Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora
Depoimento de Juarez de Andrade
Entrevistado por Helena da Motta Salles e Antônio Henrique Duarte Lacerda
Juiz de Fora, 3 de Outubro de 2014
Entrevista 16
Transcrito por: Vanessa Luiz de Oliveira
Revisão Final: Ramsés Albertoni (22/10/2016)
Helena: Juarez, você podia começar falando um pouquinho, se apresentando, quem é você, explicando porque você está aqui, quem foi seu pai, e contar a história dele pra gente. Falando o nome dele completo, explicando a história dele pra gente, tá.
Juarez: Perfeito. Meu nome é Juarez de Andrade, eu sou professor, tenho 56 anos. Sou filho de Gilberto Pontes de Andrade e Maria do Rosário Monteiro de Castro Andrade. Meu pai foi uma das pessoas que foram aposentadas pelo Ato Institucional Nº 5, sumariamente, quer dizer, aposentadoria proporcional, e eu vim contar um pouco da história dele porque o período que esses fatos aconteceram foram justamente um período muito duro, né, na vida brasileira, da história brasileira, que é justamente no ápice da ditadura militar mesmo. Foi nos anos 1967, entre 1967 e 1969.
Helena: Seu pai é daqui de Juiz de Fora?
Juarez: É, meu pai é daqui de Juiz de Fora.
Helena: Trabalhou aqui a vida toda.
Juarez: Não, meu pai não é de Juiz de Fora, na verdade de Belmiro Braga.
Helena: Tá.
Juarez: Ele nasceu num distrito de Belmiro Braga, que é Porto das Flores. Ele nasceu em 7 de março de 1911, então quando morreu, também, morreu um mês de completar 70 anos, que foi em 1980, 7 de fevereiro de 1980. E meu pai, aí, veio pra Juiz de Fora, naturalmente.
Antônio Henrique: Ele nasceu em Ibitiguaia, né?
Juarez: Não, Fazenda da Luanda.
Antônio Henrique: Fazenda da Luanda.
Juarez: Isso!
Antônio Henrique: Mas era Ibitiguaia antes, né?!
Juarez: É, eu não lembro…
Antônio Henrique: Vargem Grande, Ibitiguaia…
Juarez: Isso, isso!
Antônio Henrique: Depois Belmiro Braga.
Juarez: Exatamente, depois Belmiro Braga. E ele veio pra Juiz de Fora muito jovem e fez o curso técnico, ele era eletrotécnica na época, não podia se falar nunca em eletrônica naquele tempo, mas eletrotécnica. E veio trabalhar durante um certo tempo junto com amigos. Fundaram a rádio, a Rádio Tiradentes de Juiz de Fora, construíram a rádio e começaram a trabalhar nesse ramo, inclusive uma das pessoas que trabalhava com o meu pai, que é uma pessoa conhecida em Juiz de Fora, é o Cláudio Temponi. O locutor Cláudio Temponi nasceu na Rádio Tiradentes de Juiz de Fora. E ele conseguiu com isso aí, foi muito próspero com a rádio, até que o Chateaubriand o caçou, também porque a concorrência com a PRB-3 e aos Diários Associados, e na época todo mundo sabe da história do Chateaubriand. Chateaubriand não tinha concorrentes, não existia concorrentes, o Chateaubriand só tinha amigos ou inimigos, não tinha meio termo. Então, todos aqueles que ameaçavam a rede e os Diários Associados, e tal, ele procurava ou cooptar, comprar, ou esse processo de tentar incorporar. Então, ele fez a Rádio Tiradentes de Juiz de Fora, de Muriaé e São João Nepomuceno. Quando ele fez a terceira rádio e a primeira locução externa, entrevista externa aqui, de externa que ele fez, de rádio em Minas Gerais, o Chateuabriand, no Rio de Janeiro e imediatamente, fez uma proposta, procurou fazer uma proposta pra comprar as rádios do papai, como fez depois, obrigando o papai a vender ou comprar, e obrigando o papai a vender de qualquer maneira as rádios. E como o Chateaubriand, todo mundo sabe, tinha um prestígio enorme junto ao Getúlio naquele tempo. Isso eu estou falando no início da carreira do meu pai. Então, ele foi radialista junto com o Téo Sobrinho nos Diários, na Gazeta Comercial, antiga Gazeta Comercial, aliás, isso está tudo registrado na Prefeitura, tem os dados dele direitinho, as reportagens. E depois ele foi diretor da Gazeta Comercial. Então, depois veio, entrou pra Academia de Juiz de Fora de Letras, na época ainda existia isso, até quando o papai morreu nós recebemos um livro com a poesia que ele ingressou, naquela época tinha essas coisas e tudo. Aí, quando chegou em 58, que foi o ano em que eu nasci, nasci em Juiz de Fora, meu pai conseguiu entrar na justiça militar, mas ele foi lotado não em Juiz de Fora, mas foi lotado no Rio Grande do Sul, em Bagé. Eu não sei que auditoria que é Bagé, terceira, eu sei que a primeira é no Rio de Janeiro, Juiz de Fora era a 4ª Circunscrição Judiciária Militar. Papai ficou lá durante um tempo, mas a mamãe, nós morávamos aqui, já tinha três filhos, eu já tinha nascido, isso em 1958, e papai ficou lá de 1958, até não lembro o período, até 1962, uma coisa assim. Veio transferido para o Rio de Janeiro, 1ª Auditoria da Marinha no Rio de Janeiro. Ficou um tempo na auditoria da marinha e veio para Juiz de Fora.
Helena: Como escrivão.
Juarez: Sim, como escrivão, DJ11 que era o…
Helena: Código.
Juarez: É, na época, hoje não existe mais isso, mas na época como escrivão, ele entrou como escrivão. Porque na época as progressões eram feitas dessa forma, por tempo de serviço, era muito difícil você ter um cara altamente escolarizado. Era difícil, não se tinha muito, o Brasil daquele tempo era um Brasil ainda muito agrário, e mais, aí o papai veio e veio progredindo, aquela coisa toda. E veio pra Juiz de Fora e aí, em Juiz de Fora, ele conheceu o doutor Antônio, veio doutor Antônio designado do Mato Grosso pra cá, doutor Antônio de Arruda Marques, o juiz auditor, ficaram muito amigos, comungaram do mesmo espírito, muito humanista, muito humanos. E num período muito duro. Aí endureceu mais ainda porque quando chegou em 1969, de 1967 pra frente depois do Ato Nº 2, a coisa apertou muito. Isso nós sabemos porque hoje nós fazemos a leitura da história, é fácil pra nós, mas naquele tempo fervilhando a coisa, e foi justamente aqui, por incrível que pareça, em Minas Gerais, que encabeçou todo esse processo, de uma certa maneira Minas Gerais, Juiz de Fora tem uma participação grande nessa revolução, revolução de nada, foi um golpe, a verdade é essa. E o papai com o doutor Antônio, então, começou a haver muitas prisões nesse período, depois do Ato Institucional Nº 5, porque aí realmente escancarou-se, não tinha mais direitos, ficaram, vamos dizer assim, direitos civis eu acho que praticamente mínimo, qualquer problema, qualquer denúncia. Então, os serviços de segurança, os serviços de controle do Estado, ficou um estado policialesco, militarizado, policialesco, e aí prisões indiscriminadamente. Mas não eram só prisões, porque o papai também começou a… como também o ambiente da auditoria também não era bom, porque se desvirtuou todo o processo, era pra julgar militares, mas já estava julgando civis. Já existia uma contradição interna. Então, o juiz resolveu a tentar por ordem na casa. Afinal, tinha um monte de inquéritos, denúncias, coisas que não eram do nosso hábito, e coisas, por exemplo, descabidas. Uma pessoa chegava lá denunciava um terceiro e aquilo, aquele terceiro acabava sendo punido, preso, torturado, indiciado e aquela coisa toda, sem saber direito porque, como, aonde, o que é que eu fiz, quem é que me denunciou (risos), e porque me denunciou. Então, até provar que não existia relação, vínculo, então as pessoas ficavam numa situação de extrema fragilidade. Então isso, aí começou nessa atitude de querer pôr ordem, um pouco mais de ordem e tentar, de garantir alguns direitos às pessoas que estavam, que estavam justamente na Constituição. Então, ele começou a abortar esse processo, de prisões sucessivas, prisões inclusive ilegais, entrar, invadir a casa, como o caso do Colatino, do professor Colatino, por exemplo, entraram dentro da casa dele sem autorização da família, foram lá e algemaram ele na cama. Cadê o mandato? Não houve. Prisões completamente irregulares. Então, isso, o papai então, eles eram amigos, o juiz também não podia confiar em todos, fez um pequeno grupo, e nesse grupo estava o papai, que era pessoas que auxiliavam, e que no caso do papai, papai que ia nas instituições, delegacias, quartéis, etc., verificar a situação dos presos, dos presos políticos, como é que estavam. E o papai começou a… quer dizer, também a criar, a criar um clima ruim, uma relação ruim com os militares, com o comando aqui da 4ª Região, que na época estava sob a tutela do General Itiberê Gouveia do Amaral, nunca mais esqueço esse nome, já morreu. E, mas o general Itiberê Gouveia do Amaral que era o comandante, e tinha na época tinha um subcomandante, o coronel Ledo. Eu tentei, eu juro, eu tinha o sobrenome dele, não me lembro, ele morava até então na rua João Pinheiro, na mesma rua que eu morei, meu pai morou. Coronel Ledo não sei o quê, ele era abaixo do general e ele era a pessoa que tinha o trânsito total e absoluto dentro dessa área do comando da 4ª Região, ele tinha uma influência muito grande, ele seria o segundo no comando, vamos dizer assim, vamos pensar dessa forma. Então, esse apreendia, o juiz mandava soltar, doutor Antônio, e começou a criar um clima ruim. Então, o general Itiberê, isso é fato, isso eu realmente lembro desse período, eu tinha 21 anos, o general Itiberê chamou o papai, primeiro o doutor Antônio, lógico, chamou o doutor Antônio, “Oh Arruda”, a conversa foi assim. O doutor falava nisso muito, eu guardei porque o tom que falava “Oh Arruda, assim não é possível, nós estamos tentando por ordem na casa e você… A gente prende esses subversivos e você solta, assim não é possível, nós temos que entrar num entendimento, fazer um entendimento aqui”.
Helena: Isso em que ano, você lembra?
Juarez: Isso foi em 1968, 1968. “Precisamos entrar num entendimento!”. Quer dizer, em 1968 já estava criando um clima de animosidade entre a justiça militar aqui e o comando. Então, já não estava como personas não gratas, então, já dificultava a entrada, por exemplo, se tinha algum preso político no quartel ou alguma coisa assim, já dificultava a entrada, papai não conseguia entrar naquele dia, demorava dois dias pra entrar, entendeu, é aquela coisa, eles já começavam a dificultar o processo. Aí, quando chegou o clímax disso foi em 1969, final de 1968, 1969, não sei se foi dezembro, fevereiro, uma coisa assim. Em 1969 o general chama o doutor Antônio primeiro, fala “Oh Arruda, assim não é possível!”. Eu lembro desse discurso direitinho, doutor Antônio falava assim “Como é que aquele general de pijama me fala de uma forma dessa!”, ironizando, “Como é que um general de pijama vem me afrontar de uma forma dessa! Quem é ele pra falar isso!”. Aí, o doutor Antônio deu a resposta a ele, “Ninguém está acima da lei, nem você e nem eu!”. Foi a resposta que ele deu, “Cumpra-se sempre a lei, ou então vamos reformulá-la”, aí o general falou “Então vamos ver!”, e bateram as portas e nunca mais se falaram. Na época, pelas conversas do meu pai e tal, doutor Antônio, eu estou falando ainda Costa e Silva, o general que mandou, que mandava esses nomes, esse aqui não grato, esse aqui prende, esse aqui arrebenta, esse aqui faz…, mandou tirar essa gente do caminho para facilitar a ação do Estado, a gente emperra o processo, dificulta. Então, essa leva de funcionários, juízes, e quem quer que fosse, não importa aonde quer que fosse, todo mundo sabe que com o AI-5 você podia tudo, e matar veladamente. Então, o nome do doutor Antônio foi para o Conselho de Segurança Nacional, lá em Brasília, na reunião do Conselho, que foi antes do papai, foi em março, na reunião do Conselho, de março. Costa e Silva assina e aposenta sumariamente, proporcionalmente, o doutor Antônio de Arruda. Tirou ele do cargo porque não tinha como, o que falar desse homem? Subversivo não era, ligado a algum partido não era, entendeu? Eles não conseguiram pegar, pegar o doutor Antônio, nem pegar o papai, o jeito foi o que, aposenta! Aposenta, acabou, tira o sujeito daí, e isso eles podiam fazer, fizeram isso. Mas só quando o doutor Antônio recebe essa notícia, entra numa crise profunda, porque tinha cinco filhos, e a maioria jovens, crianças, meninos ainda. Eu tinha vinte e um anos, eles eram da minha idade, Maria Helena, o outro, o Antônio José Marcos, o Luís Guilherme Marcio, que é juiz aqui, somos muito amigos. Eles eram rapazes, foi uma loucura. O doutor Antônio falou “Como é que eu vou cuidar da minha família, cinco filhos, minha mulher não trabalha!”. Dona Mirtes não trabalhava, nunca trabalhou, era uma pessoa que tinha pouca cultura, eu estou falando livresco não, essa cultura formal, mas uma pessoa, dona de casa. “Como é que eu vou viver com tão pouco?”. Então, papai, muito sensato, aí papai, aí metade do coração do papai foi embora porque era um amigo. Amigos mesmos, fiéis amigos. E o papai é chamado para… continuou na mesma atividade nesses meses de fevereiro, março, foi abril que recebeu o comunicado para ir em Brasília, 1969. Doutor Antônio já estava aposentado sumariamente. Papai foi em agosto, uma coisa é consequência da outra. E do papai o que é que acontece? Ele continuou a fazer as mesmas atividades, não interrompeu em nada. Ainda as prisões, a identificar a minha casa, a minha casa era uma verdadeira romaria, como eu estava relatando, as pessoas iam lá, pediam pelo amor de Deus, entre eles, o pai adotivo do Colatino, do próprio professor Colatino aqui, e da mãe, eu lembro da mãe dele como se fosse hoje, ajoelhada nas pernas do meu pai, “Doutor Gilberto, pelo amor de Deus, proteja o meu filho, tira o meu filho da cadeia, eu faço o que o senhor quiser! Eu dou o que o senhor quiser!”. Meu pai falou “Eu vou tentar tudo”, e meu pai tentou tudo, graças a Deus o Colatino esta aí. Mas, outras pessoas, e era assim constantemente. O general resolve chamar o papai, mas também por um motivo, um motivo, esse documento estava dentre aqueles documentos que sumiram, que eu cheguei a comentar com vocês aqui. Alguns documentos que o papai tinha, IPMs, inquéritos e tal que o papai tinha tirado cópia. Desses documentos o juiz tinha feito uma sindicância sobre o Simeão de Faria Filho, promotor de justiça, nunca foi promotor de nada, nunca fez concurso de nada. E o papai foi designado justamente para fazer a sindicância sobre a vida dele. E nesses documentos que se perderam tinha o histórico dele, do seu Simeão de Faria Filho. Ele entrou, ele foi pra promotoria sem fazer concurso, era um advogado como qualquer outro, mas muito ligado aos militares e denunciou muitas pessoas, inclusive sem conhecê-las. Durante julgamento, isso é fato, deve estar lá nos arquivos que ainda não foram tocados da Justiça Militar, de tampar livro de leis na cabeça dos presos políticos, de pedir a pena de morte, ele chegou a pedir a pena de morte num julgamento, aonde o doutor Antônio de Arruda Marques estava presente, e o doutor Antônio chamou ele imediatamente e disse assim “O senhor esqueceu, Vossa Excelência, que não existe pena de morte nesse país? Felizmente. O senhor se atenha aos fatos!”. Chamou a atenção dele porque, imagina, perfilado dos militares, porque era justiça militar. Ali, jovens, eu nem sei quem era, mas eu sei que esse fato o doutor Antônio chegou a relatar, eu cheguei a ouvir e papai relatou várias vezes e ele também ao mesmo tempo chamou atenção do Simeão de Faria Filho sobre isso. “Vossa Excelência deveria se ater aos fatos. Lembrar Vossa Excelência que, felizmente, nesse país não existe pena de morte, não dá, onde o senhor tirou isso”. Ele tampou o livro de leis na cabeça do menino, código de leis, não sei bem o que era. Tinha um rapaz estudante de medicina, lá de Goiás, era uma coisa assim, julgando um processo… Isso está relatado detalhadamente, isso foi fato acontecido dentro da 4ª Circunscrição Judiciária Militar. Doutor Antônio não ia mentir, lógico, não, homem era desse tipo, nem meu pai ia mentir sobre esse assunto. Meu pai repetia isso repetidas vezes, e o Itiberê, perdão, o Simeão de Faria Filho, ele se tornou promotor, não é, nomeado e promotor, e ele serviu aos militares com muita dedicação e zelo, muita, se tiver um lugar que eu acho que é necessário que a comissão vá pra ver o nível com que se tratava, como é que esses julgamentos eram, se processavam, se desenrolavam na própria justiça militar, porque os arquivos são riquíssimos, riquíssimos, ali, a gente vai ter pérolas pra analisar e situações, por exemplo, inclusive com a forma que se tratava as pessoas ali dentro. E uma outra coisa que desagradava profundamente os militares foi o desvio. A corrupção já existia há muito tempo, mas naquele tempo era só, o papai investigou a pedido do doutor Antônio a situação da… chegou uma denúncia, chegou uma denúncia de desvio de dinheiro e de mercadorias da subsistência do exército que era ao lado, uma roubalheira generalizada feita pelo um grupo de militares. Mas não deu em nada, porque justamente eles estavam no poder, não ia dar nada, não deu nada, mas isso desagradou profundamente. Então, duas coisas, a questão da subsistência foi um fator fundamental pra pôr a corda no pescoço do doutor Antônio e do papai, porque um estava ligado ao outro e no caso da subsistência, no caso das prisões irregulares, começou com essas prisões indiscriminadas, qualquer denúncia, interrogatório. E a segunda, a seção nunca funcionou tanto. Aquela delegacia que era ali na Batista de Oliveira já não era nem delegacia, já era um setor DOI-CODI, já tinha um lugar especial ali que já ocupava o pessoal da polícia política. E essa situação do Simeão de Faria incomodou profundamente, porque o Simeão ficou sabendo desse movimento. Porque esse homem serve tão bem ao sistema? E o doutor Antônio queria destituí-lo da função por não ter concurso. Mas isso é uma ilusão pra época, porque faziam qualquer concurso na hora, punham ele lá dentro. Mas o doutor Antônio queria ser correto nesse sentido, essas coisas todas somadas, elas criaram um desagrado junto ao comando da 4ª Região. Então, o Itiberê chamou primeiro o doutor Antônio, depois dessa situação chamou o papai e para o papai ele falou o seguinte, até onde eu me lembro foi exatamente o seguinte, “Olha Gilberto, o negócio é o seguinte, você continua frequentando a casa do Arruda?”, papai falou “Mas ele é meu amigo, ele está num momento muito difícil, entendeu, jamais vou dar as costas a ele, jamais!”, “Se você continuar frequentando a casa do Arruda você vai pelo mesmo caminho. Pode se retirar”. O papai se retirou, pra você ver como ele era topetudo, o papai se retirou e foi embora, e continuou ajudando ali, porque ficou numa situação muito difícil, e olha bem um homem do nível do doutor Antônio chegar a se destituir de tudo. Ele era do Mato Grosso, ele não era daqui, grande parte da família estava longe, distante, e o homem ficou numa situação realmente difícil, vivia de aluguel, eu me lembro bem, cinco filhos ainda estudando, idade ainda estudantil, quer dizer, e ficou difícil a vida pra ele. E meu pai ainda ajudando da maneira que podia e amigos, e pessoas ajudando ele. O doutor Antônio não era homem de admitir essas coisas e aquilo foi amargurando profundamente ele, tanto que ele morreu, teve uma crise e morreu na cama. Uma crise nervosa e com asma, ele tinha problema de asma, bronquite, e morreu ali numa situação muito ruim. Meu pai foi o substituto, tentou substituir a pessoa do doutor Antônio junto à família, no sentido de dar apoio, meu pai nunca os abandonou, nunca. Tanto que o Luís Guilherme, hoje, pode chamar a qualquer hora, tanto ele como qualquer um deles vai dizer isso, o quanto o meu pai foi amigo, tentou também ser pai deles no intuito de ajudá-los, porque eles entraram em crise, eles eram jovens, 18 anos, estou falando os mais velhos, o Antônio José, porque o mais novo dos homens é o Marco Aurélio que veio aqui, o Antônio José e o Luís Guilherme na ordem e Marco Aurélio, depois vem as meninas, as duas meninas. Depois ficaram muito bem, graças a deus estudaram e hoje estão bem, aquela coisa toda. Mas foi um momento da vida muito difícil. E meu pai, quando chegou em agosto, nessa reunião, aí sim, na reunião de março do Conselho Nacional pega o doutor Antônio, aposenta. Quando chegou em julho, essa de 2 de julho de 1969, o jornal é de 3, pode ver na internet, é uma pena, no Correio da Manhã, está lá na Biblioteca Nacional, no Correio da Manhã esta lá, vocês vão ver, Gilberto Pontes de Andrade…
Helena: Aposentado…
Juarez: Depois o Costa e Silva disse “Após essa reunião exaustiva, cansativa, agradeço a todos pelo empenho e pela…”. Esta lá no jornal, pelo empenho e falou lá uma palavra de ordem enaltecendo os civis, o patriotismo daquela gente, e tudo mais. Então, vidas foram decepadas e não interessa quem, se pode ou se não pode. E o papai, quando recebeu isso, eu me lembro, eu estava em casa, ele entra com o papel na mão, mesmo papel que eu anexei pra Comissão da Anistia, e era a assinatura do Costa e Silva comunicando oficialmente.
Helena: Que idade ele tinha?
Juarez Andrade: Papai tinha 69, papai morreu com 69 anos.
Helena: Em 1980.
Juarez Andrade: Em 1980, um mês antes de fazer 70. Então vou voltar pra 1969, 1980, 11 anos, papai tinha 58 anos, quase que a minha idade hoje, quase que a minha idade hoje.
Helena: Ele sendo aposentado, aí o que aconteceu com a vida dele, de vocês, assim?
Juarez: É, bom, aí o mundo veio abaixo porque, imagina, a sorte é que minha mãe trabalhava, era professora do Senai, concursada do Senai na época, ganhava pouco mas já era uma ajuda. E o meu pai ficou reduzido a 11/35 avos dos vencimentos, sem direito a nada, nem conta em banco ele podia ter. Durante um bom tempo, acho que uns dois ou três anos, ele ficou sob vigilância policial militar. Porque eu lembro de uma indisposição, isso eu me lembro claramente de um cara na porta da minha casa e meu pai ficou indignado, uma vez porque aquele homem parado lá quase que 24 horas por dia, meu pai foi tirar satisfação com ele, olha, nem sei o que o meu pai falou, foi lá e escrachou com o cara, falou absurdos e aquela coisa toda, os vizinhos entraram em favor do meu pai, mas só sei que o cara sumiu. E de qualquer maneira ele ficou… pro meu pai era uma vergonha enorme, tanto lutou, batalhou na vida aquela coisa toda. Os parentes sumiram, os amigos, aqueles amigos que a gente acha que são amigos sumiram também. Não tinha como ter empréstimo, nada, naquela época já era difícil, mais difícil ficou, e teve que viver com isso durante, até 1980. Tentou com doutor Antônio no início, antes do doutor Antônio morrer “Oh Arruda, vamos tentar montar uma rede de representação?”. Era uma rede de representação de produtos de petróleo. Eu me lembro direitinho que tinha uns frascos de produto, de petróleo, querosene, vender querosene, essas coisas, petróleo bruto, não era petróleo bruto, desculpa, mas era assim representantes de petróleo, então, tínhamos graxa, querosene, essas coisas assim. Mas doutor Antônio, papai, vendedores, não tem habilidade pra isso, não tem conhecimento pra isso. Então, tentou- se pra ganhar uma coisa a mais, melhorar um pouco a situação, mas não conseguiu. Aí o doutor Antônio morreu, atingiu profundamente o papai, aí o papai parou com tudo e foi viver assim muito amargurado. Ele escrevia dia e noite, escrevia dia e noite, era a forma dele extravasar, uma pequena máquina Olivetti, não tinha saída, sair pra onde? Na família da minha mãe eles eram generais, então, militares, não iam mais na minha casa, estavam bem de vida e ricos, meu pai dizia “Isso é tudo um bando, córgia! Essa gente devia estar presa, essa gente explora o país, rouba o país, faz o que quer”. Pensa bem, até isso o meu pai tinha que administrar, a situação da minha mãe. E a situação de também não ir na minha casa, muita gente abandonou, estar sozinho, meu pai foi um homem abandonado, ele se viu sozinho, completamente sozinho, ele morreu do meu lado, é, em 1969, em fevereiro de 1969, no dia 6 de fevereiro de 1969.
Helena: 1969, que ele faleceu? Não…
Juarez: Desculpa, 6 de Fevereiro de 1980, eu estava com ele, não do lado, eu estava no carro embaixo, guardando, até reclamei muito com ele, nessa época eu já tinha um certo… 21 anos, 22 anos, eu falei “Papai, mas de novo auditoria militar, o que o senhor vai fazer na auditoria?”. Eu até reclamei com ele sobre isso.
Helena: E o que ele foi fazer?
Juarez: Estava pra morrer.
Helena: Mas ele já estava aposentado, e nesse dia…
Juarez: Ele estava aposentado, ele foi aposentado em agosto de 1969, doutor Antônio em abril de 1969 e papai em agosto, exatamente assim, criteriosamente. A partir daí, doutor Antônio depois morre e o papai passa a viver assim, vagando. A mamãe ajudava muito, ajudou muito, foi uma mulher que abraçou ali meu pai, se ela não fosse uma mulher de fibra meu pai tinha até, sei lá, acho que suicidado, não porque o meu pai não era homem disso, mas meu pai, acho que não teria durado tanto, e nesses onze anos, mas muito amargurado.
Helena: Mas esse dia, em 1980, que foi na auditoria e lá ele faleceu, ele foi fazer o que na auditoria?
Juarez: Ele chega perto de mim com uma maleta na mão, uma maleta que ele sempre usava, ele já tinha escrito um documento chamado, isso eu li porque eu li na hora que aconteceu os fatos, naquele dia eu li o texto, uma parte do texto. Ele tinha escrito dez laudas sobre as consequências dos atos de recessão no Brasil, é o desabafo final, ele escreveu tudo, ele pôs pra fora tudo aquilo que… toda angústia, aqueles onze anos de tortura psicológica ele pôs pra fora. Tudo o que ele viu, as atrocidades, barbaridades e tal. Tanto que, infelizmente, eu emprestei a uma pessoa chamada Celeste Gouveia, eu emprestei a ela e, há uns anos atrás eu era professor do Jesuítas e ela coordenadora, eu emprestei assim, eu tenho uns documentos interessantes, eu emprestei pra ela ler a pasta com vários documentos, inclusive essas dez laudas. Uma coisa que eu lastimo que tenha perdido é isso, que o meu pai sintetizou nas dez laudas os onze anos de tristeza e de amargura que ele viveu. Agora eu sei que ele partiu pra morte porque eu olhei pra cara dele, eu lembro direitinho eu estava estudando em casa, “Mas papai, o que você vai fazer lá? Não tem nada pro senhor fazer lá”. E não tinha nada mesmo, nada, fazer o quê? A Lei da Anistia do Figueiredo foi clara, claríssima, anistia pra quem, pra ninguém, foi aquele tentar colocar panos quentes na coisa. E falei, vai lá fazer o quê, não tem mais ninguém lá, uma pessoa ou outra, onze anos, muita gente já mudou. “Não, eu preciso ir lá, você vai me levar?”, falei “Lógico, pai, lógico que eu vou levar”. Não queria que ele dirigisse, tinha medo dele dirigir e tal, aí eu levei, parei o carro lá e tal, ele subiu, aí estou lá, eu ia junto com ele aí ele falou “Não, fica no carro!”. Aí, subiu aquela escada lateral, escada de madeira até, subiu e ficou lá, aí uma meia hora uns quarenta minutos depois, aí o oficial de justiça, o Luís, muito amigo nosso, grita lá da janela do segundo andar “Juarez, Juarez vem cá que o seu pai está passando mal!”. Aí, eu imediatamente saí do carro e subi a escada correndo. Quando eu cheguei ele estava sentado, exatamente numa cadeira assim, ereto, com os óculos no lugar, os olhos abertos, a água escorrendo, ele já estava morto, deram água pra ele, a água escorrendo e as mãos assim, e as folhas espalhadas no chão.
Helena: Ele foi lá pra ler esse documento?
Juarez: É, ele foi lá no desabafo, no último. Eu acho que no calor da emoção e como o texto era muito bonito… (emoção)
Helena: Ele chegou a ler o texto e faleceu? Esse texto é uma pena mesmo ter sido perdido.
Juarez: (se emociona) Desculpa. É que eu li um pedaço, ainda li pra saber o que é que houve… Que a pessoa morre assim, igual aqui, por exemplo, de repente eu morro aqui sentado. Vem uma pessoa de fora e fala “Ué, que houve?”, e aquele tumulto, os papéis no chão, deram um tiro no homem? Mataram o homem? Ninguém sabia, estava tudo no ar. E as pessoas que estavam vendo ele não tinham voz pra falar, tamanho o impacto. E os papéis no chão, eu me lembro que eu peguei a pastinha dele, peguei os papéis assim, os papéis… engraçado, aquela preciosidade, eu peguei aquilo, juntei e pus na pasta dele. O relógio, eu ainda tenho o relógio dele, eu usei na minha formatura, na minha primeira formatura eu usei, fiz questão de usar o relógio dele. Aí, tirei assim o relógio de bolso, eu me lembro direitinho, era cinco pras quatro da tarde, direitinho, lembro direitinho, olhei. Aí veio os dois médicos do exército, entraram, porque lá embaixo era, antigamente, tinha todo aquele setor da subsistência do lado, o da Junta de Serviço Militar, em baixo, tinha todo aquele aparato. Aí, realmente apareceram dois médicos, nunca vi tão rápido. Eu me lembro que o médico olhou pra mim, “Quanto tempo tem?”. Acho que é porque quando é um colapso, dizem que fica uma marca aqui no pescoço, acho que o sangue, não sei. Aí, ele olhou, “Quanto tempo tem?”, “Não sei, eu estou aqui…”, eu estava atônito ainda. Aí, pegaram, deitaram-no chão lá mesmo no piso, fizeram massagem, aí veio o outro. Aí, eu me lembro que eu segurei na mão do meu pai, fiquei pensando, fiquei assim atônito, aí a mão dele fechou na minha.
Helena: Ah, é?
Juarez: Aí, eu falei pro médico, uai, mas ele apertou a minha mão, eu me lembro direitinho, “Hei menino, isso é uma contração muscular”. Bom, pra ele uma contração muscular, pra mim foi uma despedida, o último agradecimento. Então, aí, um momento muito, acho bom que elucide essas coisas, doutor Antônio Carvalhas, se não me falha o nome, juiz auditor na época, pode ser verificado o nome exato, eu sei que Carvalhas, Luís Antônio Carvalhas, José Antônio Carvalhas1, uma coisa assim, não conhecia, conhecia de vista assim, chegou, passou por cima do meu pai assim, pulou, “Quem é a esposa do funcionário, a viúva?”, “Sei lá”, um deles lá falou, é aquela senhora ali. A mamãe já tinha chegado, um tempo depois já tinha chegado. Aí, eu lembro direitinho disso, “Mamãe, espera”, “Tira o meu marido daqui!”, aí, ele virou e falou assim “A senhora se importa que no atestado de óbito conste que o marido da senhora, que o senhor Gilberto faleceu em casa? Porque isso evita uma série de problemas para nós”, aí a mamãe “Não, eu quero que o meu marido saía daqui, o que vocês vão fazer não me interessa!”. Nem pensou, porque se fosse outra pessoa falaria não, tem que registrar o que está aqui, fazer uma investigação, o meu marido como é que ele entra vivo aqui e sai morto? Poderia pensar dessa forma. A gente sabe que não houve, foi emoção eu sei, porque meu pai não sofreu isso, a tortura foi outra, mas poderia gerar uma série de problemas, então ele pediu. E consta no atestado de óbito que ele morreu em casa, mas ele não morreu em casa, categoricamente ele morreu lá, no dia 6 de fevereiro por volta de… entre três e quatro horas da tarde, ele faleceu na Auditoria da 4ª Judiciária Militar daqui de Juiz de Fora.
Helena: Quando ele leu esses documentos, essas laudas, quem estava em volta dele ouvindo e tal?
Juarez: Que eu saiba, que eu saiba, que ainda está vivo, tem um cara que chama Lauro, eu não sei o nome dele, ele já está aposentado, lógico. Lauro, que faz parte, talvez lá na Auditoria eles vão saber quem. Acho que o lugar ideal pra se ir mesmo, pra se ter… duvido que eles vão abrir aqueles arquivos de bom grado.
Helena: Na Auditoria Militar nós já abrimos.
Juarez: Já abriu?!
Helena: É porque a juíza hoje é dos novos tempos.
Juarez: Há, que bom, graças a Deus! Porque eram relutantes nisso. Mas chama Lauro, que eu saiba é o único, por que os outros já morreram, os que eu conheço já morreram, esse oficial de justiça, o Luís, que me chamou da janela, já faleceu, daqui de Juiz de Fora também. Ele chama Lauro, às vezes eu o vejo na rua, inclusive se eu lembrar, se eu o ver novamente, eu vou abordá-lo, com certeza ele vai lembrar de mim, eu vou pedir até endereço aquela coisa, e passo pra vocês. Eu não lembro o sobrenome.
Helena: O Lauro pode ser aquele que já depôs pra gente, aquele que depois virou professor da universidade.
Juarez: Ele é clarinho, bem clarinho, de cabelo grisalho, não é o Lauro Mendes não, eu sei qual você está falando, o Lauro do ICE, da faculdade da Física? Não, o Lauro, por exemplo, papai ajudou muito o Lauro, Lauro foi diferente, situação do Lauro foi diferente, não é esse Lauro que está dando aula.
Helena: Essas pessoas que estavam lá, ele tinha combinado esse encontro lá com certeza pra fazer esse desabafo.
Juarez: Sim. Ele tinha telefonado, eu não sabia, ele armou uma situação. Telefonou pra essas pessoas, pra amigos, e manda chamar, reúne essa gente, que horas pode ser? Aí, marcaram lá, “O Gilberto vai vir aqui falar aquela coisa toda e tal”, “Queria que vocês ouvissem, tenho uma coisa a dizer pro pessoal, eu tenho uma notícia a dar”. Foi o que o Luís falou, o Luís, esse que era oficial de justiça na época. Então, ele telefonou e se reuniram lá uma hora, marcaram esse dia e aí o papai foi, mas eles não sabiam do que se tratava.
Antônio Henrique: Esse Lauro, então, era funcionário da justiça militar?
Juarez: Sim, inclusive o Lauro era funcionário, graduado. Eu o vi diversas vezes em Juiz de Fora, sei que ele é de Juiz de Fora, espero que ele esteja vivo. E se tiver, de agora em diante se o ver na rua vou pedir que ligue pra vocês, porque ele vai atestar isso, porque ele estava lá, e outra coisa, ele tem muito a dizer, se ele quiser dizer. Ele tem muito a dizer por que ele viveu tudo isso e conheceu muito o papai, sabia, muito bem, e no dia que o papai morreu ele estava lá. Então, é a única pessoa que eu saiba, viva, ainda viva. Os outros todos já faleceram, eu não sei quem que poderia ser.
Helena: O Juarez você relatou a história do seu pai até a morte, tem alguma outra coisa que você gostaria de acrescentar, assim, ou…
Juarez: Eu acho que as histórias são muitas, mas assim o que é significativo, eu acho que a gente tinha que fazer uma síntese disso, infelizmente, porque o ideal é ele estar aqui, o ideal é ele contar detalhes, pessoas que ele teve contato, situações que ele viveu em Brasília também, ele ia muito à Brasília, aquela coisa toda, essas relações todas que tinham inclusive com o poder e tentar dar o termômetro da época, revisitar a história com maior precisão. Eu acho que ele faria melhor. O que eu pude, o que eu vivi muito, e pra mim é muito sofrido, não é, foi que… Eu gostaria muito do meu pai aqui hoje, pra discutir muitas questões, inclusive as minhas questões particulares, as minhas questões acadêmicas, o meu pai era um homem que lia muito, estudava muito, era uma pessoa muito culta. Não é essa cultura muito livresca universitária, era um homem, um autodidata, muita coisa, tanto que escreveu dois livros e tudo mais, espíritas, meu pai era um estudioso do espiritismo também, então, um homem muito humano, meu pai era muito humano, desse humanismo que hoje está meio em decadência, mas daquele humanismo meio muito moderno.
Antônio Henrique: Queria te fazer uma pergunta, o doutor Antônio Marques ele era espírita?
Juarez: Também. Não era não, ficou, quer dizer, não vou falar conversão porque não é o caso, não existe isso, mas ele ficou assim mais próximo do espiritismo graças ao papai, pelas obras que lia, vendo o papai também que era uma de credibilidade e doutor Antônio era um homem que gostava muito de ler, ele lia muito, muito estudioso e a família toda se tornou, a família toda. Luís Guilherme, filho, ainda continua, o outro, o Antônio José Marques, que é médico também, até de certa maneira influenciou na carreira dele de ser antroposófica, de certa maneira influenciou na vida profissional e tudo. Então, precisamente, dados, dados assim eu, esse momento da morte foi muito duro, e também porque eu não posso, muitos detalhes, por exemplo, não tenho como dar. Igual eu coloquei pra Comissão da Verdade, Comissão da Anistia, perdão, o que eu coloquei foram documentos pessoais, da vida profissional do papai que eu peguei, algumas coisas que nós tínhamos, alguns relatos. Eu fiz um memorial também, o memorial é mais ou menos isso. Evitando assim, nomes de qual você tem dúvidas, a coisa assim, não é bom você ficar nomeando muito não, porque algumas coisas você pode afirmar, como é o caso, por exemplo, do Simeão de Faria, é notória, isso aí eu nem sei se acrescento nada, acho que não acrescento nada, porque outras pessoas com muito mais autoridade já devem ter falado sobre isso, e livros que inclusive está o nome dele e outros mais, na lista dos torturadores. E, em relação a essa dinâmica, eu era jovem, não tinha penetração, meu pai não deixava a gente. Em relação ao meu irmão, no caso alguém fale, eu acho que a professora ali estava falando a respeito do meu irmão mais velho…
Antônio Henrique: Eu comentei da auditoria, está no DOPS.
Juarez: Esse fato do meu irmão ser perseguido, como uma forma de pegar meu pai, de intimidar meu pai, não é verdade. Isso ficou assim no ar, mas não é verdade, meu irmão continua em Juiz de Fora, morando lá na nossa casa. O meu pai ficou preocupado com essa notícia, com essa possibilidade, existia esse possibilidade, era uma forma de atingir o meu pai, mas eles atingiram por outra via muito mais prática, muito mais rápida, eficiente e sem ficar mobilizando muita gente não, usando o próprio instrumento jurídico que eles tinham na mão, de acessar o próprio Ato, aposenta, acaba, ele vai cair no ostracismo, vai ficar meio na miséria mesmo porque vai ter um rendimento pífio, uma coisa que vai ficar até, nós vamos ver ele passando decadente no meio da rua, é a própria prova de “Está vendo o que a gente faz, vai servir de exemplo. O Arruda já morreu, o Gilberto vai ficar perambulando por aí pra provar, né, não nos enfrente”. E ficou isso, o importante é justamente pra provar o atrito entre… teve realmente no início em 1967 até 1969 esses atritos, esse enfrentamentos houve, que redundou, como não tinham como que pegar, redundou no afastamento dos dois, via A-I5 e via aposentadoria proporcional. Porque lá, pode verificar, eles estão aposentados proporcionalmente, papai 11/35 avos, só onze anos de trabalho.
Antônio Henrique: Mas, e esse ostracismo, ele era da família inteira, eu queria só saber um pouco mais sobre isso. Se esse impacto da família, dentro dos seus círculos de vizinhança, como isso foi depois da…
Juarez: Como é que a gente recebeu isso, como a gente metabolizou essas coisas…
Antônio Henrique: Isso, Isso.
Juarez: A questão é a seguinte, nós, em frente a nossa casa a gente tinha o senhor Aurílio, está lá, a família vive até hoje, são muito amigos nossos e coisa e tal. O cunhado dele era militar, era coronel, mas reformado na época, já estava reformado na época. Ao lado, mais abaixo, o coronel Ledo, a filha do coronel Ledo morava mais abaixo. O coronel Ledo, eu não sei o nome todo, mas ele é famoso aí, não é difícil, mas eu não sei o nome dele. Então, quer dizer, ali na vizinhança as pessoas não se aperceberam não, porque alguns ali, também foram prejudicados. Por exemplo, acima, onde o Colatino frequentava com o meu irmão, aquele bate papo, coisa de jovem na época, talvez ler um “Marxquesinho”, um capítulo do Marx e um folhetim do Partido Comunista já era subversivo. Então, se reunir, jovens, sonhar ainda em participar do MR-8. Meu irmão Paulo nunca participou de nada, mas eles se uniam lá na casa do seu Pereira, senhor vizinho lá. E se reuniam lá, não era nada demais, mas acabou, mas aquilo já era pretexto, tanto que eles ficavam de olho nisso e vigiaram o papai porque já era do tipo de vigiar doutor Antônio e o meu pai. Então, tentaram pegar alguma coisa, mas assim no âmbito geral não teve nada, a gente viveu ali no Jardim Glória esse tempo todo, eu inclusive fiquei lá até 1995, quando a mamãe faleceu, a mamãe faleceu em 1994 e eu já tinha meu apartamento e tal, então, mudei pra minha casa, porque eu fiquei com minha mãe até o último dia da vida dela, então, fui ter a minha vida, mudar pra minha casa. Então, mais isso não teve esse impacto não, teve por parte dos parentes, a família aí sim, a família em si era muito dividida, as pessoas já não iam mais à minha casa, os irmãos da mamãe, inclusive, os dois que são generais, um que era general, os outros dois que era coronéis, não iam à minha casa, conversavam com minha mãe pelo telefone, irmã, mas nunca iam quando o meu pai estava lá. Depois de muito tempo, depois que o papai morreu voltaram a frequentar porque a mamãe ficou viúva e acabaram com aquela coisa toda, mas não iam. Papai não fez amizades durante um ano, ele e o doutor Antônio ficaram muito isolados, eles não tinham amigos, quer dizer, aqueles amigos sumiram, eram pessoas não gratas, falavam, esse homem foi caçado. Papai falava, cuidado eu não fui cassado, eu não tive processo nenhum, nem ele nem o Arruda tiveram processo nenhum, nós fomos aposentados sumariamente numa situação de pura exceção, a nossa vida funcional foi extirpada num processo de pura exceção, na ausência do Estado de Direito e mais, aí, imagina pra quem… papai é um pessoa que cuidou das irmãs todas, casou mais tarde porque cuidou das irmãs que eram mais novas, aquela coisa toda, naquele tempo tinha essas coisas todas. É, o filho mais velho, cuidou da minha avó, então, quer dizer, é o filho mais velho que cuidou de todos e depois se vê numa situação dessas, numa idade que já não é… e a vergonha, ir no banco, isso eu me lembro. Não tinha conta, era cheque. Ele recebia no caixa, o pagamento no caixa, quer dizer, os outros tinham conta corrente, são formas de humilhação. Agora, isso somado, tudo isso somado, ele teve uma discompensação cardíaca, ele tomava um remédio chamado Distoxina. Tomou para o resto da vida. Ele teve descompasso cardíaco, ele passou a ter uma disritmia cardíaca e quase morreu uma vez, eu o salvei, eu estava em casa, ele teve um edema pulmonar agudo e como eu dirigia, na época eu já dirigia aquela coisa toda, pude levá-lo até o carro e levá-lo até a Santa Casa. O médico falou que se não chega em vinte minutos, ele estava morto. Isso, o estado de depressão, ele não queria demonstrar isso, mas no final ele já não falava, só o essencial. Nos últimos dias do meu pai, últimos dias, por isso que eu falo que o meu pai já estava se preparando para morrer. E depois que saiu a Lei da Anistia, do Figueiredo, em DDezembro de 1979, lembra? Foi dezembro de 1979. Aí, papai realimentou uma esperança, ele chegou e falou “Eu vou ser reintegrado, isso resgata um pouco do que eu passei, eu vou ser reintegrado, vou voltar a trabalhar”. Isso era importante pro papai, o trabalho era importantíssimo. Ele ficou todo, a questão da autoestima, ele foi um dos primeiros a fazer o requerimento. Nem resposta deram. Essa resposta, eu juro pra vocês, que nem essa resposta deram. Aí, do desenrolar daí pra frente e que foi vendo que era uma anistia parcial, aquela coisa toda, não era igual essa de âmbito irrestrito de 2012, é bem diferente. Mas, até então, não era, aí ele se decepcionou mais ainda e não viu mais horizontes, porque ele pensou o seguinte, eu estou com essa idade toda, estou morto, não vou conseguir mais nada, cheguei no limite. Quer dizer, esses anos todos de luta pra ficar um homem dessa forma, então, ele começou a minguar. Isso eu via, a tristeza nos olhos dele era evidente, e o melhor, mas nunca dentro de casa, se rebelando. Sem falar que ele foi se emudecendo perante a vida, perante aos outros. Ele escrevia muito, aí eu acho que ele sintetizou nessa dez laudas no dia que ele morreu, esses anos, eu acho que cada lauda um ano, mostrando que, eu escrevi sobre a morte em vida e pra mostrar justamente sobre a vida do meu pai. Meu pai foi um homem que morreu em vida, ele foi morrendo aos poucos, no final reúne tudo naquele desabafo final, emoção e o somatório de tudo, ele acaba por falecer da forma que foi, que eu acho que de uma forma muito bonita. Pra nós uma grande tragédia, mas com o passar dos anos eu passei a valorizar parte dele. Meu pai morreu de pé, ereto, meu pai morreu olhando pras pessoas, meu pai morreu olhando pras pessoas, isso é muito forte, é muito digno! Meu pai foi um homem que teve essa graça de ter essa oportunidade, no meu último suspiro eu vou estar ereto, olhando pras pessoas. E estava mesmo, o óculos no lugar, literalmente no lugar, a água escorrendo, eles estavam dando água, já estava morto, assim, e as mãos assim, eu me lembro direitinho. Nem curvado, nem caído, ele só saiu da cadeira quando os médicos o tiraram e colocaram no chão. Então, quer dizer, o que eu tenho, a imagem mais forte que eu tenho desse processo é do pai do Colatino, doutor José Mariano Borges de Morais, da esposa, que eu lembro dessa situação, ela lá pedindo meu pai pra intervir a favor do Colatino. Outras pessoas iam lá, aí eu não me lembro, papai não deixava a gente ouvir, falava vai lá pra dentro, vai lá pra dentro. Porque, às vezes, a pessoa estava ali falando da sua tragédia, papai aí fechava a porta da sala e a gente não ouvia. Mas muitas pessoas, muitas pessoas meu pai atendeu nesse clima, e isso também, atender em casa foi uma coisa negativa, porque a minha mãe diversas vezes chamou a atenção dele por isso, por que o trabalho está lá aí você traz o trabalho pra cá, já é uma coisa difícil, já é um horror, várias vezes brigava com meu pai por causa disso, mas ele não deixava de atender ninguém. Se batesse na porta, pedisse ajuda, ele nunca recusou, isso eu tenho certeza, posso afirmar isso categoricamente. Agora, eu também, vinte anos, vinte e poucos anos, ainda menino, porque na verdade menino mesmo, não é vinte anos de hoje. Eu era menino mesmo, ainda jogava bola no terreno baldio, não tenho vergonha nenhuma de falar, falo pros meus alunos hoje, hoje vocês estão fazendo outras coisas, mas naquele tempo tinha prazer de jogar bola num terreno baldio, andar de bicicleta, aquela coisa toda, namorar ainda estava começando a namorar (risos), hoje os homens começam a namorar com treze, quatorze, quinze anos, o pessoal já tem uma vida ativa. Então, é diferente, tem uma diferença, mas de qualquer maneira pra mim é uma satisfação grande falar e sinto profundamente da ausência dele e eu acho esses documentos, se nós tivéssemos esses documentos aqui, eu acho que ajudaria bastante.
Helena: Sim, com certeza. Oh, Juarez eu acho que é isso, a gente agradece muito o seu depoimento…
Juarez: Peço desculpas, eu não sei o que posso acrescentar, acho que só a vida do papai mesmo…
Helena: Não, você deu uma grande contribuição.
Juarez: Mas foi um momento muito duro, eu acho que outras pessoas, quando somar isso tudo, a gente ver, poder contar essa história com mais detalhes, eu acho que primeiro nós precisamos fazer isso, um dever moral. Agora, outra frase do meu pai, eu encerro porque o meu pai falou uma coisa e eu fico abismado da atualidade, quando meu pai foi paraninfo da faculdade de engenharia aqui, setenta e poucos, pouco antes de morrer, 1975, 1976 não lembro, ele foi convidado par ser paraninfo, meu pai teve um mal estar danado, mas meu pai não tinha papas na língua, falou assim “Eu não estarei vivo pra ver a desgraça que vai se abater pela nação, mas quero dizer para vocês jovens, a corrupção é um vírus letal, quando ela entrar na artéria principal da nação, cinquenta anos vai ser pouco pra por ordem nesse país”. Falou assim, nunca me esqueci disso, hoje, vivendo a nossa história, a história do presente, isso de viver a história do presente, e hoje ele não estava tão errado né, “É um vírus letal, que a gente precisa extirpar…”. Então, eu acho que ele já previa isso, que ele estava preocupado com aquela investigação que ele fez, sobre os desvios, os desmandos, desvio de armas, uma série de coisas que ele viu lá na subsistência também, essas coisas. Já estava sinalizando, pra você ver como ele já estava pensando o efeito pedagógico negativo disso, não educativo, não formativo. A vida é assim mesmo, meu pai odiava esse determinismo, então, eu me lembro, isso é uma coisa só pra colocar aqui, “É um vírus letal se entrar na artéria principal da nação”. Cinquenta anos, nós estamos em 2014, isso foi em 80, ele não estava tão errado assim. Bom, o que vocês precisarem, de qualquer documento, eu assino pra vocês terem acesso. Lá em Brasília realmente foi uma documentação grande, não acho que, acho que é muito mais funcional, era muito mais em detalhes funcional e esse recorte se vocês quiserem eu estou dando a data, eu não tive como imprimir, como eu falei, é o Correio da Manhã, do dia 3 de julho, 3 de julho de 1969, que aparece a reunião do Conselho de Segurança Nacional, é, afasta oitenta e um funcionários públicos federais. Aí vem o nome do papai, lá em baixo, Gilberto Pontes de Andrade…
Helena: Muito obrigado Gilberto pela sua entrevista.
Notas
1 Alzir Carvalhaes Fraga