Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora
Depoimento de Antônio Modesto da Silveira
Entrevistado por Helena da Motta Salles e Cristina Guerra
Juiz de Fora, 17 de setembro de 2014
Entrevista 014
Transcrito por: Juliana Aparecida da Silva
Revisão Final: Ramsés Albertoni (17/10/2016)
Cristina: Doutor Modesto, boa tarde, por favor, a gente gostaria que o senhor fizesse um breve relato da sua vida, da sua história de vida.
Modesto: Muito brevemente, sou roceiro de Uberaba. Um local chamado Ponte Alta que, na época, eram só lavouras. Nasci em Ponte Alta, registrado em Conquista, mas família de Uberaba e criado em Uberlândia e, enfim dali, daquele roceirinho, virei depois um operário de pedreiro, depois consegui finalmente estudar num ambiente em que a maioria era analfabeta, a maioria da minoria era analfabeta. Estudando, tive a sorte de tirar sempre o primeiro lugar e, aí, me facilitaram de tal maneira que eu pude é fazer o segundo grau, começando em Uberlândia, depois facilitaram de tal maneira pela sorte que eu tive com tanto sucesso que acabei indo pro Rio de Janeiro estudar e trabalhar lá, num colégio chamado Brasil América, onde hoje é o Pedro II. De lá, mais tarde, viajei pelo mundo, fiz um curso de oficial de marinha mercante e viajei sozinho pelo mundo e, finalmente, consegui me estabilizar em terra para fazer direito. Fiz direito na UERJ, na universidade, que é federal agora, era UDF, Universidade do Distrito Federal, no começo, e depois virou UERJ, hoje. Fiz direito lá, terminei em 1962, mal terminei, veio logo o golpe de Estado em 1º de abril de 1964. E desde esse dia, eu chego no escritório, cheio de gente pedindo socorro, eu comecei o socorro ali, em 1º de abril, dando esse mergulho profundo pra ver de que maneira, ah… derrotar a ditadura, e desse mergulho do qual não emergi até hoje, porque, além dos vinte e um anos de ditadura, houve as sequelas que continuam até hoje e, certamente, continuarão enquanto houver pessoas que sofreram tudo aquilo como eu e tantos outros advogados, e tanta gente, e também as sequelas dos fatos que ocorreram e de que o país não pode se esquecer e tem que rememorar com toda a verdade, o que vocês estão fazendo, memória, verdade. E quem tem a memória da verdade tem uma noção de justiça também e isso é preciso ser pensado, a forma de justiça e como, eu, por exemplo, dou até a minha sentença (riso) de algum modo, na medida em que eu digo não se deve sequestrar aqueles sequestradores, não se deve sequestrar sequestrador, nem torturar o torturador, nem matar o assassino, nem estuprar o estuprador, ou coisa parecida. Não queremos uma vingança, nós queremos é justiça e aperfeiçoamento do direito e da justiça pra todo sempre.
Cristina: Doutor Modesto, eu queria que o senhor lembrasse, se fosse possível, o dia do golpe, porque o golpe partiu aqui de Juiz de Fora.
Modesto: É verdade. A rigor, eu diria partiu de Juiz de Fora a execução. Quando a gente passa a conhecer a literatura e os documentos claros, hoje, não só no departamento do Estado, como na CIA, a gente percebe que todo foi montado lá, foi forjado lá, e de lá se desdobrou não só para Brasil, na América Latina e até para todo o mundo e em várias das… dos golpes havidos por aí. E Juiz de Fora foi realmente o inicio, na medida em que um dos alunos das escolas americanas, das escolas americanas de preparação e lavagem cerebral, Juiz de Fora tinha um desses alunos eficientes. Foi o general Mourão Filho, que era comandante aqui e, sendo comandante, ele se articulou com seus verdadeiros líderes ou patronos, se articulou e desceu com sua tropa no dia 30 pra 31 de março de 64 para dar o golpe no Rio de Janeiro. Que o Rio de Janeiro já não era mais a capital do Brasil, mas centralizava uma força política muito importante, né. Aquela área do Rio de Janeiro tinha um poder militar muito grande e também poder político, não só pela importância, tradição, a história da cidade, mas até porque ainda lá estavam muitas das instituições federais que não estavam transferidas para Brasília. Então, o golpe, a rigor, a sua execução, pelo menos começou em Juiz de Fora com aderência não só dos Estados Unidos, do governador de Minas, que era Magalhães Pinto, do Rio de Janeiro, que era o Ricardo Lacerda, e de São Paulo, Barros, que é Valdemar de Barros. Então, se agregaram os três estados, mas, portanto, estacaram o golpe na democracia que se aperfeiçoava no Brasil, cujo governo era de João Goulart.
Cristina: E se o senhor pudesse nos relatar, o senhor disse que quando chegou no escritório estava cheio de pessoas. Então…
Modesto: Ah, sim. Então, foi assim, o meu 1º de abril de que eu vi. Foi assim, como estava havendo já uma fermentação para derrubada do governo eleito pelo povo de Jango, João Goulart, havia toda uma movimentação que a gente sentia que era do exterior. Eu, enquanto aluno em 1950, 1959, 1960 aparecia em minha universidade, como em outras também, apareciam os chamados voluntários da paz. O que era voluntário da paz? Eram americanos, geralmente com aparência latina, brasileira como a nossa, às vezes falando espanhol, bem ou mal, mas falando e se comunicando conosco e tentando fazer as nossas cabeças de até, de algum modo, soltando balão de suborno na medida em que queriam nos convencer de que o Brasil tinha um governo perigoso, um governo comunista e que não deveria permanecer e que se quiséssemos até saber até muito mais e melhor das coisas, podíamos é nos habilitar a ir nos Estados Unidos receber informações, documentos e dados sobre os quais eles tinham do governo brasileiro e até dos governos latino-americanos, mas, sobretudo, do Brasil. Só que na minha universidade eles se deram muito mal. O famoso casarão do catete da UERJ… e esse casarão do catete tinha gente que apoiava as reformas de base, alunos que militavam a favor das reformas. Era reforma agrária, a reforma urbana, a reforma educacional, a lei de remessa de lucros. Enfim, várias leis e reformas pelas quais o governo de Jango estava lutando, e os alunos davam apoio. Não era um golpe comunista, nada disso, era na verdade era um grande aperfeiçoamento do processo democrático e humanístico. Pois bem, e lá apareciam esses voluntários da paz, não estávamos em guerra, nem nada. Vinham fazer, tentar lavar a nossa cabeça e soltar balão de sedução de interesses, ali na faculdade, e os alunos em geral repeliam essa gente, né, eram americanos com cara de brasileiros e falando até… alguns falavam em português arrastado, outros falavam em espanhol, até razoavelmente bem. Então, isso já era conhecido nosso. Quando veio o 1º de abril nós já sentíamos na universidade e até nas ruas a propaganda de certas organizações contra o governo Jango e como se o Brasil estivesse entrando num processo de comunização. Pois bem, então veio o 1º de abril, ia haver uma manifestação pelo governo de apoio, uma manifestação pública, um comício na Cinelândia, ali bem no comecinho, no finzinho da Rio Branco, todo mundo conhece no Rio, sabe o que é a Cinelândia, e no 1º de abril fui pra lá pra ver o comício onde haveria os intelectuais, lideranças estudantis, lideranças operárias, enfim, lideranças em geral, que iriam falar. Eu cheguei lá, só encontrei uma liderança, nem era das melhores, mas era uma liderança. Um deputado federal intelectual, chamado Roland Corbisier, encontrei na Cinelândia o Roland. Foi a única, e mais ninguém. Massa, mas sem liderança. Aí eu falei “Oh Roland, você por aqui e tal, como é? Você que é um dos líderes cadê o resto da liderança? Só você?”, ele disse “Não. Eu não tô liderando isso, eu vim porque quero apoiar”, falei “Mas cadê? Não tem liderança? A massa aí, tá reclamando, não tem liderança, não vai haver comício”. E ele meio perdido, não estava muito bem informado, e aí, ficamos por ali conversando, conversando um com o outro, meu escritório era ali junto da Cinelândia, na Álvaro Alvim, na Cinelândia. Pois bem, aí, enquanto está assim, e o povo clamando, aplaudindo, quando alguém falava alguma coisa do Jango, todo mundo aplaudia, etc., igual vaiava, daí a pouco começam a chegar os tanques pela avenida da Rio Branco, tanques do exército, isso já depois do almoço. Aí, começam a chegar os tanques. O povo pensando que eram os tanques do exército fiel ao seu juramento às instituições e ao governo oficial, formal, legal, o povo começou a aplaudir os tanques, aplaudindo pensando que eram os tanques de uma força armada fiel ao julgamento, à lei, à Constituição e ao governo. Quando começaram a aplaudir, muitos aplausos. Os tanques viraram as bocas dos canhões assim, pra boca da liderança, assim, contra o povo e o povo foi sentindo, foi sentindo que estava havendo um golpe naquela hora. Aí começaram a vaiar. Vaiou, o povo vaiou intensamente contra os tanques que mostravam contra o povo, ao mesmo tempo em que dois homens do meio povo deram tiros no povo. Deram tiros, um homem caiu perto de mim, o outro mais além, não sei onde, mas eu vi que um deles tinha a bota militar. Esses dois que deram o tiro cruzaram a Rio Branco, o Clube militar em frente, na esquina de Rio Branco com Santa Luzia. Ali fica um grande prédio do Clube Militar. Esses dois entraram, quando chegaram na porta os grandes portões de ferro se abriram um pouquinho e eles entraram, os portões se fecharam e lá se trancaram lá dentro. Ficou muito claro pra toda aquela massa que o golpe estava acontecendo naquela hora, mas o golpe principal tava ocorrendo naquela hora, ao mesmo tempo que isso acontecia. Alguns soldados começaram a sair detrás dos tanques com fuzis com baionetas, afugentando o povo da praça, e o povo foi saindo como pode, alguns apavorados e outros tentando resistir, outros sem entender direito, lá, naquela confusão. Quando, então, eu me despedi do Roland e outros amigos ali, fui pro escritório pra ver o que havia de notícia. E chegando lá, a notícia é que meu escritório, que tava cheio de pessoas, sobretudo, senhoras à procura do marido, à procura do filho e etc. Quando eu ouvi o relato de cada uma, ficou claro que eram pessoas sequestradas no dia anterior, como seu general daqui descendo, né, ou na manhã daquele mesmo dia, cada um tinha uma história diferente, várias pessoas sumiram. E eu ali, depois de anotar tudo o que contaram, eu fui direto para o DOPS, que o DOPS era polícia especializada para prender legalmente, prender qualquer cidadão que tivesse cometido um crime político, né, e legalmente. Quando eu digo prender é da forma legal, isto é, um juiz que viu que alguém por crime político ou crime qualquer, crime de natureza política, ele daria a ordem de prisão e o policial prenderia. Mas nenhum deles na legalidade, tudo sequestro! Foi como autoridade que sequestra, não é autoridade, é bandido como qualquer outro. Se vai à sua casa, leva uma ordem do juiz para te prender e te prendeu e se houve erro depois você discute na justiça com o juiz. Mas se ele não leva nada, vai apenas com a boca dizendo que é ordem pra te prender ou não nem te fala nada, me acompanha e vem comigo, é claro que este cidadão é pior do que o bandido, porque ele é uma autoridade, tem que combater isso, e ele, ao contrario, tá praticando isso. Praticando o sequestro, e eu verifiquei pelas informações que eram tudo sequestro, nenhuma prisão. Quando eu vou no DOPS, seria polícia especializada pra prisão eu andei, o ambiente estava muito pesado pelas ruas, eu vi pelas ruas um peso da presença policial, a presença militar aqui, ali, e quando eu chego no DOPS e vejo aquele ambiente pesado, eu preferi entrar num bar bem em frente, Bar do Ronaldo, bem em frente à entrada do DOPS, na entrada tradicional, antiga, elegante, bonito. Aí, pedi um cafezinho pra observar. Enquanto peço meu cafezinho, observando a entrada e a saída do DOPS, lá havia policiais também no cafezinho, havia policiais. Eu tomando, observando o ambiente, os policiais, a rua, a entrada dos policiais e a entrada do DOPS. Pois bem, quando eu tô observando antes de entrar, eu senti o ambiente primeiro, aí eu vi chegar um famoso advogado da época que era o Sobral Pinto, um mineiro daqui do interior, um jeito tradicional, um advogado conservador, líder católico, conservador, e a Igreja estava até apoiando o golpe quando não o conhecia, e o Sobral na linha da Igreja também, apoiando o golpe porque não sabia o que era, se algo sério ou que era algo democrático. Pois bem, quando chega Sobral, ele não somente, o nome dele, uma legenda ele era também, advogado do governador Carlos Lacerda que era um dos golpistas do 1º de abril. Era, pois bem, nem o Sobral por tudo isso, a seu favor, seu nome, sua correção, sua liderança, o fato de ser advogado do governador do estado que manda em toda liderança, inclusive no DOPS, ele não conseguiu nem entrar na porta, não sei, não passou da porta, ficou ali, aí desistiu e saiu. Quando ele saiu, foi saindo, e eu saí do bar e fui falar com ele, logo me apresentei, que era um jovem advogado desconhecido, me apresentei, mostrei a carteirinha e expliquei a ele, né, falei que tinha ido lá, que tinha sido procurado por muitas famílias de parentes desaparecidos, maridos, filhos e etc. E disse, agora, se o senhor não entrou eu não vou nem tentar, e ele deu todo apoio e disse “Não meu filho, isso mesmo, eu também vou fazer isso. Prepare seu habeas corpus do jeito. Aí não adianta! Não entrei e você não vai consegui entrar e nem vai chegar perto!”. Aí, fui direto preparar o habeas corpus pelos desaparecidos e ele foi cuidar da vida dele e eu fui também. Depois, nos reencontramos muito na luta que ele entrou também, porque, embora seja, fosse bem conservador, líder católico. Mas era homem correto, digno, né, era homem com toda integridade que tinha sido a mesma que era advogado do Lacerda, que era considerado seguidor de Hitler mais ou menos, era também, tinha sido também, advogado de Luís Carlos Prestes e Harry Berger, da ditadura anterior no tempo do Getúlio, na época em que o Hitler estava em ascensão. Pois bem, e esse homem que defendia gregos e troianos quando sentia que os direitos humanos estavam violados, esse homem, esse advogado, foi, não deixaram entrar no DOPS, tivemos essa conversa, fui preparar habeas corpus. Aí veio o meu primeiro mergulho no golpe de 1964, no dia 1º de abril, esse mergulho que continuo até hoje, que continuo até hoje, pelo que eu disse, isto é, não só pelos 21 anos de ditadura em que eu vi tudo o que se possa imaginar de errado, de crime, de violação aos direitos humanos, mas porque, também, as sequelas de tudo isso foram tais que milhares de pessoas carregam essas sequelas. Eu digo milhares de pessoas pra te dizer o seguinte, eu calculava e debati com os generais até na televisão sobre isso. Eu calculava muito antes, calculava que houve no Brasil, pelo menos, quinhentas mil ou meio milhão de vítimas diretas, e tantos milhões de vítimas indiretas do regime do golpe de 1964. Depois, eu tomei conhecimento, isto que o general do FMI que criou o FMI, ele próprio teria dado listas correspondentes a quinhentas mil pessoas para serem presas, perseguidas, acompanhadas, controladas ou reticências, ou reticências. Pois bem.
Helena: Doutor Modesto, o senhor defendeu muitos presos políticos. O senhor foi o advogado que mais defendeu presos políticos, né, pelo que a gente sabe. Seria bom se o senhor falasse pra gente dos casos mais significativos que o senhor lembra, que mais marcaram a sua vida profissional, e também falar um pouco dos fatos daqui de Juiz de Fora, pessoas que o senhor defendeu, fatos ligados a Juiz de Fora, se possível.
Modesto: Tá bem. Olha, quase todos foram muito importantes, alguns muito mais importantes do que outros, claro, em todos os níveis, em nível do ridículo ao nível da morte, da dor, né. Bem, podemos pegar casos de todo o Brasil e de todo tipo. Até as histórias revelam muito bem, desde a primeira história você pega, lá, por exemplo, os primeiros casos de pessoas que sofreram muito. Pega os primeiros, vai no tempo… no tempo e no espaço você vê que as histórias vão contando os fatos diferenciados desta enciclopédia que poderíamos fazer, eu propus até à OAB, e como eu falei, até, vamos fazer a enciclopédia do riso e da dor, eles andaram até publicando do riso e da dor, que nós podemos revelar. No caso, de Juiz de Fora, eu lembro tudo também. Aqui em Juiz de Fora você teve, como era a 4ª Região Militar, era uma região importante, tanto que foi daqui que desceu o general, que não me esqueça, o general “Vaca Fardada”, que é o general Mourão, ele se auto-apelidou de Vaca Fardada pelas burrices que fez e declarou à imprensa isso “Eu agi como vaca fardada. Bem já vi como general”. Pois bem, o autodenominado Vaca Fardada, desceu, já tinha antecedente, desceu com aquela tropa, deu o golpe no Brasil e aqui, deixou muitos, muitas sequelas. Por exemplo, o número de presos aqui, em Juiz de Fora, foi muito grande até porque aqui havia uma Auditoria Militar, ficava aqui no Centro, não sei ainda está lá, mas havia uma auditoria. O Brasil todo tinha só 22 auditorias. Pela ordem é assim, 22 auditorias, tinha a primeira instância militar, sendo que a segunda instância, o grau de recurso era um só, chamado Superior STM, de Superior Tribunal Militar, e o topo de toda essa justiça era o Supremo Tribunal Federal. Vinte e duas auditorias militares, um STM. As outras justiças, justiça criminal, justiça trabalhista, era outras justiças paralelas que têm o mesmo grau de hierarquia. Pois bem, aqui, essa auditoria recebeu muitos processos, desde, não sei lhe dizer quais foram os primeiros presos, mas eu poderia citar alguns de que me lembro bem, até que fui advogado de alguns deles. Por exemplo, aqui havia um grande líder sindical, um líder católico, um líder sindical, um homem íntegro, muito correto e que era um homem de confiança do João Goulart e, por isso, era assessor da presidente da república. Pelo menos, esse homem foi um dos primeiros a ser presos. O advogado dele era outro líder católico, um advogado chamado Sobral Pinto, Heráclito Sobral Pinto. Como eu vinha mais a Juiz de Fora defender os meus e como Sobral, no dia… um dia ele se encontrou comigo e pediu pra eu dar uma assistência ao Riani, Clodesmidt Riani, que era esse líder católico e líder sindical e ao mesmo tempo era de confiança do presidente da república e dava assessoria à presidência. Então, passei a defender também o Riani, tive contato com ele, e uns dos primeiros contatos foram muito emocionantes porque eu fui visita-lo, né, como advogado, conversamos muito, ele me deu os dados que eu queria, fiz a visita, trocamos as experiências e orientações e ele me pediu para visitar a família pra ver como estava a mulher e os filho e etc. E eu fui visitar, uma pessoa simples, uma senhora simples, cheia de filhos pequenos, hoje são advogados e procuradores. Hoje, são autoridades por aí, mas, na época, eram garotos, desde menininho de pé no chão terreiro e os meninos maiores fui visitar e ela tão emocionada, com tanta carência, carência material na sua casa que eu fiquei muito comovido em não saber o que fazer, e de lá voltei a ele pra saber o que podia precisar o que podia ajudar, providenciar, porque eu senti que a casa dele tinha carência de coisas pela mulher, pelos filhos e pelo ambiente. E passei, a cada vez que vinha a Juiz de Fora, visitar não só ele aqui no quartel como visitava a família também, e fizemos uma relação muito boa até que hoje ele é senhor de quase cem anos, né, passou por tudo isso, na maior dignidade em todo tempo. Pois bem, ele foi apenas um dos inúmeros, inúmeras vítimas de Juiz de Fora e da região militar, da 4ª Região. E, por exemplo, aqui teve, eu defendi pessoalmente, houve uns livreiros aqui, o Celso Horta e um sócio dele cujo nome não me lembro, mas vocês poderão perguntar e registrar quem era. Como é o nome? Acho que é isso mesmo, Roberto, que era sócio dele, o rapaz depois fez direito e, se eu não me engano, virou até procurador, se eu não me engano. Esse Roberto, ele ponderava, o João ponderava em dizer que eu soube que ele faleceu, né, o Roberto, né, parece que faleceu. Isso, pois é, lá tinham uma livraria, o grande crime deles é que tinham uma livraria que vendiam livros abertos, não proibidos, à toa, né. Era o grande crime base deles. Houve também aqui muitos presos de uma tentativa de reação ao golpe que se iniciou em Caparaó, no Caparaó ali, na divisa do Divino do Espírito Santo é o Caparaó, era uma espécie de guerrilha que ia reagir, que ia reagir ao golpe e havia intelectuais, havia pessoas, é, me lembro, defendi alguns desse também grupo de Caparaó que estiveram presos aqui por um longo tempo também. Enfim, houve muitos presos de toda região que vinham, respondiam ao processo, por aqui, em Juiz de Fora. A gente tinha que vir com alguma frequência para fazer as audiências e julgamentos… E por falar em julgamento, eu me lembro de uma coisa interessante. Havia entre nós um advogado chamado Paulo (Algueidas?) que era um belo colega, muito atuante, muito correto. Mas ele era um pouco descuidado na agenda e, um dia, ele estava… nós estávamos numa audiência, tinha várias audiências e na audiência em que ele estava participando houve um cidadão que nós chamamos de testemunha de viveiro. O que que era a testemunha de viveiro? Os advogados sabem que é a falsa testemunha, é aquela que a polícia prepara, ou entre os policiais mesmo ou um cara qualquer, prepara pra dizer, você vai dizer isso, isso. Aquele cara qualquer, aí, vira uma testemunha de acusação, preparada, falsa, e é por isso que chamamos de viveiro, posto no viveiro, preparada, vai ser testemunha. Pois bem, e eu observando, vi que havia uma testemunha de viveiro, que era um militar, um cabo, um soldado que estava depondo contra todo grupo de um processo aqui da auditoria, e quando vi aquilo desconfiei e vi que aquela testemunha de viveiro… e fiquei ouvindo. Daí a pouco, todo mundo perguntava “E o seu fulano estava lá?”, “Estava!”, “Aí, você reconhece?”. Às vezes ele tinha até decorado a fisionomia, já tinha… “Estava! É aquele ali. É aquele lá!”. E foi acusando todo mundo, de maneira que eu percebi que era uma falsa testemunha! Era de viveiro! Bom, chegou um momento em que ele falou um nome “O fulano de tal estava lá?”, “Estava”, “Quem é ele?”. Aí apontou para o advogado Paulo (Algueidas?) que, como ficava atrás dos acusados, um tanto pouquinho mais alto, mas apenas atrás, ele esticou, confundiu ou mentiu e apontou para o advogado que só fez assim “Eu, ahn!?” (risos). Junto a ele, soprei pra ele “Paulo, me passa a sua agenda”. Que eu ia verificar pela data da acusação e localidade da acusação, pela agenda se ele estava pra outro local, em outro lugar, inteiramente diferente naquele dia, naquela hora! Aí, disse “Não tenho!”. Não tinha agenda. Aí falei “Mas você recupera a agenda?”, “Mas vou ver se dou jeito”, “Mas é claro que esse você não estava”, “Não. De jeito nenhum. Estranho, né!”. Aí, eu falei, bom, por aí não dá pra provar que ele era um mentiroso pra mostrar que, neste dia, nesta hora, o nosso advogado acusado como sendo um dos perigosos subversivos, nem estava aqui em Minas, estava lá defendendo um cliente em São Paulo, no Rio, em qualquer outro lugar. Pelo dia e hora se comprovava a presença dele em outro lugar, né. Como ele não tinha agenda, aí eu fiquei pensando uma outra forma. Bom, aí, pensei, quem sabe uma papa que já morreu… Aí ele vai dizer que estava. Tentei me lembrar de um papa, João qualquer, né, o nome completo não lembrava, enquanto isso, me lembrei e falei “Escuta…”. Na hora de perguntar eu soprei e disse “Pergunta a ele se estava, lá também nessa reunião, o Arantes do Nascimento. Qual é? Qual é o nome? O Édson. Se o senhor Édson Nascimento também estava lá?”, “Estava!”. Aí, foi uma desordem na ordem geral, desmoralizou o depoimento dele e desmoralizou o depoimento dos outros mentirosos que também estavam lá para fazer falso testemunho, entendeu? Mas eu estava pensando que como não deu o papa, quem sabe o Édson, aí deu Édson. Se vocês pesquisarem, vão encontrar alguma coisa nesse sentido lá, na auditoria. Pois bem, mas aqui em Juiz de Fora não foi só esse ridículo não, houve, por exemplo, quer ver? Houve aqui um juiz, não me lembro exatamente o nome dele, mas lembro do apelido que ele tinha, acho que era João Carangolano, porque ele era, era compridão, magro, cumprido e que era um juiz ruim, condenador porque recebia ordens e cumpria, não era um juiz independente, recebia ordens e cumpria como mandavam. E esse juiz era visto com muita frequência bêbado, no que a gente chama de zona, isto é, uma área da prostituição daqui de Juiz de Fora na época. Se perguntarem o pessoal daqui saberão quem é ele e até onde é essa tal de zona que eu não sei onde é. Bom, então, tem coisas. Quer ver outra coisa que honra Juiz de Fora e honra até a própria justiça militar, embora como não haja tantos como ele. Houve um juiz aqui chamado Antônio Arruda, Antônio Arruda Marques, era um juiz auditor, muito correto e digno. E a lei dizia o seguinte, dizia e diz, tá lá na lei, no Código Penal, no Código de Processo Penal Militar, em que os juízes são sorteados dentre todos os que servem na região, naquela unidade militar. Pra tirar um corpo de juiz você tem que pegar todos os nomes e fazer um sorteio pra tirar os quatro. Pois bem, eu contei essa história, depois eu vou detalhar uma coisa importante! Como eles aí não fizeram a listagem, escolheram um grupo pequenininho e o juiz tinha listagem dos oficiais todos. Quando o juiz viu que aquela listinha não correspondia à lista legal que a lei determina que seja, todos os oficiais, não exclui A, B ou C, excluiu tudo legalmente. Ele então mandou de volta a lista, pedindo ao comando daqui que fizesse a lista completa de acordo com a lei, artigos tais e tais. O comandante sabe o que fez? Em vez de obedecer à lei como ele pedia, devolveu o pedido que fizesse direito, toda a listagem de acordo com a lei. O comando daqui fez o contrário, pegou a lista riscou a maior parte e deixou só aqueles da estrita confiança dele, isto é, só aquele que determinasse absolver, matar. Pois bem, quando o comando daqui fez isso, esse juiz digno de direito, Antônio Marques Arruda, ele simplesmente mandou ofício pro STM, o Superior Tribunal Militar, informando o que tinha acontecido e mais, enquanto eles não mandarem a lista legal ele não tem condição ética e nem legal de fazer audiência e disse “Estou com a auditoria fechada até que a lei seja cumprida”. Claro, o tribunal recebeu isso, me lembro como a discussão se extravasou, nós tomamos conhecimento lá no Rio, e aí, enquanto houve essa movimentação toda meio secreta, meio sigilosa. O que que acontece, a ditadura se encarrega de cassar os direitos e até a função do juiz. Quando eu soube disso, eu vim visitar o juiz aqui, pela dignidade e correção dele eu vim visitá-lo e ele já não era nada, cassado, sem função. Não sei, naquela altura já não estava recebendo nada ainda. Tinha o direito de continuar recebendo até que se resolvesse. Pois bem, e isso aconteceu, com esse homem que merece ser citada como verdadeira estátua de ética, dignidade daquele tempo. E por falar nisso, vocês devem ter ficado curiosos em saber como é que funcionava essa justiça, né? Era assim, se nós pudéssemos expor aquela legislação da época vocês iriam ficar estarrecidas, mas, entendendo melhor o absurdo do funcionamento. Nós temos a justiça normal comum, né, e justiças especializadas, justiça do trabalho, justiça militar, cuidar só de militar, militar e profissional do exército, marinha e aeronáutica e militar das polícias militares também. Pois bem, e essa justiça também tem primeira, segunda, terceira instância. A primeira instância da justiça militar contém cinco leigos, cinco oficiais leigos, pode ser de tenente a até coronel, na primeira instância, e o único que entende de leis é chamado de juiz auditor, então, é quatro a um. Esses quatro, se viessem com mais vezes e percebessem que vinha, que vinham, esses quatros vinham orientados, esses quatros era quatro votos contra um auditor que se quisesse seguir a lei ficava um a quatro. Primeira instância, e essa primeira instância, esses quatro, era formados assim como eu disse , entendeu? Por um sorteio entre todos os oficiais. Já a segunda instância, que é STM, era composto de quinze ministros, grandes personalidades, todos oficiais, dez oficiais generais e cinco tomados de pessoas importantes do país. Cinco que estiver, que fossem advogados pra orientar os outros, que não entendiam da lei, que eram apenas oficiais do exercito, marinha, aeronáutica, brigadeiros e almirantes, dez era assim, e o Supremo era a formação tradicional do Supremo mesmo. Eu disse isso pra gente pode entender do julgamento na época, o julgamento antes no tempo de… No tempo de Jango, no tempo de processo democrático não era assim não viu. Nenhum civil era julgado por um militar. O civil era julgado cada um na sua, na sua área especifica, né, então, era julgado normalmente. Quando veio o golpe, um dos primeiros atos institucionais foi desconfiando da justiça normal, passaram tudo que era político pra justiça militar, até mais tarde. Quando acabaram com o habeas corpus, acabaram para político, pra bandido não, mas bandido criminoso comum continuava até com direito a tudo, mas o político não podia e vinha e veio toda uma legislação vergonhosa, tão repugnante que a gente tem até vergonha de discutir com o colega qualquer, às vezes, depois juiz da França, juiz depois veio uma juíza da Argentina, da Europa, da Alemanha e discutíamos sobre e legislação brasileira e eu tinha até vergonha e eles boquiabertos, sem entender como a ditadura pode ser tão burra que, na verdade, a legislação deles era uma legislação da ordem unida dos quartéis, nada mais. Chegou a haver até uma coisa que o mundo não conhece e ficou boquiaberto, quando a gente comentou que teve que enfrentar isso, o chamado Decreto Secreto, meu Deus, todo mundo sabe, sobretudo quem é estudante de direito ou da área do direito, sabe que ninguém pode ignorar o fato, ignorar uma lei em seu favor porque todo que conhece a ética e o dever que tá na lei. Então, você não pode alegar “Ah, não, eu furtei porque eu não sabia de quem era, tava lá na casa dele e achei que podia”. Não adianta ignorar a lei. Quem roubou, roubou mesmo. Quem furtou, furtou, né. Então, não adianta, e, no entanto, eles fizeram um decreto secreto e eu enfrentei um coronel querendo que eu executasse, e eu dizendo “Não vou executar isso. Se o senhor quiser pergunte, ela tá orientada por mim, no que souber, pode perguntar, e adivinhar o que o senhor pensa, não”, “Mas o decreto é secreto, ela tem que responder!”, “Pois eu sou advogado. Então, o senhor me prenda, se for pra prendê-la. Porque eu orientei a ela para que ela respondesse tudo o que soubesse e ele fosse perguntá-la. Mais nada”. Aí, ela, ele só não a prendeu e nem me prendeu sabe por quê? Porque ele encontrou no nome dela a palavra Albernais, quer dizer, ela era parente de um Albernais, e Albernais eu sabia… e ele mais do que eu sabia que era um dos colegas dele, sequestrador e torturador. Era um coronel Albernais, estava seguindo em São Paulo e ele então, perguntou a ela “Qual é seu parentesco com o comandante Albernais?”, ela disse “Não sei”. Aí, ele com medo de ser parente e o Albernais puxar orelha dele ou tomar alguma providência contra ele, ele acabou respeitando, soltando e permitindo que eu a levasse de volta pra casa. Por causa dele. Mas era essa loucura a justiça militar na época.
Cristina: Doutor Modesto, o senhor falou sobre Antônio de Arruda Marques, o senhor se recorda do doutor Simeão de Farias que foi promotor?
Modesto: Simeão era promotor!(risos) O Simeão de Farias era um promotor muito duro, rígido, e a impressão que ele me dava, era de que ele cumpria as ordens da área militar de querer, em vez de cumprir a ordem legal, em vez de cumprir a lei, cumpria as ordens dos militares. Simeão tá vivo, por aí?
Cristina e Helena: Não.
Modesto: Se tiver vivo convém ouvi-lo. Convém ouvi-lo com uma boa assessoria. Porque nos processos a gente lembra muito bem de que a conduta dele não era uma conduta de um advogado nem de um promotor nem sequer uma autoridade ética. Ele queria era obedecer às ordens de onde vinham causando um derradeiro à ética e à moral das pessoas.
Helena: Ele faleceu há muito tempo… Ele faleceu.
Modesto: Hein? Ele faleceu? Só não sabia desta maneira, quem se lembra dele saberá.
Cristina: Doutor modesto, entre seus clientes de Juiz de Fora, o senhor ouviu algum relato de tortura aqui em Juiz de Fora?
Modesto: Ora, eu ouvi vários. Mas, ah, busquei ouvir pelos clientes meus, não tinham a gravidade que eu vi de certos lugares como, por exemplo, da Casa da Morte de Petrópolis, do DOI-CODI do Rio, do DOI-CODI de São Paulo e outros lugares do Brasil. De qualquer maneira, eu vi uma coisa e tenho curiosidade até hoje de saber. Eu ouvia referências de uma casa onde se torturava e houve até sugestão de que desapareceu gente de lá, uma casa da beira do rio, do lado do rio, uma coisa assim. Pode ser que tenha havido uma casa junto do rio, não sei se de cá ou de lá, mas uma casa onde aconteciam coisas graves e que até hoje eu não ouvi falar qual era o endereço desta casa, como há em outros estados também, né! No Rio, por exemplo, você tem a Casa da Morte em Petrópolis, você tem algumas casas dos DOI-CODIS, SOPS e DOPS. Do Rio de Janeiro nós sabemos que, dentro de quartéis, em locais oficiais, de sequestro, de tortura e assassinato até. Em São Paulo tivemos também casas assim e em Belo Horizonte, por exemplo, eu próprio tive um cliente para ser assassinado lá, e foi assassinado lá. Sargento João Lucas Alves que foi levado do SOPS, que era o DOPS da Polícia Federal da época, SOPS do Rio de Janeiro, levado clandestinamente, até do juiz que ele já estava ajuizado o processo, estava ajuizado e respondendo em juízo, trouxe o processo dele clandestinamente. A delegacia de roubos e furtos de Belo Horizonte tinha ali ou até tem endereço dessa delegacia na época e lá, chegou hoje pra morrer hoje pra amanhã num falso ah… suicídio, de um fato tão grave e anterior do Herzog, talvez o mais grave de Herzog pela forma como tudo aconteceu. João Lucas Alves, sargento, homem muito inteligente e preparado e que, como ele não respondeu a tudo o que eles queriam, havia pessoas, sobretudo, militares, que não perdoaram, pois, se soubessem, ouviam, matavam ou, então, vai morrer muitos deles como foi o caso de João Lucas Alves, lá na delegacia de Belo Horizonte, como se foi. Tem outro sargento, Manoel Ramiro Soares, lá em Porto Alegre, flutuando, um corpo que flutua na lagoa, sabe, depois de ter sido preso aí, aparece, ter suicidado. Aparece suicidado como apareceu suicidado João Lucas Alves, como apareceu suicidado o Herzog e outros, né, e outros.
Helena: Em Juiz de Fora tem o caso de Milton Soares.
Modesto: Quem?
Helena: Milton Soares
Modesto: O Milton Soares. Quem é?
Helena: Tem um caso assim também, ah, um suposto suicídio. Aqui na Penitenciária de Linhares.
Modesto: Quem era o advogado dele, você tem aí?
Cristina: Ele nem tinha nem advogado. Chegou num dia a Juiz de Fora, foi assassinado, né, no dia seguinte.
Helena: Ele é de Caparaó. Milton Soares.
Modesto: Esse nome não me é estranho. Mas não estou situando com detalhes.
Helena: O senhor não se lembra?
Modesto: De qualquer maneira, a Auditoria deve ter aqui os livros e os dados. Lá vocês poderão pedir e alguém pedir a um advogado qualquer, pedir os livros e fazer um exame e tirar a certidões de que quiserem para comprovar algum documento que precisem. Outro local muito importante também seria no STM, lá no subsolo há uns dados em cima de todas as pessoas que tiveram em dúvida aqui, pega em cima na área, temos os nomes, as informações e processos, inúmeros dos processos e datas, lá no subsolo tira certidões.
Helena: Mas…
Modesto: Aí temos Supremo, o Supremo também, pelo nome você localiza. E esse Milton, né. Provavelmente está lá, estará lá também do processo que foi feito aqui.
Helena: Mas o STM dá acesso a esses documentos?
Modesto: O STM? Dá, dele, de qualquer um, advogado, sobretudo, advogado, membro da família ou de qualquer um que tenha interesse vinculado ao processo, ele requer, e eles são obrigados a dar. No dia em que um tribunal, um juiz, negar certidão, vai ter um cataclisma. Nem Hitler fez isso! É verdade que hoje em dia sabemos… dizem, saiu até um bêbado dizendo “Hitler ganhou a guerra?”. Porque, porque as ideias de Hitler, a conduta dele, se reproduziram muito depois dele, através, sobretudo, de uma potência ditatorial que faz o que quer pelo mundo afora. Hitler ganhou a guerra, mas de qualquer maneira, neste aspecto, Hitler ainda não ganhou. Qualquer um advogado pode ir lá, requerer e pegar as certidões concretas, oficiais, documento oficial. Inclusive das coisas que eu estou falando.
Cristina: Doutor Modesto, o senhor chegou a visitar a cadeia de Linhares?
Modesto: Não. Porque lá, quando a gente tinha que ir lá pra visita… Andei visitando muito. Visitei em Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, mas em Linhares eu não visitei, mas houve, tenho colegas que visitaram, perto de Belo Horizonte.
Cristina: Não. Linhares é aqui em Juiz de Fora.
Modesto: Ah, lá em Neves?
Cristina: Tínhamos uma penitenciária política aqui. Isso, de presos políticos. O senhor chegou a ver algum presidiário?
Modesto: Eu visitei o quartel quando eu… eu sabia o nome, meu deus… Teve um cliente aqui, em quartel, que estava preso. Não sei se lá em Linhares ou não, eu visitei preso político aqui algumas vezes, mas, em geral, os nossos colegas aqui, faziam a gentileza que era mais prático, né, pra ele aqui, fazer a visita. Mas muita gente foi visitada lá em Linhares.
Cristina: O senhor defendeu também o primeiro preso que a gente tem conhecimento em Juiz de Fora, que foi o chefe dos Correios.
Modesto: Ah, é.
Cristina: Não foi? Antes do golpe ele foi preso.
Modesto: Qual era o nome dele?
Helena: Misael.
Modesto: Misael. Isso mesmo, ele era o diretor dos Correios.
Cristina: Ele foi preso antes do golpe. Ele procurou o senhor antes do golpe? A família?
Modesto: Não me lembro da data. Mas, de qualquer maneira, muitos colegas dele, que ele era diretor, muitos colegas dele me procuraram e me pediram pra ser. Depois dele preso a família me procurou e eu passei a defendê-lo e o defendi até que ele fosse solto. E era um homem de bem, digno que depois, quando solto, ele até saiu daqui, foi morar em Petrópolis, se não me engano, foi morar em Petrópolis e depois tranquilizada a vida dele e depois perdi o contato. Mas, depois quando ele me telefonava ou quando ele me visitava, e era uma homem muito correto e digno, era impressionante como um homem daquele pudesse ser preso como subversivo, criador de problemas legais.
Cristina: Eu queria perguntar, nós fomos a Linhares, no presídio, e a gente encontrou uma ficha de um menor de idade, isso me chocou por que…
Modesto: De um menor?
Cristina: Eu sou advogada e eu fiquei muito chocada com isso, então, eu queria que o senhor me falasse sobre essa questão do menor de idade como preso politico.
Modesto: Ora, você sabe também melhor do que eu, que o menor de idade, o menor de quatorze não pode responder a processo nenhum, ele vai para o juiz de menores, o juiz de menores examina ele de maneira paternal, sem que lhe exponha. O menor de dezoito tem redução, ou melhor, menor de dezoito nem pode pelo juizado de menores, até os dezoito. De dezoito a vinte e um ele tem amenizações da pena, né? E reduções, etc. É assim, me lembro naquela época eu defendi alguns menores. Me lembro bem de uma menina de quinze pra dezesseis anos que eu consegui salvar através do juiz de menores que, muito habilidosamente, conseguiu requisitá-la do DOI-CODI. Um dia ela estava sendo muito torturada, uma menina de 15 para 16 anos, e aí, quando eu consegui transferir pra vara do juizado de menores, aí eu consegui soltá-la também. Sobre a minha reponsabilidade, ele (inaudível) quando eu pedi para que ela fosse solta era de família de gente estável, mãe e pai, gente honesta, muito trabalhadora, era tinha estudante, e tudo mais. O juiz acabou confiando em mim, e soltou-a, sobre minha responsabilidade, então, é claro. Minha responsabilidade, mas eu não ando com ela no bolso. Ela é livre pra fazer o que quiser, andar pela rua e tal. E é claro que quando eu consegui a soltura dela, foi pra que ela se defendesse que ela estava marcada pra morrer, acho que ela ia ser assassinada porque era uma menina muito idealista, corajosa e valente, Maria Alice o nome dela. Maria Alice, e essa menina então, depois, mal foi solta e foi embora pro Chile, do Chile pra Europa, eu via como exilada, menor de idade exilada. Eu vim reencontrá-la muito mais tarde quando fui convidado pra fazer uma palestra na Suíça, eu encontrei essa garota lá, já agora maior de idade, dezenove e vinte anos, encontrei essa de quinze e dezesseis anos. Houve, por exemplo, crianças que foram presas. Ainda recentemente me telefonou outro dia a avó de um bebê. Ou melhor, era na época mãe de um bebê, de uma família. Tem um caso de Recife que era uma família de médicos. A mãe, o avô, a avó, o irmão, a mãe eram todos médicos, e outros também ligados na área médica, e ela, ela, a avó desse bebê, era… é cientista médica de pesquisa importante, fez num trabalho dela conhecidíssimo da faculdade de medicina lá em Pernambuco, Recife, e de todo o Brasil, Naíde Regueira Teodósio. Teodósio era o marido dela, e os vários Teodósios, essa filha era Naíde Filha, médica também, mãe de um bebê e ela casada, procurando o marido, não o encontraram, procuraram-na e ela conseguiu fugir com a criança porque ela sabia que eles queriam pegar a criança, queriam pegar a criança pra que a mãe e o pai se apresentassem, então, ela saiu desesperada no meio da noite, saiu andando pela rua, sem dinheiro, sem nada, até que se lembrou e descobriu a casa de um médico que era amigo da mãe dela, um médico da mãe do pai, que eram médicos, e aí, esse casal (João Humberto Tiba, Irano Santana Tiba?), recebeu ela no meio da madrugada e ela disse que já chegou com a criança, entregou nos brações da Tilda, assim, e caiu no sofá dormindo já, porque tinha passado a noite inteira fugindo pra salvar a criança, estava esgotada quando conseguiu localizar a casa dela, um bebê, e há informações de que algumas crianças foram levadas para que os pais se apresentassem e houve caso de apresentação. Netinho da Naíde, isso há pouco tempo, a mãe desse bebê me procurou no Rio, pra agradecer, coisa de cinquenta, quarenta e tantos anos atrás e também pra se por à disposição, aí a orientei pra prestar sua opinião à Comissão da Verdade lá de Pernambuco, e a mencionar, como faço com vocês, e quaisquer outros.
Cristina: E o senhor andou dizendo sobre gratidão, né, e como o senhor recebia se ninguém tinha dinheiro?
Modesto: (Risos) Se ninguém tinha dinheiro, ninguém podia pagar, isso a gente sabia e respeitava, né, por exemplo, as pessoas estavam prometidas, caçadas, presas, a família estava passando fome. Eu não tinha coragem como alguns não tinham coragem nem de falar em honorário, não existia. Mas havia uma coisa muito bonita, muito certa, as pessoas eram sérias e humanas, então, aqueles que podiam diziam “Doutor, eu sei que o senhor não fala em honorários, mas eu posso pagar, eu tô com meu terreno, meu pai é rico, como aconteceu, já, meu pai tem dinheiro pra pagar, qual seria o normal, né? Qual seria o normal?”, a gente falava “Ah, fica à vontade, dê o que puder, o que quiser”. Porque precisávamos comprar também arroz e feijão, aí, você cozinha e as pessoas tomavam providências até de umas vezes de maneira muito emocionante. E alguns, a gente pagava pra trabalhar pra eles, se eu te contar, por exemplo, caso do sargento Moacir, por exemplo, sargento Moacir, o grande crime dele é que ele era, ele era compositor e inventor. Era muito inteligente, era um sujeito brilhante, eu ouvia e ficava encantado de ver como inventava tantas coisas e inventava como fazia poesias, como era compositor, ele era artista da daquela orquestra dos Fuzileiros Navais do Rio de Janeiro, pois bem, 1963 ou 1964, ele compôs uma música tão bonita que até o almirante ouviu a música, quando ouviu a música, mandou imprimir e tocar na banda dos fuzileiros. Como o almirante Aragão veio a ser visado pela ditadura, porque discordou dela, então, teve que fugir, foi morar no exterior, até teve que ir embora como exilado, né, ficou visado né, aí, o sargento Moacir, que tinha composto a música que mandou imprimir, como se fosse organização dele qualquer, aí esse sargento teve agravante de um dia estar na porta-mar, é aquela entrada de navio. O comandante disse “Sargento, controla toda saída e entrada não deixa entrar ninguém!”, e repetiu, “Ninguém ouviu?”. Falou até em público “Sem a minha autorização expressa pra cada um”. Pois bem, aí ele está lá, comandando o controle da guarita do navio, naqueles dias bem tumultuosos de 1964, de abril de 1964, e chega um famoso almirante, foi entrando, aí ele foi e barrou e disse “Por gentileza não entre”, “Como, não entre? Eu sou almirante e entro em qualquer unidade militar! Sobretudo na Marinha! Não quero saber!”, “Não, por favor, não entre!”. Aí, ele falou firme como quem fosse impedir a entrada do almirante. Eu me lembro o nome dele daqui a pouco, aí, e mandou imediatamente chamar o comando. Quando o comandante chegou, aí o Moacir disse “Que aqui o senhor almirante queria entrar e o senhor me deu a ordem que não deixar entrar ninguém. E eu pedi que ele esperasse”. Bem, aí ele bravo “Ele não me deixou entrar e eu entro em qualquer lugar!”. Aí o comandante ficou cheio de lisura, não, por favor, foi puxando o saco do almirante lá pra dentro, lá pro seu salão de recepção. Muito bem, só que daí uns dias esse sargento Moacir foi caçado pelo AI-5. Aí, quando ele veio, coitado, pro outro acontecimento, ficou andando pela rua assim parecendo louco. Acabaram levando ele pra OAB e na OAB mandaram ele para o meu escritório pra ver se eu resolvia o caso dele. E ele me contando a história, fui à marinha, tentando ver o comandante, não me recebeu o general. “Não podemos fazer nada porque é o AI-5, o AI-5 é sagrado, ninguém pode alterar nada. A única coisa que podemos fazer, e que se permitia é ir pra falar: Maria, Maria José Cerqueiro, falou mal de Januário José Cerqueiro, entendeu? Houve um erro concreto, um erro crasso aí, podia corrigir só o erro, não podia rever nada! O AI-5 era sagrado! Ninguém podia rever”. Aí eu disse “Olha aqui, como isso aconteceu? O que tinha acontecido?”. Esse sargento só merecia elogios e promoção por tudo que tinha feito não só pelas suas composições, mas como por atitude lá dentro do navio porque ele cumpriu uma ordem rigorosa. Acontece, aí, eu disse a ele “Olha, não pode rever o AI-5, mas pode uma coisa, eu posso pedir, você tá sendo considerado morto-vivo, porque o chamado morto-vivo civil é aquele que para às forças armadas morreu, não existe”. Quem passa a existir no lugar dele, se tiver direito é a mulher, ou o filho, o descendente, né, o herdeiro dele, passa não existir. Ele é ignorado. Não existe, morreu. É o chamado morto civil. E esse homem virou morto-civil, ah, na medida em que ele fez aquilo com o almirante, aí eles cassaram ele. Aí, o que acontece ainda, pior, esse homem um dia vai pra casa, chegou lá encontrou um colega dele na cama dele com a mulher dele… ele ficou… a mulher reagiu expulsando ele de casa “Sai daqui, num sei o quê!”. E o companheiro, o namorado dela apoiou ela, o expulsaram, o dono da família e aquele que mantinha a família. Pois bem, ele ficou tão louco que saiu assim pela rua sem saber o que fazer que nem louco. Aquele gênio que nem louco pela rua, quando ele bateu na OAB, lá mandou me procurar e disse, vamos fazer uma coisa, o homem brasileiro, até hoje, não pede pensão à mulher. A mulher pede o homem, tradição e tal, mas vamos mudar essa tradição. Eu vou pedir a pensão pra sua mulher, porque o dinheiro é seu, sua mulher recebe porque você foi artificialmente considerado morto civil, eu acho que o juiz vai deixar de dar a sua pensão, do dinheiro que é seu que ela nem tinha que ter ganho. Pois bem, ele não queria essa coisa de homem, machismo, né, homem não pede pensão à mulher, nunca vi e tal! Mas nesse caso é mais do que justo e o dinheiro é seu, é devolução pelo menos de parte de seu dinheiro, da sua reforma que eles passam a ela por um artifício de AI-5. Pois bem, ele acabou topando, nós ganhamos na justiça só não deu tudo, porque tinha filhos e a mulher estava com filhos, então, metade era pra mulher manter os filhos e outra metade era dele. Esse homem que recebia todo dia e quando ele chegava via que estava mal. Eu perguntava “Seu Moacir, o senhor jantou?”, “Não”, “Almoçou?”, “Não”, “Então vá almoçar, vá comer, toma um dinheiro e vá comer, depois cê vem e a gente conversa”, foi assim. Quando esse homem… nós conseguimos pra ele metade da pensão do dinheiro dele, que a mulher recebia na íntegra, ele ficou tão agradecido e revelou a sua honestidade, o seu caráter. Ele passou a ir ao meu escritório com frequência, bem arrumadinho, vestidinho, sempre me convidando pra jantar, pra tomar um lanche, coisa assim, fazendo questão de pagar. Porque eu pagava quando ele não tinha nenhum centavo, ou dava o dinheiro pra ele comer e, então, aí, outra coisa, ele pegou o dinheiro que estava recebendo, montou uma oficina em Caxias, lá perto do Rio, em Duque de Caxias. Montou uma oficina pra realizar o sonho das criações, das invenções dele e ganhar dinheiro com concerto de máquinas, e estava muito bem, muito bem vestido. Quando um vagabundo qualquer, vendo que ele andava agora bem vestido e com grana no bolso, foi assaltado, ele reagiu, foi morto na oficina onde trabalhava e morava no fundo. Sargento Moacir, da marinha. Pois bem, tem casos assim, os mais estarrecedores de todas as forças armadas.
Helena: Eu gostaria de fazer uma pergunta para o senhor.
Modesto: Diga.
Helena: O senhor, nessa atividade em defesa dos presos políticos, os próprios advogados dos presos políticos passaram a ser perseguidos. O senhor foi sequestrado inclusive, assim como outros advogados.
Modesto: (Riso) É verdade, como você descobriu isso?
Helena: Pois é, então, a gente queria saber um pouco sobre isso.
Modesto: Deixa eu ver, os advogados cometeram um grande crime justificável nisso tudo! Sabe qual foi? Eles defendiam os direitos e deveres humanos. Eles defendiam os nascer, eles defendiam os perseguidos políticos, defendiam as criancinhas que eram sequestradas pelos sequestradores das forças armadas e da polícia especializada. Como os advogados defendiam esses desvalidos, eles passaram a amedrontar, primeiro usaram a tática com alguma frequência, repelentes, soltar balão de ensaio, de vantagens de corrupção, às vezes, assim, você não podia falar nada porque não eram tão claros, diziam “Ora doutor, você tá se metendo com essa gente perigosa, são terroristas, um dia tá bem outro dia fez desembargador, o senhor podia ser outro lá do tribunal, você tá perdendo tempo com essa gente, mas sorte é que a gente dá um jeito”. Quer dizer, ensaiando com corrupção, isso era mais ou menos frequente e frequente também era a forma de ameaça, forma de ameaça. Por exemplo, vou te dar um exemplo concreto que ocorreu comigo, com outros também devem ter sofrido não é só de ameaças, tem muitas histórias. (pausa) São tantas histórias que dá vontade de contar pra você e… a enciclopédia do terror. A enciclopédia da comédia, da tragédia e da tragicomédia, ocorreu cada fato, simbolizava uma dessas coisas, tragédia, comédia, tragicomédia. Vou contar só um fato pra você ter ideia de como era na época. Quando eu ia pra rua Barão de Mesquita, agora inauguraram o busto do Rubens Paiva, na Praça Lamartine Babo. Pois bem ali, eu ia visitar com frequência os ambientes considerados mais perigosos que podiam, como tantos, bem ser suicidados. Então, eu ia visitar com muita frequência os mais delicados. E fui visitar o Lucas Alves lá, com frequência, e chegando lá quem me recebeu foi sempre um capitão chamado capitão Leão. Capitão Leão é controlado e eu nem sabia que nessa altura ele era também compactuado com a tortura e tudo mais. Mas o capitão um dia ele veio me receber, quando eu fui visitar o João Lucas, aí veio um cidadão atrás dele, tava à paisana, mas eu sabia que era militar, pela liberdade lá dentro, pelas botas e pelo jeitão, era um militar, um oficial, cujo nome não sei até hoje. Mas aí, ele foi chegando um pouco atrás do Leão dizendo… facilitado, já tem até um alvo. Já tem um alvo que facilita, ainda fez assim, né. E como tenho essa pinta desde criança, essa pinta na testa, eu olhei pra ele e ele se referia a mim mesmo. Eu disse “Olha senhor oficial, eu disse a ele, se você acovardar é pior, eu disse, olha senhor oficial, uma coisa, esse alvo, primeiro lugar, a pessoa que vai utilizar esse alvo ele vai utilizar aquele, utiliza por aqui, mas diga a ele que tanto por aqui e como por aqui, tem um ricochete que faz a bala voltar e pegar no executor e no mandante do executor pra atingi-lo, avisa ele primeiro”. Aí ele ficou sem graça, o outro cara riu, aí eu falei, eu fitei firme nos olhos dele, e ele sumiu. Coisas assim eram corriqueiras e se acovardar era pior. Nós advogados, todos, éramos muito mal recebidos, éramos muito mal tratados e perseguidos também. Tanto que alguns de nós, pelo menos sete, oito, só pra na vaga do Rio de Janeiro, todos foram sequestrados.
Helena: Doutor Modesto, o senhor podia falar pra gente sobre o seu sequestro. O senhor foi sequestrado assim como outros advogados de presos políticos, fala um pouquinho sobre isso, por favor.
Modesto: Meu sequestro tá ligado a tantos fatinhos que dá vontade de contar todos, mas vamos à essência! Eles tentaram nos subornar até de uma maneira indireta, tava claro que queriam que a gente ou se acovardasse e passasse a militar como eles, ou quem sabe se subordinasse ao interesse pecuniário, carreira de quem fosse. Pois bem, não conseguiram e os advogados, felizmente, eu nunca vi na minha vida um grupo de advogados de tamanha integridade, sabe, tão entendimento e harmonia entre si para o bem. Homens dedicados pela luta dos direitos humanos e deveres humanos. E aí, todos os mais atuantes fomos sequestrados e torturados. Quais foram os advogados? Sobral Pinto, líder católico, advogado brilhante e de uma história linda, tem até um filme dele por aí, procurem ver, Sobral Pinto. Heleno Fragoso, um jurista primoroso, professor de direito, com livros publicados sobre o tema. Evaristo de Morais e idem, Evaristinho, filho do velho Evaristo Morais, já de longa data na história do direito brasileiro. O George Tavares, o Augusto Sussekind de Morais Rego, o Vivaldo Vasconcelos e, o mais simples deles, o mais modesto deles fui eu. Nós, como atuávamos muito na defesa dos deveres humanos, fomos vítimas de estarmos incomodando aos sequestros, às torturas e assassinatos de perseguidos políticos. Como eles não conseguiam nada de nós que não fosse legal, resolveram nos sequestrar. O primeiro foi Sobral Pinto, já naquela altura, talvez com oitenta ou mais anos, lá quando ele ia de Brasília pra Goiânia, chegando em Goiânia, para paraninfar um grupo de advogados, escolheram ele como paraninfo, aí ele foi.
Cristina: Em que ano aconteceu isso?
Modesto: Isso foi logo no AI-5. O AI-5 é de 13 de dezembro de 1968. Treze, foi logo em seguida, talvez quatorze, quinze.
Cristina: E todos os advogados na mesma época?
Modesto: É, foi em sequencia. Eu acho que foi retardado um pouquinho por uma conduta minha lá na auditoria, denunciando previamente, poderia até contar que é uma história interessante, se vocês quiserem até conto, porque estavam tentando me sobrepor, as tentativas de sequestro meu, mas vou dizer. Mas Sobral Pinto, Evaristo, George, o Augusto, Vivaldo e eu. No meu caso foi assim, eu não tinha tempo pra nada. Vivia de madrugada a madrugada tentando ajudar os sequestrados e torturados políticos e, num dia, havia um cinema lá no Rio de Janeiro chamado Paissandu, que tinha uma sessão de cinema às dez horas da noite e era o único horário que eu podia ir. Aí, convidei minha mulher, vamos lá, vamos ver, já são nove e meia, vamos lá pra essa sessão das dez, e fomos. Quando eu chego em casa, à meia noite e pouco, tá lá, eu já vi de longe o aparato, o aparato de sequestro, do meu sequestro, aí preveni ela, olha tá esquisito pode acontecer isso e isso. Quando vou descendo do táxi com ela, eles já fizeram a meia-lua à minha volta e já foram dizendo “Ah, doutor!”, como quem não quer nada, né. “Ah, seu doutor Modesto”, e tal, assim, gentilmente, eu disse “Sou eu mesmo. O que querem? Podem dizer”. Aí foi chegando o grupo e dizendo “Temos uma ordem pra levar o senhor”, aí eu disse “Pra que lugar?”, aí ele disse “Barão de Mesquita”, “Tudo bem”. Aí, na hora, eu estava com o paletó assim, e uma carta no bolso que tinha chegado, aquela carta tinha chegado à noitinha, à tarde, lá na minha mesa, então, eu nem tinha lido a carta. Mas temi que fosse uma carta que pudesse me comprometer o autor dela, porque era um acadêmico de letras, da Academia de Letras do Estado do Nordeste, e éramos abertos e muito francos e eu com medo de comprometê-lo, aí, tirei o paletó e disse a minha mulher “Suba, veja as crianças como estão e me traga um casaco mais quente”. Porque era meia-noite, né, ia esfriar mais, me traga um casaco mais quente e ele não teve o cuidado de examinar, e ela levou o paletó e aí eu já disse procurar fulano, fulano, dei o nome, a listinha e tal ou qualquer outro diligente da OAB, avisa que eu estou sendo sequestrado pelo DOI-CODI, e tudo leva a crer que eu conheço algum. Tinha até um cara suspeito entre eles que eu já conhecia. Bom, aí o resultado, aí o delegado na minha casa, meia-noite e trinta mais ou menos, em vez de ir ao DOI-CODI, quem conhece o Rio sabe, em vez de ir em direção da Barão Mesquita, me levaram para Niemeyer, aí, quando chegou na Niemeyer eu falei “Que diabo é isso?”. E percebi, você conhece o Rio? Ali, no Leblon, quando você entra na Niemeyer tem perto uma pracinha que os namorados vão, como é que chama, ali no submarino, sentam ali e tal ficam namorando com carícias e tal. Pois bem, ali percebi que dois do grupo eram totalmente loucos. Um deles estava vendo nos casais coisas que não tinha nada daquilo, dá vontade de reproduzir pra vocês verem o nojo que eu tive, na hora, “Ah lá aquele casal com a mão na coisa dela! Olha lá!”. AÍ você olhava, tinha nada. Eram dois casais normalmente se cariciando, só queriam namorar. Aí eu vi que o outro também gargalhava e tal. A sorte minha é que um dos policiais parecia normal, fez assim, liga não, liga não, são malucos. E, realmente, eram bem malucos, que eles utilizaram como Hitler utilizou loucos para trabalho sujo que nem o assassino ousa fazer e ter coragem. Tem coisas que nem… Só um louco é capaz de realizar, né. Pois bem, eles tinham os loucos deles pra fazer qualquer coisa a ponto se até você permitir, eu vou contar um caso de loucura. Pois bem, aí me levaram pela Niemeyer, aí, quando entrou, aí já tinha número e eu vi o número, 550 da avenida Niemeyer. Eles foram, pegaram a Niemeyer, observe, pouco tempo eu vi 550, aí entraram com um carro na minha frente, o meu, onde eu estava sendo sequestrado e um outro no fundo, tinha até metralhadora entre eles. Aí, entrou no 550 e eu falei com o policial que parecia normal e disse “Como, você disse que iríamos pra Barão de Mesquita, estamos aqui na Niemeyer!”, ele disse “Não. Uma diligência, depois a gente volta”. Mas diligência pra essa gente é qualquer coisa desde prender legalmente, até matar o outro pra eles era diligência. Não me tranquilizou. Mas ele disse a certa altura. Aí eu pensei, esses caras, entrou pro meio do mato, né, esse cara vai me levar pro meio do mato e provavelmente vai me matar e jogar o corpo fora e eu me lembrei de que a chave do meu escritório tava no bolso, aí eu tirei a chave do bolso e botei na janela aberta de trás , aí eu coloquei a mão e disse “Mas que estória é essa daqui? Você falou que ia pra Mesquita”. Aí joguei a chave num lugar que eles não veriam, porque eu não queria que eles pegassem a chave do meu bolso e fosse entrar no meu escritório e fazer montagens, qualquer montagem, né. Bom, aí disse não quero ir, vamos pra outro lugar e tal, e realmente a esta altura em que o carro parou, eles desceram e foram lá e daí a pouco vieram voltando, “Ela não está aí. Ela está em Santa Catarina”. Ela, depois eu vinha saber, era uma moça que era uma moça intelectual que tinha uma família importante, que estava na luta porque que eu sabia por que ela veio ao meu escritório, pra pedir pra defender o namorado dela que trabalha hoje na assembleia legislativa, aí eu fui advogado do namorado dela, e depois eu vinha saber que, naquela altura, não estava aí em Santa Catarina. Aí, realmente, depois dessa diligência lá desceram, fomos pro DOI-CODI onde eu fui recebido por um bando de aparentes civis e, na verdade, era tudo cara de milico, bota de milico e com nomes eram doutor, doutor fulano, e me receberam lá, o oficial, provavelmente o coronel, dizendo assim, olhando pra mim, firme, com voz de comando e de ódio “Aqui não tem doutor, doutor somos nós. Aqui não tem direito, direito somos nós. Aqui não tem lei, lei somos nós. E vai falando doutor!”, aí eu meio ironicamente falei “Falar o quê?”, “Vai falando tudo o que sabe”, “Tudo o que sei o senhor sabe, pode saber, não tem segredo nenhum. É só ir lá no tribunal, é só ir lá na justiça e ler lá quem sou eu, o que que eu faço”, aí, “Ah não quer falar não? “. Aí me levaram pra uma sala de tortura e assassinato. Uma sala em que havia uma mesa tudo cheio, sujo de sangue, sangue coagulado, armaram revólver apontado para mim e uma maquininha de choque, tudo aquilo montado ali o que eles faziam. “Vai falar não, doutor?”, “Se o senhor quiser perguntar, se eu souber lhe respondo”, “Sabe muito bem, sabe tudo! Não quer falar?”, aí fez assim “Traga!”. Aí, veio uma senhora, uma senhora jovem, esposa de um engenheiro do Incra e que tinha me procurado, e eu atendi a ela, né, atendi a ela. Aí disse “Conhece ele?”, “Conheço”, “Quem é?”, “Doutor Modesto”, aí, “Você deu um dinheiro pra ele?”, “Dei”, daí “E onde foi?”, “Niterói”. Falou tudo o que sabia. Mas eu vi que ela estava arrebentada. Eu vi que ela estava toda quebrada e sem poder me encarar né. Aí disse “E aí, quer dizer que o senhor defende esses terroristas e recebe dinheiro, não sei o quê?”, “Sim. Era tudo o que ela falou mesmo! Tudo o que ela falou é verdade”, “Então, o senhor não defende terrorista? E recebe dinheiro, não sei o quê?”, “É verdade, eu defendo quem eu quero”. Aí, disse que eu não cobrava, ela disse “Ele não cobrou”. Não cobrava, mas disse que recebeu o dinheiro. “Ah, quer dizer que o senhor não cobra?”, “Quem não quero, não cobro! Ninguém é obrigado a cobrar. Um médico se ele quiser ele faz o trabalho de graça, se não quiser ele cobra. O que ele achar que vale o cliente não aceitando paga”, “Então você não cobrou?”, “Não cobrei”, “Por quê?”, “Eles não podiam pagar, estavam sendo perseguidos, sem salários”, “Ah, mas esse dinheiro o senhor recebeu?”, “Recebi sim”, “O quê que era isso?”, “Ela veio me dizer que havia uma pessoa da família passando fome, porque o marido estava preso e não tinha dinheiro e a família passando fome. Então, ela me pediu pra entregar isso à família, entregar o dinheiro à família porque a família se encontrava munida e eu recebi porque achei que era um dever humano meu, receber o dinheiro pra comprar o que precisava de comida”, “Ah, e aí tinha que ser em Niterói?”, “Claro. Eu disse a ela que só podia ir naquele dia e ela poderia trazer o dinheiro, eu estava em Niterói, eu tinha uma audiência lá de outro preso político que estava lá, aí no DOPS de Niterói”. Então, eu estava lá e ela falou toda a verdade. Confirmei, se livrei da cara dele e a minha. “Mas o senhor sabe tudo pra dizer pra gente”, aí eu disse “Olha, tudo o que eu sei os generais do STM sabem. O general, almirante, brigadeiro, os dez oficiais, os cinco civis, todos sabem da minha vida porque eu vivo lá dentro do tribunal e dentro das auditorias, vivo lá. Sabem toda minha vida. Pergunte a eles, o senhor quer saber de documentos? Vai aos processos, o senhor tem liberdade. A justiça não é secreta. A justiça militar o senhor pode consultar e tirar cópia”. Bom, aí, eu sei, aí trouxe um outro rapaz mineiro, não é daqui não, é de outro lugar de Minas que chegou lá, eu nunca o tinha visto, não sabia quem era. Chegou lá, aí, acusado, e não tinha cara de torturado não. “Ah, eu o conheço. Sei que ele é advogado da nossa organização e tal e defende pessoal lá”. Me acusando, sem nada de concreto, e eu nunca o tinha visto. Não vou lhe dizer, porque eu não sei se ele foi torturado, era um jovem ainda, não vou dizer nem o nome dele, mas me deu uma péssima impressão, ou que era muito fraco ou de que estava comprado pela ditadura. Bom, eu sei que eu fiz de tal maneira, não dei nenhuma informação, não dei nenhuma informação. Dei só a liberdade de ver a minha vida onde quisesse sabendo de tudo o que vivia, e eu vivia mesmo, dentro das auditorias militares o dia todo e à noite, às vezes, na auditoria, em algum lugar da auditoria, se estivesse aberto ou em alguns locais de prisão de conhecimento, né. Então, poderia ver tudo aquilo que saberiam toda minha vida e disse mais, pode chamar os generais um a um, e eu enumerei até alguns deles, um deles vinha ser bem logo depois um dos ditadores, o Geisel, Ernesto Geisel, o Adalberto de vice-ditador, vice-ditador e os outros, fui mencionando. O próprio, o Vaca Fardada foi lá nesse tempo, ele era, foi aí, falei “Pode falar com esses generais todos que eles me conhecem e acompanham a minha vida o dia inteiro”. Eu sei que eles acabaram não tendo como reter, nem me acusar, nem me envolver em nenhuma acusação de processo nenhum, era mero sistema de intimidação dos advogados que atuavam muito na defesa dos direitos humanos, e aí, aquela lista que eu mencionei. Daí a dois dias me soltaram e eu continuei a luta do mesmo jeito que os outros também continuaram.
Cristina: Mas hoje o senhor pode falar, né. Hoje o senhor pode falar, e o senhor atuava como advogado das organizações ou era só outros advogados?
Modesto: Era todas as organizações. Se você pegar os processos onde eu atuei, você vai perceber, um é PCB, um é PCdoB, MPR, VPR… Eu defendia todos os perseguidos da ditadura. Todos que a ditadura perseguia eu os defendia se me procurasse, eu defendi todos. Eu não era advogado de uma só organização, eles me procuraram até eu me envolver nisso. Teve uma advogada do Rio Grande do Sul que tentaram, pressionaram muitos, muitos dos meus clientes pra que eles me acusassem como advogado de organização e alguns disseram “Ah, ele é mesmo, ele é advogado de organização e tal”. Da organização não, advogado do perseguido, não da organização. E daí eu quero dizer uma coisa que é importante agora, foi no passado e continuará sendo, algumas organizações, na verdade, tentaram me mobilizar pra que eu fosse profissional orgânico, como diria Gramsci, um profissional, defensor só daquela organização e eu nunca aceitei e dizia a eles “No dia em que eu aceitar de ser advogado de uma organização, eu estou preso e vou ser comprometido”. Eu não sou de uma organização, sou advogado dos direitos humanos de qualquer cidadão, de qualquer organização que tenha… seja perseguido pela ditadura, violado os direitos humanos, estou defendendo. Então, era isso, não era de nenhuma organização, era de qualquer organização perseguida, violando os direitos humanos.
Helena: Eu gostaria, doutor Modesto, até porque a gente está caminhando para o final do depoimento, né, que o senhor falasse um pouco sobre sua participação na aprovação da Lei da Anistia.
Modesto: Olha, foi assim: Vinham tentando fazer com que eu fosse eleito deputado e eu dizia, claramente, acho que não vale a pena, não vai se conseguir muita coisa no congresso nacional, além do mais, tem muita gente que quer ser candidato. Mas tem poucos advogados que querem defender presos políticos na justiça militar que não dá nem pão nem glória, você não tem honorários e você não tem resultados satisfatórios inteiramente. Você tem muitos aí que querem ser candidatos, eu quero continuar sendo advogado porque eu sou muito mais útil como advogado nessa época em que estão todos acocorados e a ditadura faz o que quer, a legislação não sai do legislativo, ela sai dos quartéis, ela sai do palácio da ditadura, do Palácio do Planalto, né. Mas, quando chegou em 1978 a coisa estava abrandando um pouquinho, aí cê aceita a anistia, alguma gritaria geral por anistia ampla geral e irrestrita e eu pregava a anistia também nos julgamentos, dizendo claramente. Teve um caso até do Médici que eu mostrei que ele era ladrão, ele era ladrão, o Médici me fazendo um julgamento, em que eu dizia o seguinte “Olha, esses meus clientes aqui, vocês tão pedindo prisão preventiva contra eles”, era Jarbas Marques, um mineiro lá do Triângulo que ficou quase dez anos preso, “Estão querendo a prisão de um homem desse e há apenas suspeita, não há nenhuma prova contra ele”, mas como pedir a prisão de homens que já estiveram presos tanto tempo, que já acuraram tudo contra eles, né. Vou dar um exemplo interessante, o atual, o atual que está dono do poder, o de farda azul, o general Médici que está no poder, o ditador, ele foi acusado de ser ladrão de comida de cavalo quando servia no Rio Grande do Sul. Eu conhecia o processo, ele foi acusado de ser ladrão de alfafa, de comida de cavalo e, enquanto ele não foi provado, ele tinha o direito à liberdade, e porque esses homens sem nenhuma prova, vão ter prisão preventiva decretada, hein? Pois bem, e realmente, depois que eu fiz essa defesa, os presos, ali e tal, o próprio Jarbas me alertou, “Cuidado, hein!”. E logo depois eu fui sequestrado. Parece que chegou ao ouvido do ditador e o ditador cuida dele (confuso) e realmente aconteceu isso. De qualquer maneira, olha, dá vontade de contar tanta história dos advogados que defendiam, mais de vinte e um. Muitos mineiros, fluminenses, dos advogados, dos médicos, dos professores, dos estudantes, dos líderes sindicais a começar com Riani, né, daqui de Juiz de Fora e tantos outros líderes sindicais, olha, dá vontade de contar a história deles que é muito mais bonita e cada um tem uma história muito interessante e um dia, se vocês ousarem, depois de um levantamento tão bom que vocês estão fazendo, vocês quiserem fazer a enciclopédia do absurdo, a enciclopédia a que eu me referi, do riso e da dor, vocês vão ter material suficientemente grande pra mostrar ao futuro, aos seus filhos e netos, bisnetos e netos. Mostrar que toda ditadura, por menos ruim que seja, é muito ruim, muito ruim. Toda ditadura é ruim. E um processo democrático, realmente democrático, é humanístico, é realmente a nossa luta e disso eu não estou falando, estou repelindo a plutocracia, eu estou de falando em democracia. Não em plutocracia! Acho que é o nosso dever em favor das gerações futuras, é o que vocês como professores, como alunos, como qualquer cidadão, lute para ver se nós possamos ter isso amanhã. Se nós possamos ter no amanhã dias melhores em que nós tivemos no passado e que eles nunca se repitam.
Helena: É isso aí, doutor Modesto, acho que vamos encerrar, muito obrigada por esse depoimento maravilhoso!
Modesto: Eu que agradeço, e se faltar alguma coisa, tenha liberdade. Seja até amanhã, ou seja, em outra oportunidade, estou às ordens, porque acho muito importante o trabalho que vocês estão fazendo, o trabalho que outros grupos estão fazendo de Norte a Sul do Brasil e, mais do que isso, em outros países fazendo, pra estas coisas não voltem a ocorrer como vem gerado em algumas organizações internacionais, financiados por grupos financeiros que se interessam com esse tipo de violência aos direitos humanos, né, enfim, que a gente realmente possa ter um mundo muito melhor do que tivemos no passado, do que tivemos hoje. É o meu sonho, então, continuarei lutando e espero que vocês também, espero.
Modesto: Esse caso foi assim, A igreja católica também foi como outras igrejas, na medida em que entenderam que a ditadura… as igrejas, em geral, deram apoio à ditadura no começo, depois, quando viram que era um mal desnecessário, passaram a fazer oposição. A igreja católica também foi a mesma coisa. Nessa altura, alguns dos melhores bispos foram perseguidos. Pois bem, eu fui advogado, orientador, inclusive orientador da CNBB quando precisavam de alguém, uma das vezes em que a CNBB me chamou, Dom Aloísio, Dom Ivo, Irmã Augusta, depois atendi Dom Valdírio, em Volta Redonda, Dom Elder em Recife, várias vezes. Bom, numa dessas, chegou um casal no Rio de Janeiro, um casal de Pernambuco, líderes católicos perseguidos lá, tinham matado um padre, Henrique, padre Henrique que era assessor de Dom Helder. Mataram o padre Henrique, abusaram de outros, fizeram misericórdia, então, aí eles passaram a proteger os líderes mais visados, ele mandava pro Rio de Janeiro, de preferência, que aqui tinha a CNBB pra dar uma ajudinha pra arranjar emprego e tal. Aí, veio um casal de lá e, nessa altura, me chama a Irmã Augusta, a pedido lá do Dom Aloísio, é Dom Aloísio ainda, pedindo que eu defendesse o casal e eu defendi. Defendendo o casal, os dois presos no DOI-CODI. Quando obrigaram a torturar a mulher dele, ele não. Preferia ser torturado e não à mulher. Aí, falou pra ela torturá-lo, ela também não o torturou. Preferia ser torturada a torturar ao marido. Quando ela se recusou, sabe o que fizeram? Separaram o casal, levaram ele lá pra não sabe onde, ele era um cara muito discreto, caladão, não disse o que sofreu. Mas ela veio depois e me contou que ela foi levada pra um canto onde os torturadores a estupraram em fila. Fizeram uma fila diante dela e foram estuprando ela. E ela guardou a fisionomia só do primeiro. Quando me contou isso, ela disse “Deus fez com que do segundo eu visse nada e não sentisse mais nada. Mas o primeiro eu tenho na memória a fisionomia dele. E agora doutor, estou grávida. O que fazer?”, eu disse, “Olha, eu sei o que fazer, se eu fosse você eu faria aborto. Como você é católica, religiosa e tem liderança e as religiões são contra aborto, consulte o bispo que gosta de você, fale com seu marido, vai com ele pra vocês discutirem lá essa questão de natureza filosófica e humana. Quanto a mim, eu garanto que eu obtenho aborto legal pra você. Bom, essa é minha posição. Quer consultar, vai, e o quiser fazer, eu já vou pedir e fundamentar, pedir seu aborto legal”. Ela, então, o quê que ela fez, ela não falou com o marido que foi para o bispo. Com o bispo ela falou e disse depois que vamos encaminhar pra lá e não sabe o que dizer. Finalmente disse “Minha filha, fala com seu marido depois venham vocês dois e a gente vê o que fazer”. Aí, eu entendi que ele pediu um tempo pra consultar os colegas da CNBB. Ora, nós somos contra o aborto, é claro. Todo mundo é contra aborto. Mas, nesse caso, como dar apoio à nossa líder católica que tá precisando de apoio. O que fazer, né? Bom, aí vai minha filha, fala com seu marido e depois volta vocês dois. E eu dei aquela orientação e fiquei até preocupado porque era de um canto do interior, muito reservado, caladão, e eu pensei assim, esse cara é tão reservado e calado que ele é capaz de querer ouvir a história da mulher todinha e identificar, que ele tem pra identificar os torturadores que torturaram os dois ao mesmo tempo com os quais foram na ordem e tal, pra matar os estupradores e aí ia ser morto na hora, né. Fiquei com essa preocupação, mas, felizmente, aconteceu o seguinte, quando ela contou, depois ela me disse que ele não deu uma palavra que ele era muito calado e, até hoje, os dois são vivos. Ele olhou, ele ouviu e ouviu e quando ela terminou ele foi a ela carinhosamente, acariciou com toda doçura e disse “Olha, uma criança é uma criança, se você quiser tê-la eu estarei sempre ao seu lado, mas se você quiser tê-la pode tê-la e nós fazemos dessa criança uma pessoa de bem que nada tem a ver com essa origem horrorosa…”. Aí, minha preocupação era que essa criança que saísse a cara do primeiro estuprador, que ela reconheceria como é que, eu disse à ela, como você vai ter esse filho com a cara de seu estuprador, quero dizer, vai ser uma loucura pra você. Vai ser uma tortura vitalícia. De vida inteira você vai ter a tortura de acariciar o rosto de seu torturador que, ao mesmo tempo, é seu filho? Bom, aí o que acontece, resultado final, ela voltou sim, ao meu escritório, “Doutor Modesto, Deus finalmente ouviu a minha prece. Quando meu marido me recebeu daquela maneira, carinhosa e me dando todo apoio eu tive um relacionamento físico e psicológico tão grande como eu nunca tive na minha vida. Aí, Deus providenciou um aborto espontâneo. Estou livre, sem precisar de aborto nenhum, que Deus providenciou, graças à Deus”. Essa moça continua viva, ele também. Ela vive num lugarejo lá no Pernambuco, chamado Brejo da Madre de Deus, lugarejo pequeno. Trabalhava aqui, quando se aposentou foi pra lá.
Cristina: Doutor Modesto, o que o senhor diria pro nossos advogados, nossos colegas de profissão, em relação a esse período, em relação à anistia.
Modesto: Olha, eu diria foi um período tão excepcional que vale a pena vocês fazerem até um estudo da legislação, que parece é uma coisa tão exótica e estranha que parece que é de outro planeta. Outra coisa, mas tem uma coisa bem para o nosso planeta que são pessoas do bem, se existe uma ordem daquela, desumana, existem pessoas do bem e eu vi em todas essas áreas, na área médica, na área religiosa, na área dos advogados, então, com que eu mais convivi, e os advogados que atuaram, com uma ou duas exceções, que nem vale a pena mencionar, tal foi a regra que eram tão corretos, tão direitos, os humanistas que orgulham, me orgulham de ter escolhido a profissão de advogado e, sobretudo, ter convivido com o juiz Arruda (choro), Antônio de Arruda Marques, Sobral Pinto, Leonardo Fragoso, Vivaldo Vasconcelos, o George, o Augusto, e tantos outros, do Norte ao Sul do Brasil. Eu estou mencionando mais do Rio que eram com quem eu mais convivi. Cada um tem uma história, cada um dos seus inúmeros clientes tem história também, e cada uma mais linda e humana que a outra ou mais brutal e violada do que qualquer outra. Eu diria o seguinte, assim como existe até autor espanhol que escreveu um livro chamado “Hitler ganhou a guerra”, eu escreveria outro, mostrando como Hitler morreria de inveja dos ditadores brasileiros e de outros da América Latina que caíram em domínio, depois que o Brasil caiu no primeiro de março, no primeiro de abril de 1964. Logo depois vieram Uruguai, em seguida Chile, em seguida Argentina, quase ao mesmo tempo Peru, nem falar do Paraguai, os paraguaios, que eles botam ditador quando querem com maior facilidade pra fazer qualquer tipo de sujeira. Olha, temos que examinar e pensar muito nas verdadeiras máfias do riso e da dor. Máfias do São Lucas, máfias da rentabilidade a qualquer preço e o humanismo não existe. Fico, às vezes, até pensativo, será que é justo dizer que o ser humano é sapiens sapiens? Acho que não. É apenas sanguinários… animalescos, animalescas. O ser humano tem que aprender com muita gente. Já aprenderam tanto. Muita gente já deu o basta, não só Jesus Cristo, nem só Mahatma Gandhi, não é só o Mandela, ou Luther King que deram exemplo. Muita gente tem dado exemplo na maior dignidade e evolução humana, eu tenho… vejo cheio de esperança de que muitos Mandelas e muitos é… (riso) imitadores de Cristo poderão ajudar a evoluir essa humanidade. É possível. Eu confio e continuo lutando pra chegar lá.
Helena: Muito obrigada por o senhor contar mais essa história pra gente.