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Subúrbios em crise

Subúrbios em crise

Gabriel Duarte

O medo implica tempo. No modelo proposto por Sara Ahmed (2005), a sensação existe primeiro em virtualidade, respondendo àquilo que se aproxima em detrimento daquilo que já está aqui. Os corpos primeiro precisam se aproximar para só depois se afastarem, amedrontados. Logo, o medo também implica movimento. No cinema de terror, essa proximidade normalmente vem de supetão: a trombada da mocinha com o assassino, o embate do natural com o sobrenatural, o choque do familiar com o estranho. É neste encontro que as superfícies emergem. Para se entenderem enquanto ameaçados, os limites precisam antes serem sentidos enquanto tais. O lar suburbano, lugar que acolhe e protege, pode ser invadido e assombrado; a pele, que contém a integridade do sujeito, pode ser rompida e dilacerada. Teme-se uma mudança no status quo enquanto busca-se desesperadamente conservar uma normalidade. Voltar-se contra o que assusta implica ir de encontro ao que aquieta.

Uma constante no cinema de John Carpenter é a recusa do retorno à norma. Toma-se como exemplo a Trilogia do Apocalipse: ao final do enredo, o que permanece é a incerteza da contaminação em O Enigma de Outro Mundo (1982); a possibilidade além do espelho em O Príncipe das Sombras (1988); a insanidade metalinguística em À Beira da Loucura (1994). Não há uma restauração do mundo comum. A alteridade permanece latente mesmo que os créditos finais já tenham começado a rolar.

Não é diferente com Halloween (1978). Se a história começa no notório plano subjetivo do assassino, somos deixados de maneira adversa. Michael Myers desaparece antes que se possa determinar uma vitória resoluta. Dr. Sam Loomis (Donald Pleasence) é quem testemunha o gramado vazio, junto com a audiência. A eterna perseguida Laurie (Jamie Lee Curtis) chora recostada à uma parede, aparentemente ignorante à descoberta da ausência do corpo. Se antes as lágrimas eram de alívio, agora elas assumem uma conotação de desespero. É então que Myers retorna. A respiração do assassino embala os planos que encerram o filme, partindo do interior doméstico, com uma série de planos da sala e das escadas, e seguindo para consumir as casas em sua totalidade. Michael Myers segue invicto, onipresente. Essa é a apoteose de um dos serial killers mais célebres do cinema.

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A produção atesta para a grande habilidade de John Carpenter em assimilar e reproduzir códigos e formas – sem esquecer, é claro, da contribuição fundamental de Debra Hill, parceira de longa data do diretor, no desenvolvimento do roteiro e da franquia. À luz do clássico Psicose (1960) de Alfred Hitchcock, Halloween (1978) é considerado um dos precursores do subgênero slasher, caracterizado por sua insistente violência gráfica, as inúmeras mortes adolescentes e os assassinos psicopatas. Junto com a família canibal de Tobe Hooper em O Massacre da Serra Elétrica (1974), Michael Myers testemunhou não apenas a ascensão dos diversos matadores que colecionam vítimas até hoje, como também das diversas “garotas finais”, cuja principal missão é derrotá-los.

“Not in my movie”

Muito já foi sugerido sobre a essência reacionária dos slashers. Testemunhas da ascensão e decadência dos movimentos de contracultura nos Estados Unidos, esses filmes pareceram, desde o início, punirem os desejos libertários e “desviantes” da juventude. Se em um nível identitário, certas categorias políticas eram vitimadas ou vilanizadas, como a população negra e a comunidade queer; em um nível comportamental, algumas práticas eram sinônimo de morte. Essa relação de causa e efeito se fez mais explícita através do sexo: nas palavras de Randy (Jamie Kennedy), o cinéfilo em Pânico (1996), existem certas regras para a sobrevivência dentro de um filme de terror. A primeira delas é nunca transar. A regra é rigorosa especialmente para as personagens femininas, já que um clichê é a segregação entre as “garotas más”, sexualmente ativas e mortas de forma violenta, e as “garotas boas”, rigorosamente distanciadas dos prazeres carnais. Em seu trabalho seminal sobre os filmes slasher, Carol J. Clover (1995) cunhou a famosa expressão final girl para descrever tais personagens virginais, às quais é concedido o direito de sobreviver e de dar um fim à ameaça.

Clover identifica em Halloween (1978) uma evolução significativa na construção da garota final. Ao ser incansavelmente perseguida pelo assassino, Laurie atinge um ponto em que a única solução que resta é revidar. Enquanto se esconde no armário, ela transforma um cabide em arma e ataca o mascarado assim que ele consegue invadir o pequeno espaço. Essa é uma divergência notável em relação à sua antecessora, a imaculada Sally de O Massacre da Serra Elétrica (1974). Com seus longos cabelos loiros, uma calça boca de sino e discutindo astrologia com os amigos dentro de uma Kombi (quase um estereótipo para a moda hippie), a protagonista Marilyn Burns é uma “rainha do grito” ao extremo: grandes sequências do filme são embaladas apenas pelos seus gritos desesperados e pelo som da arma do vilão Leatherface. Sua agência se resume a isso: ela foge, mas não revida. Quando ela é salva, é quase que por um acaso, pelos motoristas que passam na estrada e se deparam com a cena horripilante.

Laurie é um ponto de virada se considerarmos as evoluções que a sucederam. Como Clover observa, o golpe derradeiro contra Michael Myers não é dado pela protagonista, mas sim pelo psiquiatra Dr. Loomis. Uma marca dos slasher da década seguinte à Halloween é a falência desta figura masculina salvadora, transferindo completamente a responsabilidade de ataque para a protagonista. De fato, as investidas dos homens contra o vilão se tornam inúteis e quase patéticas. As final girls criadas por Wes Craven são belos exemplares deste novo estágio na convenção narrativa.

Se Carpenter parte das margens para habitar imediatamente o centro do cinema de terror, Craven faz um movimento diferente. Inserido no gênero desde sua estreia, ele é responsável por A Hora do Pesadelo (1984), que inseriu Freddy Krueger nos sonhos da juventude suburbana e no cânone do horror mundial. A protagonista Nancy Thompson (Heather Langenkamp) é ilustre não apenas por revidar aos ataques do assassino, mas por perceber que buscar ajuda é ineficaz. Ela elabora um plano mirabolante para derrotar o vilão de garras metálicas, rendendo ao filme uma franquia que atravessou quatro décadas. Ainda assim, Craven só retorna à Elm Street na nos anos 1990, assumindo a direção e o roteiro do sétimo filme da série: O Novo Pesadelo – O Retorno de Freddy Krueger (1994). Nele, Krueger é transportado para a realidade dos bastidores, tendo a própria equipe do filme como vítimas. A recepção morna da produção não impediu que o cineasta fizesse um retorno estrondoso em 1996, com Pânico. A sátira extrapolou todas as convenções do subgênero slasher e emplacou uma nova franquia de sucesso.

A protagonista Sidney Prescott (Neve Campell) é disruptiva desde o seu primeiro contato com Screamface. Seu escárnio e suas acrobacias exageradas preparam o terreno para as consequentes subversões de sua figura, cujo auge talvez seja na perda da maior defesa de uma final girl: a virgindade. Não fosse isso o suficiente, a conjunção carnal se dá com o assassino. Uma das maiores reviravoltas do filme é a identidade do vilão, que revela-se uma articulação do namorado de Sidney, Bill (Skeet Ulrich), e de seu amigo Stu (Matthew Lillard).

Se dois compartilham a máscara, três empunham a figurativa faca. A instituição da garota final parece dissolvida entre as três personagens que sobrevivem para derrotar a ameaça. Primeiro, Randy, o alívio cômico. Porta-voz da audiência, ele sobrevive por excelência da piada: “eu nunca pensei que ficaria tão feliz por ser virgem”. Segundo, Gale Weathers (Courteney Cox), antagonista de Sidney. A jornalista sensacionalista se configura como uma “garota má” não apenas por não estar distanciada dos prazeres da carne, mas também por utilizá-los em sua busca por informações – ao seduzir o policial, por exemplo. Weathers é fundamental na investida contra os assassinos, sendo a responsável pelo primeiro tiro em Bill.

Por último, é claro, ninguém menos que Sidney Prescott. É ela quem mata Stu, derrubando sobre ele uma televisão que exibe Halloween. Se Hitchcock desejava que a faca de Norman Bates perfurasse a tela na cena do banheiro em Psicose (1960), aqui a responsável pelo corte é Laurie, que, na tela dentro da tela, empunha o facão de Myers. A personagem criada por Carpenter e Hill atravessa quase duas décadas para matar um assassino dentro de outro filme, concedendo às personagens e à audiência um breve instante de alívio. Isso é logo quebrado por Randy, que atenta ao fato de estarem no momento do roteiro propício para o retorno do assassino supostamente morto (Bill) – o que, de fato, acontece. A resposta de Sidney vem acompanhada de um novo disparo: “não no meu filme”.

Lar terrível lar

Em Delírio de Loucura (1956), a decadência do subúrbio é vista não pelas lentes do terror, mas pelas lentes do melodrama. Tais gêneros, semelhantes em suas convenções excessivas, trabalham com temporalidades análogas, como sugere Linda Williams (1991). Se no terror, o que opera é o “cedo demais!” da morte adolescente, trágica e repentina; no melodrama, é o luto prolongado do “tarde demais!”. O enredo é permeado por momentos que encapsulam o melodramático, dos mais importantes para a trama (o primeiro colapso do pai, que já sofre silenciosamente com os sintomas há meses) até os mais corriqueiros (quando o carro já está partindo, a esposa percebe que o marido esqueceu os chinelos).

O filme gira em torno de uma classe média estagnada – ou como os próprios personagens descrevem: “dull”, maçante. A doença de Ed (James Mason) e a consequente psicose causada pelo remédio servem de dispositivos para que venham à tona os limites impostos aos protagonistas. Fora do ambiente doméstico, existem constantes ameaçadas, sejam os cientistas e seus avanços farmacêuticos ou os valores que permitem a ascensão de uma juventude transviada. A família também é constantemente desprezada, especialmente em ambientes de preços exorbitantes: as funcionárias da loja de grife e as enfermeiras do hospital demonstram o mesmo comportamento em relação às personagens. Assim, a residência suburbana se torna palco para a maior parte da ação dramática. Conforme a condição psicossomática do pai piora, o confinamento transforma a casa em algo semelhante ao “Lugar Terrível” que Clover identifica nos filmes slasher: se antes as paredes protegiam contra uma possível ameaça, agora elas aprisionam e encurralam as vítimas.