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Marília Salles Falci Medeiros e Rogério Medeiros

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimentos de Marília Salles Falci Medeiros e Rogério Medeiros

Entrevistados por Antônio Henrique Duarte Lacerda e Helena da Motta Salles

Juiz de Fora, 07 de novembro de 2014

Entrevistas 020 e 021

Transcrito por: Luanda Mendes Garcia

Revisão Final: Ramsés Albertoni (06/11/2016)

 

Helena: Então, nós podíamos começar… Quem que vai falar primeiro? Quem prefere falar primeiro? A gente queria que vocês se apresentassem e falassem, assim, uma rápida história de vida, como é que vocês se envolveram com a política no período? E enfim, os motivos por vocês estarem aqui…

Rogério: Anteriores ao processo.

Helena: Anteriores ao processo, a que organização vocês pertenciam? Contar pra gente essa história, né?

Rogério: Bem, para situar minha participação em alguma organização política do qual faz parte esse processo, que é a RAN, no Rio de Janeiro, é necessário situar alguns dados anteriores. Porque isso ocorreu no Rio de Janeiro, mas eu fui criado, sou de Juiz de Fora e criado em Juiz de Fora, e tinha pouco tempo de moradia no Rio de Janeiro quando aconteceu a minha participação política, lá na cidade do Rio de Janeiro. Eu já participava, politicamente, em Juiz de Fora, nos meios culturais, estudantis, da cidade, ao longo da década de 1960, né? Participava intensamente de um cineclube, participava do conhecido na cidade, o Centro de Estudos Cinematográficos, tinha um grande relacionamento com o ambiente universitário e também secundarista na cidade, através desse cineclube. E dessa teia de amizades de Juiz de Fora, eu participei do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, que era muito forte, relativamente forte em Juiz de Fora pós 1964, dentro, evidentemente, dos quadros estudantis da cidade, né? É nesse sentido cultural que eu participava, né? Então, através de críticas, comentários, artigos, ensaios, no Diário Mercantil, já extinto, no Suplemento Literário de Arte e Literatura do Diário Mercantil, que saía todos os domingos. Eu tinha um grupo de colegas, de amigos, e criamos um grande debate cultural na cidade na época que foi objeto de uma investigação da professora Christina Musse, da tese de doutorado dela no curso de comunicação da UFRJ. Então, eu conheci, nessa ocasião, eu fui entrevistado pela Christina Musse e o assunto era o grupo dos marginais, que era esse grupo de jovens estudantes, universitários, que participavam, no Diário Mercantil, de uma grande polêmica, bem jovem, evidentemente, mas politicamente engajada nos processos culturais da cidade, observando as antigas gerações não comprometidas politicamente com nosso ideário pós época de ditadura militar. Então, criamos ali, no Diário Mercantil, uma tribuna de debates ao longo de 1968, 1969, mais ou menos por aí. Então, eu tive atividades, muitas atividades naquela ocasião em Juiz de Fora, no PCB e também na vida cultural através do cineclube. Depois eu fui para o Rio de Janeiro no final de 1971, início de 1972, e fui trabalhar no Segundo Caderno, Suplemento de Cultura, de Educação e Cultura, do Jornal dos Esportes. E aí, tem que frisar, fazendo críticas de cinema que era o que eu fazia em Juiz de Fora como cineclubista, né. A linha de atividades, isso tudo registrado no Diário Mercantil e também no jornal Sete que durou durante o ano de 1970, criado pelo José Carlos Lery Guimarães, grande jornalista da cidade e o Ivanir Yasbeck, que mora hoje na cidade que é outro grande jornalista, né, programador visual do Jornal do Brasil, né, há alguns anos mora em Juiz de Fora. E eles eram os editores do jornal e me convidaram, juntamente com outros amigos, como Eugênio Malta que trabalhava no Diário Mercantil, no Suplemento, para colaborar no jornal Sete que era um semanário, está entendendo, que causou grande impacto, naquela ocasião, no jornalismo da cidade. Fazia um jornalismo diferente, digamos assim, daquela seriedade vetusta do Diário Mercantil, que era um jornalismo meio pasquim, digamos assim, o jornal Sete. Então, ali, mas ali eu fazia as minhas críticas cinematográficas de acordo com os ideários, estéticos, ideológicos da década de 1960, né. Então, aí, indo para o Rio de Janeiro e fazendo amizade com o Ivanir Yasbeck, que é um jornalista de outra geração, um pouco mais de outra geração, né, mais a frente. Ele me convidou, ele me apresentou ao Jornal dos Esportes, onde eu comecei a fazer críticas cinematográficas, né? E o José Trajano que era o editor do Jornal dos Esportes, naquela ocasião, e hoje ele é editor-chefe da ESPN Brasil, aquela cadeia, aquela emissora de tv dedicada aos esportes, a ESPN Brasil. Então, eu trabalhei, e foi nesse período, no jornal dos Esportes, em 1973, que eu estava indo para o Rio de Janeiro, está entendendo, e ingressei na Resistência Armada Nacional.

Helena: Só um instantinho. Então, você saiu do PCB? Porque você tinha dito que aqui em Juiz de Fora você se aproximou, você ingressou no PCB.

Rogério: Isso.

Helena: Aí, no Rio, você saiu do PCB e entrou nessa organização?

Rogério: Isso. Saí do PCB como muitos na época estavam saindo do PCB, né? Ingressaram em outras atividades, não estavam acreditando, não estavam… achando que o PCB estava numa linhagem muito burguesa, digamos assim, muito pacifista. Enfim, é o clima da época, está entendendo? Eu vou deixar claro que no momento eu não participei de nenhuma ação armada, embora fosse da Resistência Armada Nacional. Não participei. As minhas ações eram… e como está no processo, bem colocado pelo próprio processo que nós temos aí, as minhas ações, e da Marília também, eram ações intelectuais. Eram 34 pessoas envolvidas nesse processo, né, todas intelectuais, a maioria intelectuais que eram professores, médicos, jornalistas, estudantes universitários, que atuavam na organização. Mas tinham os chamados grupos de ação.

Helena: Entendi.

Rogério: Isso a gente pode explicar mais na frente, os grupos de ação. Os grupos de ação de imprensa, grupo de ação de informação, grupo de ação… Tenho até a listinha aqui. Grupo de ação de propaganda, o grupo de ação de imprensa, que eu trabalhei nesse grupo de ação, entrei nesse grupo de ação de imprensa, e o grupo de ação de uma revista, a Prisma, que era uma revista de nível até universitário, eram os professores universitários que dedicavam a essa revista. E tinha o GA, grupo de ação, armado, né? Ainda tinha esse grupo.

Helena: Desse grupo é que saiu a Guerrilha do Caparaó?

Rogério: Esse grupo que saiu a Guerrilha de Caparaó.

Helena: Que era dessa organização.

Rogério: Dessa organização.

Helena: Era outro braço da organização.

Rogério: Que era essa organização. Nós, inclusive, conhecíamos muito um desses, mas não sabíamos das ações. Por questões de segurança, não sabíamos absolutamente nada do que ocorria no GA armado. Nada. Nós dois. A minha função era, como está aqui no processo, era cuidar do jornal Independência ou Morte com artigos e a divulgação do jornal. Essa divulgação do jornal, um jornal precário, com as condições gráficas da época, não tinha nada de computação gráfica moderna, era precariamente feito o jornal, né, em gráficas de um dos membros da organização, doou a gráfica, né? Então, era distribuído precariamente em locais estratégicos, universidades, portas de fábricas, distribuições precárias. Era o jornal Independência ou Morte. Então, tínhamos muitos grupos, a minha atuação foi nesse campo. E não durou muito tempo. Agora, essa sua pergunta é interessante sobre o Partido Comunista Brasileiro. Então, me afastei como muitos na época se afastaram e ingressaram em outras organizações, inúmeras organizações que tinham na época dissidentes ou não, descendentes do Partido Comunista Brasileiro. O próprio PCdoB, né? Então, nós tivemos, aí, figuras legendárias da esquerda que participaram de movimentos da guerrilha que vieram do Partido Comunista Brasileiro como o Marighella, não estou lembrando aqui agora, estou lembrando particularmente do Marighella, mas tem inúmeros, grandes figuras da esquerda que saíram das fileiras do Partido Comunista Brasileiro. Então, no clima, na atmosfera política da época, assim como outros, nós nos afastamos. E como estava no Rio de Janeiro e também a minha participação era em Juiz de Fora, também houve um desvinculamento do PCB nesse sentido. Porque aqui em Juiz de Fora eu participei de diversas reuniões e de discussões das linhas, das teses do PCB. As teses que a gente estudava, lia as teses, fizemos várias reuniões. Eram reuniões, eu lembro que saía de madrugada, cinco horas da manhã, numa Kombi, ia pegando os militantes, ia nas esquinas de cada lugar. Íamos lá pro sítio, na represa, pra fazer a reunião, passávamos o dia todo lá, na reunião, depois retornávamos. Isso era feito por volta de 1967, 1968, nesse período aí, né? Então, essas teses eram discutidas na época. Então, a minha participação, na verdade, a minha participação era no meio cultural e estudantil da cidade, aquilo que eu disse há pouco. Não transcendia a esses aspectos. A ideia do partido, está entendendo? Eu era muito amigo do Zé Paulo Netto na época e nós conversávamos muito sobre isso, né? A ideia do Partido Comunista era de ocupar os postos na sociedade. Então, o nosso campo era o da cultura. Aquilo como diria a linguagem do Bourdieu hoje, dos campos, o nosso campo seria o da cultura, tá entendendo? A nossa atividade era da cultura. Então, ocupar as páginas do Diário Mercantil, era uma luta política. E fizemos isso porque nós tivemos a grande oportunidade de ter como editor de todo o jornal, o José Guimarães Vieira que era professor de história da arte da Unirio, da época, e que era casado com a filha do Renato Dias. Então, ele tinha carta branca no Diário Mercantil. A gente falava as bobagens, entre aspas, a gente podia falar à vontade, aquela coluna era livre. Ninguém mexia nas duas páginas dominicais do Diário Mercantil, porque era do Guima, está entendendo, casado com a filha do Renato. Então, só pra situar, estou falando muito de Juiz de Fora, mas pra entender lá na frente essa passagem. Aí, a gente retorna pra não demorar muito nessa questão, nessa abordagem, a Resistência Armada Nacional. Que foi essa época que eu estava no Jornal dos Esportes. E aí, acontece, então, trabalhando nesse GA, nesse grupo de ação, da imprensa, está entendendo, acontece o desbaratamento da organização, em abril de 1973. Eu lembro até a data, dia 5 de abril de 1973, nós fomos presos em casa.

Helena: Entendi. Aí, por conta da participação nessa organização, RAN…

Rogério: RAN.

Helena: E aí, você podia falar um pouco pra gente então, desse episódio da prisão, o que se passou depois?

Marília: Eu acho que esse episódio da prisão você estava no jornal, eu é quem estava em casa.

Rogério: Não, mas eu fui preso no jornal, em casa também. Eu saí do jornal, eu estava no jornal trabalhando normalmente. Chegava todas as noites, o horário do fechamento do jornal, naquela época o jornal fechava à noite, finalzinho da noite, né? A gente, o trabalho do jornalista só começava depois das três horas da tarde e depois ia até dez horas da noite. Eu cheguei em casa, na Rua Corrêa Dutra, no Flamengo, e os agentes da repressão já estavam lá. Quando eu cheguei eles já estavam dentro de casa. E a Marília já tinha sido levada.

Marília: Eu só queria fazer um adendo, no seguinte, nós fomos presos em 1973, quase final do governo Médici, que foi uma época de extremo fechamento político, onde o sistema de organização de informação era imenso, SNI, Oban, DOI-CODI, né… marinha. Eu acho que foi um momento em que muitos historiadores estão escrevendo, que foi um momento de abafamento da guerrilha urbana, entendeu?

Rogério: Foi.

Marília: Jogaram pesado.

Rogério: Muitas quedas, mortes.

Marília: Aí, o que aconteceu? As organizações foram caindo, uma tinha contato com a outra e foram caindo, assim, um castelo de cartas.

Rogério: Foi um castelo de cartas.

Marília: Quem me disse isso foi o coronel Fiuza que era o comandante do 1º Exército. Quando eu saí ele botou um quadro de todas as organizações, ele me deu uma aula, “Esse está assim, esse caiu assim”. Tudo.

Helena: Você era da mesma organização do Rogério?

Marília: Era, nós estávamos casados já. Estávamos casados. Aí, outra coisa, só quero voltar porque é importante saber o que se passou em 1973, pra saber como caiu uma organização de cima pra baixo, entendeu? Assim, não foi um menino que caiu, um militante que caiu. Foi assim, da direção para baixo, entendeu? E foi impressionante. É uma coisa que eles tinham, uma coisa que se falou na época, que tinham ligações com a ALN e alguém da ALN caiu e conhecia a direção da RAN. Foi através da queda de uma outra organização que caiu a outra organização inteira. Então, foi uma época de muita violência, uma violência muito grande da repressão. Eles não estavam brincando não. Estavam em guerra e eles falavam com a gente “Nós estamos em guerra”. E foi uma repressão, uma devastação na esquerda em 1973. Os historiadores estão explicando isso, porque quando nós chegamos dentro dos órgãos do DOI-CODI, nossa… estava uma violência incrível lá dentro. A forma que nós fomos presos, né? Eu vou narrar primeiro, porque…

Helena: Pois é, porque primeiro você foi presa, depois ele chegou e você já tinha sido levada.

Marília: Que tem uma série de coisas que passa…

Rogério: Você tem que situar também a sua chegada no Rio de Janeiro, né? Ou não precisa?

Helena: Pode falar, assim, um pouquinho, que você estudava aqui…

Marília: Eu estudava aqui porque eu não tinha esse vínculo com o Partido Comunista nem nenhum partido. Nós tínhamos uma universidade, tinha um pouco mais de vinte e poucos anos, formei e fui lá para o Rio de Janeiro para trabalhar. E saiu todo mundo procurando emprego.

Helena: Ciências sociais, né?

Marília: Ciências sociais. Procurando emprego. E saiu num jornal, seleção de sociólogos. E um amigo me telefonou, falou “Vai se inscrever, porque fulano vai”, não sei o quê. Me inscrevi e fui chamada. Qual que era a empresa… Bemfam. Você já conhece o que é Bemfam? Sociedade do bem-estar familiar no Brasil. Foi uma das primeiras ONGs de planejamento familiar, entendeu? Ela era muito discreta, uma empresa muito discreta, e ela tinha função de planejamento familiar na qual ela propunha fazer uma educação familiar nas mulheres pobres brasileiras para ter uma paternidade consciente. E naquele período, nós estávamos em 1973, a pílula chegou na França em 1967, mas nós aqui no Brasil já tínhamos pílula, entendeu? Já tínhamos laboratórios aqui dentro. Porque a própria Tribuna da Imprensa, lá na época, foi assim que eu descobri onde que eu estava trabalhando, entendeu? Eu entrei como socióloga, com salário muito bom, tipo assim, eu deveria estar ganhando 4 mil reais, entendeu? Pra quem estava começando, é uma coisa fora do comum. Aí, o que acontece? A imprensa, através dessa matéria que saiu da Organização da Saúde do Estado do Rio de Janeiro, denunciando horrores da Bemfam… Na qual a Bemfam estava sendo financiada por órgãos, Fundação Ford, eu até escrevo aqui a IPPF era International Planned Parenthood Federation. Era a organização que financiava a Bemfam. E eu trabalhava exatamente com um dos sociólogos lá, doutor Arruda, que, aos poucos eu fui entendendo que eu estava dentro de um projeto nacional, brasileiro, que tinha umas trinta e tantas poucas nacionais, junto com o Estado brasileiro, porque as clínicas eram abertas com os hospitais-escolas ou com prefeituras. O Brasil entrava com as mulheres e o nome das instituições e eles entravam com toda a estrutura, a equipe de médicos, de assistentes sociais e, sobretudo, os anticonceptivos. Eu cuidava do Diu, que era em 1960. Tinha uma outra pessoa lá que cuidava das outras pílulas. Mas, por essa matéria que saiu na Tribuna da Imprensa, eu fiquei sabendo que aquilo era uma pesquisa internacional. Elas faziam laqueadura e, nas clínicas que eu tomava conta, Nordeste, não sei o que, as mulheres entravam, se inscreviam, tinham assistência, mas não sabiam tomar a pílula, logo engravidavam, entendeu? Ou faziam a laqueadura, uniam as trompas, meses depois voltavam chorando porque queriam ter filho e aquilo me chamou muito a atenção. Quando eu tive essa matéria, que aquilo era uma pesquisa que estavam fazendo em todos os países pobres, pós revolução cubana que foi em 1959, a questão da população passou a ser… está cheio de demógrafos escrevendo sobre isso. Nos anos 1960 foi tido para o imperialismo, a questão demográfica, como uma bomba, entendeu? Então, o negócio era diminuir a população porque o que aconteceu em Cuba, poderia acontecer aqui no Brasil. Estas empresas não eram inocentes. A bondade delas de ajudar as mulheres, paternidade consequente, consciente, educar e etc., porque por trás disso estavam os laboratórios, que as pílulas começaram nos anos 1960. Fazendo uma série de pesquisas com as mulheres brasileiras, com as pílulas. Mas eu só fui entender isso depois que alguém da RAN, que é a Ana Maria Callado, mulher do Antônio Callado, eu tive contato, aliás, primeiro com o Amadeu, que sabia que eu trabalhava na Bemfam, e a gente só conhecia três pessoas, por uma questão de segurança e de informação, eu passei a observar e elas me interrogavam sobre o que se passava lá dentro e eu comecei a passar as informações da Bemfam para sair numa revista chamada Prisma e divulgar isso no máximo possível. E eu fui aprendendo lá dentro o que era isso, entendeu? E muito surpresa. Mas foi rápido, porque as informações que foram tiradas foi em um ano. A organização caiu e eu cheguei até um certo limite da informação. É tanto que quando eu estava lá na PE, etc., surpreendentemente eles não se interessaram muito sobre a Bemfam, mas me perguntaram muito sobre o chefe lá, que era o presidente da Bemfam, ficaram curiosos os militares. Não a turma que nos torturaram, mas os militares. Porque eu passei por várias instâncias. Então, o que que aconteceu? Quando foi 1973, cai a organização de cima pra baixo e tinha, eu só conhecia as duas, e o Amadeu de Almeida Rocha, que era o chefe que conhecia todo mundo, ele era que escolhia as pessoas pra entrar, não entrar. Enfim, erro da organização, a gente conhecia ele e ele conhecia muita gente. E aí, o que que acontece? Eu estava em casa, a gente estava sabendo de muito jornal, saía prisão, não sei o que, a tensão muito forte, de muita organização caindo, muita gente morrendo, entendeu? Se pegar 1973, os jornais mostram isso. E eu me lembro perfeitamente que eu saí da Bemfam, fui pra casa, inclusive, meu irmão, que não tem absolutamente nada com isso, inclusive tem um pensamento conservador, foi me visitar esse dia, infelizmente foi me visitar esse dia. Ele morava no Rio, e estava na minha casa um dos meus companheiros da organização que eu também conhecia de longe, não sabia o que ele fazia, mas o Amadeu pediu pra ele ir lá pra nossa casa porque ele não tinha pra onde ir e, certamente, não foi o Amadeu que pediu, ele apareceu lá. O Amadeu já tinha caído, entendeu? E ele veio de ações armadas. Então, a minha prisão…

Rogério: Nós não sabíamos.

Marília: Nós não sabíamos disso. Sabia, conhecia que ele estava dentro da organização.

Helena: O Amadeu fez parte da Guerrilha do Caparaó?

Marília: Fez, e o Hermes também.

Rogério: O Hermes estava lá em casa.

Marília: Que foi nosso companheiro, que foi barbaramente torturado, os dois, entendeu?

Rogério: Na hora da sua prisão.

Marília: Mas barbaramente torturado. Na hora da prisão, eu morava na Corrêa Dutra, no Flamengo, no primeiro andar. Tinha uma varanda, uma sala e um quarto. E a casa foi invadida por milhares de policiais à paisana, todos armados, e eles entraram, esmurrando a porta, botaram o pé na porta e o Hermes pulou lá embaixo. E lá em baixo estava assim de gente. Porque eles começaram a atirar, entendeu? Chegaram inclusive a atirar. Então, minha tortura começou a surgir em casa, entendeu? Porque eles queriam de todo jeito saber duas coisas, uma, se eles não conseguissem pegar o Hermes pra onde ele teria ido? E naquele torpor eu não sabia de nada, entendeu? E queria saber onde estava o Rogério. E eu também não conseguia falar onde estava o Rogério, entendeu? Aquele torpor, entendeu?

Helena: Eles já chegaram usando a violência?

Marília: Eles já chegaram com o pé na porta, armados, atirando, chutando, fazendo de tudo, entendeu? Meu caso começou em casa. E, supreendentemente, eu desci, quando eu desci, eu não sei de onde veio tanta arma, eles me algemaram e eles conseguiram pegar o Hermes. O Hermes pulou lá embaixo…

Rogério: A rua devia estar cercada.

Marília: A rua devia estar cercada e eles conseguiram pegar o Hermes. E o Hermes já veio arrebentado, entendeu? Quando eu vi o Hermes dentro da van ele já estava… acho até que, se não me engano, algum tiro na perna dele, ele veio mancando. E aí eu desci, isso que me surpreendeu muito, com os braços cheios de armas de tal maneira que as pessoas acharam que lá em casa tinha armas, eles tiraram as armas e mandaram eu ir carregando, entendeu? E embaixo tinha o porteiro, a gente tinha um ano e meio que morava lá, e tinha uma lanchonete que a gente comprava muito café, coca-cola, não sei o que, eles ficaram horrorizados de ver o que aconteceu ali em cima e, surpreendentemente, jamais esquecerei isso: um senhor enfrentou eles e falou “O senhor tem…”, como é que chama, pra prender? Quando você vai…

Antônio: Mandato…

Marília: “Mandato de prisão?”. O sujeito deu um tapa nele, ele voou longe, assim, na frente de todo mundo, entendeu? Então, você vê o clima da época, né? Aí, pronto, o inferno começou. O inferno começou. Aí, a prisão sua.

Rogério: Aí, aconteceu, enquanto a Marília era levada, eu estava no trabalho. E aí eu cheguei por volta de dez horas, mais ou menos isso, e eles já estavam me esperando, entendeu? E daí também a tortura já começou ali, mas eu fui levado numa viatura, né, clandestina…

Marília: Encapuzados.

Rogério: Com capuz, né?

Marília: Como sempre faziam.

Rogério: Pra um endereço desconhecido que lá depois soubemos que era o quartel da PE, o DOI-CODI do Rio de Janeiro.

Helena: Vocês foram pro mesmo local?

Rogério: Mesmo local.

Marília: É, mas o caminho dele foi diferente.

Rogério: Eu fiz uma trajetória diferente. A trajetória dela, inclusive, foi mais complexa do que a minha.

Marília: Mas o sofrimento dele foi muito grande dele também.

Rogério: Aí, é o seguinte, fomos presos no dia 5 de abril, noite de 5 de abril. Fui levado, tá entendendo, para o DOI-CODI e, na época, eu já imaginava que seria, eu não tinha muitas informações, mas não poderia afirmar naquele momento, encapuzado. E no dia 5 de abril, eu, fazendo o meu relato agora, naquele momento percebia-se que havia alguma movimentação, encapuzado, eu percebia que havia uma grande movimentação.

Marília: Estava cheio lá.

Rogério: No DOI-CODI que era o quartel da PE, lá na rua Barão de Mesquita, na Tijuca. E percebia esse movimento intenso, está entendendo? E eu fui levado para uma cela escura, eles chamavam de geladeira, que era super gelado, o ar condicionado super gelado, era geladíssimo, um clima siberiano. Já sem roupa, nu, completamente nus, todo mundo fica sem roupa. Encapuzados e sem roupa. E nessa cela tem um barulho ensurdecedor, uma sirene que toca noite e dia. Não tem onde sentar, é uma cela, um cubículo escuro, são vários cubículos, está entendendo? E eu devo ter ficado ali umas três noites assim. Eu calculo, eu fiquei no total… depois eu fiz os meus cálculos, mais tarde, que eu perdi a noção do tempo, dos dias, mas depois eu soube, eu pude fazer os cálculos, eu fiquei dez dias no DOI-CODI. Eu era retirado da cela para as sessões de torturas, evidentemente, né? Tinha, incluindo, choques elétricos e tudo, né? E todo mundo passava por esse processo, ficava numa cela escura, dava pra ouvir a conversa dos policiais e os agentes da repressão com outros presos em outras celas, está entendendo? Às vozes, a troca de vozes, tá entendendo? Então, dez dias eu fiquei lá no inferno do DOI-CODI.

Helena: Dez dias sendo torturado?

Rogério: Dez dias, sempre havia tortura, está entendendo, porque quando eram torturas dosadas entre o físico e o psicológico. A tortura não é apenas o choque elétrico, a tortura também é estar nu, estar num lugar escuro, com barulho infernal o tempo todo, uma temperatura baixíssima, você no escuro…

Marília: As ameaças…

Rogério: As ameaças… as linguagens… é um repertório variado de torturas combinadas, né, combinadas as sinergias, está entendendo? Até que no décimo dia depois, fui levado, encapuzado ainda, fui levado, as roupas foram entregues, as roupas, e eu fui levado para o DOPS, na rua da Relação, no centro antigo do Rio de Janeiro, aquela região da Lapa. Hoje tem um prédio que hoje está sendo discutido se vai ser transformado, até pela Comissão da Verdade, estão lutando para isso lá, transformar aquilo num museu, né?

Helena: Um centro de memórias…

Rogério: Um centro de memória, né? E os policiais querem aquilo também pra eles, pra transformar num centro de memória da polícia. Que aquilo existia desde o Estado Novo do Getúlio, que já existia. Aquele lugar já era usado como local de tortura de presos políticos. Agora, pra lá nós fomos, no meu período que eu fui para lá, no DOPS, não tinha tortura lá não, era só pra guardar os presos. Os presos ficavam ali, está entendendo? E eu fiquei ali, aproximadamente uns 40 dias ali, sendo que desses quarenta e poucos dias, no total eu fiquei dois meses, no total foram dois meses de prisão, né? Eu calculo, mais ou menos, quarenta e poucos dias ali, tá entendendo? Quase 30 dias, aproximadamente 30 dias, eu fiquei incomunicável, numa cela pequena. Incomunicável um pouco entre aspas, porque a gente conversava um com o outro, porque as celas eram ligadas uma a outra. E depois, mais ou menos, mais ou menos isso, né, uns 30 dias eu fiquei ali nesse incomunicável relativo, né? Porque tinha que sair na hora do almoço, tinha que sair da cela pra pegar a bandeja, aquela coisa que tinha na hora do almoço. Depois eu fui para uma cela maior, onde já tinham outros presos de outras organizações. Era uma cela grande que era chamada Maracanã. Isso está tudo lá, essas celas. As celas pequenas eram chamadas de Ratão, eram chamadas de Ratão as celas pequenas. Onde Caetano e Gil ficaram, por sinal. Caetano e Gil, quando foram presos, ficaram nessas celas. E tinha uma cela grande que era o Maracanã que ficavam todos os presos juntos. Depois eu fui pra essa cela grande. E tinha até a cooperativa dos presos, se comunicavam ali já, a gente já tinha. E ficava numa expectativa, ninguém sabia pra onde ia. Ia voltar pro inferno do DOI-CODI? A gente não tinha nenhuma informação do mundo exterior.

Helena: Rogério, se você não se importar, volta só um pouquinho. O DOI-CODI, que foi o período, pelo que eu entendi, pior, né? Tudo foi ruim, mas o pior foi ali no DOI-CODI, que tipo de tortura você sofreu? Pau-de-arara…

Rogério: Não, pau-de-arara não.

Helena: Mas choques elétricos?

Rogério: Choques elétricos, socos…

Marília: Espancamentos.

Rogério: Eu levei um soco muito forte na cabeça, eu bati com a testa na maçaneta, na maçaneta de uma porta, com capuz. Eu senti o sangue descendo, aquilo ficou coagulado. O sangue descia, placa. Aí, depois, quando o policial foi puxar o capuz para o interrogatório, tinha que tirar o capuz, pra ir na sala do interrogatório, ele percebeu o choque e falou “Aí, Rogério, tentando o suicídio, hein?”. Tentando o suicídio… tá entendendo? “Tá tentando suicidar? Você só está no começo. Ainda vai ter tempo pra você suicidar aqui pra valer”. Coisa do gênero. Então, mas não houve, no meu caso, não houve o pau-de-arara, não houve, né? Houve as torturas, inúmeras torturas com choques elétricos e socos, pontapés e agressões verbais. A tortura psicológica que, na combinação, a tortura psicológica é muito forte, porque é ficar numa cela fechada e escura, totalmente escura, vários dias…

Helena: E com a sirene ligada?

Rogério: É, com a sirene ligada. Fiquei dez dias que no lugar para dormir tinha que ficar no chão. Dormia em pé ou no chão. Dormia em pé, encostado na parede, no escuro total. Um som intermitente, um som estranho de alguma espécie de um buzinaço. Que ia e voltava, ia e voltava, o tempo todo. Eu não posso dizer que era noite e dia, porque pra mim era indiferente o que era noite e o que era dia, né? Mas era o tempo todo aquele som intermitente, aquilo vai e volta, vai e volta, o tempo todo. E uma temperatura baixíssima.

Helena: E sem notícia da Marília.

Rogério: Sem nenhuma notícia. Não sabia absolutamente nada, de nada.

Helena: Que é outra tortura também.

Rogério: É. Mas nada, não sabia absolutamente nada. Só fui ver a Marília, nós saímos no mesmo dia, no finalzinho, no finalzinho do mês de maio. Isso foi no dia 5 de abril, foi lá pro dia 28 de maio, caminhando pra junho, acho que no processo tem a data certa, eu acho. Mas foi por aí, no finalzinho do mês de maio eu fui solto. Fui levado encapuzado do DOPS, numa viatura policial, algemado, tá entendendo? Esse tempo todo, é bom lembrar, que a gente fica com algemas, né? Fui levado para o comando do 1º Exército, que é aquele prédio ao lado da Central do Brasil, na Presidente Vargas. Fui pra lá porque ali que era a sede, esse conhecimento eu só fui saber a posteriori, depois eu fui saber, ali sim era a sede do DOI-CODI, no Rio de Janeiro, o famigerado DOI-CODI, tá entendendo? O centro de torturas do Rio de Janeiro. Ali que era o comando. E ali eu conheci o coronel Fiuza, depois general-de-brigada, tá entendendo? Adir Fiuza de Castro. Depois seria aposentado, inclusive mal visto na época da abertura do Geisel. Ele caiu em desgraça, entre aspas, né, no governo do Geisel, porque ele era da linha dura ligada ao Frota, né? E eles estavam precisando fazer abertura política na década de… já no finalzinho da década de 1970, e ele, como general-de-brigada, ele foi postergado, tiraram ele da fila. Tiraram ele da fila, passaram outros na frente dele, né? E ele terminou melancolicamente a carreira dele nas funções de…

Marília: Pensionista.

Rogério: Do setor de pensões, de pensionistas do exército. Que é um fim melancólico pra quem tinha o poder de decidir…

Helena: Caiu no ostracismo.

Rogério: Do DOI-CODI, aquele poder terrível…

Marília: Poder de tudo, né?

Rogério: Poder de tudo que ele tinha nas mãos ali.

Helena: Mas ele se envolvia diretamente com as torturas?

Marília: É isso que eu quero narrar. Isso eu quero registrar.

Rogério: Ele sabia de tudo.

Marília: E ele falava que se não bater, não…

Rogério: Agora você pode colocar o que aconteceu com você nesse período aí…

Marília: É…

Rogério: Do DOI-CODI.

Marília: Eu queria só registrar uma coisa, assim, muito importante, que o Hermes que ficou na nossa casa e que tinha ações armadas e etc., e que foi barbaramente torturado, eu não vi ele dentro do DOI, mas depois a gente fica sabendo, entendeu? Por causa da advogada, que era advogada comum de nós três. E ele foi barbaramente torturado, ele assumiu todas as responsabilidades das ações dele. Isso foi muito importante, porque nós podíamos ter sido mortos, porque ele veio de ações armadas. Mas ele teve uma dignidade na tortura, muito grande. De ter assumido todas as responsabilidades das ações deles. Então, isso foi muito importante. Agora, o meu caso é muito interessante. Só depois que a gente começa a entender o que se passou. Eu cheguei também no DOI-CODI, entendeu? Imediatamente, ninguém me perguntou nada, me enfiaram dentro dessa tal dessa geladeira, entendeu? E no dia seguinte, que eu acho que é o dia seguinte, porque era claro e eu fui presa de noite, me levaram para uma cela grande e lá tinha uma menina do PCdoB, mas nós não falamos com medo de nomes e etc., ela estava até com o braço quebrado. E eu me lembro que eu cheguei no fim porque eles tinham acabado comigo lá embaixo, do tipo, não choque, nem nada disso não, entendeu? Muita, muita…

Rogério: Psicológico.

Marília: Psicológico. Muita… chute, essas coisas assim. E aí eu fiquei nessa tal cela, uns dois ou três dias. Sozinha.

Helena: Com essa menina?

Marília: Não, ela foi embora. Saiu, mas ela chegou a ponto de me ensinar coisas, entendeu? De me ensinar um monte de coisa, do tipo assim “Aqui vai ter que entrar, vai apanhar, é lá embaixo, aqui é uma câmara de tortura”. Ela me colocou tudo “Aqui toda hora vem um, abre essa janela, não chega naquela janela”. Porque a tendência é a gente chegar pra ver o que é que tem no final da cela, era uma cela grande. Ela falou “Não, não chega lá, se chegar um cara, imediatamente aparece aqui”. Então, eu nem sabia o que tinha do lado de lá. A menina foi embora. Eu nunca mais vi a menina, entendeu? Mas ficou na minha memória. Sei que ela estudava na PUC. Foi super solidária comigo. E era lá dentro uma linguagem dos nossos companheiros, assim, uma solidariedade incrível no sofrimento, né? E aí eu fiquei, surpreendentemente, eu fiquei dentro de uma cela que eu ouvia gritos, as noites todas. Urravam de dores, de gritos, de tortura, entendeu? E eu morria de terror, entendeu? Era um terror porque eles diziam “O seu marido está lá embaixo, você vai descer”, entendeu?, “Você vai descer, o seu marido…”. Um, teve a audácia de trazer pra mim os documentos do Rogério dizendo “Ele já morreu. Agora você pode dizer tudo o que você quer”. Entendeu? E absurdos. Fiquei nessa tortura, mais psicológica do que praticamente o que o Rogério entrou direto em apanhar.

Rogério: Eles sabiam dosar, eles sabiam que pra determinada pessoa o psicológico era pior.

Marília: Um dia desci, eles me tiraram numa madrugada lá e me botaram na frente do Amadeu. Eu fiquei horrorizada de ver o Amadeu. Ele estava um trapo, a boca do Amadeu estava toda quebrada, ele estava implorando água, entendeu? E ele estava no fim. Mas ele estava, assim, no fim. E os caras arrebentavam, o incrível exército de Brancaleone, acabaram com ele. E eu cheguei na frente dele, porque era assim que eles faziam para poder um arrebentar com o outro, entendeu? É a chamada acareação, né? O Amadeu falou tudo que eu tinha feito, entendeu?

Helena: Naquele momento?

Marília: É, que eu estava na Bemfam, que eu tinha contato com a fulana, com a beltrana, que eu não tinha nada com os assaltos que a organização fazia, nem eu nem o Rogério, ele falou tudo. O Amadeu, entendeu? Eu só vi o Amadeu lá dentro. Foi o único que eu vi.

Helena: Eles queriam apurar se vocês estavam envolvidos com a luta armada também.

Marília: É, e eu sabia que o Rogério estava lá dentro porque eu ouvi os passos dele quando ele chegou. Eu conheci eles falando “Rogério, Rogério” eu ouvi, eu sabia que ele estava lá dentro, entendeu? Mas ficou sempre a dúvida, mataram, sumiram, porque… a forma que eles fizeram. Então, daí, eu e três mulheres fomos pro DOPS. Ficamos lá, enquanto o Rogério estava na PE, eu estava no DOPS. Eu tinha saído da PE e fui pro DOPS. Mas eles falaram bastante “Você vai voltar”. E eu sabia que eu ia voltar. Eu tinha essa certeza que eu ia voltar, porque o que eles falaram, o que eles fizeram, eu sabia que ia voltar, o meu terror era imenso. Muito medo. E eu sabia que ia voltar. E aí quando eu fiquei lá no DOPS, a gente ficou cada uma numa cela, uma era esposa do Amadeu. Eu não vi pessoalmente, mas a gente ouvia, entendeu? A gente ouvia. E eu fiquei lá uns três ou quatro dias, não me lembro, não tenho esse fragmento, essa memória, não tenho quanto tempo. Ninguém me entrevistou, nada, ninguém me tirou depoimento nenhum, ninguém me bateu em nada. Até os carcereiros, depois de três ou quatro dias você começa a ouvir “Oh Campo Grande”, entendeu? As pessoas ali, não sei o que houve, eu sei que, um belo dia, também de madrugada, me encapuzaram e me levaram. Estava amanhecendo o dia. Me levaram pro Hospital Central do Exército, entendeu? E eu me lembro que para… eu estava de capuz, eles foram me arrebentando de lá até… que deveria ser perto, não era longe. E aí, era um japonês que sempre me conduzia, e esse japonês me tirou o capuz e a gente tinha que atravessar um jardim, surpreendentemente eu ouvia voz de criança, entendeu? Era o jardim do HCE, entendeu? Que deveria ser seis e meia, sete horas, que estava começando o dia e ele falou “Você me abraça, porque vai ficar sem o capuz e você olha só pra mim”. E ficamos horas, até não sei quanto tempo, abriu um lugar lá, e ele entrar e me botar dentro de um quarto de doentes. Mas era uma cela. Se tornou ali, uma semana de cela pra mim. E aí…

Helena: Dentro do hospital do exército?

Marília: Dentro do hospital do exército, do HCE. E eu só sabia que estava no HCE, porque a gente por ser de Juiz de Fora, a gente não sabe de nada lá. Eu só sabia que era o HCE porque nas roupas de cama estava escrito “HCE”, entendeu? Depois de quatro, cinco dias, eu comecei a saber onde que eu estava. E eles começaram a me tirar pra fazer exames, entendeu? Um dos médicos, jovens médicos, perguntou pra mim, com aquela roupa de doente, que amarra atrás, entendeu? Numa maca. Me tiraram exame de sangue, temperatura, entendeu? Toda hora passava um e tirava a temperatura, entendeu? E eu aí comecei a pensar, porque a gente sabia que eles internavam como louco e eles falaram “Se cair lá não vai sair mais”, entendeu? “Se cair lá, aqui não sai mais”. Falam de tudo, eles agrediam de tudo. Mas tinha um sargento, um enfermeiro negro, sargento, que um dia teve a dignidade… Bem, muita gente diz que não é dignidade, tudo aquilo fazia parte de uma coisa só. “Seu marido está vivo, você vai voltar pra PE”. Ele levava comida, a gente desesperada, nem comia direito, ele falava “Você tem que se hidratar, você vai voltar pra PE”. E ele foi me colocando o seguinte “Você vai sair daqui. Mas você vai antes passar pelo DOPS”. Pelo DOPS não, pelo DOI-CODI. E foi o que aconteceu. Uma bela madrugada, também me levam encapuzada, e me levam pra eu dar o famoso depoimento que tinha que ser dado do que que eu fiz, do que que eu não fiz, de quem que eu conheço, de quem que eu não conheço, entendeu? E fiquei lá mais uns quatro dias nessa alternância de um dia na cela, outro dia lá embaixo, outro dia na cela. Cada vez que chegava uma pra acarear, a Ana Arruda, as meninas que…

Rogério: A Maria Inês.

Marília: A Maria Inês Duque Estrada eu não vi. Eu vi só a Ana Arruda e vi um outro menino que era historiador, que eu não tinha contato com ele. O Amadeu uma vez, entendeu? Arruinado ali, ele estava, assim, um trapo. A maldade humana foi toda demonstrada nas torturas que o Amadeu sofreu, entendeu? É, assim, absurdo o que ele viveu. E por isso, tem um autor que é muito interessante que ele fala “O sistema de informação estava todo lotado”. Esses órgãos todos. Mas a grande informação vinha de nós. Através da tortura, entendeu? Quer dizer…

Rogério: E depois do hospital?

Marília: Aí, depois do hospital eu voltei pro DOI-CODI.

Helena: Marília, só um instantinho. No hospital eles simulavam que você ia fazer exame ou você de fato fazia os exames?

Marília: Fazia! Exame de pulmão, de sangue, entendeu?

Antônio: E você tinha algum…

Marília: Não, eu não tinha nada, eu falava pra eles. Eu tive um problema lá que foi o seguinte, numa dessas eu estava menstruada e como eu fiquei nua, acho que eles assustaram porque sangrou muito, daqueles chutes, etc., eu acho que sangrou muito. Eu não sei por que, a minha advogada acredita que estava cheio a PE, estava cheio o DOPS, entende? Eles estavam distribuindo pra onde pudessem, mas eu tinha que ficar incomunicável até que todas as três meninas fossem presas.

Helena: Entendi.

Marília: Entendeu?

Helena: Mas esse hospital também não era hospital psiquiátrico?

Marília: Não, estava escrito HCE. Me botava numa maca… O médico uma vez me perguntou “Mas o que a senhora tem?”, e eu não sabia o que responder. E o carcereiro dizia “Não fale com ele!”, entendeu?

Helena: Ele não sabia que você era presa política?

Marília: Ele não sabia. Mas teve um que ficou perguntando muito, entendeu? Porque eu devia estar um trapo…

Helena: Entendi…

Marília: Tensíssima, sabendo que ainda ia voltar pro inferno. O inferno ainda ia começar.

Rogério: É bom lembrar, há vários dias sem comer. Sem qualquer alimento, né?

Marília: Não, tinha um alimento que eles davam lá, a sopa. Sabe que outro dia eu estava pensando exatamente com a Helena, assim, como é que a gente comia lá? Foi uma coisa que caiu na minha…

Rogério: Agora eu lembrei, eu não falei uma coisa importante…

Marília: Como é que a gente comia naquele negócio?

Rogério: Eu fiquei dez dias sem comer nada, sem comer absolutamente nada.

Marília: É… O hospital me dava uma sopa lá…

Rogério: Teve uma noite lá que eu comecei a pedir água e um carcereiro, eu imagino que é noite, porque a gente imaginava o seguinte, um silêncio muito grande, só pode ser madrugada, né? Porque o dia inteiro um agito de gritos, tá entendendo? De passos, de movimentos. Então, aquele silêncio total. Inclusive final de semana, sábado e domingo, entendeu? Aí, eu pedi água ao carcereiro no escuro. Aí apareceu um copo, alguém me deu um copo lá. Foi a única coisa que eu me lembro, é esse copo d’água. Em dez dias.

Marília: E é interessante…

Rogério: É bom lembrar que eu saí, depois dos 60 dias, mesmo sendo alimentado lá no DOPS que lá tinha…

Marília: No fim, acabado.

Rogério: Eu saí de lá um verdadeiro cadáver.

Marília: Agora, a grande questão que eu achei interessante foi quando eu voltei os carcereiros já sabiam tudo de mim, entendeu? Da intimidade do que eu fazia, do que eu não fazia, que o doutor Arruda que era meu chefe lá, sabia tudo. Eles sabiam tudo! Por isso que eu te falo da questão da informação. Eles sabiam tudo! Mas eles sabiam tudo, de tudo. Cada um vai deixando…

Rogério: Depois você teve uma passagem…

Marília: Aí, depois eu fui…

Helena: E ficou quanto tempo depois que você saiu do hospital e voltou?

Marília: Ah, eu devo ter ficado lá mais uma semana. Longuíssima. E aquela coisa de ouvir a tortura de noite é que é…

Rogério: Faz parte da tortura…

Marília: Eu preferia mil vezes apanhar, arrebentar, choque que eu não levei, entendeu? Do que ficar em cima de uma câmara de tortura.

Rogério: Eu tenho a impressão de que outras vezes era até gravação.

Marília: Não era não. A menina que estava quebrada, ela falou “Isso não é gravação”. Bom, aí a saga continuou e aí a gente foi, um belo dia, esse mesmo japonês que era o que trazia… às vezes eu imagino que aquele japonês tinha entrado lá em casa… que ele era o meu terror. E aí, a grande questão, ele me pegou de madrugada, porque sempre é de madrugada, amanhecendo o dia, porque nos quartéis começa tudo cedo, né? E eu viajei muito, um dia muito quente de macacão, aqueles macacões da PE, azuis e largos, muito quente e com o capuz, e me levaram pra vila militar, entendeu? Como a gente não conhece o Rio, a vila militar era longíssimo pra mim. Da Tijuca até a vila militar era longíssimo. E esses caras me chutando, me chateando. Aí, pegou um menino no meio do caminho, em alguma unidade lá, um menino…

Rogério: Preso?

Marília: Preso. Eu não sei também quem era. E esse menino, no meio das nossas duas viagens, duas viagens, o menino tinha tentado suicídio. O menino tinha tentado suicídio. E eles ironizando o tempo todo que eu ia pegar um cara que eles salvaram… Essas coisas que eles faziam. O menino, quando viu as coisas que ele me fazia, ele pediu “Se você tiver que bater ou chutar, chuta a mim que sou homem”. E isso ficou na minha imagem e eu não sei quem é ele, não sei qual é o nome, nunca mais vi. E eles arrebentaram. Eu sei que no meio do caminho deve ter deixado ele em algum lugar também. Ele não foi pra vila militar. Eu ainda viajei muito, até chegar à vila militar. Cheguei na vila militar e…

Rogério: É outra história agora…

Marília: Aí, o major Araí, que era o comandante, surpresíssimo com o que eu fui fazer na vila militar, entendeu? Porque o comando tinha mandado eu pra lá. Ele não queria me receber, entendeu? Eu vi a conversa deles. Aí me levaram pra uma cela, que estava uma menina que é minha amiga até hoje, muito amiga, a Isabel de Araújo do PCdoB. E a Isabel tinha também sido barbaramente torturada porque ela estava indo pra guerrilha do Araguaia, entendeu? Por pouco, ela só se salvou porque ela foi presa. E aí, a Isabel já estava lá há um tempão, e eu pensei que a Isabel era policial. Porque ela conhecia todo mundo, eu não falava nada com ela, entendeu? Nós ficamos assim, uns três ou quatro dias, porque ela tinha direito à comida dos oficiais, ela tinha direito a sol. E eu, sol, quem dera tivesse, entendeu? Eu estava igual um bicho lá, até poder o que eles chamam de “a engorda”. Mas a Isabel tinha sido torturada e quem assistiu a tortura dela foi o coronel Fiuza.

Rogério: O comandante.

Marília: Foi o comandante, com uma cobra. Então, a tal cobra que falavam, a Isabel foi uma vítima dessa tal cobra. E ele, de vez em quando, tirava a Isabel, entendeu? Mandava chamar a Isabel, sempre pensando em dar informação. Mas a Isabel é uma menina brilhante, sofreu à beça, de uma dignidade incrível. Ficou minha amiga até hoje, somos amigas até hoje.

Helena: Você descobriu que era presa política também?

Marília: Custei a… Tudo falam né? Porque ela tinha direito a sol, eu não tinha. Ela tinha direito, olha, tinha direito a uma comida que eu não tinha. Eu tinha comida do… ela já tinha. Porque o Fiuza tratava ela diferente porque ele viu a tortura dela.

Rogério: E as outras presas políticas?

Marília: Não, aí depois a Isabel…

Rogério: Porque ali se transformou numa comunidade.

Marília: Mas eu não peguei essa comunidade Rogério, só peguei a 6, a Conceição. O tal major, aí, começou a me dar a comida da Isabel, me deixou tomar sol. Ele não entendia porque que a gente estava lá. Ele achava que era problema pessoal, ele não entendia a ideologia. Ele não nos torturou, ele nos respeitou. Porque lá não era uma unidade barra pesada. A advogada foi visitar, aí nós tivemos chance de visitar a advogada…

Rogério: Na vila militar não era um lugar de tortura. O DOI-CODI que era o local né? Ali era um quartel, de serviço…

Antônio: Normal…

Marília: Aí, ele me falou “Não, ele não vai…”.

Rogério: Até o caso, um caso incrível, que é uma das meninas, a Conceição.

Marília: A Isabel foi embora. Dois dias depois apareceu uma menina que fez 18 anos quando entrou na PE, e ela tinha um irmão que era incrível. Por isso que eu estou falando, a minha época tinha muita gente. Um elo incrível. Ela tinha um irmão que era tenente e que estava fazendo uma carreira brilhante.

Rogério: Num quartel da vila militar.

Marília: Levaram pro quartel do irmão.

Helena: E aí?

Marília: E a Ceiça chegou, a última da RAN. Que ela era muito ligada ao Escobar, que foi professor dela. O Carlos Henrique Escobar. E a Ceiça entrou através do Escobar. Aí, assim, acontece algo incrível, a Ceiça começou a ter acesso ao advogado. Então, eu também comecei a ter acesso à advogada, entendeu? Então, essas coisas de… A Eny chegou, e a Eny falou “Você…”. A Eny era a advogada.

Rogério: Isso é importante…

Marília: Aí ela começa a falar que ele está vivo.

Rogério: Enquanto a Marília estava na vila militar, ela foi me visitar lá no DOPS, no finalzinho dos meus dias lá no DOPS, finalzinho do mês de maio, como eu disse há pouco, né? Estava lá no DOPS, no Maracanã, na cela grande, quando eu recebi a visita da Eny, advogada, Eny Raimundo Moreira que era do escritório do Sobral Pinto, famoso escritório.

Marília: E ali eu vi o trabalho desses advogados, entendeu? Como é que ela enfrentava aqueles militares, entendeu? Sem medo, sabe? Impressionante. O que eu vi da Eny foi uma coisa, assim, fantástica. E depois ela foi advogada do Hermes, o menino que não tinha dinheiro nenhum pra pagar ela, entendeu? Eles faziam isso, entendeu? E aí, depois, então, eu fiquei lá no que se chama “engorda”.

Helena: Eles chamam de engorda?

Marília: Não, os colegas.

Rogério: O seu foi lá na vila militar, o meu foi no DOPS.

Marília: Só que a gente sai arrasado.

Rogério: Quando eu vi a Marília… quando nós nos encontramos, praticamente no mesmo dia que nós saímos. Ela foi pra casa do irmão dela na Tijuca, e eu fui pra lá também, né? Quando eu cheguei lá, a Marília parecia uma prisioneira judia do campo de concentração.

Marília: Mas o mais interessante, estava com o cabelo aqui…

Rogério: E eu também.

Marília: A outra coisa é que ele… aconteceu uma coisa com o Rogério, perigosíssima. A Eny falou para os nossos familiares “Tem que esperar, eles não podem sair sozinhos”. Porque a gente passa primeiro no 1º Exército pra depois a gente ser…

Rogério: Levado pra sede do DOI-CODI.

Marília: E o coronel Fiuza conversa com todo mundo, conversava com todo mundo falando “Vai voltar. O seu marido vai voltar”.

Rogério: O Fiuza, ele conversava com a gente como se fosse um professor, está entendendo? Com uma reguinha, um quadro e dando aula sobre a repressão, tá entendendo? Todas as organizações políticas no quadro, como se fosse um professor dando aula.

Marília: E ele falava assim “Nós vamos bater mesmo”.

Rogério: “Eu tenho que controlar, os meus agentes são todos jovens, é muito difícil de controlar”. A conversa dele era essa.

Marília: A Isabel de Araújo sofreu muito e depois ela se identificou… não se identificou, ela foi chamada muitas vezes pra conversar com ele, entendeu? Então, de repente, ela falou “Eu vivi por causa dele, senão eu teria ido pro Araguaia”, entendeu? A gente tinha que desconstruir isso dela, porque ela sofreu muita tortura, muita tortura. E ela teve casos, assim, incríveis que eu acho que ela tem que dar… Agora, quando fomos soltos…

Helena: Quanto tempo você ficou na vila militar?

Marília: Ah, eu acho que eu fiquei na vila militar uns 20 dias, né, Rogério? Foram dois meses de prisão. Eu tenho a impressão de ter ficado um mês indo pra lá e pra cá.

Rogério: No hospital, uma semana.

Marília: E mais um mês na vila militar.

Helena: A vila militar é aquela de Realengo?

Marília: É.

Helena: E aí, quando saíram, um sabia que o outro tinha saído?

Marília: Sabia por causa do advogado.

Rogério: Sabia por causa da Eny, porque aí já tinha acesso. No finalzinho, nós tínhamos acesso à Eny.

Marília: E ela falou “Não pode sair sozinhos!”. A família tem que ir buscar porque eles faziam assim: saía, você assinava, tirava até foto, saiu. Chegava lá fora, criava um… matavam e dizia “Ah, foi os colegas deles”, entendeu? E o que aconteceu… que nós ficamos esperando o Rogério o dia inteiro e o Rogério não saía. Aí, o Fiuza falou “Não, é amanhã que ele vai sair”.

Rogério: É aquele relato. Eu fui levado lá pro 1º Exército, ao lado da Central do Brasil e encapuzado, aquela história que estava contando há pouco, aquele episódio, e lá eu vi o coronel Fiuza. E dali eu fui solto. Preenchi vários documentos, inclusive aquela coisa que eu teria que comparecer todo final de semana, sexta-feira teria que comparecer para assinar. Durante não sei quanto tempo nós tivemos que ir lá para assinar documento.

Marília: Não podia nem vir a Juiz de Fora. Se fosse a Juiz de Fora teria que pedir ao coronel Fiuza.

Rogério: Aí me soltaram, eu tive que descer não sei quantos andares daquele prédio monumental, gigantesco. Cheguei, olhei aquela Presidente Vargas, aquela imensidão toda depois de tanto tempo. Eu teria que ir, o único destino que eu sabia que teria que ir era pra Tijuca.

Marília: Que é onde morava o meu irmão.

Helena: E lembrar da saída também é muito emocionante, né?

Marília: Mas aí, eu, no caso, saí com um policial dentro, entendeu? Eu saí com uma… Eu não podia passar perto de uma radiopatrulha. Eu tinha medo, entendeu? E nós fomos seguidos, né? Nós fomos seguidos. Então, eu fiquei muito paranoica. Foi muito difícil pra mim.

Rogério: A nossa prisão, no dia 5 de abril, aconteceu o seguinte, eu sumi do jornal. Ninguém sabia de nada.

Marília: Isso é importantíssimo.

Rogério: De uma hora pra outra. Aí, o José Trajano, editor do jornal, mandou gente ir lá em casa. Aí descobriu, pela vizinhança…

Marília: O que houve.

Rogério: E o Trajano, esse editor que hoje é da ESPN, né?

Marília: Porque nós fomos sequestrados, na verdade.

Rogério: Era muito amigo, realmente até hoje não conheci uma pessoa que eu admiro muito.

Marília: De esquerda, brilhante.

Rogério: Era brilhante. Muito amigo do Juca Kfouri que também teve uma passagem importante aí naquela denúncia da agressão…

Marília: Da loira…

Rogério: Do Aécio. Que bateu na namorada no Hotel Fasano, no Rio de Janeiro, que deu… E ele, o Juca Kfouri, está lá no blog dele, no site dele, na internet. Nunca tirou essa notícia que é de três anos atrás. Nunca tirou. E o Aécio nunca teve coragem de fazer, inclusive, um processo, né? Porque tem testemunha, tem tudo. Mas isso é outra história. Mas o fato é que o Trajano que comunicou a Eny, ele foi no escritório Sobral Pinto e comunicou à advogada que ele conhecia de outras datas e, por coincidência, a Eny é de Juiz de Fora, né?

Marília: Aí ela botou no jornal.

Rogério: Aí ela pediu o habeas corpus. Mas ela sabia que não existia na ditadura militar. Os advogados dos presos políticos colocavam, faziam um pedido de habeas corpus, mesmo não existindo.

Marília: Porque eles não podiam matar.

Rogério: Que era uma forma de sair no jornal.

Marília: De proteção…

Rogério: E aí saiu no jornal, está entendendo? A advogada Eny Raimundo Moreira solicitando o habeas corpus do jornalista Rogério e da socióloga Marília. Isso saiu no jornal, está entendendo?

Helena: Durante todo esse período as duas famílias não tinham ideia de onde vocês estavam?

Marília: Quando teve o advogado, sim.

Rogério: Mas isso depois de muito tempo. O advogado, a Eny apareceu, tá entendendo? Não, a Eny já sabia, aqui fora a Eny já sabia.

Marília: Que tinha sido preso.

Rogério: Já sabia. O Trajano avisou imediatamente e a Eny se mexeu, imediatamente. Nós não tínhamos contato, não sabíamos de nada. A Eny, um dia, apareceu na minha frente, lá, acho que você também, né, na vila militar.

Marília: É.

Rogério: De repente a Eny apareceu na minha frente, lá no DOPS. Um dia ela apareceu e se apresentou. Eu já até conhecia de Juiz de Fora, sabia que eu já tinha visto. Ela tinha sido até minha vizinha aqui em Juiz de Fora, em outras épocas, quando eu era estudante, ela fez o curso de letras aqui.

Marília: E o que é mais interessante de pontuar, que a Ceiça, a menina que ficou comigo, saiu no mesmo dia também. Ela também saiu no mesmo dia, porque aquilo que… primeiro ela não tinha quase que ação nenhuma, segundo que ela foi a última a entrar na organização, ela foi a última a ser presa. Então, eles já sabiam tudo. Aí, ela foi solta comigo e meses depois ela foi pra Brasília, morar em Brasília, que ela arrumou um emprego lá como jornalista, ela tinha feito comunicação. Não, ela estava fazendo comunicação. E aí, o que acontece? Sofreu um acidente…

Rogério: Foi atropelada.

Marília: Foi atropelada. Tava num bar, o sujeito entrou, que era filho de não sei quem aí. Filho de não sei quem, eu já me esqueci disso. Morreu na hora, com 19 anos, acabando de sair da prisão.

Rogério: Até, inclusive, ela não participou… porque o nosso processo tem, depois de todas essas interpelações, todas narrativas, nós aguardamos em liberdade, fomos soltos no final do mês de maio. Todos foram soltos, trinta e poucos, só ficaram presos os do GA das ações armadas, o Amadeu, o Amaranto, que também foi reminiscente do Caparaó.

Marília: Aí, eles criaram quase que dois processos, um dos intelectuais e dos armados.

Rogério: Tinham os intelectuais porque era um grupo de estudantes, médicos, jornalistas, sociólogos…

Marília: O que não foi bom para os meninos da ação armada.

Rogério: Tinha um grupo das ações armadas e tinha um grupo dos intelectuais.

Marília: Entendeu? Era uma organização.

Rogério: O nosso julgamento… nós aguardamos durante quatro anos o nosso julgamento. Nós fomos réus até, por todo o processo, até março de 1977. Quando fomos todos absolvidos, por unanimidade, exceto o pessoal da luta armada. Eles continuaram.

Marília: Eles continuaram.

Rogério: Eles separaram, os advogados desmembraram o processo. Foi o artifício que eles criaram. Um artifício de certa forma porque, na verdade, havia um GA de luta armada, o GA armado. E havia os outros, tá entendendo? Os outros grupos de ação, de informação, dos médicos, já atuando na sociedade como um todo. Mas os advogados que conseguiram desmembrar o processo, na verdade, foi isso que aconteceu. Então, os da luta armada foram todos condenados. Só foram libertados pela anistia, algum tempo depois, não demorou muito tempo, não. Depois do nosso julgamento em 1977.

Helena: A anistia foi em 1979.

Rogério: Logo depois tivemos, começamos a viver aquele clima do bêbado e o equilibrista da música. E na verdade, logo depois, né? Começaram a chegar todos os exilados, um atrás do outro, né? Agora, eles foram soltos aí. O Hermes, o Amadeu, eles foram soltos aí.

Marília: Conta do Amadeu.

Rogério: Agora, uma coisa interessante que aconteceu nesse processo todo é que ninguém ficou sabendo que quem estava por trás de tudo isso era o Leonel Brizola. Ninguém citou, o processo não fala o nome do Brizola. Todo mundo… ficou tudo nas costas do Amadeu, ele assumiu tudo. Ele apanhou, foi torturado, foi barbaramente torturado, está entendendo? E não falou o nome do Brizola nenhuma vez. O Brizola poderia ter sido citado no processo e o nome dele não é citado no processo.

Marília: Ele estava no exterior.

Antônio: Inclusive ele foi julgado aqui…

Marília: Foi julgado aqui em Juiz de Fora.

Antônio: Com a Guerrilha do Caparaó.

Helena: Que surgiu do Grupo dos 11.

Rogério: Que tem essa origem do grupo dos onze na época do Jango.

Helena: O julgamento de vocês, onde que foi?

Marília: Na Auditoria Militar, lá no Rio de Janeiro.

Rogério: Na Praça da República.

Antônio: No 1º Exército, né?

Rogério e Marília: É.

Marília: E aí, o fim do Amadeu foi também por ter muita ligação com o Brizola, o Brizola eleito a governador do Rio de Janeiro e ele vai ser, assim, quase que o ministro da Casa Civil do Brizola.

Rogério: Ele transformou ele numa espécie de ministro, secretário da Casa Civil do Brizola.

Marília: Mas eu acho que ele teve uma saúde muito precária, porque ele teve um infarto e morreu.

Rogério: Morreu cedo. Eu acho até que a tortura pode ter afetado ele de alguma forma, porque inesperadamente ele morreu. E morreu durante o governo do Brizola. O velório dele foi no prédio, no edifício da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Foi um velório público, tá entendendo, que ele era secretário, alto secretário do governo, do governador Brizola.

Helena: Imagina os militares vendo isso.

Rogério: Era um negócio impressionante. Nós não sabíamos do Brizola também, não. Ninguém sabia de nada. Essas coisas não acontecem assim, da gente ficar sabendo, tudo é posteriori, sabíamos depois que tudo isso estava na cabeça do Brizola no exterior. Desde os tempos, como você disse, do Grupo dos 11, passando por Caparaó.

Helena: Agora uma coisa que eu também gostaria de saber, a meninazinha nova que foi presa no quartel aonde o irmão… Como é que foi isso lá, como é que descobriram isso lá? Eu fiquei meio curiosa, ela chegou lá e viu o irmão, como é que foi?

Marília: Logo depois ele foi transferido pra outra unidade. Não sei como descobriram que ela tinha um irmão lá. Logo em seguida tiraram o irmão, porque foi um erro.

Rogério: Erro deles.

Marília: E ela ficou muito mal porque ela achava que ele estava criando uma… Ele não tinha nada a ver com repressão, entendeu? Era militar de carreira, ela dizia. E ela poderia ter interrompido a carreira dele, né? Que ele foi imediatamente transferido, não sei se do Rio de Janeiro ou da unidade. Não fiquei sabendo isso. É toda essa saga. Não sei se essa saga…

Rogério: E essa saga encerra nesse período…

Marília: Talvez o mais importante…

Rogério: Esperando o julgamento em liberdade.

Marília: Talvez o mais importante dessa memória é mostrar que a gente é mais um grãozinho, um testemunho pequeno de como eles usaram as instituições do Estado, entendeu? Para…

Rogério: Os espaços, as instituições, né?

Marília: Exatamente. Isso que eu escrevi pra vocês. Para praticarem a violação dos direitos humanos. Porque, você vê, eles não quiseram saber absolutamente nada de Bemfam que era exatamente a minha ação, entendeu? Não quiseram saber absolutamente nada da Bemfam.

Helena: Vocês acham que essa experiência… isso deixou marcas muito fortes pra vocês, pra vida de vocês? Assim, vocês sentem que isso marcou muito a vida de vocês?

Marília: A gente passou por várias etapas, né? Foi passando por várias etapas. E aí os amigos foram muito importantes. Eles que arrumaram emprego, eles que ajudaram a gente, entendeu? Por exemplo, a Duque Estrada, a menina que militou comigo, me levou pra uma universidade particular que era a Hélio Alonso, onde eu dei aula. E foi assim, a igreja me levou pra o Ibrades, e até lá eu fui aluna do Fernando Henrique Cardoso. Um curso de sete meses…

Helena: Eu fui do curso do Ibrades…

Marília: Você fez…

Rogério: Esse ambiente da esquerda…

Marília: E da Rua Bambina, eu fui pro IPERJ, entendeu? Isso tudo foi equilibrando a cabeça…

Rogério: Após esse processo político, a nossa prisão e os anos que vieram depois, em seguida, nós criamos uma rede de amizade profunda no meio da esquerda do Rio de Janeiro. É bom lembrar que nós tivemos pouco tempo no Rio de Janeiro. As minhas referências eram de Juiz de Fora. Eu conhecia o Trajano, evidentemente lá, apresentado pelo Ivanir, que era daqui de Juiz de Fora, e conhecia a redação do jornal, que era a redação. Mas ainda era um ambiente… aquela redação do Jornal dos Esportes onde eu estava fazendo a minha crítica lá, eu era redator. A partir da minha prisão, e a posteriori, eu passei a ter contato com outros jornalistas. Eu fui trabalhar depois, perdi o emprego no Jornal dos Esportes, o Trajano saiu e eu perdi o emprego, né? Eu fui trabalhar na redação do Jornal do Commercio que, na época, era importantíssimo, que o Aloysio Biondi, já falecido, um dos grandes jornalistas do país, da geração do Mino Carta e daquele que faz o Observatório da Imprensa, o Alberto Dines, que é da minha geração, mas já faleceu o Biondi. Eu fui trabalhar na redação do Jornal do Commercio que ele era editor-chefe. E tinha grandes jornalistas. Eu fui trabalhar com o Evaldo Diniz, da política internacional, que foi redator de política internacional nesse período lá no Jornal do Commercio. E ali fui conhecer aquela redação inteira, a redação toda era de esquerda. Todos eram ex-presos políticos e tinham algum processo político. Quando eu vejo as redações d’O Globo de hoje, de Globo News de hoje…

Marília: Já foi o tempo…

Rogério: De Folha de S. Paulo de hoje, e eu lembro da redação do Jornal do Commercio, eu vejo um triste fim do jornalismo brasileiro. Esse jornalismo terrível, golpista, tá entendendo? Maléfico, que nós temos no país hoje. Destrutivo.

Marília: Aí fomos pra universidade.

Rogério: É outro período da universidade. Eu fiquei um tempo no Jornal do Commercio, só que ele quebrou, faliu, tá entendendo? A redação inteira saiu do Jornal do Commercio.

Marília: Depois que fomos absolvidos, aí a gente pode fazer concurso nas universidades, porque antes tinha o atestado de maus antecedentes que não podia… Aí a gente deu aula em Gama Filho, nessas coisas todas, até poder fazer concurso nas federais.

Helena: E os dois estão hoje onde?

Marília: O Rogério na UFRJ…

Rogério: Eu dei aula na UFRJ, na Escola de Belas Artes da UFRJ, mas me aposentei agora esse ano.

Marília: Eu também.

Rogério: Agora vou trabalhar na ECO da UFRJ. Já estou, a partir do ano que vem, como professor lá do quadro da pós-graduação de linguagens da comunicação, uma pós-graduação que foi elaborada lá agora. Eu sou muito amigo do diretor da ECO atual. Eu estou ficando muito velho. O diretor da ECO foi meu aluno da graduação, você imagina que a coisa está… (risos) tá entendendo? E se eu vou trabalhar na ECO, a partir do ano que vem, não mais na Escola de Belas Artes depois de trinta e poucos anos…

Helena: E a Marília, não está na UFRJ?

Marília: Não, eu estou na UFF, né? De sociologia da UFF e também me aposentei, mas fiquei na pós de sociologia. E na pós eu fiquei como colaboradora.

Helena: A gente podia então encerrar, né? E a gente pode continuar conversando.

Rogério: Tá ótimo.

Helena: A não ser que vocês queiram concluir alguma coisa…

Marília: Não, de jeito nenhum.

Antônio: A avaliação da questão do jornalismo, dos jornalistas, isso foi…

Helena: É, isso foi bem…

Antônio: É uma diferença catastrófica. É absurda.

Marília: Oh gente, então, muito obrigada.

Rogério: Obrigada a atenção de todos e de todas.

Marília: Muito obrigada.