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Ivanir Iazbeck

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Ivanir Iazbeck

Entrevistado por Fernanda Nalon Sanglard e Danilo Pereira

Juiz de Fora, 28 de novembro de 2014

Entrevista 002

Transcrito por: Danilo Pereira

Revisão Final: Ramsés Albertoni (19/12/2016)

 

Fernanda: Ivanir, boa tarde. Obrigada por ter aceitado o convite da Comissão da Verdade. Eu queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, onde você nasceu, sua data de nascimento, a sua profissão, a sua ocupação. Essas informações mais gerais para se apresentar.

Ivanir: Muito bem. Em primeiro lugar, muito obrigado pelo convite. É uma honra participar deste evento que vocês estão abordando sobre o tema e, em primeiro lugar, eu tenho que confessar que eu não sei se eu vou conseguir acrescentar alguma novidade a outros que já me antecederam e aos que vão, em seguida, dar os seus depoimentos. Mas, vamos à apresentação. Meu nome é Ivanir José Yazbeck, eu sou filho de um casal de libaneses que se conheceu e casou aqui em Juiz de Fora e teve cinco filhos. Eu sou o terceiro, eu sou o do meio. E nós fomos… eu nasci… nós fomos criados, inicialmente, no largo do São Roque, que é avenida dos Andradas, no início do Morro da Glória. E eu fui… estudei no Colégio Santa Rita de Cássia, no primário e, depois, no ginásio, eu fui um péssimo aluno, então, eu fiz o ginásio em diversos anos. Enquanto os outros faziam em quatro, eu fiz em seis ou sete anos. Na Academia de Comércio, depois no São José, no Machado Sobrinho e depois no São José. Até que, um dia, eu convivia muito com um grupo de amigos que, entre eles se destacava um que se chamava Fernando Gabeira, já dava os primeiros passos na profissão de jornalista, de repórter. E ele então, um dia, me convidou para participar de uma… de um trabalho que ele ia fazer acompanhado, com um companheiro, e lá eu percebi que havia uma coisa fascinante neste trabalho de repórter, e eu achei que poderia fazer o mesmo que ele. Ele, então, me deu a mão para dar os primeiros passos nesta profissão de jornalista, sem ter nenhuma formação acadêmica, porque naquela época não se exigia diploma de jornalista, então, o jornalista, todos eles, nessa época, eram pessoas que tinham vocação e se apresentavam nas redações de jornal, do Brasil inteiro, de diversas áreas de formação acadêmica ou não.

Fernanda: E quantos anos você tinha nessa época? Ivanir: É… eu tinha 20 anos, 21 anos. 20 para 21 anos. Fernanda: E você nasceu em que ano, Yazbeck?

Ivanir: Em 22 de junho de 1941. Foi quando eu nasci…

Fernanda: Então isso era início dos anos 1960?

Ivanir: Já. É… aí, os meus primeiros passos na profissão como jornalista, como repórter e fotógrafo foi, então… Existia um semanário que havia em Juiz de Fora, que era a edição da cidade, da Zona da Mata, de um jornal sediado em Belo Horizonte chamado “Binômio – Jornal da Semana”, editado por José Maria Rabelo e Aldo Arantes. São duas figuras que marcaram muito o jornalismo no estado de Minas.

Fernanda: E o Gabeira, trabalhava no Binômio?

Ivanir: O Gabeira trabalhava no Binômio, e nós éramos amigos de madrugada, varávamos a madrugada jogando conversa fora… Fora que eu aprendi muito nessas conversas… madrugada… sobre como consertar os problemas da cidade do país e do mundo. Nós éramos um pouco pretenciosos, mas ali eu adquiri muitos conhecimentos que os colégios não passariam, que é conhecimento político, quem era bom político, quem era mau político, é… quais eram os caminhos que o Brasil já estava começando a trilhar… no sentido de… já era democracia, mas já estava começando a… as democracias, eu comecei a ficar alerta pra isso. (pausa) Enfim, é… nesses primeiros passos então, eu percebi que eu estava no caminho certo com o jornalismo, o jornalismo começou a me fascinar. O Gabeira me emprestou uns livros onde se ensinava o que é bom ou mau jornalismo, como fotografar, então, aprendi e consegui levar pra frente a minha carreira, foi ali que eu me descobri. E, nessa época, Juiz de Fora era uma cidade de… tinha 100 mil habitantes, uma cidade pacata, linda, bonita, bondes correndo a avenida Rio Branco de alto a baixo, levando pra bairros como São Mateus, Bonfim, é… Manuel Honório, Poço Rico… poucos carros na rua, quer dizer, era um ambiente que tem nada a ver com essa Juiz de Fora de hoje. Portanto, as pessoas eram mais tranquilas, mais calmas e… e isso tudo me envolveu logo nesses primeiros passos e eu levei comigo em frente até dar… seguir os passos do Gabeira na direção de Belo Horizonte para trabalhar em jornal diário, mais sério, digamos assim. Depois ele vai pro Rio de Janeiro e eu vou atrás, e chego no Jornal do Brasil pelas mãos dele também, exatamente em 18 de maio de 1964. Aí, já havia… o golpe militar já havia acontecido e, naquela efervescência toda, eu resolvo, então, começar a carreira efetivo, me mudar para o Rio de Janeiro e começar minha carreira efetivamente como jornalista, em 1964. Portanto, esse ano de 2014 foi um ano muito marcante para mim, que eu completo 50 anos de jornalismo iniciado no Jornal do Brasil, não aqui. Aqui, eu diria que foi um jardim da infância, em Belo Horizonte, o primeiro primário, o segundo primário, a partir daí eu deslancho, conhecendo os profissionais mais fantásticos da época no Jornal do Brasil, e vendo e participando de momentos em que o jornalismo começa a florescer com uma força que até hoje ainda é reconhecido como o grande momento do jornalismo, na história do jornalismo do Brasil, nesses momentos pós 1964 que ocorrem no Jornal do Brasil, sob o comando de um personagem chamado Alberto Dines, a quem eu reverencio hoje como uma das maiores capacidades por quem eu travei conhecimento… Carlos Lemos, que era o sub dele e personagens na redação, no copidesque que é um… é uma figura que já desapareceu dos jornais do Brasil, nos jornais em geral, que é o redator… é aquele que pega o texto do repórter e revê o texto, aprova ou corrige, ou manda reescrever, e faz o título e libera definitivamente. Essa figura do copidesque no Jornal do Brasil também merece um capítulo especialíssimo na história do jornalismo brasileiro, porque ali desfilaram personagens fantásticos como Nelson Pereira dos Santos. Eu cheguei no Jornal do Brasil, a primeira pessoa que vi, sentada na mesa batucando lá uma… o que a gente chamava “batucada das pretinhas”… Nelson Pereira dos Santos, quando alguém me apontou eu falei “Eu vou trabalhar ao lado de um cineasta premiado no Festival de Cannes com… naquele anos, com o filme Vidas Secas”… E outros mais, são pessoas que se eu citar aqui não vão significar nada nominalmente, mas que pra mim eu guardo assim… com maior…

Fernanda: Iasbeck, voltando só um pouquinho, nesse seu período no Binômio, em Juiz de Fora, que era um semanário, como era a estrutura desse veículo em Juiz de Fora e como era o ambiente de redações jornalísticas na cidade?

Ivanir: Muito bem. O Binômio, como eu disse, era a edição de Juiz de Fora de um jornal editado em Belo Horizonte, a nossa redação era mínima, era num clube, num edifício, Clube Juiz de Fora, sala 502… e eram duas salas contíguas, e ali nós éramos uma meia dúzia. Professor Fernando Zerlottini… quem trabalhou aqui, quem lecionou aqui, que era o… Fernando era o diretor comercial, que depois se projetou nacionalmente como colunista durante muitos anos no jornal O Globo, essa coluna hoje que é de Ancelmo Gois, foi de Fernando Zerlottini durante muitos anos. Fernando era editor-chefe, Fernando Gabeira que era o repórter de uma eletricidade a todo tamanho, sempre pensando, imaginando e projetando coisas muito acima da média do… da capacidade jornalística dessa cidade, naquela época. Nessa época, havia o jornal Diário Mercantil que era o mais forte, no entanto, não quer dizer que era o melhor jornalismo que faziam, embora fosse o mais forte, era um jornalismo já ultrapassado na época, e eu passei a reconhecer isso depois que eu entrei no jornal Binômio, que eles me mostraram… “Olha, essa linguagem aqui… isso é uma linguagem de século passado, não se usa mais”. E um jornal de Juiz de Fora para Juiz de Fora, no entanto, na primeira página dele, eles faziam questão de destacar manchetes internacionais e assuntos nacionais, mesmo que fossem… que ocorressem lá no Rio Grande do Sul, ou em Rondônia, ou o que for, mas a cidade mesmo ficava relegada ao segundo plano nesse jornal. Só as páginas internas que mereciam lá os seus destaques. Então, eu comecei a ver ali, então, o Diário Mercantil que tinha o seu Diário da Tarde, que era um jornalzinho… ele era lançado às 2 horas, 3 horas da tarde, por vários pequenos jornaleiros que saiam gritando pelo centro da cidade: “Olha o Diário, Diário da Tarde! Um homem roubou uma galinha do vizinho”. Era essa a manchete, porque a violência naquela época era mínima. Quando acontecia algum crime sanguinário, mais violento, aí então… era muito raro, mas quando acontecia, então a gente explorava isso de uma maneira elegante, sobretudo, mas explorava como um acontecimento raro. E, além deles, havia a Gazeta Comercial que eu me lembre, e uma… chamada Folha Mineira. Mas eram jornais muito precários, eram precários especialmente quando nós nos víamos e discutíamos e os analisávamos na redação do Binômio, onde já havia uma projeção assim de um… de uma… de um jornalismo mais moderno, especialmente pela lente do Fernando Gabeira, claro que endossado pelo Fernando Zerlottini que também era… já tinha uma visão bem à frente do geral. Então, ali que eu percebi o que que era um bom jornalismo e o que que era um mal jornalismo, e eu vi que o mal jornalismo era o que se praticava em Juiz de Fora, sem dúvida nenhuma. E o bom jornalismo era representado especialmente pelo Jornal do Brasil, que nós comprávamos na banca, folheávamos, líamos, elogiávamos sempre a bela diagramação… estava começando aí a revolucionar esses aspecto da apresentação gráfica dos jornais. Lá na frente, eu vou participar… e aí também me perdoe a falta de modéstia, mas com muita ênfase nessa transformação de… do Jornal do Brasil como… do Jornal do Brasil como uma escola do jornalismo gráfico, da apresentação gráfica no mundo inteiro, reconhecido no mundo inteiro. E eu tenho uma participação nisso em vários aspectos onde eu consegui encaixar minhas ideias, minha visão pessoal, e sempre aprovado, e ali, criando-se então, modelo para o futuro.

Fernanda: E você se lembra dos dias exatamente em que o golpe se desdobrou, onde você estava, como você recebeu essa notícia, qual foi o comportamento desses jornais que você mencionou em relação a esses primeiros dias, às vésperas do dia 31 de março até os primeiros dias de abril de 1964?

Ivanir: Exatamente nesse dia 31 de março, que foi a véspera, 31 de março de 1964, eu trabalhava num jornal chamado Correio de Minas, em Belo Horizonte. Esse jornal tinha sido… é… fundado dois anos antes até para servir à campanha de Juscelino Kubitschek dois anos mais a frente, em 1965. Ele foi fundado, portanto, dois anos antes para servir à campanha de Juscelino e se firmar como um dos grandes órgãos, batendo de frente com o Estadão e o Estado de Minas… o Diário de Minas… que já eram tradicionais na cidade. Eu, então, já era… tinha começado nesse jornal… eu descobri aquele setor da diagramação. Eu era repórter, passei a ser redator no Correio de Minas, redator era o copidesque, especialmente da área de polícia. Todos os repórteres, todos… dois ou três repórteres de polícia escreviam as suas matérias, passavam pra mim, e eu já passava um… o que a gente chamava “pente”, pra ver onde estava certo, se estava errado, corrigir, fazer títulos, etc., etc… Quando eu descobri, então, essa… eu me senti assim, atraído pela diagramação. Eu ficava sempre ao lado do diagramador, observando, vendo acontecer, e começando a dar as minhas primeiras opiniões, até que eu me firmei como diagramador e nunca mais deixei de ser diagramador, até o resto da minha vida. Então, como diagramador, aconteceu de bater nas minhas mãos as… num é, aqui… um telegrama de 10h33, mas esse telegrama me chegou nas mãos por volta de meio dia, hora em que chego no jornal para trabalhar (exibe um documento antigo). Isso daqui é um documento preciosíssimo que eu guardei comigo até hoje. Esse é o original. Isso é um telex. Telex vem a ser o quê? A notícia distribuída pela agência AP Associated Press pra todos os jornais do mundo inteiro, dando conta… aqui é escrito, está redigido em espanhol… então, o telegrama ia pra mão do redator, no caso até, foi na minha mão, pra traduzir e passar o texto correto, como deveria ser publicado no jornal. E aqui, dá conta o seguinte, em outras palavras, “rumores dão conta de movimentação de tropas na cidade de Juiz de Fora, a segunda mais importante do… é… do estado de Minas Gerais”. E só o fato de estar citado ali o nome Juiz de Fora, aí… falou um pouco mais alto a minha cidadania. Eu falei “é a minha cidade! Juiz de Fora está citada num telegrama da Associated Press distribuído pro mundo inteiro”. E nesse telegrama, então, dá conta de tropas se deslocando da 4ª Região Militar, se deslocando na direção do Rio de Janeiro no intuito de estabelecer já um movimento para depor o presidente João Goulart. Eu guardei esse telegrama comigo exatamente como ele chegou na minha mão. No dia 31 de maio… de março desse ano, eu despertei e… na minha tarefa lá, diária, eu lembrei dele, aí eu fui e desengavetei lá do fundo lá do… dos meus arquivos emplacáveis e fiquei com ele na mão durante muito tempo e isso me emocionou muito. Tá aqui comigo até hoje.

Fernanda: Isso é histórico, né? Isso é uma raridade.

Ivanir: Isso eu acho que merece até ir pra um museu de imprensa, se é que existe esse museu ou se vai abrir. Mas então, aí está. Como é, voltando à tua pergunta, como é “onde eu estava e como eu recebi”… Eu recebi dessa maneira, foi o primeiro contato que eu tive com a realidade, de que alguma coisa estava acontecendo. É verdade que os dias anteriores, os dias antecedentes, eram de uma efervescência política que já prenunciava que algo de muito grave ia acontecer para um lado ou para o outro. Quero dizer, pra o lado do governo ou para o adversário, e é verdade que prevaleceu o do adversário, aqueles que pregavam já, abertamente, a derrubada de João Goulart, a “comunização” do Brasil e que… (pausa) o Brasil ia se tornar uma nova Cuba, então, esse contato que eu tive, então, que ia começar esse momento, através desse telegrama, foi evoluindo ao longo do dia, foi se confirmando e prenunciando já que João Goulart realmente ia cair. Como, de fato, no dia primeiro de abril, o senador Auro de Moura declara, da tribuna do Congresso… ele tava… o Congresso havia se reunido, senadores e deputados… e a Câmara dos Deputados… se reuniu e ele então declarou vago o cargo de presidente da república, erradamente, porque o presidente João Goulart estava ainda em território nacional. Ele não poderia ter feito aquilo nunca. Se o presidente está em território nacional o cargo de presidente é dele, ainda é ocupado por um homem chamado João Belchior Marques Goulart, não pode ser declarado… Bem, a partir daí ele foi pro Uruguai, como eu lhe disse, para evitar um banho de sangue e… o que uns chamam de golpe militar, outros chamam de movimento militar, outros de… de revolução, a partir daí se impôs…

Fernanda: O que que você acha que foi essa ação?

Ivanir: Ah, golpe, sem dúvida nenhuma. Eu sempre me refiro a ele e me lembro dele, discuto sobre aqueles momentos, e sempre o golpe militar, sem dúvida nenhuma. Não houve nenhuma resistência. Houve uma tentativa de resistência, mas que não passou de palavras lá no Rio Grande do Sul, terra de Goulart e de Brizola, que era o que eles chamavam de “o incendiário”. Houve uma tentativa de resistência, mas logo em seguida perceberam, “isso daqui, qualquer resistência aqui é dar murro em ponta de faca e não vai levar a nada, absolutamente a nada”.

Fernanda: E você acreditava, nesse momento, que você teve consciência de que era de fato um golpe militar, com a destituição do presidente da república, você imaginava que isso daria início a uma ditadura militar?

Ivanir: Eu sim, sim… Todos sabiam, todos sabiam, porque um dos primeiros, um dos primeiros atos da… da chamada revolução ou golpe militar, foi começar a perseguição, a perseguição política dos membros de partidos de esquerda, no caso o PTB ou do PCB, na clandestinidade, e prisões já começavam a ocorrer e sem nenhum mandado, sem obedecer à ordem jurídica que é prender alguém dentro de casa, já que tem que ter um mandado. Tudo isso foi pro espaço. A partir daí só foi endurecendo, endurecendo e, claro, com o apoio da imprensa, da grande imprensa. E aí, O Globo, Correio da Manhã, que era um jornal tido liberal, Estado de São Paulo, Folha de São Paulo… O Jornal do Brasil mais comedido, mas aceitando, aceitando, não endossando, os outros endossaram, o Jornal do Brasil aceitou o momento, quer dizer, “a realidade é essa? Ok, vamos cobrir essa realidade como deve ser coberta”. Então, eu não tinha mais dúvida, eu e todos que tinham uma certa, um certo olhar sobre esse momento de… crítico, de militares tomando o poder, evidentemente, não havia como não projetar isso um pouco mais pra frente com uma… com um endurecimento cada dia maior, maior.

Fernanda: E mais, o senhor já estava no Jornal do Brasil…

Ivanir: Não, não. No dia 31, exatamente no dia 31 de março e dia 1 de abril, até o dia 5 de abril eu ainda me mantive…

Fernanda: Em Belo Horizonte…

Ivanir: Mas aí eu já estava começando a ficar inconformado, eu falei “eu já não posso mais ficar em Belo Horizonte”. O meu grande… o meu grande guru, meu guru, que era o Fernando Gabeira, já estava no Rio de Janeiro. Ele foi pro Rio de Janeiro em fevereiro, antes do Carnaval ele já estava no Rio de Janeiro e eu adiando segui-lo, adiando, adiando um pouco mais, até que, quando aconteceu o golpe militar eu falei “eu não fico mais em Belo Horizonte”. Eu tinha poucos amigos, tinha conhecidos de redação, mas eu me sentia assim um pouco deslocado e ao mesmo tempo querendo participar um pouco mais da revolução que estava acontecendo no jornal. Aí, nós tínhamos também uma outra preocupação, uma outra é… vocação, que era “eu quero fazer parte disso daqui”, desse jornalismo, independente se esse jornalismo era a favor ou contra, mas era um jornalismo real, um jornalismo bonito, nobre, equilibrado e, sobretudo, moderno, que estava acontecendo no Jornal do Brasil. Eu falei “não, eu quero participar disso daí”. Então, eu saio do Jornal do Brasil, do… do Correio de Minas, poucos dias depois do golpe militar e volto pra Juiz de Fora. Minha família toda aqui, meus amigos aqui, amigos até de infância que encontrava, e eu fico por um tempo aqui maturando essa ideia de ir pro… pro Jornal do Brasil e pro Rio de Janeiro, adquirindo, na verdade, coragem. Até que, um dia, dentro da minha família, eu ouço o meu pai e a minha mãe dizendo isso “Você tem que tomar um rumo. Você não quer saber mais de Belo Horizonte, Juiz de fora não tem campo”. Não tinha mesmo campo pra mim, talvez se eu batesse na porta lá do Diário Mercantil ou da Gazeta Comercial até me aceitassem, porque eu já tinha um lastro profissional, talvez até me aceitassem, mas eu queria distância disso que se praticava aqui, eu falei “eu quero Jornal do Brasil”. Bem, eu fui adquirindo coragem, até que no dia 18 de maio, exatamente, de 1964 eu chego… eu vou para o Rio de Janeiro às 6 horas, 6 e meia da tarde, porque eu sabia que era essa a hora que o Gabeira chegava no jornal para trabalhar, ele trabalhava nessa época como redator copidesque, eu vou até lá, me anuncio na portaria, mandam que eu suba até o 6º andar, onde era a redação e bato numa porta lá… centenária, lá do jornal… bato, bato, toc, toc… um… me atende, eu falei “Eu quero falar com o Fernando Gabeira”, “Pois não, daqui a pouco ele chega”, “Oh, você aqui!”, eu falei “ É Gabeira, eu quero trabalhar nesse jornal”, e ele “Me espera um momentinho”. Foi lá dentro, daqui a pouco ele retorna com um dos diagramadores, o Jornal do Brasil tinha apenas três diagramadores nessa época, apenas três pra fazer aquele jornal todo, e eu me apresento a ele e digo “Eu quero trabalhar nesse jornal. Eu sou diagramador”. Embora os meus conhecimentos de diagramação ainda eram muito rudimentares, mas eu sabia que era ali que eu ia desenvolver esse meu talento… me permitam a expressão, mas sem modéstia. E eu, naquela noite, eu me sento ao lado do diagramador principal, aí dos três, e ele começa a me dar os primeiros… as primeiras lições. Eu começo a observar, começo a acompanhar os caminhos da notícia. Da notícia, quer dizer, a notícia é redigida pelo redator, pelo repórter, passa pelo redator, o redator faz um título e o chefe do copidesque encaminha para a diagramação, a diagramação localiza aquela notícia na página e ela segue então para a oficina. E aí, então, eu passo a acompanhar todos esses caminhos da notícia. Aí, eu me deparo com a oficina do Jornal do Brasil, que era uma coisa gigantesca, que naquela época ocupava um andar inteiro de um prédio enorme, e para se fazer as páginas, para se fazer realizar as páginas, o que hoje se faz uma pessoa só, solitariamente diante do computador, ele realiza aquela página, naquela época eram dezenas de pessoas, centenas talvez, porque eles se revezavam em turnos e pegando um maquinário pesado. A indústria que se fazia jornal era a indústria pesada, jornais eram chumbo, era em ferro, eram mesas que transportavam as páginas, de ferro, em roldanas, em rodinhas, até chegar lá na impressora. Mas aí eu passo então a descobrir todos esses mecanismos, a entender tudo, aí eu me revelo como o quarto diagramador nesse momento no Jornal do Brasil e sou aprovado. A partir daí, eu deslancho a minha carreira, que vai seguir em frente ao longo de 19 anos no JB, depois cinco anos no O Globo, dois anos, três anos no O Dia, e os últimos anos no jornal Extra, como editor de arte, responsável por estabelecer as regras de diagramação que vão impor aos repórteres um ritmo de trabalho, um sistema de trabalho de se preparar a notícia, de como escrever a notícia, os títulos, as legendas, etc.

Fernanda: E eu queria saber, nessa sua trajetória profissional, durante a ditadura, o que mais te surpreendia nesse processo político? O que você pode acompanhar de restrições aos profissionais que trabalhavam? O Gabeira é um dos que partiu para a militância. Como que era esse envolvimento dos jornalistas com o sistema político então vigente?

Ivanir: Muito bem, aí eu já estou, como eu disse, já estou no Jornal do Brasil. A censura de fato só vai acontecer pra valer em 1967, 1968, a partir daí. Até então, havia, por parte do dono do jornal, doutor Nascimento Brito, condessa Pereira Carneiro e descendo, nessa escala de hierarquia, Alberto Dines, meu editor-geral, editor-chefe… todos eles tinham consciência de que o momento era delicado, que não se podia, mesmo que se condenassem as prisões arbitrárias, as violências, gratuitas algumas, que se cometiam em nome da tal revolução, que deveria… a linguagem do jornal era bastante moderada, entendia o momento delicado pelo que se passava o Brasil. Mas quando começa a censura, aí a coisa começa a pegar. E eu tenho um exemplar que eu participo dele, eu participo dele de uma forma assim bastante efetiva, que foi o… eu… quer dizer, eu e uma dezena de outros profissionais na época… que foi a primeira grande censura, de censor sentar numa mesa, pegar as páginas impressas, impressas na oficina, não impressas na outra… mas impressas nas oficinas para que os editores passassem os olhos, verificassem e liberassem para que ela fosse embora. Então, os censores começam a receber essas páginas e, com um lápis vermelho, sem cerimônia nenhuma, cortar aqui e ali aquilo que não interessasse a eles. E aí é que vem uma edição histórica do Jornal do Brasil que vocês vão ver, vai ser exibido aí, espero… é onde se faz um… a substituição de todas essas matérias censuradas por outros… por outras matérias que não tinham nada a ver com nada e, portanto, despertam no leitor logo aquela certeza de que “esse daqui não é o Jornal do Brasil normal, este é um Jornal do Brasil atípico, portanto, alguma coisa aconteceu com ele. O que que pode ter acontecido? Naturalmente, a censura.” E isso irritou profundamente os censores, mais ainda o ministro da justiça, mais ainda o presidente, o ditador na época, então, veio uma ordem mais ainda expressa que o jornal teria que obedecer rigorosamente, mas sem demonstrar nenhum tipo de… passar nenhum tipo de mensagem desse tipo. Por exemplo, até o tempo foi censurado, o tempo que circula, que… que era… que ocupava a primeira página, no alto, à direita do logotipo “Jornal do Brasil”, e era “tempo para hoje: instável, com chuvas, trovoadas, melhorando no período”, ponto, só isso. Até isso foi censurado, ou melhor, não foi censurado, não foi censurado pelo… com “x” lá de vermelho, nós é que… nós… um redator chamado, que era um subchefe lá do copidesque, chamado Sérgio Noronha falou “Vamos tirar também o tempo, põe aqui ‘Tempo instável em Brasília, sujeito a chuvas e trovoadas’. Põe Brasília aí, para ficar bem patente isso daqui, que alguma coisa estava errada”. Então, mas esse drible da censura, não foi bem um drible, foi um enfrentamento, porque o jornal saiu todo ele censurado, mas, a partir daí, houve então aquela, para responder à tua pergunta de como era o comportamento das pessoas no jornal, era essa, de aceitar, “somos profissionais, o que que tem de ser feito? Tem que ser feito assim”. Aí, a ordem vinha de cima, “então será feito como vocês estão dizendo”, o editor… “vocês da censura”… e nós da redação… “como o senhor está pedindo, como o senhor está mandando, como o editor está nos orientando”, melhor dizendo. Então, todos faziam isso da melhor maneira possível, cumpriam perfeitamente com o que deveria ser cumprido, só que havia a frustração, “não estamos podendo realizar a nossa tarefa, a nossa função de informar como deveríamos”. Isso é frustrante, agora “engula a frustração e vamos lá, porque tem que fechar o jornal e o jornal tem que circular”. Assim, agora tem dois momentos em que novamente Fernando Gabeira vem a… é o personagem dessa minha história, desse meu capítulo. Fernando Gabeira participou do sequestro do embaixador Charles Elbrick e um dos avalistas dele, de um empréstimo no banco… nós éramos muito clientes, fregueses, digamos assim, de dois bancos que ficavam em frente ao Jornal do Brasil na avenida Rio Branco, Banco Nacional e Banco Mineiro do Oeste, e os gerentes dos bancos, que conheciam a todos, estavam sempre muito solícitos a qualquer pedido de socorro financeiro. Socorro financeiro significa “Eu preciso de um ‘x’ agora pro fim da tarde”, e o cara “Então leva essa promissória e alguém avaliza e no fim da tarde você terá o dinheiro”. Numa dessas, poderia ter sido eu, mas não fui porque o Fernando Gabeira encontrou primeiro, como eu já tinha sido antes avalista dele, como ele tinha sido avalista meu em outras transações bancárias… aí, acontece que ele está… ele se defronta primeiro com um outro colega nosso chamado Marcos de Castro. “Marcos, avalize pra mim essa promissória”, “Pois não, aqui está”. Levou e pronto. Quando há o sequestro e logo em seguida, poucas horas… a coisa foi tão malfeita, o sequestro, ou melhor dizendo, tão amadoristicamente, ali não havia nenhum bandido, eram todos eles amadores nesse sentido de sequestrador, assaltante, o que for… e eles achavam que com um sequestro eles resolveriam os problemas, ou quase todos os problemas do Brasil. Eles logo levantaram todos os sequestradores, aonde eles estavam, numa casa em Santa Tereza, e aí começaram a rastrear, porque a casa tinha sido alugada para o Fernando Gabeira. Aí, eles começaram a rastrear a ficha do Fernando Gabeira e chegaram lá no Banco Mineiro do Oeste. “Quem foi o avalista dele, o ultimo avalista dele aqui?”, “Marcos de Castro”. Aí vem o segundo capítulo deste episódio. Numa sexta-feira, à noite, nós invariavelmente fazíamos isso… três ou quatro mais próximos, mais chegados, esse Marcos de Castro, eu, um jornalista que muitos que gostam de esporte pela ESPN vão reconhecer, José Trajano chamado… e um outro chamado João Mariose, que era o sub-editor de esportes… nós, toda sexta-feira, saíamos do jornal e corríamos para um restaurante, para um bar, e um deles era o bar, restaurante Lamas, antigo lá no Rio de Janeiro, muito famoso, tomar chope e conversar, jogar conversa fora, trocar ideia até de madrugada, até amanhecer o dia. E nessa noite, o Marcos nos ligou pra dizer “Hoje vai ser aqui na minha casa, venham todos vocês três pra minha casa, vamos todos tomar um uísque aqui na minha casa”. Por volta de 10 horas fechamos o jornal, fechamos a nossa página, eu, João Mariose e João Trajano e fomos pra casa de Marcos de Castro, lá em Laranjeiras, mais precisamente na praça São Salvador. Fomos direto lá pro apartamento dele, tocamos e atende a mulher dele com a expressão assim… de pavor, e ela estava até num… bem íntimo, em trajes bem domésticos e ela nos diz “Olha, entrem, mas esses dois senhores aqui estão esperando o Marcos”, “E cadê o Marcos?”, “Ah, o Marcos foi até a casa do primo dele”, que era a poucas quadras dali, “Ele foi lá levar alguma coisa e já está voltando”, “E o que eles querem?”, “Eles são do DOPS, querem falar com o Marcos”. Nós trememos na base, e os dois só nos olhavam e nos encaravam. Pensei comigo “Daqui nós vamos todos para o calabouço”. Daqui a pouco chega… e os dois, um deles examinando uma estante enorme que o Marcos tinha na sala com os livros, vendo os títulos dos livros. De vez em quando ele pegava um, folheava, guardava lá outra vez, pegava outro, certamente aqueles mais atrativos a quem está procurando uma pista pra revelar que aquele homem é comunista ou que lê material subversivo. Aí, daqui a pouco a porta se abre e entra o Marcos, que nos vê em primeiro plano e abre um sorriso de boas vindas. Logo em seguida, “Marcos, esses dois senhores querem falar com você”. Resumo da ópera, os dois levaram o Marcos, fizeram ele fazer uma maletinha lá, com pertences pessoais de higiene, levaram Marcos. Ele só reapareceu uma semana depois alquebrado, passou por todo tipo de tortura… e o Marcos, pra usar uma expressão de lugar comum, é uma pessoa incapaz de matar uma mosca… voltou todo alquebrado. E durante uma semana, eu pus até… eu tinha um carro, na época, um… na época era o meu carro… usei esse carro à disposição para que um grupo de outros amigos mais, três, na verdade, que estavam… parentes dele até… que tinham mais condições de passar os dias andando atrás dele… eu tinha que trabalhar, um outro também tinha que trabalhar… fosse atrás dele, percorresse todos os quarteis. E quando nós não localizamos, uma semana depois o Marcos reaparece todo arrebentado. Ele levou anos, e até hoje, até hoje é uma pessoa que diz ter pesadelos com aqueles momentos todos. Então, esses dois momentos que… ah sim, depois o Gabeira é preso, mas aí eu fico sabendo pela prima dele, pela Leda Nagle que vem aqui em Juiz de Fora pra me comunicar, a mim e a família dele, que ele tinha sido preso e nós íamos voltar no dia seguinte pro Rio de Janeiro e começar uma peregrinação atrás de Gabeira também. E esse daí foi logo localizado depois em um quartel lá do Barão de Mesquita em… ele foi preso em São Paulo, trazido para o Rio de Janeiro… e depois, o resto da história dele ele conta muito bem nos livros dele. Mas, esses dois episódios me marcaram muito e marcaram a ponto de… o fato de ser amigo de Gabeira, amigo de Marcos de Castro, eu, durante muito tempo, eu andava pelas ruas, especialmente à noite, quando fechava o jornal e ia pra casa de madrugada, eu andava nas ruas e qualquer pessoa que se aparecesse em uma esquina eu logo tremia, eu ficava olhando pra trás o tempo todo, pra ver se estava sendo seguido. Paranoia? Nem tanto, era uma reação absolutamente natural. Eu falei “Se Fernando Gabeira, Marcos Castro caíram, foram torturados o diabo, de repente, eu vou ser preso também pra ficar uma semana levando bordoada de tudo quanto é lado, até eles se convencerem de que eu era apenas amigo de Gabeira, amigo de juventude, de adolescente e meu guia profissional, e o outro, meu dileto amigo Marcos de Castro”, que era uma figura que tinha, tinha não, tem ainda uma percepção de vida toda ela muito baseada em uma religiosidade muito forte, quer dizer, isso como eu disse, incapaz de espantar uma mosca.

Fernanda: Ao dizer, Ivanir, que no início, pelo menos nos primeiros anos da ditadura, do golpe, e nesse momento prévio também, que todos os jornais, a maioria deles, em sua grande maioria, a direção, os altos escalões, os proprietários desses veículos apoiaram, você falou dos grandes veículos, e desses veículos que estavam instalados em Juiz de Fora?

Ivanir: Mais ainda!

Fernanda: Como era esse apoio?

Ivanir: Muito mais! Eu há pouco tempo fazendo pesquisa… eu fiz muitas pesquisas dos meus últimos livros, foram todos eles baseados em Juiz de Fora… o último deles é a biografia do presidente Itamar Franco, que foi encomendada pelo próprio Itamar Franco, e eu, num primeiro momento, reagia a ele, eu falei “Presidente, não sou eu, não sou eu o autor dessa biografia, isso daí é coisa pra peso pesado tipo Fernando Morais, Ruy Castro, José… e outros mais”, ele “Não, é você quem vai fazer a minha biografia. Você, antes de tudo é da casa, e da casa é de Juiz de Fora”. E ele já conhecia alguns livros meus anteriores e sabia do meu estilo e viu que ali eu poderia ser o autor da biografia dele, como eu fui e muito me orgulho de ter sido, e a obra também muito me orgulha pelo seu acabamento final, com todas as imperfeições que ela possa ter, imperfeições até no sentido de omissões, é natural. Há pouco tempo eu fiquei sabendo de um episódio dele, do Itamar, não vou relatar aqui, é muito longo, que eu pensei que se eu soubesse desse episódio na época, evidentemente… Bem, mas então…

Fernanda: Estava falando do comportamento dos proprietários dos veículos…

Ivanir: Ah, sim! Aí, então, eu, pra fazer o livro do Itamar, eu fui à Biblioteca Municipal, passei dias lá, especialmente pesquisando o período em que ele aqui foi eleito prefeito, aliás, muito antes, numa eleição em que ele foi candidato a vice-presidente na chapa de um… do prefeito, do candidato a prefeito chamado Nicolau Schuery, que era um industrial fantástico, uma pessoa muito conhecida na cidade e eu o conhecia assim, meio que à distância, mas eu tinha uma simpatia muito grande por ele. E o Itamar foi o primeiro a ser lembrado pra ser… ele já era engenheiro formado, já tinha mostrado a liderança dele como… nos diretórios acadêmicos da Faculdade de Engenharia e no DCE. E, então, ele começa a vida como candidato a vice-prefeito e é derrotado na chapa do Itamar… do prefeito Nicolau Schuery, depois ele se lança candidato a prefeito. Isso depois de passar um pedaço do tempo de exílio no Rio de Janeiro. Aí é uma outra história que é muito interessante também, muito atraente, do personagem, sabendo ainda mais que o personagem chegou a ser presidente da república e estabeleceu um divisor de águas na história desse país, e isso está muito pouco sendo lembrado hoje, especialmente hoje em dia, mas o Itamar teve uma importância absolutamente fundamental na história desse país quando ele bancou o Plano Real… e aí eu já estou me desviando do assunto, me perdoem, porque a história de Itamar é muito rica. Mas, então, voltando à pesquisa. Nessa pesquisa, eu peguei lá as edições encadernadas desses tempos de 1962, 1963, 1964, 1965, 1966 e 1967, de 1962 a 1967, e até um pouco mais pra frente, 1970, mas, especificamente, em 1964 que eu observo, eu observo o seguinte, nesse Diário Mercantil havia matérias antes do golpe, matérias em punho… “Esse nosso líder sindical”, esse nosso não, deles… não é meu porque a minha classe profissional é jornalista, a dele era mais dos eletricistas aqui de Juiz de Fora, chamado Clodesmidt Riani. Ele era endeusado nas matérias antes de 1964. “O grande líder sindical, o exímio político, o fantástico deputado federal”. Cheio de adjetivações envolvendo a figura do Clodesmidt Riani. Muito bem. Vêm 1964, ele é um dos primeiros a ser preso… e quem o conhece sabia que covardia que era encostar a mão nesse homem… baixinho, magrinho… e esse homem sofreu os horrores na prisão, ele e todos os outros que eram do PTB, Partido Trabalhista Brasileiro, que era uma partido de sustentação, principal partido de sustentação do governo Goulart. Ele sofreu os horrores na prisão. No entanto, a notícia que passa no Diário Mercantil sobre a prisão dele é assim: “O agitador Clodesmidt Riani foi preso, encurralado em tal lugar e se apresentou, se mostrando numa modéstia que jamais demonstrou na sua vida”. Mas um editorial… A notícia, toda ela é editorializada, editorializada quer dizer o seguinte, você passa a notícia toda cheia de adjetivações, o que contraria, em princípio, o bom jornalismo. Há maneira de você adjetivar a notícia, mas sem ser assim, carregar aquilo com a sua emoção, carregar a notícia com a sua emoção. Ali que eu vi, então, que tipo de jornalismo que se fazia. Mas não é só em Juiz de Fora não, a verdade é que 95%, 99% da imprensa, especialmente a do interior, que mais depende de quê? De verba da prefeitura, do governo estadual…

Fernanda: E ainda havia a presença da 4ª Região Militar.

Ivanir: Além disso! Além Disso! O medo… aqui veio aquela, me permitam, uma expressão meio chula, o puxa-saquismo. Até uma manchete que eu vejo no Diário Mercantil, vocês podem ir lá ver, pra dizerem que eu não estou mentindo, que anuncia o aniversário de um general, meu deus do céu! “O general fulano de tal faz hoje tantos anos”, ou “fez ontem tantos anos e comemorou com bolo e a oficialidade… presentes, figuras importantes do empresariado, da política”. Pelo amor de Deus! O aniversário de um general ser… ocupar metade de uma página.

Fernanda: E o que aconteceu com o Binômio?

Ivanir: O Binômio acabou imediatamente. Ele foi empastelado. Empastelado…, entraram lá com baionetas, com cassetetes, com coronhadas e arrebentaram com o Binômio todo.

Fernanda: E isso foi ainda em 1964?

Ivanir: Foi logo em seguida! É possível que tenha sido… eu não sei exatamente, mas no dia 1 de abril, no dia 2 de abril… logo em seguida. Houve a invasão da redação do Binômio lá em Belo Horizonte… acabaram com o Binômio e os seus diretores fugiram, escaparam. Bom, o José Maria Rabelo ficou exilado no Chile até a anistia, em 1977, 1978.

Fernanda: E aqui fecha em seguida.

Ivanir: E aqui só fechou. Fechou, vão deixar isso aqui aberto? Não se falou mais em Binômio, inclusive, a circulação dele era mínima, era muito pequena.

Fernanda: Mas era um dos poucos que o senhor acredita que fazia algum tipo de crítica mais profunda?

Ivanir: Lá em Belo Horizonte, sim. Não só a critica ao regime, ou melhor dizendo, nem chegou a fazer crítica ao regime, mas fazia crítica à oposição, fazia criticas a todas aqueles que já estavam pregando o golpe, e eles sempre defendendo a legalidade. E havia realmente a… como é a expressão da legalidade? Frente da Legalidade… não era bem isso não, mas digamos que seja isso, Frente da Legalidade. Então, cobria-se isso “A Frente da Legalidade estará hoje em tal lugar fazendo comício e coisas e tais”. Então, dava sempre destaque a aqueles e ao governo, e combatia aqueles que pregavam o golpe. Aí, inevitavelmente, o Binômio, no dia seguinte, já não existia mais.

Danilo: O senhor, no Jornal do Brasil, o senhor falou das questões das restrições que vocês sofriam pelo censor. Existia algum tipo de registro dessas restrições que vocês recebiam?

Ivanir: Existe! Existe! Há pouco tempo até, eu estava relendo os depoimentos do Alberto Dines até… e ele lembrando destes momentos da censura na redação. E aí ele lembra que houve um tempo depois que… a censura na redação durou algum tempo, pouco tempo, digamos um mês… depois, não havia mais presença física do censor na redação, mas diariamente chegava no jornal textos em que se dizia “isto pode, isto não pode”, e isso ia para um caderninho preto, eles chamavam de caderno preto. “Tá no caderninho! Pode ou então não pode”. Eu sei que esse caderninho preto ficou famoso assim “Olha, não pode, porque está no caderninho preto. O caderninho preto diz que pode”. Entendeu? E ele diz que guardou… ele tem com ele guardado esse caderno preto, mas sempre laconicamente. Exemplo, um belo exemplo esse, o golpe do Chile, em setembro de 1973, Salvador Allende cai, é derrubado, assassinado por aquela figura hitlerista do general Augusto Pinochet, a nossa versão hitlerista na América Latina. Por acaso, lá estava no Chile, estava de férias, passando férias lá… um dos nossos editores, editor da internacional, por acaso até da internacional… estava passando férias lá com a mulher, e ele estava em um hotel que ficava numa praça em frente ao Palácio de La Moneda, que onde era a sede do governo chileno. E ele liga, ele consegue, de alguma forma, ligar e passar as primeiras informações, “Olha, eu estou vendo daqui agora, o Palácio de La Moneda está sendo bombardeado, aviões fazendo voos quase esbarrando nos telhados e é uma balbúrdia só, e tanques de guerra”. Ele descreve o clima da praça em frente ao Palácio de La Moneda, e a complementação desse relato dele vem através dos telegramas, da United Press, da Associated Press, da Reuters, etc. E o Alberto Dines, então, estabelece: “Olha, nossa manchete vai ser aquela de Salvador Allende”. Ok. E o resto da página, com outras chamadas locais, de esporte, policial, se é que policial havia não muito naquela época, tinha que ser muito forte para merecer, ao contrário de hoje, merecer uma chamada no Jornal do Brasil. Enfim, uma primeira página convencional, mas a manchete “Golpe militar derruba Salvador Allende”, vem um texto em que relata, “Nosso correspondente, o editor de internacional, Umberto Vasconcelos, relata que houve…” e completa a notícia com o noticiário das agências. Aí, chega… aí, toca o telefone, 10 horas da noite… o Dines comandou essa página… a página é então uma manchete. 10 horas da noite toca o telefone, “Aqui é do quartel tal… do DOPS. A ordem é a seguinte, a derrubada de Allende não pode ser manchete do seu jornal”. Imediatamente ligam para o Alberto Dines, o Dines corre pra redação, e ele já vem matutando, “Não pode ser manchete?”. Ok, ele então chega, “Olha, vamos fazer o seguinte, não vai ter manchete, não tem título”. Manchete convencionou-se chamar o título principal de qualquer página, não é? Qual a manchete desta página? É esporte? Pelé está internado. Qual é a manchete da polícia? Fulano mata cinco. Manchete da política, etc. Manchete da primeira página não pode ser sobre o Salvador Allende. O Dines então tem uma “bolação” genial, que é fantástica. Então, “Deixa o espaço onde correria a manchete, aquele espaço onde correria as letras, a tipologia que formam as letras e palavras, deixa em branco… deixa em branco, tira todo o material de chamada da primeira página, divide a página em quatro colunas e espalha todo o texto que nós temos aí nessas quatro colunas”. “O presidente Salvador Allende foi derrubado ontem por um golpe militar que bombardeou o quartel, o Palácio de La Moneda e foi assassinado. Os quarteis, todos eles estão de prontidão e tanques de guerra vasculham todas as áreas”. Enfim, e aí me coube como diagramador apenas isso, “Ivanir, calcule o número de linhas”. Na época nós estamos falando ainda de máquinas de escrever. “Calcule o número de linhas que isso daqui corresponde em corpo 14 ponto 68”. O que vem a ser isso? Corpo 14 é o tamanho da letra, isso todo mundo que trabalha com computador sabe disso, ponto 68 era uma identificação da tipologia, e isso é feito lá na oficina. Eu calculei o número de linhas, passei pro redator, o redator então preencheu aquelas linhas. Ficou uma página sem manchete, apenas com o texto. Ok, então satisfizemos a ordem, cumprimos a ordem da censura, não há manchete, o jornal vai para a banca. Só que qualquer leitor que passa pela banca e vê aquele jornal estampado diante de outros com aquela armação convencional, a fotografia, vários títulos, várias manchetes, e vê uma página só de texto com um branco lá em cima, ele logo percebe, “Isso não é normal, o que justificou essa… fugir do convencional?”. Pronto. Tem muito mais apelo do que se fosse uma manchete em três, quatro linhas, ocupando metade da página, “Salvador Allende é morto por militares”. Muito mais apelo do que se tivesse… Aí, a censura explodiu de revolta, de raiva contra essa inventividade do Alberto Dines. Isso daí, para mim, é uma página que eu participei dela com o maior prazer, com o maior orgulho só pelo fato de ter calculado, porque quem diagramou, na verdade, foi o Alberto Dines, ele só me pediu “Calcule o número de linhas”. Eu calculei. São esses os momentos que mais me marcaram no jornalismo carioca… é, carioca, porque Jornal do Brasil, depois O Globo, depois O Dia, depois o Extra, e sempre foi lá que eu comecei e encerrei seriamente minha carreira como jornalista.

Fernanda: Ivanir, eu queria te agradecer e saber se você tem algo a mais que você acha que de repente faltou a gente te perguntar, ou se a gente pode…

Ivanir: Pois é, algo a mais? Eu ainda acrescentaria o seguinte. Ainda há pouco eu ouvi um colega meu dizer que não sente mais saudades da redação de jornal, “Eu não sinto saudades mais não”. E eu disse que eu sinto, especialmente nos grandes momentos. Quais são os grandes momentos? No dia em que aqueles malucos do Bin Laden derrubaram aquelas duas torres, eu desejei muito estar presente na redação de um jornal pra participar da feitura visual da página, bolar como é que seria transmitir visualmente aquele impacto. No dia em que o Brasil foi campeão do mundo em outros tempos, tricampeão do mundo, tetracampeão… não, tri não, tri eu participei… tetracampeão do mundo. Então, nos grandes acontecimentos, que são raros, mas acontecem, nesses grandes acontecimentos eu quero estar presente numa redação. Não posso, minha idade não permite mais e nem me querem mais, mas aí nesses momentos sim, eu sinto muita falta da redação. E eu tenho sonhos… são raras as noites em que eu não sonho eu estar numa redação de jornal… velhos companheiros, velhos amigos fazendo uma coisa que… me marcaram ao longo destes 40 anos no Jornal do Brasil, no O Globo, no Extra…

Fernanda: E você pode fazer parte desse momento histórico no caso, que a gente esta contando, que, apesar de triste, apesar de trazer um monte de coisas, também é por meio do jornalismo que as pessoas tomam conhecimento dos fatos do mundo, não é? Ainda que parte deles tenham, em algum momento, sido censurados.

Ivanir: Pois é, é isso mesmo, ser o intermediário, o jornalista é isso. Vou reprisar aqui uma frase que pode parecer boboca diante de tantas definições de jornalismo, ser o intermediário entre a notícia e o leitor é uma coisa que mexe muito com o teu emocional, com a sua criatividade, sobretudo a sua criatividade, mas a criatividade é movida pelo seu emocional. Uma notícia que não representa nada, um fato que não representa nada não faz o meu coração acelerar. Já ver duas torres explodirem daquela forma, o meu coração acelerou, é evidente, não só meu, do Brasil inteiro. Quando o Collor cai, outra edição que eu participei dela ativamente, me orgulho da primeira página que fiz no jornal O Globo nessa época, e que guardo comigo até hoje. Não foram todas não, mas algumas das principais páginas que eu fiz disso que eu chamo de momentos extraordinários, eu faço questão de guardar. Então, esses momentos são os mais emocionantes, que ficaram marcados pra sempre, e que seja assim.

Fernanda: Agradeço muito, acho que você contribuiu muito.