Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora
Depoimento de Marita Pimentel França Teixeira
Entrevistada por Fernanda Nalon Sanglard e Antônio Henrique Duarte Lacerda
Juiz de Fora, 15 de julho de 2014
Entrevista 001
Transcrição: Caroline da Silva Ferreira
Revisão: Rute Dalloz Fernandes Elmor
Revisão Final: Ramsés Albertoni (17/09/2016)
Marita: Boa tarde. Meu nome é Marita Pimentel França Teixeira, sou do Rio de Janeiro, nascida em 28 de outubro de 1929. E estamos aqui em Juiz de Fora, nesse momento, para prestar algum esclarecimento sobre os horrores pelos quais eu e meus filhos passamos, e meu marido também, pela época da bendita revolução, entre parênteses, e o que nós sofremos. Me chamaram e eu vim prontamente, por dois motivos: um, para tentar que isso seja bem esclarecido, para que nunca mais aconteça com ninguém, porque o que nós passamos foi triste demais, e também pelos meus filhos, que sofreram muito e ainda sofrem. Eu não tenho muito que viver, porque já estou com 84 anos, no mês que vem faço 85, mas eu tenho dois filhos que, por sofrerem muito, ficaram com a vida muito prejudicada e, aos poucos, eu vou poder até apresentar provas do que estou falando. Um [filho] foi passando mal e descobriram que estava com esquizofrenia, era um menino saudável, e o outro é altamente depressivo, mas se formou, é biólogo. Este meu filho vive comigo e eu fiz tudo o que se pode fazer, tenho certeza. Quando meu marido morreu, depois daquele sofrimento todo, depois de oito anos de hospital, sempre com ataques horrorosos e convulsões, eu, na hora em que ele morreu, disse a ele uma coisa sem pensar, mas de que eu nunca me esqueço: “eu hei de fazer todo o possível para fazer tudo de bom para os nossos filhos”. E sei que, lá de cima, ele me agradece muito, e por eles, porque estão sofrendo até hoje muita coisa, mas o que eu pude, eu fiz. Trabalhei muito, dei boa vida a eles, boa vida no sentido de vida normal, cada um tem a sua casa; porque, para uma pessoa que é telegrafista dos Correios, ter dado isso sem ter um tostão de quem quer que seja, eu fiz muito. Mas trabalhei muito, fui tirar curso de cosmetologia, fui tirar curso de tudo para poder trabalhar e ganhei sempre bem. Foi uma coisa que eu vivi e ganhei sempre bem, não sabia que eu tinha essa facilidade. E hoje estou aqui para isso. Em primeiro lugar, eu gostaria de ver se vocês deixam claro, que estão querendo esclarecimentos, mas eu peço esclarecimentos a vocês também, que vocês tentem esclarecer o que fizeram com o meu marido, porque eu não sei, eu não vi.
Antônio Henrique: Então, dona Marita…
Fernanda: Quem era o marido da senhora?
Antônio Henrique: Como tudo começou? O nome do marido da senhora, qual o tipo de engajamento, se tinha algum engajamento político ou sindical, alguma coisa? O que aconteceu exatamente com ele assim, pari passu?
Marita: Eu trabalhava nos Correios e ele também, ele gostava muito de estudar, eu também sempre gostei muito de estudar. Ele veio me dizer – vou te falar como que eu me casei – que ia ser feito nos Correios um curso de ondas portadoras, a coisa era enorme naquela época, para a tecnologia mandar um telegrama pela onda lá de cima… Não dava para entender… Aí, ele perguntou: “Vamos fazer no Plano Postal-Telegráfico?”. Era um órgão muito importante lá, eu fui e me inscrevi, quando vi, eu era a única mulher, tinha 17 moços, a maior parte engenheiros, meu marido não era engenheiro, eu também não, e outro senhor que tinha lá também não era. Os outros eram todos engenheiros.
Fernanda: Isso foi em Juiz de Fora?
Marita: Não, no Rio de Janeiro, eu morava no Rio. Ele veio de Jacobina, cidade onde ele nasceu. Lá do interiorzão. Já era dos Correios, porque ele começou como estafeta, entregando carta. E ele era muito vivo, tinha um bom ouvido, não só para música, mas para tudo; inclusive, telégrafo pede bom ouvido, porque a gente passava tudo pelo ouvido… Então, passava ele, pequenininho, aí o diretor dos Correios saía, era muito amiguinho dele: “Toma conta disso que eu vou à Bahia”. E começou a tomar conta. Ele se interessou, ele era um telegrafista de tudo, pegava tudo de ouvido, todas as máquinas. Então nós fomos fazer esse tal curso. Porque ele era assim, de gostar de aprender as coisas. Fomos fazer o curso e a convivência nos fez gostar mais um do outro, acabamos nos casando. Casamos no Rio e, logo depois de casados, apareceu um concurso de três mil e poucas pessoas. Era concurso federal para telegrafista letra tal, se a nossa letra era… Não lembro qual era. Só que ia passar para a letra “I” e a gente ia ganhar três vezes mais. Imediatamente nós fomos e eu estava até grávida do primeiro filho, nós já tínhamos casado há uns cinco anos, mais ou menos. Ele foi e tirou o primeiro lugar. Eu tenho o Diário Oficial até hoje, mandei xerox para essa gente toda, para tentar conseguir pensão para o meu filho, mas não consegui… Então, ele tirou o primeiro lugar entre três mil e poucas pessoas. O curso que ele tirou, ele também passou, não era engenheiro, mas também passou, assim como eu passei também, tudo continuou bem. Eu achava que aquilo era uma maravilha, meus tios, que gostavam muito dele, fizeram uma festinha para ele, de fato, foi uma coisa boa para a gente, não só foi muito bom tirar primeiro lugar em um concurso público grande desse, como também financeiramente, ia nos facilitar muito. Aí, de repente, começou todo mundo a dizer… Você precisava… Mas não era. Nós éramos católicos, inclusive a irmã dele que está no CTI lá na Bahia, vou lá visitá-la se puder, ela é freira, a família toda é católica, até um pouco demais, eu também sou católica. Um dia em que eu não possa ir à catedral, com meu filho, assistir à minha missa… Pertenço a várias associações, sempre fomos assim, não temos nada a ver com Rússia, com fama de que nós tínhamos comunicações com Cuba. Imagina, hein?! Comunicações… São coisas, que eu te digo mesmo, que pareceriam piadas do Faustão, aquelas pegadinhas, se não fosse verdade mesmo. Coisas impossíveis! Então, de repente, ele disse: “estão pretendendo me colocar em uma diretoria”. Não, primeiro na agência de Botafogo, para ser chefe. Eu falei: “Que bom, meu filho, muito bom, é muito melhor, nós vamos ganhar mais”. A gente era novo, a gente tinha vontade de fazer as coisas. Mas de repente a diretoria de Juiz de Fora ficou vaga, não se sabia o que era diretoria nem nada. “É capaz de você ir para lá”. Ficou assim, a gente estava naquela dúvida. Mas eu, ligando o rádio, não sei que jornal, era tipo “Jornal Nacional”, oito horas dava aquele noticiário, foi por aí que eu, com meus dois filhos sentados, brincando ali no chão, escutei dizer: “Acabou de ser nomeado para a diretoria dos Correios e Telégrafos, o senhor Misael Cardoso Teixeira”. Ele estava trabalhando, tinha dois empregos, trabalhava no Telégrafo e trabalhava na Rádio Nacional, eu não tinha o telefone da Rádio Nacional. Eu fiquei doida para o homem chegar, ele chegava tarde, eu trabalhava até uma hora da manhã no telégrafo, hoje nem telégrafo tem mais, a gente pegava no turno, era turno das seis horas até uma hora, ele também. Eu fiquei acordada, esperando ele chegar, eu sempre ficava. Quando ele chegou, eu disse: “Você foi nomeado para isso assim, assim”. Ele disse: “Eu estava esperando, mas não sabia que saiu assim”. Então, foi aquele murmúrio, aquela coisa, ninguém dormiu. Começamos a telefonar para um, para outro, e viemos para… Ele dizia: “Vamos acabar com a casa, porque lá tem casa”. Respondi: “Não acabo com minha casa não, isso é uma coisa que não foi por concurso, não é vitalício, vamos deixar nosso apartamento aqui no Rio mesmo, que já está montadinho e tudo”. Fomos para lá, trabalhamos regularmente, esteve muito bem. Eu viajava com ele, pois tinha que fazer inspeção, eu era telegrafista, mas eu fazia também as viagens com ele, porque para poder fazer as inspeções melhores… Tem que fazer inspeção em tudo quanto é agência, viajar é uma vida normal. As cantorias dele eram incríveis, ele adorava e chamava gente lá em casa, porque tinha um terraço muito grande, tinha uns colegas muito bons, musicistas. Brincava… Por isso que o menino até hoje toca violão, porque foi criado nesse meio, e toca tudo, aliás, foi uma vida normal. Quando chegou um dia… Não houve assim… Coisas assim, que me chamassem a atenção, não.
Fernanda: Ele não era vinculado a nenhum partido político, movimento estudantil…?
Marita: Não, não.
Antônio Henrique: Sindical, não é?
Fernanda: Sindicato…
Marita: Não, nunca pertenceu. Agora, esteve lá em casa, isso sim, isso esteve, quando havia alguma coisa, é lógico que ele ficava… Por exemplo, o João Goulart veio aqui para inaugurar o aeroporto. Isso eu lembro muito bem, ele pediu que eu fizesse… Porque lá em casa era tudo grande, é o Correio todo. É enorme aquilo lá, não foi feito para mim, foi feito para quem foi diretor. Para fazer uma festa… Ele não foi… O João Goulart, nós fizemos a festa e ele não foi, mas o Magalhães Pinto foi. O Miguel Arraes foi, e no dia em que ele veio aqui, houve uma eleição. Nós tínhamos outra coisa… Como é que chama isso?
Antônio Henrique: Plebiscito.
Marita: O plebiscito. Houve um plebiscito, e o Miguel Arraes foi lá uma noite, foi todo mundo. O Magalhães Pinto dormiu lá várias vezes. Porque tinha um quarto todo cheio das pompas, não sabe? Tudo capitonado. Não tinha porta justamente para receber pessoas assim. Era próprio, nenhum dos meus filhos entrava… Que eram crianças…
Fernanda: Ele recebia essas autoridades devido ao cargo importante que ele ocupou.
Marita: Lógico, quando nós íamos ao exército oferecer… Aliás, eu adorava as festas do exército, era uma coisa maravilhosa. Lá no quartel general ia quem? O prefeito, o magnífico reitor, ele era chamado para ir com a esposa, enfim, esses cargos assim. Deputados, também. Depois ele foi preso…
Antônio Henrique: O Mário, o bispo…
Marita: Bispo… Mas é verdade, o bispo e tudo mais… Então, ia todo mundo, você já viu que eu sou de falar muito, quando eu era mocinha, falava mais. Então, eu convivia com todo mundo, adorei a mulher do Magalhães Pinto, adorei. Aquela moça, a do Jango, não veio, mas depois eu a conheci numa festa do Rio de Janeiro, eu a conheci. Lógico, está em evidência, tenho que conhecer, eu gostei demais dela, da Tereza, acho que ela sofreu muito também. Bom, qual político tinha partido? Não, eu nem me lembro de qual partido eu era, eu votava, mas não me lembro… Ah, votei sim, naquela época, eu estava no Rio, votei na época em que o Juscelino entrou, eu achava o Juscelino maravilhoso, eu amei o Juscelino desde o começo. Depois, eu era muito amiga da filha do Lott, general Lott, aquele homem que fez o Juscelino entrar. Eu gosto muito das coisas certas, se o homem foi eleito, seja lá quem for, tem que ser ele. Eu detestava o Jânio, mas achava que o Jânio tinha que entrar. O Jânio Quadros, eu achava ele louco, aquele camarada para mim era doido. Eu não votei nele, mas eu achava que tinha que entrar, se ele ganhou, ele tinha que entrar, eu sou muito assim até hoje, tudo meu é muito certinho, não tolero virar… Quem dirige sabe que, se andar na contramão, bate, eu gosto de andar na minha mão. Então, é muito difícil eu sair da minha mão. Lá no Rio, por exemplo, não fizemos nada, nós votamos, eu votei no Juscelino, quando o Juscelino ganhou, eu vibrei, fizemos logo uma festinha, nós éramos de festinhas, nós fizemos logo uma festinha dentro de casa, chamamos nossos amigos, mas nada de político, qual político nós tínhamos? Como disse que ele era muito amigo do João Goulart, saiu isso lá escrito. O homem era de Jacobina, se você visse onde Jacobina é! Interior da Bahia, lá no canto, veio para cá mocinho e pegou logo no telégrafo para trabalhar, teve dois empregos. Como é que nós éramos tão amigos de…? Vivia sim, no SAPS1, toda hora tinha inauguração do SAPS, nós éramos chamados, então, essas coisas, mas não houve nada disso. Agora, ele estava trabalhando muito bem, quando chegou um certo dia… Faltou alguma coisa para dizer… Vivia muito bem, graças a Deus, com duas crianças bonitinhas, engraçadinhas, toda criança nessa idade é um amor de bondade. Aí, fizemos uma pequena viagem, porque houve um feriado, era uma Semana Santa, houve um feriado. Quando chegamos do feriado, o homem foi preso. Ao ponto… Uma coisa para mim tão assim surpreendente, ao ponto de eu pensar que ele tivesse feito um desfalque. Foi o que eu imaginei…
Fernanda: Que dia foi isso, dona Marita?
Marita: Foi antes da Revolução. Houve a Semana Santa e nós voltamos desta viagem com meus filhos; eu, ele e meus filhos. Entraram aqueles homens, eles bateram, nós fomos abrir, eram os oficiais do exército e mais uns soldados. “O senhor está preso”. Não disseram por que motivo, nem a mim. Mas preso por quê? Ele ficou assim… Eu acho que ele sabia um pouquinho, não que seria preso, mas sabia que estava havendo alguma coisa, eu confesso que eu não sabia, naquele tempo não… Agora, hoje eu me envolvo com tudo, para ficar de olho aberto, mas eu não sabia não, era muito nova, estava vivendo… Era um filme bonito que passava… Você sabe como é… Gente com vinte e poucos anos era assim, eu fui. Mas ele devia saber, ele não perguntou… Quem perguntou mais fui eu, mas não durou muito tempo não. Perguntaram: “O senhor quer que leve alguma roupa, alguma coisa? O senhor está preso”. E botou logo a coisa nele. Ele aguentou bem, depois é que não aguentou, por isso é que eu digo, fizeram alguma coisa com ele, porque ele era de aguentar bem. “Não, vai assim mesmo”. Eu fiquei doida! “Vai assim mesmo, com a roupa do corpo”. “Para onde? Para onde vocês estão levando?”. “Não podemos dizer”. E sumiu.
Antônio Henrique: A senhora não lembra o dia?
Marita: O dia? Foram três dias antes da Revolução, quatro dias antes da Revolução. Deve ter sido 26 ou 27. Porque a Revolução começou, mesmo, dia 31.
Antônio Henrique: 31.
Marita: É, dia 1° de abril. Eles não botam 1° de abril, porque era mais uma piada, dia da piada, dia da mentira, eles fizeram dia 31, começou dia 31, não foi nada dia 1° não. Então, foi no dia 27 ou 28, aí, realmente, eu estava tão aluada, mas foi isso. Ninguém tinha sido preso! Ninguém. Aliás, aí está dizendo no jornal que ele foi o primeiro homem a ser preso. Foi dia 26 ou 27 de março.
Fernanda: A senhora acha que ele realmente foi o primeiro preso pelo regime?
Marita: O Itamar é que me dizia isso.
Fernanda: O Itamar Franco?
Marita: O Itamar Franco. Ele já tinha sido colega meu do Granbery, porque eu já tinha morado aqui. Tinha sido colega do Granbery, gostava imensamente do meu marido e gostava muito de mim também, era colega e tudo, conversava muito com ele. E esse meu filho que está aí, ele dava muita atenção a esse menino, e dizia assim: “Qualquer coisa que você for pedir para esse menino, diz que você é a viúva do primeiro homem a ser preso na Revolução, antes da Revolução eclodir”. Isso o Itamar falava muito, falou um pouco antes de morrer, eu nem sei de quê que ele morreu, mas ele morreu de repente. Ele estava na frente do Brasão, ele comia muito lá, eu estava passando com o meu marido… “Ô, Marita, depois que você foi almoçar é que você se encontra comigo?”. “Você devia ter me chamado antes, que eu ia almoçar com você”. Ainda brinquei com ele, sabe? Aí, meu filho brincava com ele… “Teu signo não se dá com o da sua mãe”. “Imagine, mãe, a gente se dá desde criança’. “Agora é que seu filho veio descobrir que meu signo não se dá com o seu”, então, falou. “Então você não sabe nada de signo”, brincando comigo. Foi no dia 26 ou 27.
Fernanda: Essa entrada dos militares na casa da senhora, como é que foi? A senhora poderia detalhar para a gente como foi essa chegada?
Marita: Eu abri a porta e eles entraram, eles entraram pela porta dos Correios, porque lá embaixo é aberto, e pediram para subir. Nem sei se pediram, porque lá tem uma escada que quem quisesse vir visitar poderia entrar pelos Correios… Não tinha uma pessoa especificamente para perguntar: “onde é que vocês vão…” Mas podia até ter perguntado, mas eles, todos fardados, perguntaram e foram subindo, subiram as escadas, porque lá tem dois lances de escadas. Quando bateram na porta, quem abriu fui eu… “O senhor deseja alguma coisa?”. “Desejamos.” Entraram, também não fizeram muita graça, entraram. Mas estava tanta gente lá, toda hora vinha gente de fora e parava… Eu até, no momento, pensei que fosse isso, né? Aí chamei. Ele estava lá dentro acabando de se arrumar… “Oh, Misael, estão querendo falar com você”. Ele veio. Ali não falaram nada comigo, eu não estranhei não, porque era muita gente que entrava, vinha gente de Cataguases, de não sei onde… De tudo… Sentava… Até Magalhães Pinto esteve lá, outros políticos estiveram lá também, dormiram lá, dormiram ele e a esposa dele. Aí ele veio, quando chegou, disseram assim: “Senhor Misael Cardoso Teixeira?”. “Sim, o que o senhor deseja?”. “Eu quero lhe avisar que o senhor está preso”. As palavras foram estas. “Ele está o quê?”. “Preso”. Eu não escutei, achei que não era. “O senhor está preso e vamos sair agora”. “Mas preso…”. Ele também não perguntou não, ele era muito orgulhoso, tanto é que ele nunca me contou diretamente o que houve, cansei de perguntar e ele nunca me disse, por isso que eu não vou dizer que ele foi… Como é que se diz?
Fernanda: Torturado.
Marita: Torturado, eu não vou dizer… Mas, agora eu tenho certeza que foi. Então, você entrega uma pessoa boazinha, quatro meses depois sai uma pessoa que não sabe nem quem é você? Espera aí, alguma coisa fizeram com ele, alguma coisa… Quando eu vi que ele estava assim, diretamente… Assim que ele ficou comigo, eu levei diretamente ao Hospital dos Servidores do Estado, onde meus filhos nasceram. Nós pertencíamos a ele porque nós éramos federais, né?
Fernanda: Qual hospital?
Marita: Hospital dos Servidores do Estado. É o nosso. O presidente quando está doente tem que ir para lá. Meus filhos nasceram lá, porque nós éramos…
Fernanda: Funcionários do estado.
Marita: Federais. Pois bem… E era um grande hospital, meus filhos nasceram lá e eu sei, era um grande hospital. Aí eu levei imediatamente para lá, o médico que o atendeu viu logo que era parte psiquiátrica, me chamou e me perguntou… Não me explicou por que, só perguntou o seguinte: “Dona Marita, a senhora foi casada com ele esses anos todos e tal. A senhora sabe… a mãe falou, tio falou, em criança, se ele sofreu alguma…”. Mas ele não estava machucado não, isso eu não vi, pelo menos que eu visse, não… “Houve alguma coisa…?”. Agora, lá, eles usam a imagem, isso é que eu não sei, porque hospital usa a imagem, assim aparentemente não tinha nada, estava magérrimo, muito acabado, mas dizer que ele estava marcado, isso ele não estava não. “Ele teve alguma queda, alguma coisa assim?”. “Não, não teve”. Porque a gente conversava muito, falava muito da minha infância, que eu fui uma garota muito levada, que eu era toda quebrada, porque eu caía da árvore, que não sei o quê… E ele dizia assim: “Eu fui ao contrário, eu fui trabalhar, porque eu tinha que ajudar meus pais, nunca houve nada”. Os pais dele tinham loucura por ele e ele por eles, família mesmo, muito bacana, assim do interior, sabe? Então nunca houve. Eu sim tive tudo quebrado, porque eu era levada demais, eu montava em pelo de cavalo, fazia não sei o que lá, eu era toda quebrada. Quebrei perna, quebrei dedo, quebrei não sei o que… Ele não, ele dizia assim: “Eu estava trabalhando, enquanto você estava brincando, eu estava trabalhando minha filha, minha vida foi muito pesada”. E não houve. Isso me encucou. Será que ele viu alguma coisa na imagem? Porque por fora não tinha não, quando ele saiu eu especulei bem, agora imagem é uma coisa que você sabe… Você vê tudo lá. Você faz um eletro agora mesmo, que vai te dizer tudo o que você tem aí dentro. Isso eles me perguntaram.
Fernanda: Quando eles levaram o senhor Misael da sua casa, como foi o comportamento dos filhos da senhora, da família, em relação a essa entrada? Eram policiais ou eram…
Marita: Dos meus filhos?
Fernanda: Dos filhos.
Marita: Os meus filhos ficaram… Primeiro, quando estavam levando ele, amarrando, porque tiveram que amarrar, não sei o quê… Os meninos foram lá e chutaram os homens, o mais velho então, ele era altinho, ele é altinho, chutava os outros: “Deixa meu pai! Deixa meu pai!”. Porque já falavam, os meninos tinham quatro, cinco anos. Um tinha quatro, o outro tinha cinco, e era esperto, o mais velho que está aí, esse que estava aqui comigo, esse era muito esperto, um garoto esperto. Mas chutavam, os dois, o outro viu chutando foi chutando mesmo, com aquelas botas de menino, aquelas botas Conga, fortes… Chutando os homens. Não fizeram nada, até hoje admiro como não deram um tabefe nas crianças. Não fizeram nada. “Não leva meu pai!”. Todo mundo dos Correios escutou os meninos gritando…
Fernanda: Eles não fizeram busca por documentos na casa? Fizeram alguma coisa assim?
Marita: Não. Depois é que fizeram, aí foram fazendo tudo; arrebentaram os berços dos meninos, foram nas minhas roupinhas íntimas, para procurar arma. “O que vocês estão procurando?”. “Arma”. “Eu vou ter arma com duas crianças, deste tamanho, em casa?”. Nós viajávamos muito e as estradas eram muito ruins, eram muito ruins mesmo. Aí ele dizia: “Quem sabe a gente devia ter uma arma para levar”. “Não, com duas crianças não quero arma nenhuma aqui”. Criança vai e pega mesmo. Nunca teve nada, até hoje eu tenho medo, não gosto de faca. Não sei, eu não gosto. Pois bem, eles não falaram nada, e os meninos gritavam tanto que lá embaixo a gente escutava: “Larga meu pai!”. E eu segurando, porque eu não queria que eles descessem. O que eles iam fazer lá? Dois pequenos… Uma cena assim… Tipo aqueles filmes bravos, sabe? Que a gente vê… Gritaram: “Quero meu pai! Quero meu pai!”. Ficaram. Eu tentei avisar lá embaixo, a família dele lá, para família vir. A família não veio, porque eles cortaram meu telefone, não tinha telefone, não tinha nada e não deixaram ninguém mais entrar! E ninguém mais entrou. Ninguém entrou lá. Eu fui dando às crianças o que tinha em casa, leite, pão, essas coisas que a gente compra todo dia, mas teve uma hora que acabou. Eu tinha uma despensa razoável, porque a gente recebia muita gente. Fui dando, fui dando… Teve uma determinada hora que eu dei petit pois para os meus filhos, isso eu me lembro, abri lata de petit pois e dei a eles. Não tinha mais nada. Aí, nesse mesmo dia, se eu não me engano, no dia seguinte, eles vieram dizer…
Fernanda: Não tinha mais nada, porque não tinha dinheiro ou porque a senhora não podia sair?
Marita: Não podia sair, ninguém podia sair, tinha um guarda na porta, um soldado na porta. Não entra nem sai. Eu não sabia que eu tinha essa periculosidade toda não. Aí eu não podia sair. E o medo que eu também tinha, de sair e ser presa, e me deixarem sem meus filhos! Eu respondi processo e também poderia ser presa, e deixar meus filhos ao Deus dará… Eu tinha uma empregada, a empregada também nunca mais entrou… Mas depois, eu vim saber, que tentou entrar, mas não pode entrar. Até que eles vieram dizer: “A senhora tem 24 horas para deixar a casa”. Eu fiquei doida! Eu tinha pai, mas a minha mãe já tinha morrido, e meu pai tinha se casado pela segunda vez, aliás, ele se casou três vezes, depois que essa morreu ainda se casou de novo. Mas ele estava se casando pela segunda vez, ele estava até na Argentina passeando. Aí, uma grande amiga, que depois sofreu o pão que o diabo amassou, porque me levou para a casa dela… A filha dela está viva até hoje, essa mulher era maravilhosa, ela tem um hospital, São Camilo de Lellis. Ela que organizou o hospital e ia a tudo quanto é lugar, para pedir comida para eles. Viveu muito bem lá dentro.
Fernanda: Qual é o nome da filha de sua amiga?
Marita: Deise. Deise Simão Barbosa. Essa viu tudo. O marido dela… Quando nós descobrimos onde ele estava, o marido dela foi comigo na cadeia e ela também, para conversar com ele, quando nós descobrimos. A mãe, que nos deu a guarida em casa, ela era dos Correios, mandaram ela para Durandé, lugar longe, nem sei onde é direito. De propósito… A filha da mulher… A mulher não tinha feito nada. E os outros? Teve um só que era nosso amigo e foi preso! Nelson Barbosa está aí, vivo, até hoje. Foi preso por quê? O que é que esse homem fez? Nada, ele era funcionário do meu marido. Foi preso! A mulher ficou desesperada, eles são muito unidos, eles não têm filhos… Um dia foi preso. A dona Vanir foi para Durandé. Isso sem dizer que destituíram todo mundo. Destituíram todo mundo das funções que ele colocou. Inclusive o chefe da garagem, que é o Seu Simeão, pessoa maravilhosa, família grande, 16 filhos. Não sei o quê, não sei o que lá… Tiraram o homem, mas não fizeram mal a ele. Agora, estes todos que foram destituídos… Muitos que eu conheço foram destituídos do cargo. Eles ganhavam uma comissão para trabalhar no cargo, tudo bem, eles se acharam no direito, e conseguiram, entraram na… Não na Comissão da Verdade, que ainda não tinha, mas eles entraram na Justiça e tudo aquilo que eles deixaram de receber, eles receberam. Aí começaram a dizer: “Marita você faz isso que você vai receber para seus filhos”. Mas isso eu não queria não, só se fosse dar para meus filhos uma aposentadoria, uma coisa assim, para que eu possa morrer em paz. Mas eles receberam tudo, eles entraram com advogado particular. Eu nunca entrei. Agora, esse negócio de eu dar a minha aposentadoria para ele, minha pensão para ele… É que o doutor Adailton disse que eu posso entrar. “Quer entrar, entra, porque é verdade. Se precisar de mim…”. Eu nunca entrei, porque eu nunca fui chamada, eu acho que eu teria que ser chamada. Acho que teria que ser chamada. Ele entrou, mas como advogado, era mais como uma função que ele ia fazer. O que veio escrito eu até não dei atenção. O dia em que foi preso, o dia em que foi solto… Isso eu sei, tudo o que aconteceu. Depois, ele não veio ao julgamento, mas ele foi julgado, e absolvido por unanimidade, eu não sabia disso? Só se eu tivesse tonta… Só isso que veio, ele não procurou direito e tanto não procurou direito que se ele tivesse procurado direito o que eu mandei lá para o TCU… Meu negócio foi para o TCU, TCU é Tribunal, não é? Negou a pensão para o meu filho. Se ele tivesse entrado com todos os documentos que eu tenho, porque tenho todos. O TCU mandou dizer que a pensão não seria tirada de mim, e que o menino tinha a casa. Tinha, mas eu mandei a minha compra [da casa] pelo Banco Econômico e depois que eu paguei, eu fui ao cartório e fiz um… Eu tenho uma certidão de doação, por escrito mesmo. Procuração de doação que dona Marita faz para o seu filho Misael, então ele tem, mas não foi ele quem comprou. Bom, eu montei uma firma, quando eu vi que esse negócio estava assim… “Esse menino não tem nada, ele tem 17 anos, ele não tem nada, preciso botar alguma coisa”. E me disseram: “Monta uma firma”. A minha diretora disse (eu trabalhava no Rio de Janeiro com os cosméticos, eu era empregada): “A senhora monta uma firma e bota ele”. Botei. Comprei a firma e montei, na Rua Halfeld. Uma firma que graças a Deus nunca teve um sinal, eu só parei com a firma por causa da coluna, eu ia lá carregada, eu subia a Rua Halfeld com uma pessoa de um lado e outra do outro. Mas trabalho até hoje, dou aula, dou tudo… Eles não me largaram não… Pois bem, montei e botei Marita e Misael. Então meu filho trabalhou? Não, botei porque eu queria, e comecei a pagar o INSS para ele. Eu ia ficar esperando quem? Cair do céu? Ainda mais eu, depois dessa que eu passei. Então, ele começou a receber um salário do INSS. Mas eu estou mostrando porquê. Ele não trabalhou em lugar nenhum, ele foi dono, porque eu coloquei Marita e Misael, porque eu poderia colocar seu nome ou seu nome, sem você ter ido lá. Coloquei e ele ficou. Se ele tivesse levado no TCU essas provas todas, eles dariam condição, daria com certeza, mas não tomou conta… E esse daí, ele fez também, ele fez foi para ganhar, confesso a você… Gosto até dele, é muito simpático, ele parece um filho meu… Ele fez para ganhar, para trazer isso aí… Eu sabia de tudo, eu sabia e você viu aí, né? Estava com você. Isso aqui ele nem procurou, como é que você achou isso?
Fernanda: Quantos dias que o senhor Misael… Por quanto tempo o senhor Misael ficou preso?
Marita: Quatro meses.
Fernanda: Quatro meses.
Marita: Sem eu saber onde. Aí me diziam: “Ele está em tal lugar assim, assim…”. Alguém chegava: “Não, fulana foi visitar o marido e achou em tal lugar assim, assim”. Eu pegava os meus filhos e ia para esse tal lugar. Chegava lá e não estava. Para o DOPS, eu fui várias vezes, o que eu vi dentro do DOPS, não com o meu marido, o que eu vi é motivo para vocês fazerem outro negócio, porque eu vi muita coisa. Deus me perdoe! Aquele DOPS de Belo Horizonte. Eu tenho ódio daquilo, tá! É muita coisa, muita gente…
Fernanda: A senhora não encontrou ele lá…
Marita: Não, não estava em lugar nenhum, não estava em lugar… Até que um dia veio aí… Nesse eu tinha mais fé, confiança… “Eu vi seu marido! Eu vi!”. Ele estava com a mulher dele… “Eu vi seu marido, ele está em Lagoa Santa, dentro do hospital de Lagoa Santa”. Eu nem sabia para que lado ficava isso, mas procurei saber, peguei meus filhos e peguei um ônibus. Tem que ir para Belo Horizonte, porque daqui não tem para Lagoa Santa, quando cheguei a Belo Horizonte, não tinha mais ônibus naquele dia e eu queria evitar dormir lá. Estava sem dinheiro, gente! Eu vendi o que a minha mãe tinha me dado: casaco de pele, naquele tempo usava; casaco de pele, pulseira de ouro, mas vendi tudo para poder sustentar essa situação, porque eu tinha que me locomover, eu estava na casa da dona Vanir sem pagar nada, ela não quis receber. Eu tinha que me sustentar, eu comprava coisas também, porque ela não era rica pra ficar comigo ali dentro e meus filhos… Pois bem, comecei a vender. Vendi casaco de pele, vendi isso… Aí que eu vi que eu era boa vendedora…
Fernanda: Para pagar a passagem para Lagoa Santa?
Marita: Não, não era só isso, pra todas, porque eu fui a vários lugares.
Fernanda: E quando a senhora chegou a Lagoa Santa?
Marita: Quando eu cheguei, não cheguei a Lagoa Santa, eu cheguei a Belo Horizonte, para tomar outro ônibus para Lagoa Santa. O ônibus não tinha mais. Eu não lembro se não tinha vaga no ônibus ou se não tinha… Não, não tinha mais linha àquela hora, porque já eram umas duas horas da tarde e a partir de uma hora não tinha mais. Quando eu estou saindo, já meio desanimada, sem saber o que ia fazer, se voltava para Juiz de Fora… “É capaz de ele estar lá mesmo, mas também chegando lá não está…”. Já estava pensando assim. Quando, de repente, eu vejo uma ambulância em que estava escrito Lagoa Santa. Eu falei: “Uai gente, Lagoa Santa…”. E vi uns soldadinhos, soldadinhos mesmo, criança. Aí eu cheguei perto e falei: “Meu filho vocês têm mãe?”. “Temos”. “Pois é, eu posso ser mãe de vocês, porque eu estou vendo que vocês são garotos”. Eu tinha trinta e poucos anos, nem podia ser mãe deles não… “Mas olha, eu estou com essa situação assim, assim… meu marido está preso, político, não roubou, não matou não, está preso político e me disseram que ele estava… e eu estou precisando ir com essas duas crianças. Vocês me levam e não precisam me levar lá dentro não. É capaz de vocês serem… Eu me abaixo aqui, é só para me levar, porque eu quero ver meu marido, estou há quatro meses sem vê-lo, por favor, vê se você faz isso por mim”. Aí um conversou com o outro… “Olha, a gente faria com prazer, mas nós estamos com um defunto aqui dentro. Nós vamos lá para levar esse defunto, ele morreu aqui, em uma cidade perto. Fomos buscar e nós estamos indo para lá, nós entramos aqui, porque está faltando… para passar com o defunto aqui… porque para passar com o defunto aqui tem que ter um papel, nós vamos partir daqui…”. “Ai, mas o senhor me leva assim mesmo”. “Mas tem um defunto aqui”. “Ah, meu filho… Cobre aí, compro papel, jornal, vocês botam lá”. “Eu tenho um saco lá, a senhora quer? Então vamos. São só umas duas horas daqui até lá”. Eu entrei e os meninos perguntaram: “Mãe, o que é isso?”. “Ah, isso são uns produtos que ninguém pode mexer. Vamos quietos aqui dentro”. Botei as crianças na frente… Não parece um negócio de Faustão? “Mãe, o que é aquilo lá?. São as coisas do homem”. E fomos assim, olhando para frente. Rezei logo para o homem, para a alma da pessoa que morreu, rezei muito. “O senhor dá licença, mas o negócio é de urgência aqui”, e fui assim. Saltei lá, ele nos deixou na estrada, nós fomos a pé. “Agora a senhora segue direto. Nós vamos ficar um pouco aqui, nós vamos entrar depois da senhora, para não dar confusão com eles”. Aí, eu fui a pé e chegando lá eu disse: “Eu sou esposa de uma pessoa que disseram que estaria presa aqui”.
Fernanda: Isso foi na Base Aérea de Lagoa Santa?
Marita: Base Aérea de Lagoa Santa. Onde tinha sido… O negócio lá foi pesado, viu? Depois de uma hora, aquela espera, os meninos com fome, eu não tinha nada o que comer, não tinha levado nada, tinha umas balas. Eu estava nervosa, porque sou muito previdente, eu jamais sairia assim. Eu me lembro de que eles estavam com fome. Depois de muito tempo, me disseram assim: “A senhora vai ver seu marido”. Eu respondi: “Quer dizer que ele está aqui?”. Fiquei alegre, né? Aí, me levaram, menina, mas eu não o conheci, o homem estava num abatimento… Ele já tinha feito… Quando casou tinha feito operação de vesícula, então tinha coisa que ele nem podia comer, sabe? Estava num abatimento, chorando o tempo todo! Abraçou os meninos e chorava, chorava, chorava. Eu não entendendo nada que estava havendo, e eu perguntava a ele, mas ele chorava, chorava! Mas foi emoção. Chorava muito. Daqui a pouco veio uma notícia: “Acabou a hora, a senhora vai ter que ir embora”. Aí, eu disse: “Mas meu Deus! Eu cheguei agora, nem pude conversar com ele, porque ele está abraçado com as crianças”. “Mas é porque a senhora vai perder o último ônibus que tem daqui para Belo Horizonte”. Então, eu fiquei com medo, tinha o ônibus para Belo Horizonte. Aí, esse rapaz disse assim: “Eu vou mandar o carro levar a senhora, lá na rodoviária, porque o aeroporto fica meio longe”. Ele me levou, era um Tenente. “Vou mandar levar a senhora lá na rodoviária”. Eles viram a minha situação. Eu me despedi dele, não conversei, não fiquei sabendo, mais ou menos, de nada. “Cuida dos meus filhos!”. Era a única coisa que ele pedia. “Cuida dos meus filhos!”. Estavam mais do que cuidados, ele devia estar muito satisfeito, porque eu cuidei deles até demais, graças a Deus. Pois bem, quase não conversei, mas já vim satisfeita, vi que estava vivo. Ninguém sabia se estava vivo ou não. “Você sabe para onde é que vai?”. “Não, eles não falam nada”. Isso ele falou comigo, que não sabia de nada. Mas eu voltei, cheguei a Juiz de Fora. Graças a Deus! Ainda fui rezar, rezar, porque ele estava vivo e tal… Estava magro, mas ninguém ia estar gordo ali dentro, estava magro, o homem estava abatido e tudo, mas estava vivo. Bom, daí para cá… Eu fui para… Como é que chama o lugar? É perto de Caparaó, fui para Caparaó, porque disseram que ele estava lá perto de Caparaó, fui para lá, minha filha, perto de Carangola, para lá de Carangola um pouco. Não estava, cheguei lá não tinha nada. “Não, nunca esteve e não está aqui!”. Muita gente dizia isso, mas não era por maldade não. Então, essa luta ficou assim, durante quatro meses. Depois de quatro meses passou uma lei dizendo que não poderia ficar preso por mais de quatro meses, teria que ser solto. “Ai meu Deus do céu! Então é o caso do meu marido!”. Foi mandado para o R.I. Aqui era R.I, agora eu não sei, ali perto do hospital militar, como é que chama aquilo? Agora eu não sei como é que chama.
Antônio Henrique: 10º B. I.
Marita: É perto do Hospital Militar, lá em cima, e aqui embaixo… O 10 ° B.I. Ficou preso, ali ele ficou mais um mês, mas a gente podia ir ver. Então, todo domingo a gente ia, levava comida para ele, ali já foi mais assim… Nós achávamos que já estava perto de sair, estava correndo o processo, sabia que estava correndo esse processo. Aí, ele saiu, foi para casa, mas eu vi que meu marido não era mais meu marido. Ficou aqui em Juiz de Fora, aluguei uma casa, na Rua Osvaldo Aranha, essa aqui em cima, onde tem aquele bar… Acho que é a Osvaldo Aranha… É aquela rua que fica perto da Rua Santo Antônio, então é Osvaldo Aranha. Aluguei e comecei a saber de tudo. O Peralva também tinha sido preso, hoje é um reitor lá da grande universidade. Aliás, tinha muita vontade de conversar com o Peralva, ele foi um herói, muito meu amigo. E esse pessoal todo que está no jornal… A gente começou a se contatar e tudo. Depois abriram um inquérito militar, de 15 em 15 dias ele tinha que ir para aqui para acolá, e a gente sem dinheiro. Apareceu, então, o Doutor Modesto da Silveira, o maior advogado dessa crise, lá do Rio, que estava à nossa disposição, mas ele não cobrou nada, só que a gente pagasse os custos das coisas, porque tudo isso precisa de custo, até para levantar tem custo. Ele ficou nos atendendo e o homem, quando não estava no hospital, ia com ele, quando estava no hospital, não ia. Ele dizia: “Estou indo sozinho por que ele está no hospital”. Aqui no hospital. Aí eu me mudei para Petrópolis, ele não queria mais ficar aqui, eu tinha um tio em Petrópolis, que me levou para lá, arranjou casa para mim e me levou para lá. Meu tio, irmão da minha mãe. Meus primos deram muita atenção a ele e tudo. Foi uma época melhor. Embora, o Dr. Modesto da Silveira, que era do Rio… Eu falei com ele agora, ele está vivo, está sem andar também, mas está vivo, e todo mundo que sofreu sabe quem é o doutor Modesto da Silveira, um espetáculo de homem. Ele disse assim: “Olha, é um caso muito sério, você está há cinco anos, respondendo isso”. Durou cinco anos e às vezes a gente tinha que ir lá, às vezes tinha que ir ali, aquela coisa toda, ficou nessa pendência. Depois veio o Dr. Simeão de Faria. Eu tenho ódio desse homem! Ele era o promotor aqui em Juiz de Fora, seria aqui. O Dr. Modesto da Silveira disse: “Você não vai ao julgamento, porque pela advocacia você não tem nada que possa te obrigar, como nós não estamos na advocacia, estamos num período de exceção, você pode ser preso de novo, mas você não vai ser preso porque você não aguenta. Você vai ficar na minha casa, e deixa uma pessoa assistindo ao julgamento, essa pessoa avisa se você for condenado. Aqui tá a passagem para você ir para o Chile”. Nós íamos para o Chile, eu ele e meus filhos. Deixei, em casa, a minha irmã com meus filhos, que eram pequenininhos, lá em Petrópolis. Eu fiquei de noite, rezando, debaixo do Cristo, ele mora naquela rua bem debaixo do Cristo. Eu rezando, rezando, rezando… Quando foi quatro e meia da manhã… O negócio durou dois dias, quando foi quatro e meia da manhã, dona Vanessa, me ligou dizendo: “Marita, foi absolvido por unanimidade”. Não acharam nada, nada vezes nada. Não é uma injustiça, gente? Suposição… A gente quando tem a desconfiança de uma pessoa, até pode prender, para ver se apura, mas tem que ser apurado logo, ainda mais um exército que toma conta desse país, gente. Então quer dizer que se entrar um alemão aqui querendo matar, querendo acontecer… Não vai acontecer nada. Pois já faziam isso com ele…
Antônio Henrique: Dona Marita, logo depois que ele foi preso a senhora falou que mandaram desocupar a casa daí um tempo… A residência dos Correios, não é? Da diretoria dos Correios.
Marita: É, tinha 24 horas para sair.
Antônio Henrique: A senhora foi demitida também?
Marita: Não, eu não.
Antônio Henrique: Continuou recebendo, trabalhando…
Marita: Continuei a trabalhar, continuei trabalhando.
Fernanda: Ele perdeu o cargo nesse período…
Marita: Perdeu o cargo de…
Fernanda: … de diretor.
Marita: Não, de telegrafista, porque ele foi concursado, concurso só se roubar ou se matar, eu também só se roubasse ou se matasse.
Fernanda: Mas ele parou de receber salário nesse período?
Marita: Mas ele não recebeu nem o dele, depois da Revolução. Como eles diziam na época, comunista não precisa receber dinheiro, já recebe da Rússia… Recebe de Cuba, não era da Rússia que eles falavam, era de Cuba, que estava recebendo dinheiro de Cuba. Já pensou?!
Antônio Henrique: Então na verdade ele foi exonerado?
Marita: Não foi exonerado, não podia, porque ele era concursado. Então ficou, agora, todo mundo…
Fernanda: Ficou suspenso, não é? Sem trabalhar e sem receber.
Marita: Ficou… sem trabalhar e sem receber. Depois quando ele voltou… Ele passou… Ele ainda estava bem, quando ele voltou, depois de quatro meses. Voltou lá em casa, passou uns diazinhos e disse: “Vou lá me apresentar porque eu tenho que trabalhar”. Ele estava muito doente, ficou um dia trabalhando com o que era dele, telégrafo, não como diretor. Mas ele passou muito mal, foi para casa passando mal, eu levei para os Servidores do Estado, de novo. Pagamento que era bom não vinha, tinha que vir para mim e para ele, para mim veio, para ele não veio. Todo mundo dizia: “Vamos entrar com processo”. “Entrar com processo?! Vão levar meu marido de novo, não quero não, não vamos entrar, eles vão pagar quando bem quiserem”. Eu tinha medo que levasse, e levava mesmo, se reclamasse; não podia reclamar nada, levava mesmo, então ele ficou sem receber. Aí eu comecei… Naquela época, estava na crista da moda, estava no dernier cri, como diz o francês. Eu estava fazendo roupas pintadas, roupas de cama, roupas de vestir. Minha filha, me envolvi com isso e ganhei muito dinheiro. Essa moça que eu te falei, a Deise, ela tem roupa até hoje. Roupa de cama… Pintura de cortinas… Botava aquilo no chão e fazia de noite, tinha dois meninos pequenos e para você fazer isso requer uma parafernália de tinta. Como eu ia fazer com duas crianças pequenas? Elas iam me amolar. Botava, às oito e meia, todo mundo para dormir. Eu fazia de oito e meia até às três da manhã, depois eu dormia de três até sete e meia. Porque eu trabalhava de tarde, de manhã eu fazia comida, de tarde eu ia trabalhar e olhar meu marido. Não era mais meu marido, mas estava casada com ele, tinha que ficar.
Antônio Henrique: Os médicos diziam o quê?
Marita: Dizia que era transtorno… Ele morreu com doença nervosa. Eu até li… Trago pra vocês lerem. Mas era doença nervosa, não tinha uma coisa definida, mas ele não estava sossegando mais. Diz o doutor, o médico que atendeu e que perguntou se ele tinha isso. Ele disse assim: “Dona Marita, ele disse à senhora que sofreu tortura?”. “Não, nunca me falou”. E jamais falaria, ele era orgulhoso demais. E ele disse assim: “Eles costumam dar muito choque, viu dona Marita, e choque não deixa marca. Mexeu com o nervo dele, mexeu com tudo, com as funções dele… Todas ficaram assim, submetidas, isso aí foi choque”.
Antônio Henrique: Mas a evolução do quadro dele…
Marita: Foi pior, foi até pior.
Antônio Henrique: Depois que ele voltou, os médicos diziam que era só questão de fundo emocional, de fundo nervoso.
Marita: Mexeu com toda…
Antônio Henrique: … a estrutura.
Marita: Mexeu com toda a parte nervosa dele. Pois é, ele era um homem novo, perdeu tudo, perdeu tudo. Virou meu irmão.
Fernanda: Quantos anos ele tinha quando faleceu?
Marita: Quando ele faleceu tinha 42 anos… 42 anos.
Antônio Henrique: A senhora tem ainda a documentação de hospital…
Marita: Tem, tem especialmente o último, o último eu tenho. Os outros do servidor… Mas isso é fácil, o servidor não bota fora não, servidor de estado não. Agora, o último que ele frequentou tinha médico particular e eu não peguei muito… Mas eles estão vivos, eu posso pedir. Não peguei muito papel, ele tinha aquelas… Eu levava lá, tinha aquelas conversas… Tomava muito remédio, que eu comprava. Mas esse ponto não.
Fernanda: Ele ia a psiquiatra?
Marita: Ia, morreu numa casa de psiquiatria em Juiz de Fora, na Santa Mônica, isso eu tenho tudo resguardado. Morreu… Ele ficou lá em casa e chegou um dia que ele resolveu tomar todos os remédios, todos os remédios… Pelo amor de Deus! Eu não tinha forças, porque mesmo ele sendo magro, tem mais força que a gente, é homem, né? Eu tinha uma menina que me ajudava, ela se abraçou com ele e disse: “O senhor não vai tomar isso, porque eu não vou deixar”. Ela era forte, uma moça forte, se abraçou com ele: “O senhor não vai tomar, porque eu não vou deixar”. Nesse dia ele caiu no chão, foi horrível, foi horrível. Então, eu chamei o médico que cuidava dele, o médico foi lá em casa e disse: “Dona Marita, eu tenho que internar”. Eu não queria internar, mesmo assim… Tinha dias que eu levava para o hospital três vezes, porque ele dizia: “Eu quero ir para o hospital, porque aqui não está dando certo!”. Eu levava para o hospital, chegava ao hospital: “Eu quero ir para casa que aqui tá…”. Sabe essa coisa que fica… Você sabe o que é o inferno? Foi um inferno. Eu trazia para casa porque ele queria… Levava para o pronto socorro de Petrópolis. Deve estar tudo anotado lá, todo mundo viu, teve muita gente que morreu, mas tem muita gente viva… Bom, quando chegou nesse dia ele estava tomando todos os remédios, a garota se abraçando, e o médico disse assim: “Olha, eu tenho que levar dona Marita, ele vai ter que ficar internado, porque se não ele não vai aguentar, vai ter que ficar internado uns meses lá”. Ele já tinha ficado internado outros meses também, lá no Servidores. Eu tive até problemas no pescoço, porque na hora de fechar, para a visita ir embora, eu não ia, eu ficava lá no quarto esperando, porque o quarto dele dava para a rua. Eu ficava lá e de tanto olhar para cima eu fiquei um tempo precisando me tratar, porque eu estava toda doendo. Ficou muito tempo no Hospital dos Servidores, aí morreu. Eu tenho tudo documentado. O Santa Mônica está lá até hoje, eu tenho os papéis todos da época; a data, o dia que ele morreu e quando ele… Ele morreu de noite e foram lá me avisar, quando eu voltei. Ele foi de pijama, porque ele estava… Ele foi de pijama para lá, o pijama estava meio sujo de sangue, não foi que batessem nele não, é que ele caiu, ele vivia caindo, quantas vezes teve sangue comigo também. Ele tinha aquelas convulsões horrorosas e gritava que Deus me livre. A vizinhança está toda lá, teve muita gente que viu.
Fernanda: Antes de ser preso ele tinha convulsão, ele tinha…
Marita: Convulsões horríveis.
Antônio Henrique: Antes?
Fernanda: Antes de ser preso?
Marita: Nunca! Mas nunca…
Fernanda: Tinha algum problema psiquiátrico?
Marita: A única convulsão que ele tinha era ciúmes, tinha muito ciúmes de mim. Eram ciúmes e trabalho. Ele trabalhava muito direito, tinha muita… O negócio dele era qualquer motivo: “Vamos passear lá, tem música Zizi, vamos embora Zizi”. Ele me chamava de Zizi. Eu também gostava da história, essas escolas… Tudo que nós andávamos… Todo mundo conhecia: “Ih, chegou o cantador, chegou o casal que canta”. Era tudo assim, era bacana! Nós vivíamos uma vida muito boa, por isso que não dava para entender.
Fernanda: Hoje, dona Marita, se a senhora puder avaliar agora, depois de tanto tempo… A senhora acha que o senhor Mizael foi preso por quê?
Marita: Bom, como eu te falei, num primeiro momento… Eu tenho certeza… Por que é que ele foi? Porque achavam que ele queria contar que estavam formando tropas aqui, só pode ter sido isso, né? Só pode ter sido isso.
Fernanda: E a senhora imaginava ou ele imaginava esse preparo das tropas? A senhora em algum momento imaginava que o golpe… Que as tropas partiriam de Juiz de Fora?
Marita: Nunca, nunca pensei. Nem que houvesse golpe eu acreditava. Aliás, eu sou muito… Eu não prestava a atenção em política, nem nada, mas eu assisti… Vocês nem vão saber disso, todo mundo aqui é novo. Dia 13 de março, antes da Revolução, houve um baita de um comício. Estava lá, o Brizola, não sei o quê… Engraçado, o Jango nunca levou a Maria Helena, Maria Helena não, era Maria… Como é que ela chamava? Esqueci o nome da mulher, mas eu conheci muito ela… Nunca levou a mulher, era muito mais nova do que ele e tudo. Ele era bonito, bom e bobo, achava o Jango bom, bonito e bobo, porque tinha muita coisa de bobagem também… E assim, como a gente vê o que está passando aí, como a gente vê no futebol… “Ah, a Alemanha foi melhor do que eu mesmo”. Também, eu não era boba, não era idiota, né? E assistia. Eu achei engraçado, a Maria Tereza nunca tinha ido, porque ele levou a mulher lá? Engraçado… Aí, eu vi o Brizola, eu gostava do Brizola, mas o Brizola incentivando os sargentos a se rebelarem?! Então, eu virei e disse assim: “Isso aí vai dar Revolução, gente! Vocês estão pensando o quê?”. E muita gente dizia: “Que Revolução? Nós estamos em época de Revolução?”. “Se fizer uma revolução, fulano para o Brasil”. Para nada… Com o exército… Parou nada… Isso eu lembro que falei, porque era um motivo, toda hora falava. Porque houve um plebiscito, o Jango não era mais o presidente, foi presidente de outro tempo, que agora eu não me lembro.
Antônio Henrique: 1º Ministro.
Fernanda: Parlamentarismo, não é?
Marita: Eu não votei nisso. Votei pra ele, mas com esse espírito que eu tenho, se você é daqui, tem que ser daqui…
Fernanda: Federalismo.
Marita: Entendeu? De ser realidade, não votei nisso. Foi aí que o Miguel Arraes veio aqui para Juiz de Fora, fez um baita de um comício e acabou indo lá em casa, tomou lanche com a gente, mas espera lá… Ele tomou sim… O Jango não foi porque não deu tempo, porque nós chamamos também, a gente era autoridade, a gente podia chamar, não é? E tinha muita coisa gostosa, ele perdeu coisa muito boa.
Antônio Henrique: Isso foi dia… Esse comício…
Fernanda: Foi alguns dias antes, não é? Foi março.
Marita: Mas não foi comício não… Ah, esse comício eu vi pela televisão.
Antônio Henrique: Não, mas digo a…
Fernanda: Mas, o do Arraes, em Juiz de Fora, foi no cinema… Foi no centro da cidade que fecharam…
Antônio Henrique: Miguel Arraes, Jango…
Marita: O Jango veio para inaugurar a coisa…
Fernanda: O aeroporto.
Marita: Eu fui lá, eu fui à inauguração junto com… Todo mundo foi, assim como foi o magnífico reitor, como foi…
Fernanda: Mas a participação do Arraes foi num evento, não é?
Marita: Foi só para fazer aquele negócio do plebiscito. Ele participou dizendo que todo mundo tinha que votar, se era não ou sim. Já não lembro mais, só sei que eu votei a favor de que o Jango voltasse a ser o que era, e ele voltou a ser presidente mesmo.
Antônio Henrique: E o Miguel Arraes veio para fazer uma divulgação política, e foi na…
Marita: Não foi para fazer, foi para ver todo mundo e a gente conhecia… Como eu conheço essa gente toda. Agora, eu fiquei sabendo que esse homem, lá do Rio de Janeiro, é neto do Miguel Arraes. Fiquei sabendo anteontem, porque são dois netos lembrando os avós, né? Um é o Aécio, que o avô dele era o Tancredo Neves e o outro, esse Eduardo [Campos], que é neto do… Você sabia? Eu não sabia não, vim saber disso agora. Ele é neto do Miguel Arraes, ele está bem escorado politicamente, deve estar bem escorado, porque o homem era da política, mas eles aprendem também, não é?… E então a gente fica sabendo das coisas.
Fernanda: Quando a senhora teve conhecimento de que o golpe havia acontecido e o Jango tinha sido destituído do poder, foi quando a senhora começou fazer a relação disso com a prisão?
Marita: Foi quando eu saí. Eu fiquei sabendo de tudo, quando o homem mandou a gente sair, porque antes…
Fernanda: Quantos dias a senhora ficou presa em casa?
Marita: Fiquei 10 dias, quando eu saí, fui para casa da senhora, que falou: “Marita houve…”. Eu não vi tropa passando aqui em Juiz de Fora, eu não vi. Por que lá em cima é muito alto e eu estava muito desesperada também. Ficava lá na parte dos fundos, no meu quarto, com os meninos, eu não ouvi nada, não tinha ninguém dentro da minha casa, nós ficamos excluídos de tudo, de tudo, entendeu? Então, eu não vi, quando eu saí, vi que ele foi preso, porque era diretor dos Correios, aí foi o tal, esse que eu te falei, o que depois foi preso também, ele é até reitor agora, o Peralva. O Peralva que veio me dizer, “Marita foi assim, foi acolá”. Ah não! Aí, foram lá para o Rio de Janeiro. Souberam, naturalmente, todo mundo sabia, foram para a nossa casa, eu tenho retratos, alguns retratos, já me pediram esses retratos, eu já dei, mas eu tenho alguns retratos, com ele sentado, eu e ele. Mas ele sentou como está aqui, com tudo no chão, tudo quebrado, tudo bagunçado, escrito na parede assim: Comunista deve morrer! Nunca pensei de ser comunista, eu não gosto… Eu gosto de coisa como nós vivemos.
Antônio Henrique: O apartamento era no Rio?
Marita: Era, era alugado. Nós éramos amigos… Meus filhos nasceram no hospital, nós fomos para lá… Aquele apartamento… Nós tínhamos um carinho danado. E como eu te falei, meu irmão foi o primeiro aluno aqui, de advocacia. E logo em seguida ele fez um concurso para ser promotor, não tinha aquele negócio de interstício, que tinha que esperar, eu não sei quanto tempo não, ele tinha menos idade do que muitos homens que estavam fazendo lá, tinham de advocacia, e passou em primeiro no concurso. Ele tirou primeiro lugar no concurso e foi lá para Aiuruoca e acabou morrendo dormindo. Meu pai abriu processo, pensando que ele tivesse sido até… Por ser promotor. Mas não, morreu dormindo mesmo, ele nasceu mal, porque era gêmeo da minha irmã, já nasceu com probleminha, nunca tivemos nada, só vimos que ele era um pouquinho vesgo. Ele nasceu de fórceps e era um pouquinho vesgo. Tinha era um rosto comprido como ninguém na família, nós estranhávamos aquilo. Um dia ele começou a ter epilepsia, morreu com epilepsia. Morreu dormindo, então meu pai botou, pensando que ele estivesse… Como ele era promotor, poderia ter condenado alguém lá e mandaram matar, mas não foi nada disso. Em Aiuruoca eles foram e eu não fui, porque eu estava de perna quebrada… Meu pai foi com a minha irmã e tudo e ficou assim. Então, meu irmão morreu, as coisas dele foram todas para lá, ele ia casar, estava noivo de uma fazendeirinha de lá, tinha tudo do bom e do melhor. Eu tinha dois quartos, naquele quarto, onde os meninos ficavam… Mas eu botei tudo no meu quarto, os meninos junto comigo, porque os quartos eram grandes. Em Santa Teresa, tudo lá é grande, deixei tudo, as coisas todas, inclusive tinha uma enciclopédia maravilhosa, toda encapada em marrom, de veludo, bordada a ouro. Mas foi tudo, roubaram tudo, tudo. As roupinhas que eu guardei dos meninos que foram feitas por mim, tudo bordadinho.
Fernanda: Entraram no apartamento da senhora que estava fechado?
Marita: O Último Hora foi lá. Esses retratos, eu tenho alguns, escrito atrás: “O Última Hora revistando casa assaltada pelo Exército”. Foi o exército, não foi polícia não, foi o exército, infelizmente não foi polícia não.
Antônio Henrique: Ele foi preso pelo exército mesmo, um oficial e soldados, não é?
Marita: E só ficou uma coisa de exército lá.
Fernanda: A senhora conheceu ou teve conhecimento depois, de algum nome desses oficias? Desses oficiais…
Marita: Não.
Fernanda: … servidores do exército que entraram na casa da senhora?
Marita: Só sei que o Guedes foi o pior de todos. O Mourão foi mais acomodado. O Guedes foi bem atroz. E o pior é que o meu filho, esse que é biólogo, passou, formou com 17 anos, estava estudando, resolveu ir para o banco, sabe que banco foi? O banco do… Como é que se chamava o homem? Magalhães Pinto… Nacional, que depois acabou, porque estava tudo irregular. O Banco Nacional acabou e meu filho trabalhava nele, mas trabalhou e saiu logo, ficou lá uns meses. Mas eu digo, como é que são as coisas, o homem fez aquilo com o pai e ele foi trabalhar… Não sabia, nem eu sabia, ele quis trabalhar, estudava, mas quis trabalhar. Trabalhou um ano ou dois lá.
Antônio Henrique: Mas o que a senhora diz do Magalhães Pinto?
Marita: O Magalhães Pinto era mais acessível à família, o outro era uma peste… Eu falei com ele: “Eu vou rogar uma praga para o senhor ter uma morte muito ruim”. Eu era muito atrevida, também…
Fernanda: Isso é o quê? Guedes?
Marita: Não, eu falei com o Guedes. Aí surgiu a ideia de que comunista era eu. “Marido dela era muito calmo, muito sossegado”.
Fernanda: Onde que a senhora falou isso com ele? Qual a oportunidade?
Marita: Falei lá em Belo Horizonte, quando eu não achei meu marido e ele estava lá, em um daqueles quartéis que eu fui, no quartel principal de lá, ele estava lá.
Antônio Henrique: A senhora procurou o Magalhães Pinto?
Marita: Não, nunca mais. Quando meu filho trabalhava no banco eu até perguntei: “Se algum dia você souber que ele vai lá, fala que eu vou lá”. Eu não fui não, só estou dizendo isso aqui de passagem, realmente eu achava ele mais assim… Mas não era muito não. O Guedes era tipo Geisel, que de todos aqueles lá, acho que foi o pior, não tive contato, mas eu via pelo o que ele fazia, era muito… O melhorzinho ainda foi aquele maluco do Figueiredo, né? Mas os outros eram mais pestes, Deus que me perdoe! De hoje em diante não acontece… Já pensou? Ditadura é horrível, pior que ditadura, aquilo. Passava um AI, não podia fazer nada, não podia cantar, não podia fazer nada, aquelas músicas todas que eles fizeram aí, foi de revolta mesmo. Até os artistas! Não foram todos embora? Esses artistas mais velhos foram tudo embora daqui, estavam sendo perseguidos. Aquele Vandré… Aquela gente toda. Eles faziam umas músicas tão bonitas, que realmente eles deviam ficar morrendo de ódio. Mudava a música, não podia passar… Muita peça passou depois que eles foram embora… Não podia passar. Isso eu acompanho até hoje, era muito duro demais o negócio, né?
Antônio Henrique: Então a senhora não… Até hoje a senhora não tem nenhuma… Nenhum apontamento de que o envolvimento do marido da senhora, em absolutamente…
Marita: Nem ele! Nem eu nem ele. Foi absolvido por unanimidade, é que não tinha uma coisa de nada. Ah, sim… O que esse moço mandou pra mim foi o seguinte… Veja como ele era. O João Goulart teve lá, ele mandou fazer bandeirolas dizendo: Seja bem-vindo presidente! Isso é ridículo. Ah, depois disseram assim: “Eles telefonavam muito de Juiz de Fora para o Rio, para a família Cotrim”. Família Cotrim… Porque a minha irmã era solteira e tinha uma velhinha que era mãe do Cotrim, bem velhinha, mas era uma pessoa maravilhosa. Essas velhinhas que a gente nunca mais esquece… O olhinho, um de vidro e o outro azul, lindo, o de vidro era pintado igual ao azul, era uma pessoa velhinha mesmo, cabecinha branca. Minha irmã foi ficar com ela, então a gente ligava muito, para saber da minha irmã e saber deles, porque a gente gostava deles. Ele frequentava muito com essa gente. O que mais… Bom, fez bandeirolas, até para o Arraes, falaram… Fez bandeirolas para dizer: “Salve o presidente”. Todo mundo fazia isso, vinha um presidente tem que fazer uma coisa dessas, ainda mais na nossa região. Então tá… Aliás, eu particularmente gostava do Jango, achava o Jango bacana… Bom, bonito e bobo. Continuo dizendo três B, para mim. Era bobo também, fez muita coisa de bobagem, inclusive na família dele, ele fez algumas coisas de bobo com a Maria Tereza que foi uma heroína. Pois bem, mas isso não tem nada a ver com a Revolução. Agora, achava ele muito bonito, e bom, um homem bom, sossegado, tranquilo… Agora até hoje eu fiquei sem saber, não soube o que houve, vim saber que estava havendo a Revolução, quando eu fui para a casa de dona Vanir, tinha rádio lá…
Fernanda: Mas a senhora só pode sair da casa… Porque eles deram um prazo de 24 horas para a senhora deixar a casa, a senhora foi direto para a casa dessa amiga?
Marita: É.
Fernanda: Ficou morando lá por quanto tempo?
Marita: Dois meses.
Fernanda: Então quando ele saiu da prisão, a senhora já estava estabelecida em outro…
Marita: Não, eu estava na casa dela ainda, quando eu vi que ele saiu mesmo. Porque eu não queria alugar casa sem saber se ele ia sair ou não. Quando ele saiu, ainda ficou uns três ou quatro dias lá, naquele tempo era farra, tinha esse apartamento aqui, nessa rua e imediatamente alugamos. O pessoal também veio, conversou comigo, vinha muita gente lá na casa da Vanir, toda hora para conversar… A gente arranjou apartamento em um instante, porque tinha que arrumar, ele estava seriamente doente, mesmo. Dali eu fiquei… Deixei os meninos com ela e o levei para o Rio logo depois que ele saiu. Levei lá para o hospital, ficou preso no hospital algum tempo, né? Porque tinha que se tratar. E foi aí que esse doutor, cujo nome eu não vou lembrar… Isso aí já é a velhice que está me fazendo esquecer… Ele me perguntou isso, se eu tinha levado alguma coisa comigo. Então, sumiu alguma coisa, senão ele não ia fazer essa pergunta.
Antônio Henrique: Nas crises nervosas dele, a senhora se lembra de alguma coisa, que chamou a atenção, alguma coisa que ele falava…
Marita: Então, ele gritava muito, tinha convulsões horrorosas, ele gritava… Não, assim, ele estava muito fora de si, porque ele gritava muito e se debatia. Aquele sangue que veio no pijama não foi ninguém que bateu não, os meninos pensaram. “Não meus filhos, isso ele bate”, porque ele tinha convulsão, batia aqui, batia acolá, deve ter sido. Não era uma quantidade grande de sangue, estava manchado aqui no nariz, estava meio arranhado, e aqui o pijama estava bem sujo de sangue.
Antônio Henrique: Convulsão de epilepsia…
Marita: Não era, por que epilepsia dá na puberdade, ele já estava com quase 30 anos, com 30 anos já. Nunca teve, a convulsão é parecida. Uma vez eu estava no ônibus eu ia trabalhar, porque eu trabalhei no Brasil todo, lá pelo Rio. Eu botei uma pessoa dentro de casa e fui convidada para ganhar o Brasil todo, fazendo… Eu fazia palestras pelo Brasil todo, sobre cosmetologia. Foi da firma de cosméticos a qual eu pertenço até hoje…
Fernanda: O senhor Misael já tinha saído da prisão…
Marita: Ele já tinha morrido, enquanto ele foi vivo eu não saí para trabalhar não, depois que eu fui sair. Eu vi, meu Deus, que meus filhos estavam crescendo, eles estavam precisando de escola, precisando de tudo, então eu tinha que trabalhar. Me ofereceram para fazer palestras pelo Brasil todo e eu fui. Um dia eu estava viajando… Eu viajava de avião, o Brasil não tem nada que eu não conheça, viu? Deixei amigo. Botei 37 distribuições no país, o pessoal todo sabe disso e eu tenho tudo documentado. Pois bem, aí, que eu resolvi montar uma firma, porque meu filho já estava com 17 anos e não tinha nada, peguei, montei uma firma para mim, uma distribuidora. As que eu botei lá, eu fiz para mim. Comprei o direito de ser distribuidora, paguei, comprei o estoque, aluguei uma casa, aqui no São Mateus e fiz a Unidade Estética Marita. Tinha tudo, cabelo, unha… Disso eu entendo tudo, para dar e vender, e botei meu filho como meu sócio. Porque é que eu não botei o outro? Porque ele precisava de uma coisa na vida, estava solto. Assim, eu podia morrer, não estava pensando em morrer porque eu era nova, mas você sabe que todo mundo pode morrer… Eu andava muito de avião, feito uma doida, eu andei seis anos de avião, para cima e para baixo, para cima e para baixo, deixei uma pessoa em casa, e eu viajava montando as firmas para ela lá. Aí, depois quando eu acabei de montar isso, ela disse assim: “Monta uma firma para você”, e montei em Juiz de Fora, montei aqui, era mais perto do Rio, porque eu sou do Rio. As coisas foram se dando, botei uma pessoa pra tomar conta, mas depois eu vi a moça que era contadora da firma, os dois tinham… Meu filho tinha 17, a menina tinha 18, quando eu vi os dois estavam juntos. A menina era do Piauí, tinha vindo para ficar na casa da tia, cujo marido estava doido para se livrar daquela ”sobrinhada” toda, vieram quatro moças de lá do Piauí. Ele devia estar cansado, era um bom advogado, por sinal. Então, esse advogado chegou para mim e disse: “Dona Marita, a minha sobrinha está lá na sua casa”. “Mas eu estou pagando para ela ficar lá, porque eu vou viajar e preciso de uma pessoa, não só fica minha empregada, mas também uma pessoa que tenha instrução, que possa lidar com ele…”. Ele até estava tomando um remédio, que tava acalmando ele um pouco… Ele também deu muito trabalho, meu filho, mas aí veio o tio dela e falou comigo: “Mas aqueles dois estão vivendo juntos, não é? estão dormindo juntos, estão… A senhora não acha que eles devem casar?”. Para mim, era para se livrar. Casou, a dona Marita está ganhando bem, fica com ela lá. “Olha, eu não tenho tempo de arranjar casamento para ninguém, não sei fazer e não sei arrumar, o senhor é advogado, se o senhor quiser arrumar, tá às ordens”. Realmente estavam vivendo juntos, tinham mais é que casar mesmo. E casou, ele casou, ficaram três meses casados, teve que fazer… Ela foi embora para a terra dela, não era fácil ficar com ele também não, ainda mais naquele tempo, agora é, mas naquele tempo não era não. Ficou casado por três meses. Eles fizeram o casamento e eu fui convidada, estava chegando do Piauí, nesse dia, estava chegando do Piauí. E fui para lá, assisti ao casamento e tudo. Ele deu uma festinha, aí ficaram morando juntos. Em três meses ela foi embora. Ficou a revelia, mandei chamar, fez o desquite… Era divórcio a revelia, ele é divorciado agora. Quer dizer, um negócio que parece realmente… Casou, casou nada, foi esse negócio que houve, o homem queria se ver um pouco livre, não é?… É isso que o TCU… Eu expliquei tudo isso… Aconteceu, não deu, o rapaz é normal.
Antônio Henrique: Dona Marita, a senhora, então, acha que os filhos da senhora tiveram algum problema, sofreram uma consequência em relação a…
Marita: Somente… Somente.
Antônio Henrique: E esses ataques que…
Marita: Do meu marido… Foram vistos pelas crianças.
Antônio Henrique: Sim, e em nenhum momento ele era agressivo?
Marita: Não.
Antônio Henrique: Não… O tipo de coisa que falava… Alguma coisa remetia…
Fernanda: Ao nome de alguém, alguma circunstância de agressão, de prisão…
Marita: Ele tinha medo, mas ele não era agressivo.
Antônio Henrique: Que tipo de medo? Como se apresentavam esses ataques?
Marita: Ele não queria… “Não, não chama não, não deixa ninguém vir… não deixa isso…”. Aquela coisa… O que nunca houve, lá em casa era cheio de gente, toda hora.
Antônio Henrique: Mas isso para nós é importante, o quê… Que tipo de ataque era, o que é que ele falava?
Marita: Ele gritava muito…
Antônio Henrique: Se ele gritava, se era uma coisa inteligível…
Marita: … e começava… Espumava e ficava naquele negócio durante uma hora ou uma hora e meia. Tinha dia que era o dia inteiro, um, dois, três e quatro. Uma vez ele teve sete vezes e tinha que levar para o consultório. Eu já sabia o que tinha que fazer.
Fernanda: Então a senhora garante que ele nunca apresentou…
Antônio Henrique: Isso era um ataque epiléptico, não era? Espumar…
Marita: Não, não era aquela espuma, era porque ele apertava a boca, pensei que fosse, porque todo ataque epiléptico tem muita espuma, mas não teve epilepsia.
Antônio Henrique: Bater… Ele batia com a cabeça?
Marita: Batia, ele tinha convulsões, assim totalmente estabelecido… Por isso que eles acham que foi choque, que choque acaba com seu sistema…
Antônio Henrique: E nada do que ele falava, quando em crise…
Marita: Nunca falou nada de mal, falava coisa que…
Antônio Henrique: Não, qualquer coisa… Acho interessante, seja lá o que for que ele dizia.
Marita: Ele xingava, ia reclamando…
Antônio Henrique: O que ele dizia era importante.
Marita: Eu sei que era, mas não tinha coisa com coisa, sabe? Uma vez ele dizia… Ele xingava muito… “Esses gorilas. Essa gorilada que me pegou”. Esse negócio ele falava, mas isso era expressão da época, chamava todo militar de gorila.
Antônio Henrique: Isso.
Marita: Um dia estava todo mundo lá em casa e os meninos tinham um miquinho, eu sempre gostei de bicho e os meus filhos tinham um miquinho. Aí, eu vi… Gritei: “Meu filho, vem cá, depressa! Ô Misael, o mico entrou dentro da televisão!”. Aí, ele disse assim: “Mais um gorila, menos um”. Nunca me esqueci disso. Já tem tanto gorila na televisão, porque aparecia toda hora militar. Ele ainda tava com essa cabeça… Já tinha passado a Revolução, “Mais um gorila menos outro, já tem tanto gorila”. Gorila eram os militares que toda hora apareciam na televisão e ele tinha ódio deles, não queria nem escutar, falar, mas podia dizer: “Naquele dia que vocês me bateram”. Não, isso não falava não. Não posso falar porque nunca houve. Ele nunca me disse, eu perguntei, mas nunca me disse. Agora o médico acha assim: “Por isso eu acho dona Marita, que deve ter sido choque, porque eles usaram muito choque em muita gente”. Até eu nem sabia disso, eu pensava que era só bater, botar a pessoa lá dentro da água, mas teve muito choque, deve ter sido choque, porque a parte neurológica foi toda afetada.
Fernanda: Dona Marita, a última pergunta que eu queria fazer para a senhora é se, quando ele foi preso, a senhora tinha alguma suspeita ou alguém teria dito, algum lugar, onde ele possa ter ficado por algumas horas ou alguns dias, aqui em Juiz de Fora, antes de ser levado para qualquer outro lugar em Lagoa Santa?
Marita: Não sei. Isso eu não sei…
Fernanda: Nenhuma suspeita de uma prisão, algum lugar do exército…
Marita: Não sei, eu fiquei um bom tempo… Fiquei 10 dias presa, lá em casa. Não saía, não tinha ninguém para falar comigo, não tinha luz, não tinha televisão, não tinha nada. Nós dormimos no escuro, enquanto isso. Eu tinha vela, acendia vela, mas nós dormimos no escuro. Os meninos pensaram que era aniversário, com vela acesa. Foi horrível, o negócio foi horrível, foi uma coisa assim, dantesca sabe? Não sei como que… E sem saber onde ele estava gente! Mas eles não foram mandados embora logo não, eles ficaram aqui em Juiz de Fora por muito tempo… Eles me disseram isso, acho que ainda… Com quem depois eu conversei… Eles ficaram um tempo aqui em Juiz de Fora, depois é que foram para Belo Horizonte. Agora, eu não sei pra onde e nem por quanto tempo.
Antônio Henrique: Então, ele foi o primeiro que teria sido preso em Juiz de Fora…
Marita: E foi mesmo.
Antônio Henrique: E alguns dias depois do golpe militar… Aí, Riani…
Marita: Foi uma porção.
Antônio Henrique: Agora, dos Correios foi só ele que a senhora…
Marita: Não, uns três que trabalhavam com ele também foram demitidos e foram julgados, teve um que foi julgado.
Antônio Henrique: Os três ocupavam cargos de direção?
Marita: É. Todos que ocupavam cargos e eram muitos. Devia ser o quê? Uns 30 talvez, porque eram muitos… Muita dependência, muita seção, todos foram demitidos, mas três… Filho de um ex-diretor… Esse foi preso, até morreu esse rapaz. Foi preso, sofreu o pão que o diabo amassou. Depois eu conversei com ele, ele me contou, mas ele… Logo que acabou o julgamento ele foi liberado também. E não teve nada. Tem o nome dele aí, se eu olhar… Depois, se eu ler eu vou me lembrar. Ele foi liberado, mas ele sofreu, esse daí sofreu, falou isso comigo, sofreu muito nas mãos deles. “Me castigaram muito!”. Assim que ele falou.
Antônio Henrique: A senhora poderia lembrar o nome…
Marita: Eu lembro, porque eu tenho esse processo. Eu me lembro dele, é filho de um que foi um grande amigo nosso, era diretor, era muito bacana. É Hélio Menezes, lembrei, o nome do rapaz, é Hélio, e o pai era Sr. Menezes, então ele é Hélio Menezes. Esse morreu logo depois…
Fernanda: O Hélio Menezes era do exército?
Marita: Ele foi preso, ele era da seção de pessoal, se eu não me engano. O Hélio Menezes foi preso e foi liberado, esse eu tenho certeza, morreu depois. Mas esse eu encontrei com ele depois, quando eu vinha a Juiz de Fora, eu não morava aqui não, ele me disse: “Marita, você fez bem de ter deixado o Misael vir”. “Não, não fui eu não, foi o doutor Mário”. Doutor… esqueci agora, mas eu sofri demais. Agora, o que exatamente ele não sabe…
Antônio Henrique: Dona Marita, tem mais alguma coisa que a senhora julga…
Marita: Não, eu só tenho agora a pedir, quero pedir se eles podem me dar uma ajuda, com esse problema do meu filho. Eu quero meu filho com a pensão do meu marido, quem sabe tem um advogado, eu pago, eu pago um advogado, que queira fazer isso… Naquele dia tiveram vários advogados, mas não era a hora de eu perguntar aquilo… Algum advogado daqui, que pudesse levar tudo ao TCU, essas provas todas, porque eu tenho prova de tudo que eu falei. Tudo, tudo.
Fernanda: A senhora não recebeu nenhuma reparação?
Marita: Não, nunca recebi.
Fernanda: Do Estado, da Comissão de Anistia, nunca teve nenhum processo de…?
Marita: Não, nada. Não é reparação financeira não, para mim não quero nada, nem quero, até faz mal o dinheiro dessa gente. Mas para os meus filhos eu preciso. E esse meu filho porque é que ele faz o concurso e não é chamado? Aí, já é desorganização do país, não tem nada a ver com a Revolução, mas quem sabe se um advogado dissesse que o menino está assim… E ele é muito calado, não fala com ninguém, só quer conversar com bicho, conversar não, porque não conversa com bicho, mas só quer ter bicho. Ele pegou o apartamento, porque eu comprei essa casa, vendi a de lá e comprei. “Você quer ficar com esse cachorro?”. Lindo, maravilhoso, um cachorro apaixonante mesmo, adoro ele… “Ah, fico!”. Ficou. Já tem dois gatos, agora está comprando galinha, porque lá tem quintal, comprou galinha. Quer dizer, ele adora, está no meio deles, mas isso não é vida. E ele quase não fala também não. Então, ele tem problema, ele toma remédio, e bastante. Propanolol. Essas coisas ele toma bastante. Ficou muito calado, não saiu à mãe, né? (risos). Nem ao pai, o pai cantava como um passarinho, o pai cantava e falava muito, o pai era muito calmo, mas cantava muito, igual a um passarinho.
Fernanda: Dona Marita, a gente queria agradecer o depoimento da senhora, falar que foi muito importante, que o que a Comissão Municipal da Verdade puder contribuir, a gente vai fazer o que for possível.
Marita: Eu queria que vocês arranjassem um advogado bom, que conhecendo essa questão, pudesse me atender porque eu quero botar meu filho com uma pensão. Uma pensão vitalícia, como eu tinha. Foi o que eu pleiteei. Foi o que eu paguei pra esse doutor Adailton, que não conseguiu. Porque não levou as provas, tem que levar… Não, vai chegar lá ninguém me conhece, ninguém sabe o que foi verdade, eu tenho provas de tudo o que eu falei. De tudo. Se alguém sabe de algum advogado, desses que está envolvido nisso, poderia me arranjar. Depois disso, faz uma matéria dizendo que o advogado, sabendo da história, pode salvar pelos menos duas pessoas que foram vítimas, muito perto, aliás, de um ato desses. Isso que eu queria. Eu queria mesmo, que vocês me arranjassem um advogado para eu pagar, não é de graça não, eu não gosto muito de pedir, eu prefiro dar a pedir, mas eu tenho que pedir isso, pedir assim, a vocês, que estão envolvidos com bons advogados, eu vi lá, até diretor da OAB, essa gente toda. Vê se vocês conseguem isso para mim, porque eu estou… Eu trabalhei feito uma maluca, feito uma doida, naquele carro, arriscando a minha vida em avião, para deixar… Meus filhos tiveram de tudo, tem casa, tem empregada, tem tudo, tudo. Agora eu vou morrer como é que fica? E só de remédio são 800,00 reais para ele ficar assim como ele está. Calmo, tranquilo… Leponex, é a última novidade, já está tomando, já está tomando isso há uns 10 anos. Melhorou. Porque era um menino que vivia avançando nos outros na rua… Esquizofrênico é assim, ele acha que você está implicando com ele e vai te dar um soco, e vocês não calculam… Eu vivia dentro de uma prisão, dentro de uma polícia, prendiam e naturalmente soltavam, botavam na… Então, é isso que eu quero. Depois disso tudo que eu passei, será que não tem ninguém no mundo que possa me dar um auxílio, se eu souber que… Por que ele sabe dirigir, ganhando isso aí, ele sabe dirigir, direitinho, a vida dele. Ele tem conta no banco, paga a empregada, é o dinheiro que eu botei lá, mas paga, ele sabe pagar, sabe fazer… Oh, gente, vai ser muito ruim depois, depois de o pai ter sofrido. Eu sei o que é isso, eu já fui ver como é que são essas casas, coisa horrível. Também é… Agora tiraram, né? Isso foi o Paulo Delgado e os doutores Mário Sérgio Ribeiro. Eles conseguiram tirar todos esses meninos, essas pessoas doentes dessas casas, porque é uma coisa horrível, é a coisa pior que existe, é pior do que o que meu marido passou. Te garanto que é. Então, é isso que eu quero fazer, senão meu filho vai passar por isso, e eu com a idade que estou. Estou assim mais ou menos, aparentemente com saúde, mas gente nessa idade que estou, posso dar um piripaque a qualquer hora. Então, eu estou nessa agonia, eu vivo numa verdadeira agonia, tal qual vivia no tempo dele, porque é filho, né? E são os dois. E o outro? Passa em todos os concursos, o raio do menino passa; é desorganização do governo mesmo, mas quem sabe o advogado pode provar. Passou, tem que ficar mesmo, tereré… Porque passa, está lá, quinto lugar, não foi lugar ruim que ele tirou não, o outro tirou em segundo lugar. Não entra, gente. Porque, hein? Ele estuda e muito para poder fazer. É isso que eu queria. O que é que vocês me aconselham a fazer?
Fernanda: Obrigada.
Antônio Henrique: Obrigado.
Notas
1 Serviço de Alimentação da Previdência Social