Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora
Depoimento de Márcia Maria Pereira de Carvalho
Entrevistada por Jucelio Maria e Cristina Guerra
Juiz de Fora, 10 de outubro de 2014
Entrevista 018
Transcrito por: Daniela de Miranda dos Santos
Revisão Final: Ramsés Albertoni (29/10/2014)
Jucelio: Primeiro, a gente agradece muito a sua presença e a disponibilidade de estar aqui conversando conosco. Gostaria que você falasse para nós o seu nome, sua profissão e onde é que você mora.
Márcia: Então, meu nome é Márcia Maria Pereira de Carvalho, sou filha de Ubirajara Gomes de Carvalho a quem venho hoje representar aqui e dar meu relato sobre as injustiças daquele… durante toda a vida dele, praticamente toda a vida militar dele foi… sugerido, hoje, talvez até pelo fato da Comissão da Verdade ter dado esse apoio, e foi sugerida essa entrevista e eu que agradeço ao Jucelio e à Cristina de estar dando essa oportunidade de eu estar contando a minha história e a história do meu pai.
Jucelio: Quem foi Ubirajara?
Márcia: Então, quando eu procurei a Comissão eu fiquei até meio constrangida pelo fato do meu pai não ser um civil e ter sido um militar, que foi também um cara injustiçado pela crise de 1964 e por toda a história que a gente sabe que ocorreu no Brasil durante esse tempo. Meu pai servia em São João Del Rei e, por volta de término de férias, quando ele se apresentou ao lugar de origem, que é o quartel hoje, regimento de Tiradentes, o meu pai foi surpreendido com uma ordem de prisão. Por dez dias ele foi preso por ele ter se negado a acompanhar as tropas militares ao estado da Guanabara, em função dos acontecimentos políticos e militares da época, né? Entre abril e maio. E com ele também, são relatos, isso são relatos que eu tenho, não prova material e são relatos que eu tenho também da minha mãe, que é viva hoje e que me contou também como testemunha. Infelizmente, hoje ela não pode estar aqui, podendo estar falando também a experiência dela. Então, meu pai, quando retorna, preso, por estar cometendo um ato de insubordinação, no caso, na hierarquia, dentro da hierarquia militar de ordens superiores, se negou a combater os civis e foi preso junto com esses outros sub-tenentes e sargentos do exército, e logo quando ele foi liberado ele já foi encaminhado para transferência para fronteira do Mato Grosso, Aquidauana. E esse processo foi muito doloroso pra ele como militar, pra minha mãe e pra toda nossa família. Então, eu procurei estar mostrando também o outro lado da história. Não é uma história só de civil, torturado, mas é uma história de um militar que se opôs às ordens, pelas suas convicções ideológicas. A gente não sabe, por conhecer meu pai eu acredito que sim, e dessa sofrer as consequências que a gente…
Jucelio Maria: Antes da gente falar desse processo, fala pra nós se você tem notícias da participação ou de participação política e ideológica do seu pai em algum movimento.
Márcia: Não. Nunca participou. Talvez ele possa ter, dentro da organização militar, ele possa ter comentado alguma coisa ou feito na época, como a repressão era muito forte. Como se usa a palavra, um conluio, né, de determinados militares que não concordavam com aquilo, pelas todas as características do ser humano, de caráter, eu acredito que ele se negou realmente a cometer atos de violência contra os civis. Na verdade, a minha convicção é essa.
Cristina: Márcia, quando você diz que seu pai saiu da prisão, depois de dez dias, e logo em seguida saiu uma transferência, você tem uma noção de, em quanto tempo, a sua família teve que ir embora para Aquidauana?
Márcia: Olha, eu sei que o embarque deles foi via terrestre e através de trem. Minha mãe conta que eles ficaram esperando estabilizar a instalação, numa coisa de três dias, várias famílias dentro de um contêiner de trem, se alimentando de forma precária, higiene zero. Assim, muito doloroso, porque de uma hora para a outra todas essas famílias tiveram que modificar suas vidas, né? Abandonar seus lares, seus familiares. Minha mãe, meu avós, moravam em São João, São João del-Rei. Meu pai tinha família no Rio, então, familiares próximos. Então, eles tiraram isso tudo dos meus pais, e o mais doloroso talvez dessa história é que minha mãe, nesse processo, estava esperando um filho e perde esse neném. Então, minha mãe é um caso que ela não gosta de remexer porque é muito doloroso pra ela também, além como mulher, ex-mulher, mas como mãe, que perde o filho com oito meses.
Jucelio: Então, são transferidos o seu pai, a sua mãe e mais…
Márcia: Meu irmão de dois anos de idade, um bebê, né? E a mãe grávida, perde o bebê com oito meses de gestação. O neném nasceu já falecido, já morto, e ficam dois anos e meio e depois retornam, mas a vida do meu pai ficou marcada por essa cadeia, por essa prisão, por essa retenção, por essa transferência imediata, né?
Jucelio: Tem notícias de como é que era a vida da sua família longe dos familiares aqui de Minas?
Márcia: Minha mãe sempre falou que ela era muito jovem. Ela tinha vinte e um anos, ela sofreu demais. Foi uma coisa que… uma coisa muito dolorosa pra ela tá lembrando. É uma lembrança que ela não gosta de ser tocado no assunto.
Cristina: Você falou que foi uma turma grande, eram muitos militares. Sua mãe fez algum comentário? Ainda tem gente viva?
Márcia: Então, ela acha que sim, que tem um militar vivo aqui. Um deles, uma viúva deles, de um deles. A gente chegou a fazer o contato, mas foi o mesmo relato, ela não quer mexer, remexer, porque é doloroso, ele já está falecido, pra ela. Aí, eu falei “Poxa, mas vamos prestar essa homenagem, né? Vamos tentar resgatar esse com louvor, essa história deles”. Mas, parece que pra quem viveu tenha sido muito doloroso. Pra mim talvez que não tenha vivenciado, só pelo fato de eu, minha mãe relatar já foi difícil eu dar essa passo, né? Porque a gente acaba que se envolve emocionalmente.
Jucelio: O que é isso que você trouxe? O que isso significa…
Márcia: Então, é, desculpa. Esse é um livro da história militar do meu pai. Todo militar, todo e qualquer militar, do soldado ao general de cinco estrelas, ele tem um livro, chama “Livro de Alterações”, que ele data, desde o início da entrada do militar até o último dia de serviço dele, a força. E foi através desse livro que eu obtive relatos verídicos. Eu não gosto muito nem de estar lendo, depois a gente pode até abrir uma exceção e pegar a parte que está escrito, mas que relata de forma verdadeira e uma prova material do que ele sofreu, e isso, dito por eles, pelos próprios militares, que ele foi, cometeu um ato de insubordinação por se negar a ir à Guanabara, e aí, ele, como castigo, ele foi preso e transferido. Isso está bem explícito no relato de seus superiores.
Cristina: E depois que ele foi transferido, depois que vocês retornaram pra cá, o seu pai relatava como que era a vida dele no exército?
Márcia: Então, meu pai sempre, mesmo depois desses acontecimentos… o que as pessoas desconhecem é que no exército você é promovido através de conceitos. Então, você ganha pontos e perde você pontos. Então, você começa com um comportamento bom, é a nota cinco, que a gente vai dizer aqui pra ficar mais claro. Então, ou você cresce ou você estabelece ou você cai o teu conceito. Então, esse fato, com certeza, foi um fato que frustrou meu pai assim, enquanto profissional, mas eu não acredito que ele também tenha deixado de ser um bom profissional como ele sempre foi, cumpridor dos seus deveres, né? E militar, antigamente, acho que isso era mais, era mais latente a gente ver eles… juravam aquela coisa à bandeira. Ele era um cara, eu não vou dizer que ele era uma Caxias, ele era um cara que gostava do que ele fazia. Mas, por tudo que aconteceu, talvez ele tenha se frustrado um pouco.
Jucelio: Então, nesse livro a gente vai encontrar o por quê da não progressão dele na carreira militar.
Márcia: Com certeza.
Jucelio: Então, está registrado aí que a partir da punição, por insubordinação, ele ficou impedido de…
Márcia: Então, o que acontece, a gente não tem como, assim, isso de uma forma subjetiva, né? Ele ficou marcado. Não tem, não existe depois disso, falando “Ah, porque o sargento Ubirajara foi preso ele…”. Não. Mas a gente, eu acredito que ele foi um cara marcado, foi um cara que ficou frustrado, que se entregou ao álcool e morreu de cirrose hepática, muito jovem, com sessenta e dois anos. Não que isso tenha sido uma causa, mas um agravante, talvez.
Jucelio: Aí, a gente fala das marcas para os olhos dos militares, para os olhos dos colegas, até de trabalho e para a sociedade. Como é que era a percepção dele para a sociedade, com relação…?
Márcia: Então, meu pai… eu, que isso, esse fato que ele se envergonhava bastante, não era um fato que ele se orgulhava, porque pelo fato dele ter sido punido era uma coisa que ele tinha vergonha. É um contrapeso interessante até, mas ele não gostava de tocar também, era uma página negra na vida dele, entendeu? Talvez, hoje, isso fosse um momento de hoje, talvez abandonaria a farda, jogava pra cima o chapéu, alguma coisa assim, nesse sentido. Mas ele também sabia das consequências do ato dele dentro do sistema militar. Talvez ele sabia, talvez ele se surpreendesse da forma que foi, né? Pelo… pela urgência, da gravidade dos fatos da época, que é o que a gente pensa.
Jucelio: Ele contava histórias ou relembrava de amigos que foram…
Márcia: Não. Alguma coisa ele falava, mas meu pai sempre foi uma pessoa muito fechada, entendeu? Minha mãe que tem uma riqueza de detalhes que, talvez, numa posteriori, a gente possa estar conversando com ela, em um momento em que ela estivesse menos fragilizada, né? Até ela sabendo que eu vim, conversei com vocês, ela possa estar também dando a contribuição dela.
Cristina Guerra: E a sua mãe, depois desse menino de dois anos, aí depois nasceu você? Você já nasceu em Juiz de Fora?
Márcia: Eu já nasci no Rio de Janeiro, já. Meu pai já tinha sido transferido para o Rio. Mas a minha mãe, por exemplo, a minha gravidez foi um coisa surpreendente porque ela teve muita sequela, muito medo de engravidar, né? Então, minha gravidez foi uma gravidez difícil, ela ficou com medo também de perder outro neném. Então, foi muito traumático. Na verdade, foram dois anos e meio que ela também falou “Minha filha, eu preciso estar falando”, “Oh mãe, eu volto aqui e a senhora fala mais”. Realmente a gente tocou numa ferida, né?
Cristina Guerra: E o seu irmão que viveu isso mais? Como é que ele…
Márcia: Então, meu irmão também ficou surpreso. Foi muito legal porque ele falou “Olha, eu estou”. O meu irmão mora em Vitória, isso tem pouco tempo que a gente começou a ler, e através da Comissão a gente se interessou mais pelo caso. Como vocês deram retorno, como eu falei lá no início, de certa forma eu fiquei meio constrangida por ser… por meu pai ser militar e será que a Comissão vai querer ouvir meu relato?
Cristina Guerra: Mas nós ouvimos depoimentos de militares aqui.
Márcia: Então, minha mãe, ela teve essa, meu irmão… Você perguntou do Ricardo. Ele ficou super feliz, assim, com esse resgate da história. Falou que talvez essa seja uma forma da gente estar homenageando o nosso pai, mas ele mora em Vitória. Eu não sei, então, talvez ele possa ser ouvido lá, se isso for interessante pra vocês.
Jucelio: Apesar de você só ter sabido das histórias que seus pais contaram do convívio que você teve, olhando para trás, sabendo de outras histórias, o que você tira disso tudo?
Márcia: Então, a gente sabe, né? Que teve gente que sofreu muito mais do que meu pai. Mas aí, a gente vê que hoje está sendo dada essa oportunidade da gente fazer, não é justiça, mas fazer um reconhecimento dessas pessoas, que abriram mão da própria vida talvez de momentos, né? Graças a Deus meu pai não sofreu consequência maior, por uma ideologia, né? Por um pensamento dele, que ele não concordava, mas ele estava num sistema ali que ele… era a forma de sobrevivência da família dele. Então, eu fico muito feliz de estar aqui, tendo essa oportunidade e espero que essa Comissão abra os olhos, os corações, as mentes das pessoas que estão por trás para desvendar todos esses mistérios aí que a gente está louco pra desvendar e as pessoas que tenham culpa sejam punidas, aquelas que não, sejam reconhecidas como bravas, como heróis, enfim, como justiceiros, né, de uma certa forma do bem.
Cristina: Então, você tem uma mensagem, uma lembrança de orgulho.
Márcia: Sim, com certeza.
Cristina: Isso é muito bom realmente.
Jucelio: Esse momento pro seu pai, pro seu irmão, pra sua mãe, o que significa?
Márcia: Nossa, é a forma da gente estar homenageando ele por esse gesto, por esse ato de bravura dele, né? Como cidadão, como homem, como pai e ele pensou, ele não pensou nele, no Ubirajara, o sargento. Ele pensou no homem que viu muitos homens sendo violentados, torturados, enfim. Ele não compactuou com a mensagem dos superiores, né? A verdade foi essa. E ele, talvez, de uma forma, foi a insubordinação ou a gente não sabe, mas, na verdade, foi o pensamento dele e é disso que a gente se orgulha.
Cristina: Eu acho que não tem mais nada pra pontuar, a não ser que você queira falar mais alguma coisa. E a gente fica muito grato de você ter vindo. Nós ouvimos outros militares, a gente está aqui para ouvir, né? Todo mundo que tem uma história para contar desse período.
Márcia: Ok. Eu agradeço à Comissão a atenção dispensada.
Jucelio: Nós que agradecemos. Nosso abraço então para a sua mãe e pra você também. E que a gente possa, de fato, concluir os nossos trabalhos e encaminhar da melhor maneira possível essas questões que foram levantadas e apresentadas por vocês.