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Daniela Fernandes Arbex

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Daniela Fernandes Arbex

Entrevistada por Fernanda Nalon Sanglard e Helena da Motta Sales

Juiz de Fora, 22 de janeiro de 2015

Entrevista 009

Transcrição: Sabrina Carter F. dos Santos

Revisão Final: Ramsés Albertoni (15/01/2017)

 

Fernanda: Daniela obrigada por ter aceitado o nosso convite, pela confiança. É o seguinte Dani, a gente gostaria que você começasse se apresentando, que dissesse o dia e onde você nasceu, e como começou sua carreira de jornalista.

Daniela: Então, eu tenho que olhar para cá ou posso falar com você?

Fernanda: Pode falar comigo.

Daniela: Tá. Eu nasci… ai gente, esse negócio de nascimento não é bom não (risos).

Helena: Se não quiser falar não tem problema.

Daniela: É claro que eu vou falar, eu estou brincando. Eu nasci em 1973 em Juiz de Fora. Eu sou nascida e criada em Juiz de Fora, eu nunca saí da cidade e isso é uma das coisas que… eu construí toda a minha carreira aqui. Eu entrei para a faculdade de jornalismo em 1991, formei em 1995 e comecei direto; saí de lá da faculdade para a Tribuna onde eu trabalho até hoje, né. Aliás, hoje, especificamente, hoje é dia 22? Eu faço 19 anos de Tribuna hoje. E era uma das críticas que eu sofri muito assim, porque que eu estava em Juiz de Fora, que eu teria chance de crescer fora daqui, que ficar no interior era enterrar a carreira. E eu nunca pensei dessa forma e acho que a trajetória da minha carreira está mostrando que existe vida fora do eixo Rio-São Paulo. Eu acho que é uma experiência bem sucedida de fazer jornalismo de qualidade no interior.

Fernanda: Ótimo. Dani, como você contou, você nasceu na década de 1970, então, é praticamente 10 anos depois do golpe de 1964. Provavelmente, você não tem memória nenhuma…

Daniela: Não, é isso…

Fernanda: Desse início da ditadura. Você nasce ainda num período de ditadura, mas não tem memória desse início. No entanto, você foi uma jornalista que descobriu um dos casos talvez mais importantes, pelo menos para a cidade, em relação ao período ditatorial em Juiz de Fora. Que foi o desaparecimento, né, do corpo de um militante político que foi morto; encontrado morto na cidade. Como que você se atinou para esses casos em relação, não é a sua única matéria em relação a casos da ditadura, mas queria que você contasse um pouco geral, assim, dessa atenção que você dá para essas violações, né, dos direitos humanos.

Daniela: Eu falo isso até no meu novo livro que é o “Cova 312”, que eu preparei e vai ser lançado em abril, eu falo isso, explico um pouco dessa história. Porque, como você mesma falou, eu nasci em 1973, eu só conheço a ditadura pelos livros, por que eu era muito pequena quando tudo isso… aliás eu nem tinha nascido, né, em 1964, e 9 anos depois eu nasci. A ditadura se estendeu até o final da década de 1970, mais eu era menina, não vivi nada disso. Isso era uma coisa… todas as histórias que eu tinha ouvido falar, por tudo que esse período foi para o Brasil, que eu acho que foi um período muito sombrio para o país, talvez mais trágico para o Brasil, sempre quis colocar o meu jornalismo em serviço de causas que eu considerasse importante, e essa era uma delas. Então, assim, quando em 2002 eu li na Tribuna, na editoria de política, que uma comissão estava recebendo inscrições para avaliar e examinar os casos de tortura, dentro das dependências do Estado, que era a Comissão Estadual de Indenizações às Vítimas de Tortura, eu fiquei muito impactada por aquela informação. Porque eu falei “Meu Deus, isso é muito importante. Eu quero conhecer quem foram essas vítimas, saber os nomes delas e tal, se tinha alguém daqui”. E aí, conversei com meu chefe na época, que até hoje é o Paulo César, o PC, falei com ele que eu queria contar essa história. Sabia que essa era uma história que era de política, eu não era repórter de política, né, então, era do setor de política, mas eu queria roubar está história para mim, porque eu queria contar esta história. “O Dani, você pode contar, desde que você traga alguma coisa diferente, porque todo mundo já contou está história”. E aí, o quê que eu fiz? Comecei a trabalhar em duas frentes. A primeira foi conversar com a Comissão e, eu fui muito bem recebida pelo Robson Sávio, que era o presidente na época, e é uma pessoa muito engajada e tal, até hoje, para perguntar se tinha requerimentos de juiz-foranos na Comissão e ele falou que tinha, mas que ele não sabia quantos que ele ia levantar e tal. E eu comecei a conversar com as pessoas que tinham vivido aqui, que tinham sido presas em Juiz de Fora, para tentar levantar alguma informação que pudesse ser relevante. E aí, numa dessas conversas, eu resolvi telefonar para o Nilmário que, na época, era o presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara Federal, depois veio a se tornar ministro, um ano depois, né, dos Direitos Humanos e eu falei “Poxa Nilmário, você foi preso em Juiz de Fora, em Linhares, do que que você se lembra do período? O que que te marcou mais? Alguém morreu em Linhares?”, ele falou assim “Teve uma morte que foi a do Milton, ele era guerrilheiro do Caparaó, mas o corpo dele nunca foi encontrado”. E isso, aquilo eu ouvi a palavra mágica, assim “Gente, mas um corpo não pode sumir. Não, então, é isso que eu vou fazer, vou procurar o corpo do Milton”. Imagina, loucura, né, de pensar uma coisa dessa. Hoje, eu olho para trás, eu falo um pouco disso no livro assim, de que que me deu naquele momento para resolver sair busca de um corpo, que é uma coisa muito difícil. E aí, então, eu comecei a fazer toda essa pesquisa e foi uma pesquisa paralela às entrevistas com os militantes de Juiz de Fora que tinham sido torturados, que tinham sido presos e tal. Foi muito interessante, por quê? Havia uma resistência enorme dos militantes de Juiz de Fora de me contar a história deles, porque era uma ferida que nunca tinha cicatrizado, como não vai cicatrizar até hoje, enfim. E eles nunca tinham contado publicamente a história deles. Então, assim, foi um trabalho mesmo de aproximação, de conquistar a confiança deles para que eles pudessem me contar um pouco do que foi. Embora eles tenham dito, reforçado, que na maior parte das vezes que eles não tenham sofrido tortura em Linhares, mas eu comecei a perceber que a história de Linhares é muito rica, muito assim. O que me chamou atenção e isso me fez também hoje escrever no meu livro a história de Linhares foi isso, como que uma das penitenciárias mais importantes do país, né, não ter a sua história ainda contada? É, enfim… E aí, nisso eu comecei a localizar os parentes do Milton em Porto Alegre e fui ouvi-los sobre o que eles sabiam. O que eles receberam de informações do exército na época, enfim, fui fazendo todo esse trabalho de busca e eu já tinha conseguido todo o material de pessoas que tinham ficado presas com Milton, mas eu não tinha achado nada sobre o corpo dele. É aí, um dia, que eu já estava com o material todo fechado e a gente já estava pensando em que data ia publicar todas as histórias e tal, resolvi ir no Cemitério Municipal. Foi assim, literalmente assim, “Eu vou no Cemitério Municipal, vou ver se tem alguma informação lá e tal”. Cheguei lá e fui bem recebida, surpreendentemente bem recebida por um funcionário que estava lá de passagem, inclusive, e eu perguntei se ele tinha o livro de óbitos de 1967 e ele falou que tinha, a gente olhou e a informação que eu tinha era que o Milton, mais ou menos em abril, mais ou menos não, que ele tinha morrido em abril de 1967. E a gente foi para abril e não achou nada e eu agradeci e ia saindo e ele falou “Espera, vamos olhar de novo?”. E nessa de espera vamos olhar de novo, eu falei “Ué, vamos olhar”. Eu já estava na porta, voltei e aí a gente começou olhar com mais cuidado e tal. Então, aí ele me chamou “Vamos olhar de novo?”, aí eu falei “Vamos olhar de novo”. Voltei, a gente começou a olhar com mais cuidado até que ele falou pra mim assim, ele estava passando o dedo na lista e falou assim “É Milton Soares de Castro?”, eu falei “É”, e ele falou assim “Está aqui, na cova 312”. Ele não falou cova, ele falou sepultura 312, quadra L. Eu fiquei completamente maluca, comecei a gritar, falei que isso era a história do Brasil, foi uma loucura. E aí, ele falou que eu não podia sair de lá com esses documentos, com esse documento que ele tinha localizado com o nome do Milton e mais outros documentos que estavam no arquivo, não no arquivo digital, no arquivo de papel. Que tinha a guia de sepultamento dele e tinha, além da guia de sepultamento, a certidão de óbito dele. E aí, isso me trouxe várias informações novas, porque aí a guia de sepultamento dizia… tinha várias coisas que não estavam explicadas, por exemplo, tinha uma rasura na guia de sepultamento que, inicialmente, aparece a morte dele dia 27, na certidão de óbito, inicialmente, aparece a morte dele dia 27 de abril, depois eles colocam o número oito em cima do sete e mudam a data da morte. Eles colocam que o Milton foi sepultado no cemitério em Santa Maria, onde ele nasceu, no Rio Grande do Sul, depois eles mudam, não é em Juiz de Fora, enfim… isso me chamou atenção. Outra informação que me chamou atenção foi que eles é… quem assina, na guia de sepultamento, para contratar a cova rasa, era um homem chamado Valdir Aguiar que, agora, eu não me lembro de cabeça, que eu descobri que tinha sido sargento do exército, acho que foi o Valdir mesmo, que tinha sido sargento do exército, mas que naquela época já tinha dado baixa do exército, ele não estava nem no Brasil. Então, assim, ele mesmo fala, ou é um homônimo ou usaram o meu nome. Então, assim, isso foi, esse material que eu considero muito rico assim é, na verdade, trazia indícios de que ele tinha sido morto pelo exército. É uma dúvida que sempre ficou na minha cabeça. Se não foi assim, por que que a família nunca soube onde que o corpo tinha sido colocado? Por que que o exército negociou com a família do Milton a devolução do corpo, quando o Milton já estava enterrado? Entende?

Fernanda: Como a família tomou conhecimento?

Daniela: A família tomou conhecimento, primeiro, por que a notícia da morte saiu no rádio e isso rodou o país. O irmão dele estava no Rio Grande do Sul, estava preso… estava preso o Edelson, no Sul, e ele ouviu do rádio… É, e ele ouviu no rádio da guarda, do corpo da guarda onde ele estava, a notícia da morte de um militante, um guerrilheiro do Caparaó, dentro de Linhares. Praticamente no mesmo dia, é, à tarde. E ele falou assim “Ah, o Milton não é, porque ele jamais se mataria”. Ficou tranquilo e aí, até que ele foi chamado, de tarde, e o exército deu a notícia para ele “Infelizmente seu irmão se matou”. E ele não aceitou essa versão e falou “Isso não pode, se matar”. E aí eles começaram, a mãe, que eles eram uma família muito pobre, nem sempre foram pobres, mas estavam pobres e a mãe começou a negociar “Eu quero o corpo”, e o exército “Nós vamos mandar”. Ficou naquela, e aí eu fui descobrir que, na verdade, o corpo já tinha sido enterrado, enquanto eles estavam dizendo que iam mandar. Quer dizer, coisas assim incompreensíveis, sabe. Por que que eles fizeram isso? Já que ele já tinha se matado, por que esconder isso?

Helena: Deixa eu te fazer uma pergunta? Se existe, é um atestado de óbito, não é lá de Santa Maria?

Daniela: Não, o atestado de óbito é daqui, eles é que falam inicialmente que ele foi enterrado lá e depois corrigem a informação. Então, assim, é muita rasura num documento só, entendeu.

Helena: Mas o que que te faz ter certeza de que ele foi enterrado aqui? O que que te faz ter essa certeza?

Daniela: Bom, na época, eu não tinha todos os documentos que eu tenho hoje. Mas o que me fazia ter certeza absoluta que ele foi enterrado em Juiz de Fora, porque a guia de sepultamento dizia que o Milton foi enterrado às 2h da tarde do dia 29 de abril de 1967 na quadra L. E na… é de indigentes. Isso para começar. Também não fazia sentido para que que eles iam inventar isso. Outra coisa, foi feita uma necropsia pelos dois médicos do exército, o Nagem e um outro que eu esqueci o nome agora, que se viram apertados porque eles não têm e não são especialistas em medicina legal. Então, eles tiveram que chamar um médico civil, que é o Guadalupe, para atestar. Quer dizer, tudo foi feito aqui, o corpo dele não foi tirado daqui. Então, assim, naquela época o que eu tinha era isso. Depois, hoje, a documentação que eu tenho é contundente da prova da morte, do enterro dele aqui em Juiz de Fora.

Fernanda: Você chegou, na época, a acionar o Hospital Geral do Exército?

Daniela: Acionei o hospital e foi muito interessante, porque o hospital disse que não podia me dar. O que eu queria do hospital? Eu queria o livro que me diz que horas ele deu entrada lá, porque existem muitas versões, assim, e é interessante porque ele foi retirado da cela para prestar depoimento no dia 27 à noite, entendeu. E ele foi encontrado morto na manhã, no dia seguinte. Então, como existe a suspeita de que ele morreu no interrogatório, existia, na época, aquela suspeita para mim, eu queria saber exatamente que horas o corpo deu entrada no Hospital Geral… no hospital militar, e eu não tive acesso. E acho, isso eu não tenho certeza, é até uma coisa que eu nem voltei a falar com o Nilmário, que a própria Comissão Nacional não teve acesso, que eles negaram acesso e alegaram que não podiam porque era uma questão reservada. Imagina, em pleno século XXI o hospital negou acesso. Não negou acesso só naquele momento, eu não sei se vocês tiveram acesso, mas eles não negaram acesso só naquele momento, negaram agora também. Mesmo com a lei de acesso à informação pública.

Fernanda: Mais de 20 anos depois.

Daniela: Mais de 20 anos depois, com autorização da juíza auditora militar que disse a eles que deveriam me entregar, eles não entregaram.

Helena: A doutora Maria do Socorro?

Daniela: Maria do Socorro falou com eles que podiam me entregar e eles não entregaram, deram um milhão de desculpas.

Helena: Certamente ele teria ido para o pronto-socorro, né.

Daniela: Existe uma versão sim, de que ele foi… é, de que ela foi muito contestada, aliás. Eu não posso falar muito sobre isso, porque isso já faz parte do meu trabalho atual. Mas existe essa versão de que ele foi levado, foi levado onde foi atestado o óbito dele, no pronto-socorro.

Helena: No pronto-socorro ou no hospital?

Daniela: A questão não é que ele foi para o pronto-socorro, a questão é como ele chegou no pronto-socorro, é essa que é a grande questão, entendeu. Que levado ele foi, mas como ele chegou, né? Pelo menos assim, levado ele foi, imagina, ele saiu… saíram com ele do… saíram com ele de Linhares para algum local, eles alegam que foi para o pronto-socorro. Embora eu acredite, essa é uma versão que é muito suspeita, porque ele já saiu morto de Linhares e eles alegam que ele saiu vivo, e isso é mentira.

Helena: Já saiu morto?

Daniela: Já saiu morto.

Fernanda: Ele foi interrogado na própria penitenciária?

Daniela: Não, foi no quartel, no QG. Foi interrogado lá.

Helena: Quer dizer que, mesmo no caso dele, ele não teria sido torturado na penitenciária?

Daniela: Não, não houve, isso eu atesto com base em todos os depoimentos e olha, eu tenho… no livro a “Cova” tem mais de 40 personagens, todos são categóricos em afirmar que não houve nenhum tipo de tortura em Linhares. E, realmente, não houve em Linhares. Por que que não houve, por que eles eram bonzinhos? Não, porque eles já não estavam em fase de interrogatório, eles já estavam em fase de cumprir pena, não precisava arrancar mais nada deles. E eles usavam a tortura como método de interrogatório, né. Então, assim, por isso que não houve e, agora, o que se tem a ideia muito de que existe até um trabalho muito bem feito, aliás, de uma historiadora, uma estudante, falando do purgatório, como se lá fosse um local muito mais tranquilo que os outros locais.

Helena: Flávia?

Daniela: Da Flávia. O trabalho dela é muito bom, mas lá não era esse local muito mais tranquilo. Ela coloca o título, sugere isso, mas, depois, ela mesma coloca isso assim “Linhares foi um local de muita resistência, de muitos embates, de muitas greves de fome, né, enfim, de uma tentativa séria de motim que teve uma invasão da polícia do exército na cadeia, de bomba, de baioneta”. Então, assim, Linhares não foi o paraíso, está longe de ter sido o paraíso, entendeu. E a história de Linhares é muito rica, porque eu considero e eu falo isso no meu livro, agora, que nenhuma outra penitenciária do país foi tão rigorosa quanto Linhares foi no cerceamento das visitas, entendeu. Chega a ser cruel a forma como eles puniam os militantes, suspendendo aleatoriamente as visitas e tal. Então, é uma coisa…

Helena: Mas, então, voltando só um pouquinho, para mim entender essa sequência de fatos. Ele saiu de Linhares e foi para o QG, é lá onde ele foi torturado, né, interrogado, torturado?

Daniela: Sim, sim, onde ele foi interrogado.

Helena: Aí, ele volta para Linhares, mas aí, quando ele sai de lá sai morto, é isso?

Daniela: Então, agora é o que eu tentei provar no meu livro o seguinte, que ele não chegou… voltou para Linhares vivo. Que ele foi colocado morto dentro da cela, entendeu?

Helena: Ah, entendi.

Fernanda: Mesmo por que, né, Daniela desde a sua primeira matéria já fala isso…

Daniela: É, eu já falei isso, as falas dos amigos dele, agora, o que é a minha tentativa agora…

Fernanda: Ele era muito alto…

Daniela: Muito alto, ele tinha mais de 1,80m e a torneira tinha 1,20m. Mas não é só isso, eu acho, assim, isso é o de menos, assim… é… porque eu não posso falar tudo, infelizmente eu também tenho um contrato de confidencialidade, eu gostaria de estar falando todos os detalhes que eu tenho dessa história. É totalmente verossímil todas as versões que o exército tentou oficializar em relação à morte do Milton, entendeu. Ao suicídio do Milton, totalmente verossímil.

Helena: Você afirma, com tranquilidade, com certeza, que o Ralph Grunewald é que foi que esteve com ele nesse último interrogatório?

Daniela: Eu tenho documentos que provam que ele foi interrogado pelo Ralph.

Helena: Pelo Ralph Grunewald?

Daniela: É sim, ele foi interrogado pelo Ralph. Agora, o Ralph não estava sozinho na sala, o Simeão de Faria participou desse interrogatório e tinham cinco soldados além de quem estava, participou como escrivão, tinham cinco soldados fazendo a segurança ali. Então, a gente… o que eu não tenho prova cabal como as outras coisas é o que aconteceu especificamente ali para que isso, o depoimento virasse, tomasse outro rumo. Existem algumas suposições, eu tenho alguns diálogos importantes de pessoas que presenciaram aquele interrogatório, parte do interrogatório, entendeu.

Helena: Mas ele teria entrado em boas condições?

Daniela: Entrou em boas condições, ele foi visto, ele entrou andando.

Fernanda: Ele foi interrogado no momento que não era o geral ali, comum, por conta de uma discussão prévia de algo que teria acontecido previamente em relação a ele e o Ralph, como em algumas das suas matérias você coloca parece que você deu como discussão?

Daniela: Não, a questão é a seguinte, que discussão foi essa? O Milton é uma coisa muito interessante, assim, o Milton foi a única pessoa da guerrilha do Caparaó que morreu e, até agora, nesse momento do livro, desde 2013, quando eu comecei a apurar toda a história de novo e que houve uma reviravolta na investigação, o que eu sempre ouvi dos companheiros dele é por que um livro sobre o Milton? Como se ele não fosse ninguém, porque ele era o único civil, tinham dois civis, ele e mais um, mas o único civil que foi preso na serra foi ele. Todos os outros eram da aeronáutica, eram do exército, da marinha, quer dizer, então, eu acho que eles acham um absurdo, é… estou sendo muito dura, né, vou tentar ser mais educada. Eu ouvi de vários guerrilheiros, ex-guerrilheiros do Caparaó isso “Mas por que um livro, mas por que o Milton? Porque ele era fraco e que ele era uma pessoa fragilizada”. Essa descrição não é compatível com os documentos do exército que dizem que o Milton era o mais forte da guerrilha, que ele era o mais combativo da guerrilha, isso não sou eu quem estou falando não, é o exército, ele era o mais forte de todos. E eu consegui uma pessoa que me contou que o Milton achava que não era ele quem tinha que estar sentado no banco dos réus e, sim, o exército, que ele não tinha feito nada. Inclusive, os companheiros dele falam assim “O Milton tinha medo desse depoimento, de entregar alguém”. Gente, o depoimento do Milton, ele não entregou ninguém. O depoimento mais evasivo que teve foi o do Milton, ao contrário de pessoas que entregaram Deus, o mundo e a humanidade, ele não entregou ninguém, ele falou coisas absolutamente que não tinha a ver com a guerrilha em si, com as armas, com o movimento e tal, entendeu. Então, assim, essa atitude do Milton de não aceitar, de achar que não era ele que tinha que estar sentado no banco dos réus, pode ter levado ele à morte, por quê? Ele é… existe uma versão em que ele foi provocado e ele respondeu e mais do que isso, mais do que provocado, a versão que existe é que ele, ao ser provocado, que ele partiu para cima do oficial, o oficial que estava lá era o Ralph, entendeu. Então…

Fernanda: Qual era a patente do…

Daniela: Major, ele era major, é… Então, assim, o próprio Ralph…

Fernanda: O Ralph era quem comandava, em alguma medida ali, esses presos em Linhares?

Daniela: Ele era responsável pelo inquérito dos presos de Caparaó. Ele era quem presidia o inquérito… então, ele era o responsável. E aí, enfim, então, o que pode é ter acontecido, foi isso, foi que nesse embate, eu acho até que a intenção inicial não era nem matar o Milton, talvez, era segurar ele, era impedir aquela agressão, era reagir de alguma forma. Mas a reação foi tão violenta que ele acabou morto, entendeu. Porque existem várias contradições, os próprios companheiros dele que falam que ele voltou…

Helena: No caso do Milton, você acabou tendo contato com os companheiros daquela época. Eles relatam casos de torturas que eles teriam sofrido ou não?

Daniela: Em Linhares?

Helena: No Linhares ou QG.

Daniela: Não, não eles não relatam isso não. Houve que não foram eles que falaram, mas todos falaram assim, eram trazidos de fora para cá, eram muito hostilizados… tenho um caso de um militante que chegou aqui, cercaram ele no pátio do QG chamando de guerrilheiro, cuspiram nele, introduziram no ânus dele um pau, um pedaço de madeira para poder fazer uma revista, alegando que era uma revista. Aí, enfiaram o pau no ânus dele e falaram “Aqui não tem nada não”.

Helena: Os presos comuns?

Daniela: Não, os militares.

Helena: Ah, os militares.

Daniela: Os militares. Então, assim…

Fernanda: Mas, não em Juiz de Fora?

Daniela: Aqui, aqui na chegada deles aqui, entendeu?

Fernanda: Não em Linhares?

Daniela: Não em Linhares. Agora, depende do que a gente considera ou não tortura, né, porque eles foram mantidos lá incomunicáveis, sem que a família soubesse onde eles estavam, as famílias só ficavam sabendo tempos e tempos depois. Existia uma política dentro de Linhares de amedrontar os presos políticos, principalmente à noite, eles soltavam bombas dentro do pátio, usavam cachorros. Quer dizer, isto também é uma forma de tortura, né. Essa questão de como eles chegaram aqui, todos algemados com um esquema de segurança impressionante, o circo que foi montado também, um algemado no outro e num estado deplorável e tal. Então, assim, isso eu considero também uma forma de tortura, eu acho que eles não foram submetidos à tortura física, mas eles foram humilhados, eles passaram por todas essas coisas, né. De ficarem presos na cela, de ficar incomunicável, de não poderem… até por que, essa era uma estratégia de não combinar depoimento, né, de manter… Eles ficaram muito tempo incomunicáveis.

Fernanda: Por que eles foram trazidos para Juiz de Fora?

Daniela: Porque quem pegou, quem prendeu os guerrilheiros de Caparaó foi a polícia de minas, foi uma delegacia… foram policiais militares ligados a Manhumirim. Então, eles foram presos por essa, eu esqueci o nome agora, não sei qual foi o quartel que era, mas por policiais ligados a esses… por soldados desse quartel, e aí, por isso eles foram trazidos para Juiz de Fora, entendeu.

Fernanda: Eles poderiam ter sido distribuídos em Belo Horizonte?

Daniela: Mas porque a Serra do Caparaó ela faz divisa entre Minas e o Espírito Santo, e eles foram presos no lado mineiro, entendeu. Por isso que eles foram trazidos para cá também, né.

Helena: E o Milton não deixou filhos?

Daniela: Não que eu saiba. Ele tinha uma namorada, não uma namorada, um amor platônico no Uruguai, é a única informação que eu tenho. Só se vocês têm outras informações que eu não tenho. Que a princípio era essa namorada, ele tinha… ele teve pouquíssimos relacionamentos e ele não teve nem tempo para isso. Então, eu não sei, pode ser que vocês tenham essa informação… É, não é muito equivocada assim, de que ele teria não. A família nunca soube, os próprios companheiros dele contam isso, que ele não teve relacionamentos assim, que ele apaixonou por essa menina chamada Beatriz, no Uruguai, mas ela já tinha um relacionamento com outro guerrilheiro. Então, assim, enfim, é isso que eu sei.

Fernanda: Durante a sua matéria, em 2002, você chegou a entrar em contato com os familiares, os pais e o irmão, né…

Daniela: Não, os pais já tinham morrido. Falei com os irmãos… é, com os irmãos. Os pais já tinham morrido na época.

Fernanda: A sua matéria mobilizou muita gente em relação a esse caso por conta da descoberta e por conta de questões legais mesmo do caso e etc. Que houve uma proposta de fazer a exumação do corpo, quando eu li no jornal que tinha uma equipe da Argentina que ia fazer essa exumação e família não autorizou. Quem não autorizou e por quê?

Daniela: Então, na época, o Nilmário conseguiu, junto ao ministro da justiça, que era o Miguel Reale Junior, a autorização para exumação da ossada. E a família do Milton vetou, o que não é comum entre os familiares de militantes políticos, porque o que eles querem é a verdade, querem ter a ossada, qualquer coisa da pessoa para poder velar, enfim, foi muito frustrante na época. E a alegação deles é que isso não ia trazer o Milton de volta, isso é uma coisa um pouco confusa assim, eu acho, porque eu acho também que isso não é uma justificativa justificável, né. Se não vai trazer ele de volta, mas, enfim, poxa, você tem a chance de velar seu irmão, você passa a vida inteira sem notícias dele e quando você tem essa oportunidade que não ia custar nada para eles, você dá para eles… É estranho.

Fernanda: Porque essa seria a prova, o material…

Daniela: É sim. A Comissão da Verdade, hoje Comissão Nacional, trata o caso do Milton, coloca o Milton como desaparecido.

Fernanda: Por conta disso.

Daniela: Eu acho um grande equívoco, por quê? Com todo respeito, é um trabalho fantástico que a Comissão fez, mas você não pode… porque não houve a exumação, nem todos os casos foram exumados e nem por isso as pessoas são consideradas desaparecidas. Há uma farta documentação, não só aquela da época, de 2002, como agora que mostram ao contrário, entendeu. Assim que confirmam a morte dele em dependências do Estado.

Helena: Você foi procurada pela Comissão Nacional?

Daniela: Não, não fui procurada.

Helena: Tinha que ter sido procurada.

Daniela: Não, eu só li o resultado na…

Fernanda: Mesmo que o corpo não tenha sido localizado, isso que é legal, sabe-se que ele foi morto?

Daniela: Não, não é só isso, não há dúvida. Não há dúvida sobre a morte, ele foi encontrado morto em Linhares. Existe uma certidão de óbito assinada por um médico legista, existe os médicos do exército que ficaram numa saia muito justa em relação a isso, porque eles não podiam ter participado, feito necropsia da qual eles não tinham especialização para fazer, enfim. Existe muita coisa, existe a guia de sepultamento assinada com rasuras, com tudo. Eu acho equivocado você considerar uma pessoa dessa desaparecida por que não tem a exumação. Quantos casos no Brasil tiveram exumação, dos quatrocentos e tantos desaparecidos e mortos? A maioria não teve, entendeu. Então, assim, eu já teria dito isso antes com a documentação que eu tinha em 2002. Hoje é absolutamente equivocada essa posição, absolutamente equivocada.

Helena: Você pensou em procurar a Comissão Nacional?

Daniela: Não pensei em procurar porque, assim, é… eles não me procuraram, também eu não sou nada nem ninguém para ser procurada, não é isso, não teria que ser procurada assim. E existe uma questão em relação ao meu trabalho hoje, que ele está sendo financiado por uma editora que é um trabalho comercial e que eu tenho um contrato de confidencialidade. Então, assim, eu também não poderia, infelizmente eu gostaria de que com o material que eu tenho hoje de esclarecer coisas que ficaram, que restam dúvidas… eu não posso fazer isso por conta dessa questão. Porque é um trabalho comercial, entendeu.

Helena: Porque, na verdade, assim, quando você revelar todas as informações que você tem, essas informações vão desmentir apenas essa parte do relatório da Comissão.

Daniela: É, eu acho que desmentir é muito forte, acho que vai mostrar que esse caminho do desaparecimento não foi um bom caminho, e eu posso afirmar que ele não pode ser considerado desaparecido, entendeu. E enfim, eu gostaria muito de falar tudo que eu tenho que prova que ele…

Helena: De fato foi enterrado lá.

Fernanda: Você, em algum momento, você pensou em mobilizar novamente a família dele para tentar a exumação, atualmente?

Daniela: Então, na verdade nós já voltamos a falar sobre esta história da exumação e a posição deles até o momento se mantêm dessa forma. Agora, eles são muito assim emocionados com tudo que o livro traz, eles não sabem, nem eles sabem tudo, não sabem. Mas, assim, o fato de resgatar a memória do Milton, resgatar a infância dele, é isso… é uma coisa que mexeu muito com eles, entendeu. Eles não conseguem enxergar ainda e eu também tenho que ser ética, não posso forçar a barra, não conseguem enxergar a importância dessa exumação. Se bem que, hoje, eu acho que a exumação não ela não vai trazer para nós as respostas, porque como é uma cova rasa e de cinco em cinco anos aquilo é remexido a gente não sabe nem se os ossos do Milton foram preservados. Porque como era uma cova para indigentes a gente não sabe se está naquele ossário com nome, porque tem um ossário na…

Helena: É, os ossos não são preservados com nome não, né.

Daniela: Então, eu acredito que como era… ele foi considerado, foi enterrado como indigente, talvez não, entendeu. Naquela época, seria fantástico se tivesse sido feito a exumação porque, além do Milton, só tinha mais sete pessoas lá. Então, assim, não tinham ainda remexido a cova, agora se passou muito tempo. Será que existia na época… o Tarcísio pediu para isolar e tal, que ia fazer de lá um memorial, isso não foi feito.

Fernanda: Então, isso que eu queria entrar para complementar. O Tarcísio, na época, pediu a interdição.

Daniela: Pediu a interdição, foi feita.

Fernanda: Você não acha que a cidade teve um descaso com a memória, no sentido de que essa lei não foi revogada, não há nenhuma outra lei posterior a ela que autorize mexer nessa cova? E que há suspeitas de que novos enterros foram feitas no local? Ou seja, a cidade posterior a isso, a família não quis a exumação, então, nenhuma providência além disso foi tomada.

Daniela: Mas eu acho que antes mesmo de não ter permitido a exumação é… existia uma  movimentação  da  Câmara  Municipal,  de  “Ah,  nós  vamos  fazer  um levantamento, a gente…”. Isso eu acho que foi o calor do momento, ninguém manteve o que prometeu. A própria prefeitura que isolou a área com fitinha e tal fez toda uma encenação e isso não foi mantido. Se houvesse um interesse real do país de preservar a memória desse militante, essa história, aquela cova estava tombada e estaria transformada em memorial sim, entendeu. E mesmo sem ter sido autorizada a exumação não se mexeria mais nela. Eu não tenho ainda informação de que outras pessoas depois foram enterradas, mas eu acredito que sim, pois era uma cova rasa. Hoje, o cemitério ele está super lotado, não tem espaço para colocar mais ninguém e por que eles não colocariam? Será que eles se lembram que tinha um guerrilheiro lá? Que foi enterrado com uma história tão importante, né, que foi uma pessoa que lutou contra a ditadura e que guarda ali com ele, naquele sepultamento, segredos que ainda não foram totalmente revelados. Será que as pessoas se lembram disso? Não foi feita, não foi transformado em memorial.

Helena: Você tem uma ideia de a partir de quando, na época do Tarcísio Delgado, foi feita essa separação do local. Depois você tem uma ideia de quanto tempo depois isso…

Daniela: A minha série durou um ano mais ou menos assim, no período da série a coisa estava muito latente ainda e se falava muito nisso, até por tudo que a série trouxe que foi permitir que os militantes da cidade fossem indenizados com teto máximo, porque muitas das histórias que nós contamos às pessoas que foram dar entrevistas foram priorizadas, enfim, é, isso estava na moda, estava em alta e tal. Depois disso, eu também…

Helena: O isolamento da área acabou?

Daniela: Acabou, não tem área isolada, até porque aquela fitinha… a questão era essa, poxa, não se cumpriu o que foi proposto que era transformar aquilo num memorial, que era tornar aquela área intocável, entendeu. Isso não aconteceu.

Helena: Você se lembra das pessoas que você… essas pessoas que foram…

Daniela: Os sete antes dele?

Helena: Não, que você falou que alguns presos daqueles que você procurou foram até beneficiados, né, pela anistia em função da revelação do caso dele. Você se lembra quais foram estas pessoas?

Daniela: Sim. Antônio Resende Guedes que já morreu, infelizmente, o Luiz Rogério Avelino Brandão que também, infelizmente, morreu, que foi o primeiro a ser indenizado. E a Comissão Estadual, naquele momento, não escondeu, pelo contrário, ela fez uma… ela concedeu uma entrevista para a Tribuna dizendo que usou o material que a gente levantou para embasar os processos, então, eles também não esconderam isso. É, o Colatino também, o Salvatti e outros que eu não tive na época com eles, por exemplo, o Rogério de Campos, aquela turma toda ali que foram 23 requerimentos de Juiz de Fora.

Helena: Que resultaram em…

Daniela: Que resultaram, todos foram indenizados. Nem todos, eu contei a história de todos não, mas dos 23 que requereram… o Luiz Sansão… todos foram indenizados. Nem todos tiveram as histórias contadas pela Tribuna não.

Fernanda: Oh Daniela, fechando também, quando… retomando na chegada do Milton e dos militantes de Caparaó, foram todos presos, né, e trazidos para Juiz de Fora. Quando eles chegam a Juiz de Fora, como que era o procedimento? Só para a gente entender esse sistema que gerava o que é uma coisa que é de interesse da Comissão, tentando traçar. Como que era o sistema de repressão na cidade? Onde que as pessoas eram ouvidas? Onde que eram levados primeiro? Você lembra dessa…

Daniela: O que eu sei de informação é que quando eles chegaram aqui eles foram trazidos direto para Linhares, ficaram incomunicáveis e, um a um, começaram a ser retirados para serem ouvidos na Auditoria ou no Quartel General, enfim. O interrogatório do Milton foi no QG, foi na sede da… se eu não estou enganada foi no QG, mas é isso. Eu tenho que olhar os documentos agora o que que eu escrevi, porque eu já não lembro mais os detalhes, mas foi numa unidade militar.

Helena: O QG ali ao lado do museu?

Daniela: É isso, ao lado do museu. Então, assim, é no caso deles foi assim. Agora, por exemplo, dos outros militantes eles eram trazidos para Juiz de Fora e nem sempre eram levados para Linhares diretamente, eles ficavam, às vezes, meses em unidades militares. Por exemplo, o 4º Regimento de Obuses1, que era ali na Zona Norte, os militantes ficaram lá muito tempo, nas celas do QG passavam uma semana, duas semanas até serem levados para Linhares, porque eles iam ser ouvidos, enfim, eles queriam tentar tirar alguma informação. Então, assim, Linhares não era o primeiro destino quando eles chegavam aqui, e para se acessar Linhares, qualquer familiar que viesse visitar tinha que pegar autorização sempre, todas as vezes, no QG. Passar primeiro no QG para depois irem até Linhares. Imagina, Linhares era super isolado, aí você passa pela burocracia do QG, espera uma hora até conseguir chegar a Linhares e conseguir acessar a visita. Aí, existia, durante um período, por muito tempo, as grades duplas do parlatório, a cerca dupla, em que não existia contato físico, entendeu. Tudo muito complicado, as cartas em Linhares todas eram censuradas, tanto as que entravam, entravam quase nunca, mas principalmente as que saíam, entendeu. Então, funcionava dessa forma. No caso dos militantes eles foram direto para Linhares, não passaram por outras unidades, não ficaram esperando. Agora, quando o Milton estava preso e depois foi retirado da cela, nem todos os militantes estavam em Linhares, já tinham sido retirados da cela antes e alguns passaram A noite no QG. Nem todo mundo estava em Linhares quando ele foi encontrado morto.

Fernanda: E algum deles ouviu, no QG, gritos, relatos, coisas que pudessem subentender que um colega estava sendo torturado?

Daniela: Não, gritos não. Dois presenciaram, alegam, confirmam, um, por documentos, se confirma que a presença dele no interrogatório, que ele diz que foi retirado da cela do QG e houve uma espécie de acareação entre eles; e o segundo afirma que viu o Milton lá, de madrugada, foi levado lá, inclusive porque ele estava resistente e não queria falar. Depois da morte do Milton ouviu, inclusive, que tinham pessoas que estavam no QG e que foram informadas no QG que o Milton tinha sido morto. Algumas pessoas disseram, inclusive, um soldado disse para um militante que ele estava inclusive com marcas de… chegou no Hospital Militar com marcas de sangue na cabeça e estava ferido e tal. Essa informação, o que tem muitas versões, né, enfim.

Fernanda: É você tem informação sobre o tipo de tortura que ele possa ter sofrido, aqui em Juiz de Fora? Você já falou algumas desses outros militantes e tudo, mas do Milton, especificamente, não por conta do caso dele, mas que possa nos ajudar a descrever o tipo de tortura que se passava aqui. Que tipo de tortura, que tipo de ameaças.

Daniela: Eu acho que a questão da tortura psicológica, a questão do eletrochoque que já ouve militantes que disseram para mim, até na época que você fazia matérias, que eles foram submetidos a eletrochoque aqui em Juiz de Fora. O próprio, um dos militantes que eu entrevistei agora, não vou saber qual deles não, é do Caparaó não, conta que sofreu choque elétrico dentro de unidades militares aqui em Juiz de Fora. Mas eu acho que a questão, isso não era uma prática instituída, a questão das humilhações, desse terror psicológico, isso aí era feito em todas as unidades. É, eu estou tentando me lembrar dos casos que eu ouvi de pessoas que falam que foram submetidas, que apanharam aqui…

Fernanda: Nós temos muitas dificuldades porque as pessoas em geral foram presas em muitos lugares. Às vezes, a memória é assim, está contando em Juiz de Fora aí ele vai lá para Belo Horizonte…

Daniela: Ah, isso é demais, é…

Fernanda: Aí ele volta para Lagoa Santa e aí ele vai falando dessas coisas mais duras, quando eles aceitam falar das coisas mais duras e, aí, quando você acha que ele está falando de Juiz de Fora…

Daniela: Ele está falando de outro lugar…

Fernanda: Aí, a pessoa para e fala, “Não, é em Lagoa Santa”. Então, assim, difícil para eles.

Daniela: O caso que eu tenho muito fresco na memória assim que eu te falei do pau no ânus, foi do Marco Antônio Méier, que ele é de Belo Horizonte, quando ele chega aqui que cuspiram nele, enfim.

Fernanda: No QG?

Daniela: No QG, quando ele chega. Quando ele desce que ele é cercado no pátio e aí eles começam a falar “Guerrilheiro, terrorista”. Cospem nele, ele é colocado nu, eles pedem para ele tirar a roupa, ele e mais um. Aliás, essa questão de ser colocado nu era de praxe em todos os lugares, em todas as unidades do exército, todas. Era uma coisa muito humilhante, a primeira coisa que eles faziam eram tirar a roupa da pessoa para exatamente deixar a pessoa vulnerável. E que aí ele foi colocado nu e que eles enfiaram isso no ânus dele, esse pedaço de pau, uma espécie de um graveto, não, um pau mesmo. E eu me lembro de outras pessoas falando, agora… nomes específicos eu não estou me recordando porque tem mais de 40 personagens… é muita gente, tinham falado essa questão dos choques elétricos. Isso… O Marco Antônio Méier relata essa chegada dele, porque os relatos deles foi isso que você falou, eles não conseguem ficar, falar primeiro de Juiz de Fora depois sair daqui, não, eles vão. Ele não, ele tem uma memória muito fresca, o Marco Antônio foi trocado por um embaixador alemão, estava na lista dos 40, tem uma história rica. Isso também é uma coisa que se fala muito pouco. Assim, de Linhares, a primeira troca, é a primeira troca não porque foi o terceiro sequestro, mas quando se trocou pessoas pelo embaixador alemão, 6 dos 40 saíram de Linhares, entendeu. Então, assim, a importância política de Linhares que tinha lideranças muito importantes. O Márcio Lacerda passou por Linhares, o Fernando Pimentel, quer dizer, o prefeito de Belo Horizonte, o governador de Minas, o ministro dos direitos humanos, o Nilmário, Junei, que era assessor da presidência. Muitas pessoas que politicamente são relevantes e anônimos que também fizeram história, entendeu. Que eu acho que é isso, o meu livro a “Cova” mostra essas histórias, mostra que todos foram importantes, não só os que ficaram famosos, né, que ajudam o povo a contar a história da ditadura em Juiz de Fora e tal. É isso.

Helena: A não ser que você queira acrescentar alguma coisa?

Daniela: Não, eu acho que é isso. Pena que eu não posso falar tudo, gostaria de poder falar tudo, mas eu acho que vocês sabem muita coisa e estão escondendo o leite (risos).