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A Montagem da lembrança atravessada por um trem

A Montagem da lembrança atravessada por um trem:
relações entre Last Year When the Train Passed by (Huang Pang-Chuan, 2018) e
Reminiscências de uma Viagem para a Lituânia
(Jonas Mekas, 1975).

 

Lucas Alexander Silverio

Janis Santos de Souza

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Viajar é projetar o desconhecido. Para cada pessoa há um significado diferente, pessoal, íntimo. Há viagens que o que importa mesmo é o caminho, outras a companhia. O tempo de cada viagem também é relativo, ele se alonga ou comprime-se conforme o sentimos, não importando se houver tempo restante determinado por um GPS: o tempo em uma viagem é dificilmente medido. Assim como há filmes curtos que parecem longas, e há curta-metragens que duram uma vida toda.

Last Year When the Train Passed by (2018) de Huang Pang-Chuan e Reminiscências de uma Viagem para a Lituânia (1975) de Jonas Mekas parecem conversar sobre os caminhos percorridos e seus vestígios. Os mesmos vestígios ilustram o texto onde escolhemos imagens que fizemos durante nossas próprias viagens.

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Na estrada em Minas Gerais, Lucas Alksndr (2020)

 

A máquina de refazer memórias

Ambos os filmes tratam sobre a memória atravessada por viagens. As memórias dos personagens desses filmes nos levam para o campo da imaginação através de suas histórias quando descrevem uma lembrança enevoada que até então não havia se concretizado em palavras.

O cinema nasce como registro, como uma máquina de preservar memórias. Momentos que podem voltar ao movimento. Ambos os filmes trabalham na montagem, Mekas com mais frequência, em mimetizar o caráter fragmentário, soluçante da memória. Que seleciona, que repete, que pula, que inventa e é conduzido pelos sulcos criados pelo arado do tempo. Em Reminiscências o cinema torna-se tanto registro como imaginação.

O filme de Huang Pang-Chuan investe, a partir de imagens estáticas, na construção narrativa do presente para alcançar o passado. Fotografias tiradas há um ano atrás: O que você estava fazendo ano passado enquanto eu passava dentro desse trem? Aos poucos vamos entrando no universo de cada personagem que são instigadas a retornarem em lembrança àquele momento da foto; já no filme de Jonas Mekas somos apresentados às pessoas filmadas e instigados a imaginá-las em seu passado, guiados pela voz do narrador. Ele busca lembrar e reconstruir a própria narrativa entre lampejos (glimpses), os mesmos lampejos que abrem o filme de Huang Pang-Chuan, pequenos quadros que dançam na tela, aparecem e desaparecem ritmados pelo som das rodas de metal nos trilhos.

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Em algum metrô de São Paulo, Janis Blá (ano desconhecido)

 

De temática similar, o trem de Huang Pang-Chuan é ritmado e segue fixamente seus trilhos, dia após dia o mesmo caminho. Dessa monotonia de percurso nascem a constante observação pela janela, que ano após ano altera a paisagem, mas não o caminho. De forma semelhante às primeiras descrições de experiência espectatorial do cinema e passageiro de um trem:

“Sentado, passivo, transportado, o passageiro de trem aprende depressa a olhar desfilar um espetáculo enquadrado, a paisagem atravessada. […] trem e cinema transportam o sujeito para a ficção, para o imaginário, para o sonho e também para outro espaço onde as inibições são, parcialmente, sanadas”. (AUMONT, 2004:53)

Poderíamos estabelecer uma infinidade de cruzamentos possíveis entre essas duas máquinas ritmadas que são a câmera cinematográfica e o trem, mas convém concentrar nos múltiplos significados dentro desses dois filmes. Para o filme de Huang Pang-Chuang o trem é o disparador do filme, para Jonas Mekas o trem marca sua prisão nos campos de concentração.

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Em alguma viagem de trem no ABC, Janis Blá (ano desconhecido)

 

Last Year When the Train Passed by se passa no presente voltando ao passado pela memória e imaginação. Reminiscências de uma Viagem para a Lituânia se passa no passado para imaginar um passado ainda mais distante, só a voz do narrador se mantém no presente, cortando o filme como as foices podam a grama ao redor da casa.

 

Montagem de sobreposição

A viagem de volta de Mekas é uma descoberta por entre as estradas rodeadas de campos, árvores e morros, semelhante ao trajeto do trem de Huang Pang-Chuan . De alguma forma sua montagem remete ao efeito fragmentado de uma memória, que sobrepõe sons e imagens assincronicamente buscando preencher as lacunas entre os fragmentos. No exato oposto da montagem soluçante de Reminiscências de uma Viagem para a Lituânia, o filme de Huang mantém sua montagem sólida e ritmada como o próprio trem.

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Em alguns lugares de Juiz de Fora, Janis Blá (2014)

 

Jonas Mekas tenta em seu filme reconstruir através dos rolos de filme e da montagem, uma lembrança, mimetizando o caráter fragmentário da memória, sua narração nos conduz à conhecer aquelas pessoas em um passado possível, o mesmo passado que fora subtraído de Mekas, construímos assim, junto dele, essa lembrança negada pelo trabalho forçado e pelo exílio.

Em Huang, reconstruir está na narração desses personagens que viviam em torno do trilho do trem. A montagem ao mesmo tempo que constrói, esconde algo.

A montagem de Mekas galopa na urgência de reconstruir um passado negado, enquanto em Huang o passado se mostra aberto e cheio de incertezas sutis. Ele surge como uma tempestade de vento, em que os narradores seguram-se as imagens para não voarem junto com as memórias. Memórias que são acessadas através das imagens, e que a narração as liberta.

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Em alguma praia do litoral paulista, Janis Blá (ano desconhecido)