avaliação, e são períodos muito dolorosos, muito difíceis, muito… com muitas sequelas, entendeu. Então, é uma coisa muito difícil pras pessoas passarem por isso, cê entendeu, e, segundo, as organizações orientavam a fazer a denúncia de tortura, então, por exemplo, quando eu cheguei, no início, isso é documentado, eu tenho esses documentos todos, é, saíram quatro denúncias de torturas, no final de 1968 e início de 1970, janeiro. Saiu dois documentos da Corrente, um que era das meninas e outro dos meninos, porque eles estavam separados e acho que eles resolveram fazer separado, não sei por que também. Porque também problema de comunicação, sei lá, e também acho que, dada as particularidades das meninas, saiu um documento do pessoal da AP e um documento do Colina, cê entendeu. O documento do Colina, na verdade, ele é que tem essa história que deu IPM porque, na verdade, eles tentaram passar ele pro familiar, aí foi preso, por isso que deu, mas os outros passaram sem cair, por isso que não deu. Todos foram na mesma época, aliás, antes do da Colina teve o da Corrente e do AP, por circunstâncias né, não tem nada de… não tinha nenhuma vantagem nisso, não. É porque se dependia da visita, do mecanismo que você tinha, era o horário, você tinha que aproveitar. E a partir dessa coisa é… na verdade, só vai estourar mesmo quando o pessoal de Colina tenta passar um jornalzinho que eles fizeram, com denúncias de tortura, chamado “Até sempre”, aí que deu o IPM que põe a tia do Pezutti, cê entendeu, tem um processo contra eles, é o pai e a tia, né, a Ângela. E a partir daí você tem o parlatório, então, você não tinha mais facilidade desse tipo, você tinha que criar outros meios, né. É… mas qual era o regime carcerário em Linhares durante muitos anos, o regime carcerário era o seguinte, 6h30 eles tocavam lá a sirene, davam um sinal lá, tocavam uma sirene lá, depois, acho que eles abandonaram aquele troço, que acho que era um besteirol deles, cê entendeu, e logo ia passar o “brocham”, ao “brocham”, café, aí todo mundo gritava “brocham”.
Fernanda: Cada um na sua cela?
Gilney: Todo mundo na sua cela.
Fernanda: Almoço?
Gilney: Não. Eu tô falando de café, você já tá falando de almoço.
Fernanda: Tinha algum momento de convívio conjunto, assim?
Gilney: Sim, mas calma. Aí você ficava até às 7h30, 7h e pouca você tomava café, aí eles abriam a cela individualmente pra você tomar banho no banheiro lá, aí você tinha esse período de, individualmente, você ir tomar banho e tal, ia até 9h, 8h30, depende do guarda lá, era um pouco mais. Aí, 9h você ia pro pátio, só tinha pátio de 9h às 11h.
Helena: Pra todo mundo junto?
Gilney: Pra todo mundo junto, no início, depois eles separaram por pátio lá, cê entendeu, e depois, de 11h às 12h, você almoçava, você ia pro refeitório, almoçava e depois você ia recolhido à cela, aí, você ia, de 14h às 16h, você ia no pátio, aí cê ia pro refeitório, almoçava, e às 17h tomava banho. Cê tem que olhar que a rotina que cê tinha, tomava banho, almoçava, refeitório, 17h você jantava, até às 18h você tinha que tá trancado de novo na cela. Então, tinha um período de transição de almoço e janta, mas você ficava trancafiado inevitavelmente 17 horas, 17 horas, inevitavelmente, você ficava, 17, 18, às vezes até 19, entendeu, ficava trancado. Isso durou até, isso durou 1969, 1970, 1971, 1972, 1973, eu acho que 1974 é que eles mudaram essa coisa, 1973, 1974 que eles mudaram.
Fernanda: E esses documentos, a articulação pra escrever esses documentos, como vocês tinham acesso a papel…
Gilney: Papel tinha, papel e caneta tinha, você só não tinha acesso quando você tava na tranca dura, na punição, mas você vai ver que nesse livrinho que eu trouxe sobre os poemas…
Fernanda: Livros?
Gilney: Só a Bíblia, por isso que eu fiquei um grande leitor da Bíblia. Então, como na cadeia tem um grande, tem cara que anda com Bíblia debaixo do braço, vocês já viram isso, né, os presos tinham… O cara é Bíblia, então, vira substantivo, o Bíblia, então, aquele é Bíblia. Óbvio que tinha uns malandros que usavam a Bíblia pra enrolar maconha, que é um papel bom pra fazer um baseado, né, dizem, eu nunca fumei, não tenho preconceito não, eu não fumo tabaco, nem maconha, nem Maria Joana, nem nada, fumar não é meu esporte. Então, é… então, nós ficamos na tranca dura durante muito tempo e, na cela individual, então, era muito importante que nós tivéssemos livro pra ler, então era. E outra coisa, quando você ia, e quando eles bateram, a batidona do exército, o exército invadiu a penitenciária em abril, eles falaram que iam estourar um aparelhão lá.
Cristina: Eles invadem cela de madrugada e jogam bomba, é isso?
Gilney: Não, não, isso não. Eles deram uma geral lá, invadiram, pegaram os livros, pegaram as coisas nas celas e levaram pro quartel.
Cristina: Jogaram muito preso pra fora? Isso foi abril de quando?
Gilney: Isso foi em abril de 1970, quando o caiu o tal de processo, aquele negócio de Colina, entendeu?
Cristina: Esse procedimento eles usam hoje ainda, invadir cela, chegam de madrugada, joga bomba…
Gilney: No caso lá, não foi jogar bomba, eles davam geral, tiravam o cara da cela, ou botava no pátio, ou no corredor, normalmente, pra nós, não era pelado não, era só tirar, e a PM fazia isso sistematicamente, sistematicamente, pra nós tinha batida, tinha geral, inicialmente, quase todo mês, quase quinze dias tinha geral. Então, aí você tinha que se virar pra guardar aquilo que você queria proteger, aí como diz, aí nós aprendemos alguma coisa com os comuns, os cafofo, né, e depois nós começamos a criar os nossos próprios métodos, de guardar livro, de guardar documento, de guardar coisa clandestina, guardar rádio, guardar arma, né, faca, tudo nós desenvolvemos também, né.
Fernanda: Oh Gilney, e esse período é em Linhares, talvez o documento mais importante tenha sido o documento de Linhares que ficou…
Gilney: Não existe documento de Linhares, isso é…
Fernanda: A denúncia de tortura que foi pra o exterior, chegou aos órgãos internacionais, aí, quando isso chamou atenção para a violência da ditadura no Brasil.
Gilney: Sim, não foi só de Linhares, o pessoal de Ilha das Flores fez na mesma época, que era um pessoal de AP, inclusive. AP, PCB, era eles, já tinha outras denúncias, não era só aqui, mas aqui teve mais repercussão porque as circunstâncias de que o pessoal saiu no sequestro, logo depois, o sequestro do embaixador Alemão, foi quando o pessoal de Colinas saiu.
Fernanda: Saiu da penitenciária…
Gilney: Saiu trocado, foi pro exterior, então, lá fizeram uma rede, aí, todo mundo…
Fernanda: Aí, lá, eles levaram o documento…
Gilney: Não, eles não levaram, o documento já tava lá, o documento já tinha saído da prisão há muito tempo, na verdade, o que o cara pegou ali, nós fazíamos o seguinte esquema quando queria mandar um documento clandestino, assim, de denúncia, você mandava oficialmente, depois que ele passar por debaixo do pano, era esse o macete. No início é que nego tentou passar na careta, como diz, né, na cara do cidadão passar direto pra família, depois nós vimos que não dava mais com parlatório, com vigilância, com tudo isso, aí teve que criar outros métodos, você botar lá fora da penitenciária e correr…
Fernanda: E como foi isso? Quais eram as estratégias?
Gilney: Olha, têm coisas que são universais, eu vou falar das coisas universais e não das coisas particulares. Só tem dois métodos de você, preso, com o guarda tomando conta de você, uma particularidade que eu não falei, é a particularidade da cadeia de Linhares, conosco, com os presos políticos, os guardas não podiam perder gente, dentro de 24 horas, eles eram vigiados 24 horas, a exigência do serviço de segurança era essa, 24 horas, claro que, depois, a coisa foi ficando mais relaxada, mas a gente ia pro restaurante, o guarda ia junto, a gente ia pro pátio, o cara, aí tinha mais de um guarda, se você ia… Tudo um guarda te acompanhava em tudo quanto é lugar, não tinha essa história, cê entendeu, eles proibiram durante muito tempo de você ter, como é que chama isso, cortina na cela, pra você não ter privacidade, é, mas a gente punha. Não, mas eu acostumei com água fria. Esse negócio de água fria era… batia uma física violentíssima, batia uma vez e eu corria cem, dez quilômetros por dia, dez quilômetros, e tem gente que corria mais do que eu, Marco Antônio corria mais, Nilo corria mais, dez quilômetros por dia, só quando eu estava na C, na outra não tinha tempo pra isso porque eu tinha muita reunião de coletiva, de organização e também um período muito… era menor. Quando era na C eu já tava mais isolado, então, aí eu sempre, eu costumo dizer que eu não tive na cadeia, eu vivi na cadeia, eu militei na cadeia, eu me casei na cadeia, entendeu? Eu escrevi na cadeia, eu estudei na cadeia, cê entendeu? Fiz minhas universidades na cadeia, então, a cadeia é parte da minha vida, cê entendeu?
Cristina: Você quer dizer que Linhares foi uma boa cadeia pra você?
Gilney: Não.
Fernanda: Você que fez bom uso dela…
Gilney: Não, o que eu fiz foi, do limão eu fiz uma limonada! Mas eu fiz isso em tudo que é lugar que eu passei, qualquer lugar. É uma pessoa, eu tô falando de mim, mas muitos fizeram isso, alguns não, porque também tem cada pessoa tem seu jeito psicológico de lidar com isso. Mas eu era uma pessoa extremamente ocupada, nunca fiquei desocupado, tirei dez anos de cadeia com o máximo de ocupação de tempo, então cê vai ver que eu escrevi, escrevi documento pra minha organização, de fora e de dentro, cê entendeu? É, escrevi, fiz estudos sistemático de Marx, todo O Capital, e todas as anotações de Marx e o quarto livro, tudo, mesmo clandestino.
Cristina: Mas, então, você não sofreu tortura em Linhares. Mas tem algum relato de algum conhecido que sofreu tortura em Linhares?
Gilney: Sim, tem o espancamento, tortura cê tem que olhar, que tortura no sentido físico que você vai lá e faz uma coisa sistemática pra você obter informação ou pra você punir o cara por alguma coisa, isso não era habitual em Linhares, não era. O que existia era psicológico, psicológico. Houve espancamento, pelo menos do Nilo Sérgio, que eu me lembro, que nós protestamos, fizemos uma manifestação, fomos punidos por causa da manifestação. E houve um outro caso lá, teve um caso lá, o cara já morreu, acho que chama Celso, acho que a PM bateu nele também.
Cristina: Você chegou a conhecer o Milton, aquele que morreu…
Gilney: Não, o Milton morreu em 1967, eu cheguei lá em 1970, eu só cheguei lá em 1970.
Fernanda: Mas quando você chegou, quando você teve informações sobre o caso do Milton, porque pra Juiz de Fora é o caso mais marcante que foi o único caso de morte na cidade…
Gilney: Não, o que eu tive do caso do Milton foi com pessoal de Caparaó, ué, porque eu…
Fernanda: Que era preso na mesma época e permaneceu.
Gilney: Deixa eu te falar, cê tem que olhar que eu tenho meus sete anos de Linhares e tenho meus três anos e três meses de… três anos lá no Rio de Janeiro, dois anos e dez meses lá no Rio de Janeiro. Então, quando eu cheguei a Linhares, eu não convivi, não tive tempo de conviver com o pessoal de Caparaó. É, sinceramente, não os identifico na época que eu cheguei, podia até tá, um ou dois ainda estivesse, cê entendeu, mas quando eu cheguei, eu tava muito ocupado, eu não tava com muito tempo não, que eu tive que fazer todo o processo de autocrítica, de… com a Corrente, e isso demorou muito tempo. Ainda tinha a coisa do coletivo e depois uma porção de coisas assim, então, eu tava muito ocupado. É, mas quando eu voltei ao Rio, me transferiram em 1977, lá eu encontrei o Amadeu Rocha, encontrei o Ermes, encontrei um outro que eu esqueço o nome dele. Eu acho que tinha quatro companheiros de Caparaó lá na Frei Caneca, três eu me lembro os nomes deles, mas eu não me lembro se tinha um outro… Caparaó. E cê tem que olhar assim, que o preso fica “preso velho” e ela já fica sem saco pra ficar contando a mesma história, cê entendeu, todo mundo chega e quer saber a mesma história. Às vezes, por isso que às vezes você não quer nem falar, já contei a história pra dezenas de pessoas. Depois, quando abriu as visitas lá no Rio, nós tivemos que refazer nossas ideias, de que ficar contando história pra visita. Porque já eram outras, era época da abertura, visita vinha, já era nego de partidos políticos, já era outra, queria era sair da clandestinidade, nós presos e ele já tava pulando na rua. Então, já era outra relação, o movimento de anistia já estava organizado, tinham interesses, foi um período que nós tivemos que rememorizar as coisas que nós tínhamos feito denúncia, às vezes dez anos, cinco anos atrás. Então, eu queria falar dos documentos pra ficar bem claro que, os documentos assim, em novembro, início de janeiro, novembro de 1969, saíram quatro documentos de tortura aqui de Juiz de Fora, de Linhares, dois da Corrente, um do Colina e um da AP. Na verdade, o do Colina é o mais sistemático, porque eles fizeram uma coisa mais sistemática, mais bem feita, do ponto de vista literário, do ponto de vista da denúncia é igual a todos eles, “Lá eu sofri isso”, “Torturador tal”, “O lugar foi esse”, tinha um ritual. Quando eu cheguei à penitenciária eu fiz uma denúncia, eu ainda ajudei a organizar duas denúncias coletivas, uma que eu fiz, eu, a própria Virgínia assinou também a dela, o Herculano, aí veio um pessoal de ala e de ALN, já estava caindo a ALN, tinha gente também… Não. A ALN já foi a segunda remessa, cê entendeu. Aí, nós fizemos com um pessoal de ala um documento. Desgraçadamente, esse documento ficou vinte anos guardado, o dia que apareceu, sumiu, pode um troço desse?! Mas tem uma reportagem do Cruzeiro falando dela, entendeu, que houve um caso que, sim, um caso muito interessante em Linhares, que pouco abordado, que não é o tipo do caso do Milton, mas teve um caso de traidor em Linhares, né, que é o caso do outro Milton. O Milton, esqueci o nome do cara, era da ALN, que foi pra televisão, que foi pra televisão e tudo, cê entendeu, e esse também, então, teve mais duas denúncias coletivas. Como é que é o nome dele mesmo, eu esqueci o nome dele, se eu lembrar eu falo, mas eu não tô… Milton. É Milton ou Nilton? Nilton, desculpa, é Nilton, é eu tô confundindo. O Nilton, ele era ALN, e eles foram fazer uma ação num banco, deu um azar desgraçado lá, que às vezes dá também, você também faz coisa errada, tecnicamente falando, né, e, na verdade, o assalto foi mais ou menos frustrado, né, e a polícia apareceu na hora, aí saiu perseguindo o carro deles. E aí perseguiu eles até que foram ali na Floresta e deu um tiroteio, morreu uma criança, aí falaram que o Nilton tinha matado, na verdade, a repressão que matou a criança, um tiro no fogo cruzado, mas foi a repressão que matou. Aí falaram que ele ia pegar pena de morte, foi essa coisa assim. E ele depois pressionado e suas fraquezas também, acabou desbundando, foi pra televisão e fez aquele papelão.
Cristina: O que ele falou?
Gilney: Falou assim, que ele foi enganado, aquela história, foi enganado, seus terroristas, não quer defender o Brasil não. Esses caras não têm…
Fernanda: Pressionado.
Gilney: Não, ele foi convencido, ele fez acordo lá com os homens, traiu mesmo, teve vários casos desse tipo.
Cristina: Tinha uma moça, psicóloga, Emeli, você conheceu?
Gilney: Emeli…
Cristina: Ela ficou presa dois anos e depois ela passou a fazer um papel de visitar as prisões, você sabe disso?
Gilney: Sei. Conheço, é minha amiga.
Cristina: Queria um contato com ela, porque ela ficou dois anos aqui.
Gilney: Ela ficou quase dois anos, na mesma época da Efigênia ela ficou. Quando tiraram as meninas daqui, saiu, foi ela, Emeli, Efigênia, e eu acho que a Neuzinha, que foram transferidas, eu acho que só tinha três ou quatro.
Cristina: Porque a gente não tem nenhuma mulher presa aqui, ou relato. Ela estava em Brasília.
Gilney Viana: Não, Emeli é funcionária da Universidade Federal de Minas Gerais.
Cristina: É de BH…
Gilney: Isso, de BH.
Fernanda: Ela é da Comissão de Minas.
Gilney: Ela é da Comissão de Minas, ela foi daquela Comissão de Anistia de Minas.
Cristina: Ela tem um livro.
Gilney: Isso eu não sei. Se ela tem livro eu não sei não, gostaria até de saber, porque eu sou muito amigo dela, eu conheço a Emelinha tem 50 anos.
Fernanda: Só um pouquinho, voltando no Milton, você acredita que de fato tenha chegado morto em Linhares?
Gilney: Totalmente incerto, porque é difícil falar, viu, porque, às vezes, tinha gente que falava com convicção “Não, eles mataram ele e trouxeram ele”, e outra gente falava “Não, ele morreu lá”. Então, quer dizer, eu não tava lá, os caras falam, é desagradável você ouvir uma pessoa “Eu tava lá”, são coisas que eu vi lá no DOI-CODI. Você sabe que essas coisas, mesmo a gente vendo, às vezes não vê tudo, não é isso, a gente tem que ter cuidado com isso. Então, mesmo relatando, a gente não relata tudo, nem no pau você relata tudo. O cara, o torturador experiente, ele sabe que ele não vai tirar tudo do cidadão, por isso, ele concentra no que interessa e deixa o resto pra lá. Antigamente, tinha aquele aprendiz de torturador que ficava tentando tirar tudo, cê vê aqueles depoimentos tanto de Colina como aqui de Minas, que são depoimentos grandes, dez páginas, vinte páginas, trinta páginas, cinquenta páginas, cê entendeu? “Aí como é que foi a reunião?”, “Ah, no dia lá eu fui na reunião”, “Qual é a rua?”, “Ah, não sei… a rua sobe, a outra desce…”. Depois do DOI-CODI, isso tudo é besteirol, isso de aprendiz de torturador, torturador lá, eles falavam, “Eu quero o contato”, “Quero a organização”, “Quero o aparelho”, o resto é historinha, “Você foi com a fulaninha no buteco?”, “Estou me lixando”, cê entendeu, “Eu quero te matar, quero te desestruturar, acabar com você, isso que eu quero”. Aí ele deixava pra inteligência ficar se divertindo assim, mas a inteligência, depois, também começou a ficar esperta e falou “Não vou ficar com essa…”. Aí, eles passaram a ver que aquilo tudo era bobajada. Isso que eles fizeram em Minas era aprendiz de torturador. Não que as pessoas que foram torturadas não sofreram, eu tô falando do ponto-de-vista da inteligência, do ponto-de-vista do sofrimento, não, é igual.
Cristina: Hoje eles falam bonde, né!? Que é de preso, né, por bonde, nessa época você sabia de bonde pra Barbacena, pro hospital, ou alguma coisa assim?
Gilney: Não sei de nada, disso eu não sei. Deixa eu te falar, era uma vida que nós vivíamos muito organizada, e eu era muito concentrado no que eu fazia na cadeia.
Cristina: Eu sei, mas quando eles vão no bonde, presos, os outros presos cantam pra onde vai, tentam descobrir, não tinha isso…
Gilney: Quando tinha era o DOI-CODI, ele ia lá, pegava o cara, não tinha conversa, não sabia mesmo. Eles não foram lá, me pegaram e não avisaram pra onde? Quando o meu pai morreu, eles foram lá e não avisaram, eu via falando que o meu primo tava lá, falei “Meu pai morreu”. Saquei que era, não era hora de visita e o cara tava lá, só merda, né. Não tem razão, dar boa notícia não era, ele não ia sair lá de Belo Horizonte pra dar boa notícia, só foi pra dar má notícia.
Cristina: Você conheceu o major Ralph?
Gilney: Nunca, que eu tenha a oportunidade de identificar, não. Agora, uma coisa interessante, eu sei que o caso do Milton, mas é uma, eu vou te contar uma coisa assim pessoal. Toda vez que eu passava pela galeria A, eu lembrava do Milton, toda vez, toda vez que eu passava pela galeria A. Porque é… eu sempre tive comigo que eles tinham assassinado o cara, de um jeito ou de outro, entendeu. De um jeito ou de outro eles assassinaram. Então, tem casos duvidosos que não sabem se foi suicídio, assassinato, tem vários casos, não é o caso só dele não. Em cadeia, naqueles casos do DOI-CODI, tudo é fajutice, aquelas coisas do DOI-CODI não têm nada a ver. Eles matavam, depois, naquela época eles faziam aquela encenação, tiravam o cara pra tirar uma foto, e hoje, o próprio fotógrafo que tirou já falou que não era, tudo esclarecido esses casos mais antigos. O caso do Milton é um caso que ainda tá pra esclarecer, esse detalhe, mas a culpa da morte dele é da repressão. Se o cara induziu ele ao suicídio, ou mataram ele e fizeram o teatrinho, foi eles que fizeram isso, o cara tava normal. Aí, agora se…, eu, sinceramente, não me aventuro a fazer afirmações sobre isso não, tem que pesquisar, ir vendo, acha que vai ser assim, acha que vai ser assado, quero ver porque eu também não tenho capacidade de… não tenho conhecimento. E eu queria falar umas coisas, umas coisas de Linhares também pra vocês, que têm, às vezes, você entrevista pessoas e tem uma professora aqui de Juiz de Fora mesmo, que fez uma tese, uma dissertação de mestrado sobre Linhares, é a Flávia. E ela interrogou algumas pessoas e as pessoas falaram assim “Linhares era um paraíso”. Quando ela veio me entrevistar, e eu também nem estava atento, desculpa, eu estava muito focado em outra questão ambiental e não tava nem focado nisso, mas eu falei “Não tem nada disso de paraíso”, e então, vão… particularmente, quando vocês forem fazer o relatório tem que… Primeiro, é uma penitenciária que tem vários períodos, vários períodos, né. Você tem o período do controle do exército sobre a galeria A, que é o período de Caparaó, depois, com a morte ou assassinato do Milton, eles vão tirando o exército da jogada, você entendeu. E os remanescentes de Caparaó, uns foram transferidos, os outros foram soltos, coisas do tipo. Eles puseram junto dos comuns que foram trazidos pra lá, então, esse é um período típico de um regime civil, entendeu, onde os presos políticos conviviam com os presos comuns lá numa boa, não tinha nada, tinha as contradições comuns de cadeia, cê entendeu. Eles manejavam bem isso. Segundo, é que veio o período dos novos presos políticos, que começa em 1969, que é setembro, outubro, novembro… Olha no livro lá, que você vai ver quando chega essa primeira remessa. Aí, encheu a cadeia de presos políticos.
Cristina: Encheu? Chegou no limite de 1980?
Gilney: Não, não, eu tô falando numa superlativa, eu, o número certo eu não sei, mas ali dá pra contar, nós podemos contar, eu acredito uns oitenta, noventa, cem, cento e cem.
Cristina: Misturava homem e mulher?
Gilney: Não, nunca misturou, sempre a galeria C…
Cristina: Não a galeria, mas dentro de Linhares era homem e mulher.
Gilney: Sim, era homem e mulher, feminino e masculino junto. Nesse período, você tem um período de transição, onde tinha um civil que administrava, certo? E esse civil, ele logo, quando começa os primeiros conflitos com os presos políticos, aí o tira substitui o cara, no primeiro conflito, que essas denúncias de tortura, é que aí eles viram que ali tava construindo um problema político pra eles. Aí eles passaram, o exército vai ter controle sobre eles, o serviço de informação, aí puseram um capitão. Isso foi em 1970, foi quando eu cheguei. Teve um período que foi um cidadão pra lá e que era civil, não era militar. Então, quando mudou, o exército voltou a ter o controle direto da cadeia, então, o controle era estrito, nada entrava, nada saía, e eles montaram um serviço de informação, a gente não sabia direito quem trabalhava para o exército dentre os civis, mas, certamente, era gente de Juiz de Fora. Porque o povo que vinha, não tinha corpo de guarda suficiente pra fazer revezamento, eles traziam lá de Ribeirão das Neves, as pessoas pra dar plantão aqui. Provavelmente, os femininos eram daqui e os inspetores eram daqui, certo? Suspeita-se que alguns deles eram, lidavam diretamente com o setor de informações do exército, cê entendeu E quando deu a crise do tal do motim de 1970, e isso ficou mais ou menos claro como algum tipo de conspiração para derrubar o capitão Valter, e alguns desses civis estavam envolvidos, cê entendeu, e dialogando diretamente com o exército, cê entendeu. Na verdade, o exército viu o que é, e aí coincide com uma coisa que aconteceu com o exército, que não tem nada a ver com Linhares, é uma coincidência infeliz, é que a repressão, lá fora, ela começou a passar com outro patamar, que é final de 1971, 1972. Então, começou a repressão e assassinato de prisioneiros e o desaparecimento, e começou o pessoal do DOI-CODI, eles desenvolveram uma teoria, que é o pessoal de uma guerra revolucionária deles, começou a falar assim, não tem sentido o cara botar na cadeia e ficar agitando lá dentro, vamos dar um jeito nisso aí. Aí, então, eles começaram a fazer paulatinamente as políticas a seco, dividir aqueles que são recuperáveis, na visão deles, e os irrecuperáveis, ou daqueles que eram liderança, daqueles que eram liderados. Tudo, na visão deles, não é nada na visão nossa. Então, eles já começaram uma política, com o capitão, de premiar, botar quem tem bom comportamento, essa coisa que eles fazem com os comuns, que pra nós não valia nada, e como eles puseram o controle pro pessoal do DOI-CODI, que era um cara grosseiro, torturador, só fazia o que o capitão mandava, era o major… o major não sei quem é, aquele pessoal da S2 aqui, cê entendeu? E da 5ª Seção, que eles inventaram todo o serviço de relação pública que era face legal, eles pra fora, pra dentro, o serviço da S2 e do DOI-CODI, cê entendeu a coisa? Eles têm arte também na coisa. E isso coincidiu com essa visão de que não adianta a gente prende, nego sequestra embaixador, solta esses caras, então, agora, nós vamos matar e tudo. E, segundo, tá preso, vamos calar a boca desses caras, e como cala boca, arrocha em cima dos caras. Foi isso que mudou. Então, você pode falar assim, que foi uma conspiração do agente, do civil, isso tudo contribuiu para você fazer o processo, mas a estratégia não foi deles não, isso é coisa pensada lá em cima, no C… lá em cima no CODI, que é o chamado CODI mesmo, não é o DOI não. DOI é aquele serviço operativo de tortura ali, o CODI é o comando mais lá em cima, dos exércitos e tudo, sabe? Então, é, eles pensaram isso. Então, isso aconteceu aqui, e aconteceu em Itamaracá, e lá em Fortaleza. Não aconteceu imediatamente em Ilha Grande porque Ilha Grande era isolado, era a maior dificuldade de nego sair de lá pra poder repercutir no Rio, sendo que o Rio era a caixa de ressonância, o controle lá era maior, era mais fácil na Ilha Grande, cê entendeu? Sem contar que pra sair de lá, as visitas era mais difícil, tudo era mais controlado pela própria polícia civil no… no Rio não, que era o exército que controlava, o exército não controlou a cadeia, exceto quando nós passamos em 1977 pela Divisão de Segurança Especial, onde o serviço de informação controlava mais a gente, eles tinham um controle seletivo, mas não era direto, era um controle do exército. Então, no caso aqui… agora vou te falar assim, o que isso tem a ver com o depoimento das pessoas? Então, você pega uma pessoa e fala assim, uma pessoa que respondeu inquérito durante seis meses, ou naquele sistema que não era DOI-CODI, mas ficava, de vez em quando ia lá, levava pau, ficava naquela tensão, sacanagem, ele cai na penitenciária, e não tem isso, ele fala “Porra, tô no céu”. Vou te dizer uma coisa, quando eu saí do DOI-CODI, cê entendeu, foi à noite, caí lá no DOPS, me puseram na surda, no chamado “Ratão” lá do DOPS no Rio, aí o pessoal deixou um guarda sair, aí o cara falou “Ei, fica tranquilo que aqui não vai ter pau não. Aqui eles vão te interrogar e dar dura em cima de você”. Aí, eu fiquei na minha, esperando o outro dia, então, eu falei assim, depois, no DOPS, então, era todo mundo rindo, se bobear não tinha bebida, mas se tivesse, nós encarávamos, cê entendeu? Recebendo visita da mulher, cê quer mais o quê, cê entendeu. Era diferente, então, se você sai de um centro de tortura e cai num centro penitenciário, óbvio que o regime é diferente. Então, esta… esse choque de… isso impacta na vida das pessoas. Se a pessoa só viveu esse momento, não viveu o outro momento de Linhares, Linhares era muito bom, até o período de 1970, 1971, que teve todas essas invasões e não sei o quê, mesmo assim ainda tinha um… foi piorando progressivamente, mas as pessoas, cê não pode comparar como DOI-CODI, por causa disso, óbvio, cê tá, o cara te estuprando, te enfiando um fio no teu ânus, na tua vagina, no teu nariz, na tua boca, cê entendeu. Te torturando, te sacaneando, torturando os outros dia e noite, o negócio parece que nunca para, parece máquina, cê entendeu. Você fica quase louco ali. E lá, de vez em quando, o cara solta a sirene, solta a bomba lá fora, claro que, depois… Agora, se passa um ano, cadeia é assim, querida, isso aí não, se você já conversou com malandro, que vai em cadeia, malandro fala assim… Você já ouviu falar em cadeia de recado? Pois é, com político também é assim, na hora que entra lá fica uma meia dúzia de meses, quer dizer, cadeia é assim, todo mundo sente. Você sabe o que Ho Chi Minh falou quando ele foi preso pelos franceses lá na Indochina…
Notas
1 Mário Roberto Galhardo Zanconato