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Colatino Lopes Soares Filho

Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora

Depoimento de Colatino Lopes Soares Filho

Entrevistado por Rosali Henriques e Flávio Cheker

Juiz de Fora, 03 de outubro de 2014

Entrevista 017

Transcrição: Laura Sanábio Freesz Rezende

Revisão Final: Ramsés Albertoni (26/10/2016)

 

Rosali: Senhor Colatino, a gente queria começar sua entrevista perguntando primeiro… o senhor falasse seu nome completo, a sua profissão e o envolvimento da sua família e seu com movimentos de esquerda, etc…

Colatino: Bem, o meu nome é Colatino Lopes Soares Filho, certo? Meu envolvimento… Aliás, eu nasci no estado do Rio, em Niterói, e depois vim para Juiz de Fora em 1962. Tinha por volta de 14 anos… 13, 14 anos. Ainda não mexia com política estudantil, era um garoto ainda. Quando foi em 1965, aí já iniciei no movimento estudantil. Na turma em que eu andava eu era um dos mais novos. Era a elite intelectual, pessoal na faculdade já mexendo com política estudantil, mexendo com leitura, muita leitura. Aí, eu fui me engajando nisso, certo? Esse era o meu grupo. Aí, eu iniciei política estudantil aí em 1965, mais ou menos. Em 1966, já no cientifico, aí eu estava mais atuante, mais atuante. 1967, aí sim, aí eu entrei para partido da clandestinidade, PCB, já comecei a atuar mesmo na agremiação de estudante e fui até chegar presidente da UJES, eu e o grupo todo que já fez, inclusive José Salvati, Rômulo Quinhões, Rodolfo Troiano, Guedes, essa turma… Rogério… se bem que esses dois eram universitários já. Aí nós fomos… fomos atuantes nesse aspecto aí… e como é que se diz, grupo da AP, grupo do PCB , nós representando, e grupo da AP era o José Salvatti, Fenelon, era essa turma. Aí nós partimos pra luta armada. Isso 1968, já aquela Passeata dos Cem mil, nós rompemos com o Partido Comunista. Aí, quer dizer, ainda não estava propriamente na luta armada, mas estava no grupo do pessoal que tinha rompido dissidência com Guanabara, PCBR, Corrente, esse negócio todo. Até que em 1968, segundo semestre, em agosto, mais ou menos, eu fui preso. Aí fui preso, a princípio ficamos totalmente sem comunicação nenhuma, ninguém sabia onde nós estávamos. Foi aquele negócio todo. Até o Modesto da Silveira, no Rio, pondo depoimento no jornal que estudante some em Juiz de Fora e ninguém sabe onde está, né? Era eu. E os outros também, ninguém sabia onde estavam.

Rosali: Conta pra gente essa primeira prisão. Como é que foi? Onde é que o senhor estava?

Colatino: Eu estava escondido no Jesuítas, mas caí na asneira de ir lá em casa, entendeu? Caí na asneira de ir lá em casa e quando foi de manhã… fui a noite lá pra casa, quando foi de manhã eu fui surpreendido por um telefonema. A empregada chegou perto de mim e falou “Tem um telefonema pra você”. Aí eu fui atender o telefone e ninguém falava nada. Ninguém falava nada. “São os homens”. Pessoal, todo mundo tinha saído pra trabalhar, né? Aí, nisso invade lá em casa. Não deu nem tempo de correr, de fugir, entendeu? Já invadiram, deram voz de prisão. Meus sobrinhos pequenos, entende? Colocaram um revólver na cabeça do sobrinho com cinco anos. Aí me pegaram, me algemaram, me deram um soco, conforme eu falei lá fora, entendeu? Porque pegaram um quadro periódico de química e aí falaram assim “Isso é código comunista”. Eu dei uma gargalhada, né? Dei uma gargalhada e logo veio o soco. Levei o soco. Eu estava algemado, caí em cima da cama. Aí levantaram “Não fala nada, não fala nada”. Aí me levaram preso, duas viaturas. Com certeza eles achavam que eu era um sujeito perigosíssimo, né?

Flávio: Viatura do exército?

Colatino: Não.

Flávio: Da Polícia Militar…

Colatino: Polícia Militar não, eram dois jipes da Policia Federal e do DOPS. Eram dois jipes. Aí me levaram pro QG. Fiquei preso na PE. Aí, à noite, eram os depoimentos, aí começava aquela tortura psicológica, aquele negócio. Eram não sei quantos capitães, coronéis “Você fez isso!”. Aí o outro virava, holofote em cima “Você fez isso! Você está em contato com Marighella!”, “Eu não tenho nada disso, eu não tenho contato nenhum”, “Está aqui, oh!”. Aí mostrava depoimento, neguim que falava que eu tinha contato com Marighella, com Chuchu, e depois…

Rosali: O senhor estava falando, então, dessa primeira prisão, né?

Colatino: É.

Rosali: Continua pra gente, por favor?

Colatino: Do início?

Rosali: Não, não. O senhor já falou que foi preso, né, em casa, que apontaram a arma…

Colatino: Fiquei cinco dias incomunicável, nós todos, né? E depois, aí decretaram a prisão preventiva, né? Decretaram a prisão preventiva por 30 dias e aquilo, conforme falei, tiravam a roupa da gente todinha, né? Vários dias aconteceram isso, tortura desse tipo. À noite chegavam tiravam a roupa, tiravam a cama, não deixavam uma peça de roupa, um frio de todo tamanho, certo? Fizeram várias vezes.

Rosali: Mas isso aqui em Juiz de Fora?

Colatino: É, aqui em Juiz de Fora.

Rosali: Mas o senhor foi torturado aqui em Juiz de Fora?

Colatino: Aqui! Isso foi aqui! Flávio: Isso na primeira prisão, já? Colatino: Isso, na primeira prisão.

Flávio: Sem local pra dormir, sem roupa…

Colatino: Sem local. Eu acredito, porque depois um dos nossos companheiros acabou morrendo tuberculoso na prisão. Foi o Oswaldo, certo? Deve ter acontecido isso, certo? Ele era operário e tudo, alimentação precária. Morava lá no aparelho em Santa Luzia, não sei se já falaram.

Rosali: O Salvati falou um pouco, mas pode falar também.

Colatino: Morava o Salvatti, o Rodolfo e esse menino, o Oswaldo. Esse Oswaldo, eles foram pegos dentro desse aparelho. Inclusive, ia sair o segundo número do jornal. O primeiro número, que era O Porrete, nós distribuímos em 1º de maio. O segundo ia sair, aí eles foram presos, né? Aí já não era O Porrete, era O Fuzil. Era um guerrilheiro com fuzil na mão, entendeu? Aí pegaram todos esses jornais e tudo, não foi distribuído e prenderam todos os três. Foram os três primeiros, o Salvatti, Rodolfo e o Oswaldo. Esse Oswaldo, ele acabou morrendo tuberculoso dentro da prisão. Acredito até que tenha sido nesse tipo de tortura, né? E ficava a noite inteira, até às 5h da manhã, 6h da manhã, sem roupa nenhuma, entendeu? E a cama, tudo, era retirada várias vezes, tanto é que eu pedi o Winston, falei com o Winston sobre isso e ele pediu que voltasse a cama, que não tirasse mais a cama e tudo. Aí, na segunda, quando houve a segunda prisão preventiva, né, aí já deixavam essa cama, né? Eu sei que no final de 30 dias foi todo mundo solto e eu fui o único que fiquei por mais 30. Por mais 30 dias. Até meu pai quase foi preso, aquele lance que eu te falei lá fora.

Rosali: Conta pra gente aqui…

Colatino: Foi o seguinte, meu pai chegou perto do general e o general disse “Como é que está, senhor Colatino?”, aí ele falou “Não está nada bem”, aí o general perguntou “Por que não está nada bem?”, aí o meu pai virou pra ele e falou assim “Bem, você falou”, falou assim mesmo, “Você falou que meu filho ia ficar 30 dias e saía no final de 30 dias, né? E, no entanto, todo mundo saiu e o meu filho foi prorrogado por mais 30 dias, a prisão preventiva dele”. Quer dizer, aí o general falou assim “O maior problema é que seu filho está mentindo muito. Sabe de muita coisa, sabe onde está Marighella e não quer falar, não fala nada. Por mais pressão que a gente faça, ou seja, por mais que a gente reprima ele, ele não fala, né? Marighella ele não fala nada, do irmão dele ele não fala nada, dos padres jesuítas ele também não fala nada, os padres que deram guarida para ele. Quer dizer, os padres devem estar envolvidos com ele. E tem outra coisa, cada vez que pressiona mais a ele , ele menos fala e agora ele não está falando nem o nome dele”. Tinha um negócio também, eu ia ficando com raiva, ficando com mais raiva, mais raiva, cismava e nem meu nome eu falava. Aí, meu pai virou e falou assim “E ele está mentindo muito”, aí meu pai falou assim “Bem, que um garoto de 17 anos, 19 anos seja mentiroso eu concordo, mas, agora, que um velho de 60 anos seja mentiroso isso não concordo de jeito nenhum”. Entendeu? Aí o general sai para um lado, o tenente saiu para outro. “Quem é seu Colatino?”. Eu dei uma bronca no meu pai, falei “O senhor vai me complicar mais ainda agindo dessa forma. Se o senhor for preso, como é que eu vou ficar, né? Deixa que eu assumo. O que eu fiz, eu assumo”.

Rosali: Nesse período o senhor estava aqui em Linhares?

Colatino: Não, estava dentro dos quartéis.

Rosali: Dentro dos quartéis, estava no QG?

Colatino: Dentro do quartel, da PE, depois fui pra QG.

Rosali: Esses dois meses o senhor ficou na PE?

Colatino: É, PE e QG.

Rosali: E o senhor foi torturado nesse período?

Colatino: Fui. Assim, os depoimentos eram de madrugada. Muita, era aquele negócio, mais psicológico, entendeu? E esse lance, a não ser uma correntada que eu tomei de um capitão. “Então você não vai falar nada?”. Aí pegava, metia corrente. Meteu a corrente aqui na cara, entendeu? Agora, lá em Belo Horizonte não, lá em Belo Horizonte eu fui torturado mesmo.

Rosali: Isso foi na sua segunda prisão?

Colatino: Na segunda prisão. E nos dias lá da primeira prisão, dos depoimentos, eram feitos de madrugada, mas da seguinte forma: holofote em cima, várias pessoas pressionando, “Você fez isso? Você fez aquilo?”, entendeu? Pressão psicológica mesmo, entendeu? E de vez em quando saía uma correntada, saía um soco, entende? Era isso. Na primeira prisão, aí no final de 60 dias, eu fui solto, em outubro. Aí depois veio a prisão em Belo Horizonte, fui pra Ribeirão das Neves.

Rosali: Aí o senhor foi preso lá ou foi preso aqui em Juiz de Fora?

Colatino: Fui preso aqui… E levado para lá.

Flávio: E levado para lá, direto para o Ribeirão das Neves?

Colatino: É… quer dizer, passei por aqui pelos DOPS, mas fui levado pra lá. E lá em cima foi… realmente foi tortura, todos nós fomos torturados, né?

Rosali: No DOPS ou no Ribeirão das Neves? O senhor foi torturado no DOPS?

Colatino: Não.

Rosali: Lá em Belo Horizonte?

Colatino: Lá em Ribeirão das Neves.

Rosali: Ribeirão das Neves. Que tipo de tortura eles faziam, senhor Colatino?

Colatino: Pau-de-arara, né, choque, entendeu? Tiravam a roupa toda, pra humilhar, né? Aquilo era humilhação mesmo. Esse tinha um cabo, tal cabo Ivo e o capitão Portela, o encarregado pelo inquérito era o coronel Camarão. Capitão Portela e o cabo Ivo eram os torturadores. Falaram até que ele morreu na Bahia, que ele já veio fugido de São Paulo com ameaça de morte. Foi para o Rio e no Rio, DOI-CODI, ele torturou muita gente, veio pra Belo Horizonte, foi pra Bahia…

Rosali: Quem? O Portela?

Colatino: É, me falaram, me falaram que ele morreu, não tenho certeza. Rosali: Mas eles se identificavam ou o senhor via o nome, como é que fazia? Colatino: Não, identificava! Capitão Portela e o cabo Ivo.

Rosali: E o senhor era torturado?

Colatino: A mando do encarregado também…

Rosali: E eles colocavam capuz no senhor ou o senhor via?

Colatino: Não, eu via, eu via. Tortura era… aí eu, o Chuchu, o Antônio Guedes, o Rogério, o Cruzeiro e vários outros, o Tonhão. Lá em Belo Horizonte o Tonhão levou dois tiros no pulmão. Simularam uma fuga dele dentro do camburão, falaram que iam tomar café e ele algemado. Ninguém consegue correr algemado, né? Falaram que ia tomar café, na hora que estavam tomando café, tentou fugir, né, mas não, ninguém consegue, algemado, fugir, ir muito longe. Aí atiraram nele. Foram dois tiros no pulmão dele. Estava vivo aqui, ficou preso aqui, em Linhares também.

Rosali: Lá em Ribeirão das Neves vocês ficavam incomunicáveis ou vocês conseguiam se comunicar com os outros presos?

Colatino: Não, não conseguia… eram celas individuais.

Rosali: E vocês saíam de lá para serem torturados ou não? Eram torturados lá mesmo?

Colatino: Lá mesmo. E outra coisa, às vezes iam pro quartel responder depoimento lá. Outra coisa, aqui também, celas individuais. Ninguém… na primeira prisão também, ninguém podia entrar em contato com outro.

Rosali: Mas naquela ocasião em Ribeirão das Neves, o senhor sabia que aquelas pessoas estavam lá?

Colatino: Sabia.

Rosali: Como é que vocês se comunicavam, sabiam que o outro estava lá?

Colatino: Sabia porque, às vezes, encontrava dentro do próprio quartel. Tanto é que o Chuchu, quando foi… quando ele saiu trocado pelo embaixador, ele… não queriam deixar. Não queriam soltar ele de jeito nenhum. Teve que ir um grupo da aeronáutica lá pegar ele, soltar ele, porque não…

Rosali: Nesse período o senhor participava de qual movimento, o senhor estava no PCB ou tinha saído?

Colatino: Não, já tinha saído.

Rosali: Estava em qual movimento?

Colatino: Estava na Corrente. Minha ida pro PCBR foi muito curta também. Logo fui preso. Eu estava mais ligado à Corrente, entendeu? Mesmo no final do PCBR já foi praticamente na minha condenação.

Rosali: E nesses interrogatórios, lá em Belo Horizonte? Eles perguntavam o quê? Primeiro, o senhor falou que eles insistiam no Marighella, né? Nesses segundos interrogatórios, nesse segundo período de prisão, eles perguntavam sobre o quê?

Colatino: Qual a minha relação com o Chuchu.

Rosali: Com o Chuchu?

Colatino: Que era, quem tinha ligação com Marighella.

Rosali: Ele era o líder da Corrente nessa época?

Colatino: Era.

Rosali: E qual que era a atuação da Corrente nesse período?

Colatino: Como assim?

Rosali: Vocês faziam alguma coisa, publicavam alguma coisa…

Colatino: Ações! Ações revolucionárias o pessoal de Belo Horizonte fez muita. Fez muito assalto a bancos, assaltos até a hospitais mesmo, no caso de companheiros que estavam, por exemplo, dentro de hospitais, torturados. Resgataram. Pessoal de Belo Horizonte, pessoal daqui não chegou a nenhuma ação assim, a não ser distribuição de panfletos e passeatas. Ações mais diretas assim não tinha, o pessoal daqui não chegou a praticar não.

Rosali: E quanto tempo o senhor ficou nessa segunda prisão, lá em Ribeirão das Neves?

Colatino: Dois meses também. Aí eu vim ser julgado. Foi o julgamento aqui.

Flávio: Na auditoria?

Colatino: Na auditoria. Aí, o pessoal de Belo Horizonte veio pra cá também. Foi todo mundo julgado aqui.

Rosali: É o julgamento da Corrente?

Colatino: Era.

Rosali: Que era de 105 pessoas, não era isso?

Colatino: É.

Flávio: E aí…

Colatino: Mas só que eu não participei, porque meu vínculo era mais Juiz de Fora. Bom, quer dizer, sendo julgado pela mesma coisa duas vezes. Aí, de Belo Horizonte caiu.

Flávio: E desse julgamento que o senhor foi para Linhares?

Colatino: É, mas foi no mesmo período, praticamente, então, fiquei, fui julgado por aqui, pelo que eu fiz aqui. Mas até chegar a esse aqui muito pau comeu.

Rosali: O senhor ficou em Linhares. Em Linhares o senhor foi torturado?

Colatino: Não. Em Linhares não. Em Linhares…

Rosali: O senhor sabe de alguém que foi torturado no Linhares?

Colatino: Não, a não ser aquele rapaz que morreu, né? Mas mesmo assim não morreu lá dentro, segundo me falaram…

Rosali: Conta pra gente o caso. É o caso do Milton, né?

Colatino: Do Milton. O Amadeu me falou que ele saiu pra fazer depoimento lá no QG, deve ter sido no QG, e quando voltou, já voltou morto, né? Porque carregavam ele aqui pelo ombro, do lado, outro, do outro. O Amadeu falou, devia ser umas 5 horas da manhã. Eu levantei, inclusive, ouvi um barulho, levantei e da minha cela deu para ver, entendeu? Ele já chegou caído, né? Aí, dentro da coisa, da cela, colocaram a corda no pescoço, só que tem uma altura assim daqui. Quer dizer, já estava morto, assim falaram. Não vi. Eu cheguei uma semana ou duas semanas depois. Fui preso porque nosso julgamento era pra ser um dia, aí não foi. Foi adiado porque estava faltando o advogado de um, acho que foi do Antônio Guedes… sei que estava faltando um advogado, aí foi adiado. E nesse ínterim sequestram o embaixador americano. Aí, nosso julgamento foi dia 7 ou 8 de setembro, aí, tanto é que eles já viraram de cara e falaram “Agora vai ser olho por olho, dente por dente. Pode estar certo de que está todo mundo condenado”. Aí não tinha outra.

Rosali: Vocês foram condenados nesse processo?

Colatino: Fomos.

Rosali: Você pegou quanto tempo?

Colatino: Eu peguei… eu fiquei um ano preso, e tudo, no total… total foi, contando Belo Horizonte e contando daqui… daqui foram 8 meses, mas a prisão preventiva descontada. Belo Horizonte, sei que estava no final das contas, saí em 1970, janeiro de 1970.

Flávio: Em Linhares o senhor ficou quanto tempo? Colatino: Em Linhares eu fiquei 6 meses, 5 meses… Rosali: E vocês podiam ter visita lá em Linhares?

Colatino: Podia. Linhares era mais brando.

Flávio: O senhor não teve, então, notícias de tortura em Linhares não, né?

Colatino: Em Linhares não.

Flávio: Tem o caso da morte do Milton, né, mas como o senhor falou, a principio já chegou mesmo…

Colatino: É.

Rosali: E há uma suspeita de que havia uma casa de tortura aqui em Juiz de Fora também, ali na rua do museu…

Colatino: Era atrás do QG.

Rosali: Era atrás do QG, exatamente, atrás do QG. O senhor já ouviu falar? Já passou por lá?

Colatino: Já. Os depoimentos eram feitos ali. Quer dizer, depoimentos, de vez em quando dava um soco, uma correntada…

Rosali: Não havia tortura com choque, não havia esses equipamentos?

Colatino: Não.

Rosali: Pau-de-arara?

Colatino: Pau-de-arara pode ser que tivesse ocorrido, mas…

Rosali: E afogamentos? Também havia afogamentos?

Colatino: Não sei disso. Não soube nada disso, né? Mesmo porque se ele fizesse isso comigo, não sei, ou eu desesperava ou eu morria. Tenho claustrofobia.

Rosali: Nesse período que o senhor ficou em Linhares, ficou sabendo de alguém que saiu para dar depoimento e não voltou mais? Algum preso que possa ter desaparecido? Vocês não tiveram mais notícia dele?

Colatino: Sabe por quê? Quando batia em Linhares já estava em final de processo, aí já estava mais na 4ª Região. Na 4ª Região, quer dizer, é justiça propriamente, e justiça não vai agir assim, não vai agir com tortura. Quer dizer, a coisa é mais legalizada, apesar de eu não achar, mas a coisa mais legalizada, né? Então, eu acho que quando caía em Linhares já não exista mais esse tipo de coisa. Tantas meninas, o grupo de meninas, tanto é que a Dilma esteve presa aí, não é? Teve uma menina também, eu acho que era da Colina, era do mesmo grupo da Dilma. Colina e VPR matou um delegado, matou um cara que entrou no aparelho, ela metralhou. Então, matou um delegado e matou um guarda também, um policial. Pois bem, essa menina teve presa aqui e quando ela esteve presa aqui ela chegou toda estourada, né? Toda arrebentada. Foi torturada, imagina como, não é? A Dilma também foi torturada demais, mas quando bateu aqui, foi só… Nilmário também, o Nilmário quando esteve aqui ficou preso bastante tempo aqui, mas já condenado.

Flávio: O senhor teve contato com o Nilmário nesse período?

Colatino: Não, eu tive agora, ele teve posterior a mim.

Rosali: Na época que o senhor esteve no Linhares ainda as mulheres ficavam lá, né, porque depois foi desativada a ala feminina, né? Nessa época ainda tinham mulheres?

Colatino: Tinham.

Rosali: Porque depois, mais para frente, eles desativaram…

Colatino: Desativaram?

Rosali: A parte das mulheres, sim. Só ficou homem lá.

Colatino: Não, mas até a época da Dilma…

Rosali: É, até a época da Dilma sim, mas… Colatino: Da Dilma foi 1974… 1973, 1974.

Rosali: É, porque nós entrevistamos duas aqui que falaram que estava desativado e elas tiveram que ser presas em outra escola…

Colatino: Não fiquei sabendo…

Rosali: Mas no seu período tinha mulheres e tinham homens?

Colatino: Tinha.

Rosali: Mas vocês não conviviam, né? Ficava todo mundo isolado.

Colatino: Era uma ala feminina, outra ala masculina. Às vezes via de longe, mas era hora de visita.

Rosali: E vocês não se comunicavam? Por exemplo, teve uma pessoa que falou que se comunicava por Teresa, né, por aquelas cordas. Vocês não… na sua época não…

Colatino: Não. Mas era todo mundo muito organizado, era todo mundo organizado. Não andávamos sozinhos, nós não andávamos isolados, entendeu? Se, vamos supor, um dos agentes penitenciários cismasse de deixar um preso dentro da cela, não deixasse tomar sol, ninguém saía. Era tudo… era feito em conjunto.

Rosali: A gente viu, arrumando umas fichas lá, “suíte”. O que era essa “suíte” lá? O preso foi levado para a “suíte”. Na sua época tinha alguma suíte, alguma solitária ou coisa assim?

Colatino: Não, solitária tinha, mas não…

Rosali: Não com essa apresentação.

Colatino: Não com esse nome. Mas também, preso político não teve não… teve presos comuns.

Rosali: Na sua época tinham presos comuns lá com vocês?

Colatino: Quando cheguei, o setor de baixo era tudo preso comum. Aí, eles foram levados para outras penitenciárias, né? Não chegou um mês, até o final de setembro foi tudo desativado, só ficaram aqueles que já estavam cumprindo pena há muito tempo, né, e cuidava de comida, de cortar cabelo e tudo. A maioria ficou preso político mesmo, não ficou mais preso comum.

Rosali: O senhor falou que o senhor saiu da prisão em 1970, né?

Colatino: É.

Rosali: E, depois disso, o senhor entrou na militância, foi preso novamente? Conta pra gente um pouco.

Colatino: Não, aí eu fui muito perseguido, onde eu estava tinha alguém tomando conta, tanto é que se juntava mais 3 ou 4 pessoas já chegavam perto de mim e falavam assim “Cuidado, hein?! Cuidado que pode ser preso novamente!. Fica agitando aí embaixo!”. Então, era muito difícil, tinha medo até pelos outros, entendeu? Fazer uma reunião, chegava uma pessoa assim, quando chegou um cara do PCBR aqui em Juiz de Fora me procurar. Eu falei “Pelo amor de Deus! Some de perto de mim, senão o senhor vai acabar sendo preso”, entendeu? Então, qualquer pessoa estranha chegava perto de mim, já tinha alguém perto. Eu ia namorar, tinha neguim me vigiando, entendeu? Eu chegava dentro de casa, principalmente em época de eleição, eu chegava dentro de casa tinha alguém do lado de fora. Eu ia, chegava no Centro, juntava mais de 4 pessoas e falava “Ó, cuidado! Está agitando aí!”. Tanto é que estava com a mania até que falar com a mão na boca, entendeu? Isso ficou até 1975, 1976. Até carteira de motorista eles apreenderam. Foi um custo pra mim tirar a minha carteira. Quer dizer, eu tirava, mas ficava presa lá em Belo Horizonte.

Rosali: E o senhor chegou a completar o Ensino Médio e entrar para a universidade? Como é que foi esse período?

Colatino: Pois é. Aí eu entrei na universidade. Aí, tinha aquele negócio, ficha de boa conduta, né? Era um custo eles me darem aquilo. Para mim fazer universidade eu tinha que apelar para tudo. Aí o pessoal da universidade virou e falou “Mas não tem cabimento!”. Fazendo biologia e eles querendo me travar! Fui fazer concurso público, isso em 1977, 1978, fazer concurso pro Banco do Brasil. Falaram “Você pode fazer, só não vai passar mesmo”. Entendeu? Era assim.

Rosali: E o senhor estava afastado já dos movimentos…

Colatino: Já estava afastado.

Rosali: Nesse período, depois de 1970, o senhor não militou mais nos movimentos?

Colatino: Quer dizer, só vim militar depois da anistia, porque é… praticamente eu vivia na clandestinidade. Tinha que viver é afastado mesmo. Alguém corria até o perigo de estar em contato comigo. Quer dizer, a não ser a pessoa que não tinha nada a ver com o movimento, mas…

Flávio: Isso durou até o final da década de 1970, mais ou menos?

Colatino: 1979, o próprio juiz foi me entregar “Olha, está aqui sua anistia”.

Rosali: O senhor foi anistiado… o senhor acabou não falando quanto tempo o senhor pegou no julgamento, qual foi sua pena.

Colatino: Foram oito meses.

Rosali: Oito meses! Ah, tá. Já tinha cumprido. E qual foi a alegação da sua pena, por ter pego esses oito meses, considerado culpado?

Colatino: Foi artigo 36 e 37, sobre distribuição de panfleto, materiais subversivos… Por exemplo, o livro “Marx, Lenine” foi material subversivo, distribuição de panfleto… Então, depois do julgamento, quando eu pensei “Estou livre!”, acho que veio a pior fase, que era aquela coisa constantemente, que foi até 1979…

Flávio: Telefonemas também?

Colatino: Grampeado. De vez em quando também telefone lá de casa ficava… a gente sentia mesmo que tinha alguém. Então, vivia naquilo, sem paz. Agora, eu acho que o mais duro é isso aí, entendeu? Cuidado aonde você vai, cuidado onde você… você não tinha o direito de ir e vir.

Rosali: O senhor era visado, então? Era uma pessoa visada?

Colatino: Era visado, era visado.

Flávio: A opressão permanente, e sempre alguém ali, como se fosse…

Colatino: E naquela época também, você… Aí, eu comecei a dar aula. Comecei já entrando na universidade. Comecei dando aula. Aquele negócio de você não poder falar dentro da instituição de ensino quem você foi, sempre… “Você foi preso, aquele negócio todo”, já te olhavam, você sabe como é que era naquela época! Não podia entrar manifestação nenhuma vendo as coisas erradas, greves, aqueles troços todos, não podia. Não podia tomar frente da coisa, entende? Nem falar quem você foi, entendeu? Porque, por exemplo, dentro dos colégios, você sabe disso, dentro do Stella, dentro do… O mais liberal aí é o Magister, que eu dei aula era o Magister. Mas dentro do estado mesmo era como substituto… se eu falasse que eu já tinha sido preso… Dentro do Vianna falar que você já foi preso. Quer dizer, você acaba perdendo o emprego, ainda por cima.

Rosali: O senhor foi indenizado já por…

Colatino: Fui.

Rosali: E quando foi isso?

Colatino: Fui pelo Estado, né? Fui o primeiro. E depois no Comitê dos Direitos Humanos eu fui indenizado. Tem três, quatro anos. Foi pouco, né? 30 mil só. Teve gente do meu grupo que foi cento e tantos mil. Mas tinha aquele negócio do trabalho, quem trabalhava entrava com outro tipo de processo. Você vê quanto a pessoa… se trabalhava na época e foi preso, vê quanto, até onde ele poderia ganhar, né? No caso de estudante não tem esse direito. Na época eu era só estudante.

Rosali: Tem alguma coisa que o senhor ainda queira que o Estado lhe repare, alguma satisfação que o senhor quer que o Estado brasileiro, o governo brasileiro lhe dê?

Colatino: Alegaram, inclusive, meu irmão, por exemplo, foi condenado, viveu na clandestinidade, ele não tinha família, então, fui o representante dele. Eu e meus sobrinhos fomos representantes dele e alegaram que nós não tínhamos o direito porque ele morreu, né?

Rosali: Ele morreu na época ou não?

Colatino: Não.

Rosali: Tá.

Colatino: Não. Morreu, mas trabalhava na época, foi condenado.

Flávio: Também sofreu tortura?

Colatino: Sofreu.

Rosali: Ele ficou preso na mesma época que o senhor ou não?

Colatino: Não. Na minha época ele já tinha sido condenado a 1 ano, no Rio, foi preso dentro do DCE lá no Rio. Aí, quando ele saiu, ele não foi a julgamento, ele entrou na clandestinidade, tanto é que morava, teve que morar vários anos, até 1979, mais ou menos, ele teve que morar na Rocinha pra viver na clandestinidade. Ele ia, às vezes ele ia pro exterior também, mas ele estava muito mais envolvido do que eu.

Rosali: Qual que é o nome dele?

Colatino: Walmir Soares. É claro que eu não tinha direito, que meus sobrinhos não tinham direito. E ele não tinha família. Morreu depois, em 1994, eu não entendi.

Rosali: Senhor Colatino, a gente já está se encaminhando para o final, o senhor quer falar alguma coisa que a gente não tenha perguntado…

Colatino: Não, acho que é só isso.

Rosali: Sobre esse período…

Flávio: Acho que é isso, o senhor situou bem esse período. Rosali: Então, a gente gostaria de agradecer sua presença aqui. Colatino: Muito obrigado.

Rosali: Desculpe pelo atraso, esses problemas técnicos, mas muito obrigada!

Colatino: Para mim foi um prazer enorme esse depoimento, apesar de que eu ainda não estou exatamente bem dessa isquemia que eu tive, então, talvez essa dificuldade que eu encontro em relatar isso com mais precisão, entendeu? Mas foi em função disso também, entendeu? Que eu acho que não saiu do jeito que eu queria.

Flávio: Mas foi um bom depoimento, né? Deu para pegar bem as informações que o senhor passou. E a gente agradece muito!

Colatino: Eu que agradeço a vocês por poder dar esse depoimento.

Rosali: Obrigada!

Colatino: Muito obrigado!