HALLOWEEN (1978), de John Carpenter + PÂNICO (Scream, 1996), de Wes Craven
Wes Carpenter
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Da tragédia à farsa
Halloween (1978), de John Carpenter, e Pânico (Scream, 1996), de Wes Craven, foram marcos referenciais de duas épocas distintas da história do slasher film, que alguns preferem chamar de stalker film – há quem utilize o termo splatter para se referir ao mesmo conjunto de filmes, embora me pareça mais adequado aplicá-lo a uma corrente posterior (a de Jogos mortais e seus congêneres) fundada mais em confinamento espacial e sessões de tortura (física e psicológica) do que na dinâmica de perseguição, sustos em cascata e encurralamento/confronto final que estrutura a narrativa típica do slasher.
Grosso modo, o slasher é um subgênero do terror caracterizado por cenas de erotismo softcore e violência hardcore, com histórias assumidamente repetitivas, nas quais invariavelmente um serial killer persegue e mata um grupo de adolescentes. Sexta-feira 13 (Friday the 13th, Sean S. Cunningham, 1980), O trem do terror (Terror Train, Roger Spottiswoode, 1980), A morte convida para dançar (Prom Night, Paul Lynch, 1980), Areia sangrenta (Blood Beach, Jeffrey Bloom, 1980), The Burning (Tony Maylam, 1981) e Acampamento sinistro (Sleepaway Camp, Robert Hiltzik, 1983), além do próprio Halloween, são alguns dos clássicos do gênero, cujo precursor histórico pode ser identificado em A Bay of Blood (1971), de Mario Bava.
Marginal e mainstream ao mesmo tempo, o slasher era feito com pouco dinheiro e muito retorno de público. Surgia de pequenas produtoras de série B das quais nunca se tinha ouvido falar, mas vinha frequentemente com os selos de distribuição das majors (Paramount, MGM, Universal). O slasher rejeitava o tapete vermelho da Academia: era um fenômeno de baixa cultura, que mobilizava o público adolescente dos cinemas de bairro e das videolocadoras. Estava fora do glamour do star system hollywoodiano, ou melhor, construía o seu próprio star system – basta lembrar que Jamie Lee Curtis, depois de protagonizar Halloween, tornou-se uma espécie de ícone do gênero, aparecendo em outros filmes, sempre no papel principal, antes de ser alçada aos redutos mais “nobres” de Hollywood.
Se o terror já é um gênero considerado vulgar, “menor”, o slasher vai mais fundo e representa seu estrato mais rasteiro, mais associado ao medo primitivo, ao baixo ventre, à encenação visceral – e eviscerada – do confronto com a morte gratuita e, não raro, idiota. Isso parece ter legitimado, aos olhos de parte da crítica especializada, um desprezo permanente, como se nada de relevante pudesse ser dito de um gênero voltado para o gozo sadomasoquista de adolescentes levianos, que se divertem e se espantam – em correntes bipolares de euforia e horror – com a dilaceração na tela de corpos semelhantes aos seus. Para os detratores mais severos, os urros da plateia diante da reincidente cena de personagens decapitadas nesses filmes apontam sintomaticamente para o estado acéfalo de uma geração alienada, que – na contramão dos movimentos de militância intelectual, contestação política e liberação comportamental dos engajados anos 1960 – se deixaria devorar inconscientemente pelo superego opressor de um reacionarismo iniciado no final da década de 1970 e recrudescido nos anos seguintes.
Como demonstra seu enredo mais recorrente (um grupo de jovens sai para acampar, festejar e fazer sexo e é depois “punido” por um psicopata que os persegue e mata um a um), o slasher é provavelmente o gênero popular que deu contornos mais nítidos ao fantasma neoconservador de uma época que decidiu se contrapor à revolução sexual da década precedente. Nenhuma outra vertente do cinema ficcional apresentou de modo tão explícito a ligação causal entre sexualidade juvenil e violência punitiva.
O mais aprofundado estudo sobre o slasher continua sendo o de Carol J. Clover, primeiramente publicado na vigésima edição da revista Representations, em 1987, e depois reformulado pela pesquisadora – em versão reduzida – como o segundo capítulo de seu livro Men, Women, and Chainsaws: Gender in the Modern Horror Film (Princeton University Press, 1992). Mais tarde, o artigo em sua extensão original seria retomado na coletânea The Dread of Difference: Gender and the Horror Film, organizada por Barry Keith Grant em 1996.
Clover enumera e analisa as características centrais do slasher, como o perfil recorrente do assassino e das vítimas, as armas utilizadas, as figuras típicas (sobretudo a da “final girl”), as estratégias de choque, os principais esquemas de ação e espacialidade, a noção de “terrible place” (o lugar fechado em que a vítima se encontra em algum momento, e onde pode tanto se proteger do algoz quanto se perceber num beco sem saída: a casa vazia, o guarda-roupas, o corredor escuro, o túnel, o carro ou o quarto trancados por dentro, mas sem que tenhamos a garantia de que o assassino já não estava lá, à espera da vítima).
Segundo Clover, a obra inaugural do gênero, mais do que Halloween ou do que os gialli de Bava, é o eternamente plagiado Psicose (1960), de Hitchcock. Nele já se acham não apenas os elementos narrativos e boa parte do repertório formal que distinguem o slasher, mas também a questão que mais interessa à teórica feminista, a saber, a da codificação dos olhares – tanto os olhares das personagens na diegese como o do próprio dispositivo de enunciação do filme (o olhar da câmera) – com base num modelo falocêntrico, que identifica o prazer visual ao gênero masculino, fazendo da mulher o objeto privilegiado de uma escopofilia fetichista. A questão, teorizada de forma pioneira por Laura Mulvey (e desdobrada nos escritos de E. Ann Kaplan, Mary Ann Doane e Tania Modleski, entre outras), não é esquematizada de forma simples pela pesquisadora, muito pelo contrário: Clover investiga a instabilidade constitutiva desse olhar masculin(izad)o, sua oscilação entre os polos ativo e passivo, sádico e masoquista, viril e impotente. Ela enxerga na dupla personalidade de Norman Bates (o assassino de Psicose) um aspecto que retornaria sistematicamente no slasher: a ideia de que a identidade sexual “é menos uma parede do que uma membrana permeável”.
A violência, em Psicose, deriva do retorno alucinatório de um conteúdo erótico recalcado: o que ficou reprimido é convertido em agressão e dirigido ao outro. No horror moderno dos anos 1970 e 1980, o processo pelo qual o recalque engendra uma violência ligada à repressão sexual será constantemente revisitado, na maioria das vezes com um fundo conservador e puritano, já que os jovens morrem, aparentemente, pelo simples fato de terem dado vazão à libido (as vítimas são sempre as personagens sexualmente ativas).
Cabe à final girl, heroína por excelência do slasher – ela é a sobrevivente, a única que se esquiva do psicopata e às vezes até o liquida ferozmente –, personificar uma ambivalência que, embora não derrube o sistema androcêntrico de organização dos olhares, perturba sua estrutura pela criação de posições instáveis. A final girl tem atributos usualmente reservados aos protagonistas masculinos (iniciativa, curiosidade intelectual, habilidade mecânica), sem perder alguns signos de feminilidade codificados pelo melodrama clássico. Ela geralmente possui um nome que pode ser tanto de homem quanto de mulher (o roteirista de Pânico, Kevin Williamson, certamente tinha isso em mente quando batizou de Sidney sua heroína). Ela enfrenta o assassino e revida as agressões, isto é, demonstra força física quando necessário, ainda que seja “naturalmente” frágil e passe também por situações de vulnerabilidade. Ela é observadora – percebe todos os signos de perigo que suas amigas ignoram ou desprezam – e exerce plenamente o direito de ocupar o vértice potencialmente fálico da estrutura do plano-ponto-de-vista (é frequentemente através do ângulo de visão dela que avistamos o psicopata), ainda que passe boa parte do tempo sendo alvo de um olhar que a espia das trevas. Em outras palavras, ela incorpora aspectos que, na tradição representativa do cinema, dizem respeito a personagens do sexo masculino, sem abdicar de características que essa mesma tradição consignou com exclusividade ao sexo feminino. Ela é, portanto, um distúrbio no sistema convencional de separação dos gêneros.
De Halloween em diante, a final girl segue uma lei básica: a castidade. Todos ao redor dela se entregam aos prazeres do sexo, mas ela se mantém “pura”. Laurie (Jamie Lee Curtis) seria a primeira de uma extensa galeria de heroínas virgens, protagonistas preferenciais do slasher movie. Numa cena de Pânico, um rapaz que trabalha numa videolocadora – e que é aficionado por slashers – elenca as três regras fundamentais do gênero, que determinam quem morre e quem sobrevive: jamais fazer sexo, jamais usar drogas e jamais dizer “já volto” ao sair para buscar uma cerveja, ir ao banheiro ou qualquer coisa do tipo. Ele explica essa cartilha do slasher enquanto assiste a uma cópia em VHS de Halloween ao lado de amigos numa festa. Para os adolescentes dos anos 1990, o filme de Carpenter já é um clássico, ou melhor, o grande clássico do gênero, o filme-matriz, que consolidou as regras do que mais tarde se tornaria um filão popular do cinema de horror.
Pois se Hitchcock abriu o caminho, foi Carpenter quem o asfaltou: é principalmente ao sucesso de Halloween que se deve a voga do slasher entre o final dos anos 1970 e a primeira metade da década seguinte. Suas variações (ou francas imitações) se contam na casa das dezenas.
Em Pânico, a história se repete como farsa: Craven recombina os clichês do slasher com o virtuosismo retórico e o distanciamento irônico típicos do jogo pós-modernista de reciclagem de signos. Irônico, aliás, seria o próprio destino do filme, que inauguraria um segundo ciclo do slasher, continuado por Eu sei o que vocês fizeram no verão passado (I Know What You Did Last Summer, Jim Gillespie, 1997 – também com roteiro de Williamson) e por mais uma penca de filmes similares. No neo-slasher dos anos 1990, as regras já não são as de Halloween, mas as de Pânico: propensão farsesca, gags metacinematográficas, artifício exagerado.
“Isso parece coisa de filme do Wes Carpenter”, diz uma personagem de Pânico, confundindo e juntando os nomes de Wes Craven e John Carpenter – uma das muitas piscadas de olho do filme para o espectador iniciado. As reelaborações do slasher “clássico” por vezes são sutis, mas na maior parte do tempo são piadas internas frontalmente endereçadas aos fãs do gênero. Por exemplo: há uma cena em que Sidney (Neve Campbell), depois de frear o ímpeto sexual do namorado, compensa a frustração dele com um gesto de ousadia, abrindo a blusa do pijama para mostrar-lhe os seios. O plano, no entanto, é filmado com a atriz de costas para a câmera, de modo a negar ao espectador a visão dos seios da jovem. Ora, sabe-se que o lema do slasher era “tits and a scream”, ou seja, a nudez parcial do corpo feminino seguida de um susto. Aqui, é como se o filme quebrasse a frase ao meio, o que o título original já evidencia, isolando a palavra Scream e assumindo que ficará devendo os “tits”. Outro exemplo: os namorados das personagens principais do slasher são tradicionalmente idiotas, mas um deles, em Pânico, ultrapassa os limites da caricatura e se comporta como os morons das comédias de besteirol. Em determinados momentos, fica difícil saber onde acaba Pânico e começa Todo mundo em pânico.
A lógica do neo-slasher é ora frustrar o espectador que se julga esperto, ora fermentar a receita até explodir, como já fica claro na primeira cena de Pânico: Drew Barrymore põe um pacote de pipoca industrializada no fogão enquanto se prepara para assistir a um filme de terror no videocassete. Um telefonema a distrai – é o assassino com sua voz sinistra e seu jogo de perguntas e respostas sobre scarry movies. A brincadeira fica macabra, o namorado da moça aparece morto no quintal e ela é a próxima vítima. Os pais dela chegam em casa e encontram a pipoca queimando no fogão. É tarde demais para salvar a filha, pendurada morta numa árvore. A farta porção de pipoca queimada, que ameaça romper o recipiente de alumínio em que cresceu como um bebê-monstro, indica o caminho dúbio que o filme vai seguir dali em diante: sim, você pode ver esse filme enquanto se empanturra de pipoca amanteigada – mas atenção: haverá sustos verdadeiros e clímax tenso, violência em ebulição. Queimar a pipoca é um pouco como jogar água no chope ou areia no motor: as coisas continuam a funcionar, mas o gosto da bebida ou a operação da máquina já não são os mesmos. Temos demasiada consciência da manipulação, ou do fato de o material de origem ter sido voluntariamente adulterado.
A semente da pilhéria, na verdade, já fora plantada no final do primeiro ciclo do slasher: no decorrer dos anos 1980, à medida que a fórmula se desgastou, os filmes se tornaram cada vez mais escarnecidos e autoparódicos, mais devotados ao riso do que ao medo, assemelhando-se a jogos que testavam o conhecimento dos espectadores a respeito das convenções narrativas e estilísticas do gênero. O quiz que o assassino de Pânico propõe a suas vítimas pelo telefone é tão somente a transposição literal de algo que a primeira onda do slasher já começara a fazer implicitamente. Após assistir a dezenas de filmes parecidos, a plateia do slasher – habituada às cenas de violência e conseguindo até detectar com antecedência os sinais que prefiguravam o momento do susto – criou uma cumplicidade com o ritual de contagem de mortes: o prazer se tornou distanciado, o suspense deu lugar à brincadeira de adivinhação da ordem de execução das vítimas, do modus operandi dos assassinatos e da identidade do assassino. O slasher não era mais um filme para se ver com o estômago embrulhado, e sim com baldes de pipoca e refrigerante.
Apocalíptico ou reacionário?
Mas voltemos ao momento em que a tragédia ainda não tinha virado farsa: em Halloween, mesmo passados mais de quarenta anos desde seu lançamento, o medo e o horror são “reais”. A máscara de Michael Myers despontando da escuridão, atrás de uma Jamie Lee Curtis crispada e indefesa, é a figuração de um pesadelo capaz de ainda assustar qualquer adolescente ou adulto versados nas artimanhas do slasher.
Se o filme assusta, é porque Carpenter percebeu – na esteira de Hitchcock – que, quando se trata de fazer um filme efetivamente amedrontador, o horror não deve se conceber como uma contradição do real, mas como sua subversão: em vez de partir do sobrenatural, do fantástico (alienígenas invasores, monstros de laboratório), o mal deve ser apresentado como algo já infiltrado na normalidade cotidiana, cuja representação emblemática é precisamente o safe place dos subúrbios de ruas pacatas e grama bem aparada. Mais ainda: o horror será uma produção endógena, inerente a essa realidade – uma criança de uma família de classe-média qualquer, que comete um crime horripilante no próprio espaço doméstico. Quem gestou o monstro, senão o núcleo familiar patriarcal em sua normopatia diária?
Halloween começa com a cena em que Michael Myers, aos oito anos de idade, mata a irmã depois de vê-la subir com o namorado para o quarto. Esse monstro encarna – de forma crítica ou sintomatológica – o que os códigos sociais reprimem (o despertar da sexualidade, o desejo incestuoso) ou funciona como um puro veículo de vingança do puritanismo repressor?
Para Robin Wood, essa é a pergunta crucial que o filme coloca na cena de abertura, cuja estratégia visual seria replicada ad infinitum – a cena é toda mostrada através de um plano-sequência filmado do ponto de vista subjetivo do próprio assassino, cuja identidade só é revelada por um contracampo ao final da cena, para a surpresa do espectador, que se espanta diante da constatação de que o assassino hediondo era uma criança que usava uma máscara de Halloween. Além de identificar o olhar da câmera ao ponto de vista do assassino, a cena sugere que, em última instância, é o próprio campo fílmico quem o atiça, com o adendo de fornecer-lhe guarida no fora de campo
Terminado o prólogo, ambientado em 1963, o filme salta para o presente: passaram-se quinze anos, durante os quais o assassino permaneceu recluso num presídio manicomial, aos cuidados do psiquiatra interpretado por Donald Pleasence (que personifica sempre figuras de autoridade na obra de Carpenter: autoridade médica em Halloween, política em Fuga de Nova York, religiosa em Príncipe das sombras). Numa noite de tempestade, Michael Myers foge do asilo psiquiátrico. Rouba o carro da instituição e dirige – embora ninguém saiba como aprendeu a dirigir nesses anos de total isolamento (ou ele tem poderes sobrenaturais, no fim das contas?) – de volta a seu bairro natal, onde passa a perseguir Laurie (Jamie Lee Curtis) e o menino de quem ela é babá, pela óbvia razão de que ambos são muito parecidos, respectivamente, com a irmã que Myers assassinou aos oito anos e com ele próprio quando tinha aquela idade. Põe-se em marcha um dos enredos mais elementares do cinema de horror: o do retorno do reprimido.
A resposta que o filme oferece para a pergunta colocada na cena inicial, na interpretação de Wood, soa decepcionante: Myers é representado como o bicho-papão, a encarnação de um mal absoluto, eterno e imutável, definido menos no plano social do que no metafísico. O mal em estado puro, como admite o psiquiatra.
Outras perguntas, contudo, parecem se impor a partir dessa constatação negativa de Wood: devemos confiar na voz da autoridade médica? A ausência de explicação social para o horror, ou sua inscrição naquele terreno abstrato e a-histórico, deve ser aceita passivamente? Myers é mesmo o mal absoluto e só resta eliminá-lo? Ou, sendo ele o produto aberrante de comunidades e instituições bastante específicas (a família, o subúrbio de classe-média, a psiquiatria), deveríamos enxergar nele o fracasso histórico dessas comunidades e instituições e até desejar a destruição delas como a única forma de evitar a reprodução cíclica do mal?
Nos termos sugeridos pelo próprio Wood, a questão, no fim das contas, reside em saber se Carpenter pratica o terror em sua versão apocalíptica ou reacionária. Nos filmes apocalípticos, segundo Wood, há uma visão progressista: o apocalipse, mesmo quando narrado em tom metafísico (o fim inexplicável do mundo), é geralmente interpretável em termos sociais e políticos (o mundo que acaba é o do capitalismo burguês). A narrativa apocalíptica dos filmes de zumbi de George Romero, de O massacre da serra elétrica (Tobe Hooper), de Carrie (Brian De Palma), para citar alguns dos filmes mencionados por Wood, não consiste na afirmação de que a sociedade patriarcal será exterminada caso não se livre de seus sujeitos desviantes; não se trata de um alerta conservador, mas, antes, do reconhecimento de que a ideologia dominante é insustentável e precisa ser desintegrada. Já no horror reacionário, os filmes se satisfazem com a designação do monstro como o mal puro e simples: o que é reprimido (no indivíduo e na comunidade) necessariamente ressurge na forma de uma ameaça percebida como aterrorizante e obscena, e a única solução é aniquilá-la violentamente. Assim, o mecanismo da repressão, gerador do monstro, não é atacado, mas justificado e reforçado. Não à toa, o monstro aparece como punição pela promiscuidade sexual dos jovens.
Wood enxerga em Halloween um exemplo paradigmático da vertente reacionária do cinema de horror, que predominaria nos anos 1980 e poria fim à tendência progressista dos anos 1970. No entanto, à luz das obras posteriores de Carpenter, em grande parte constituídas por apocalipses alegóricos com evidente conotação política, talvez possamos relativizar a crítica de Wood e tentar extrair de Halloween um filme mais progressista – ou simplesmente mais ambíguo – do que as primeiras leituras sugerem. Como veremos a seguir, é tudo uma questão de ponto de vista – e de fora de campo.
On/off
Halloween, como o próprio Carpenter reconhece, não inventou muita coisa, apenas aperfeiçoou com maestria uma engrenagem do medo já presente em Psicose e até em filmes anteriores como Sangue de pantera (Cat People, Jacques Tourneur, 1945) e Silêncio nas trevas (The Spiral Staircase, Robert Siodmak, 1946).
Acima de tudo, Carpenter circunscreveu o horror nos domínios específicos do aparato cinematográfico, no seu arranjo técnico mais elementar, de onde deriva toda a estratégia de tensão. O medo, em Halloween, se impõe como uma consequência natural do enquadramento. Diferentemente da pintura, o cinema, ao traçar um quadro, não cria um espaço autônomo, vedado, imune às irrupções do fora de quadro: o campo cinematográfico não é capaz de neutralizar a vida que circula nas suas imediações, e que pode invadir a imagem a qualquer momento. O cinema de horror sempre enxergou nesse espaço invisível, mas concreto e atuante, sua principal reserva de angústia e suspense. Carpenter decidiu extrair disso o maior número possível de caminhos criativos.
O espaço cinematográfico, como nota Noel Burch, consiste, na verdade, em dois espaços: “o que existe em cada quadro e o que existe fora do quadro”. Este último, o espaço-fora-da-tela, divide-se em seis segmentos: “os limites imediatos dos quatro primeiros segmentos são determinados pelos quatro cantos da tela”, são projeções imaginárias no espaço ambiente, que não só presumimos, mas percebemos se prolongar para além das bordas que delimitam o campo. “O quinto segmento não pode ser definido com a mesma (falsa) precisão geométrica e, no entanto, ninguém contestará a existência de um espaço-fora-da-tela, ‘atrás da câmera’, diferente dos segmentos de espaço em volta dela, mesmo que as personagens tenham acesso a ele passando geralmente à esquerda ou direita da câmera. Enfim, o sexto segmento compreende tudo o que se encontra atrás do cenário (ou atrás de um elemento do cenário): tem-se acesso a ele saindo por uma porta, contornando a esquina de uma rua, escondendo-se atrás de uma pilastra ou de uma personagem” (Práxis do cinema, São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 37-38).
Em Halloween, o mal está sempre à espreita e pode surgir de qualquer um desses seis segmentos do fora de campo: ora surge pela esquerda do quadro, ora pela direita; ora pelo limite superior (como na cena em que, posicionado no teto do carro, Myers ataca a enfermeira que está ao volante), ora pelo inferior (como nas duas vezes em que se levanta depois de ter sido dado como morto por Laurie). Às vezes, desponta de trás de um arbusto, de uma porta, de uma cortina ou de outro elemento cenográfico. Sem contar que ele pode estar no quinto segmento, no antecampo, “pilotando” a câmera – como no já citado plano de início.
Carpenter instaura, desse modo, o lugar que Michael Myers e toda uma linhagem de vilões psicopatas doravante ocupariam no slasher, e que na verdade é menos um lugar, no sentido físico, do que uma potência de aparição e desaparição, um padrão on/off similar ao acender e apagar de luzes, tão comum nos momentos de clímax dos filmes de terror.
Um procedimento, em especial, é reempregado no filme diversas vezes. Trata-se da operação de repetir um mesmo plano-ponto-de-vista, mas com uma variação: na primeira vez, Myers está em quadro; na segunda, não está mais. Os dois planos – com e sem Myers, on e off – são sempre intercalados pela imagem que mostra alguém olhando para o fora de campo (para Myers), construindo assim o esquema básico do plano-ponto-de-vista. A exceção é a cena em que a amiga de Laurie fala ao telefone e Myers aparece furtivamente no fundo da imagem, para logo depois desaparecer: o intervalo entre a aparição e a desaparição, neste caso, ocorre num momento em que a atriz troca de posição no cenário e seu corpo tapa temporariamente a profundidade de campo.
Quase sempre, os planos correspondem à visão de Laurie, mas há dois momentos em que o ponto de vista pertence ao menino de quem ela cuida. No final, há também um par de planos rodados do ponto de vista do psiquiatra, que vê, primeiramente, o corpo de Myers estatelado no chão (morto?) e, em seguida, o quadro vazio, como se, no intervalo entre os dois planos, o assassino tivesse se levantado e seguido em frente (é o topos da invencibilidade do mal, praticamente obrigatório no cinema de horror moderno).
O padrão on/off desenvolvido por Carpenter implica uma perturbadora flutuação do mal entre campo e fora de campo, visão e projeção, medo real e perigo imaginário, percepção objetiva e paranoia subjetiva. Vejo, não vejo mais; o bicho-papão existe, era minha imaginação; ele está morto, está vivo. Essa alternância remete também a alguns comportamentos espectatoriais: olhar ou não para a tela, desejar o horror e querer afastá-lo ao mesmo tempo, acreditar ou não acreditar no que é visto, ligar e desligar a TV (como aquela em que as personagens assistem a The Thing, de Christian Nyby/Howard Hawks, do qual Carpenter faria um remake em 1982).
Mais profundamente, essa dinâmica designa a complexidade que a representação do mal adquiriu no horror moderno, e que passa, de acordo com Jean-Baptiste Thoret, justamente por uma “revolução do fora de campo”. No filme de horror clássico, o fora de campo era uma dependência do campo, uma espécie de antecâmara que, cedo ou tarde, seria desvelada e exposta. O medo possuía um objeto, um alvo que, embora fosse adiado ao máximo, estava destinado a se atualizar no campo, onde seria destruído. Nos anos 1970, a linha de demarcação ou de fratura entre campo e fora de campo é reavaliada, em consonância com a percepção de que o mal, outrora externo e estranho, agora pode ser interno e familiar. O campo não é mais o lugar seguro, a manifestação da ordem, que a força desestabilizadora do fora de campo, antes de ser derrotada e mantida a distância, ameaçava desintegrar. O mal, a partir de então, está dentro e fora de campo, on e off-screen. A ameaça se torna difusa, circular e onipresente.
O final de Halloween é exemplar acerca desse novo estatuto do fora de campo no cinema norte-americano dos anos 1970: após o sumiço de Michael Myers, há uma sucessão de planos de espaços vazios, mostrando fachadas e interiores das casas de subúrbio que serviram de locação às cenas de horror. Os planos são acompanhados por outra das assinaturas estéticas do filme: o som da respiração inquieta de Myers por trás da máscara, um código que o filme desenvolveu para caracterizar os planos que deveriam identificar o olhar da câmera ao do assassino. A montagem encadeia as imagens, extraídas de lugares estanques, e o som da respiração de Myers segue de maneira contínua, como a sobrevoar os planos e saltar por cima dos cortes (ele se torna o que Michel Chion denomina um “som on the air”). O mal encontrou uma forma de estar simultaneamente on e off, ou melhor, de abolir a fronteira entre os dois registros.
Interpretados de forma literal, esses planos só podem significar que Myers é onipresente, ou que tem a capacidade sobrenatural de estar em vários lugares ao mesmo tempo. O sentido, porém, é menos narrativo do que retórico: os planos marcam uma posição do enunciador, mais do que do enunciado. É John Carpenter nos dizendo que o mal está ligado menos à figura individual de Myers do que ao conjunto do ambiente doméstico do subúrbio. A final girl se safou, mas o mal-estar social continua em regime on… on… on… O mal não depende mais da presença de Myers em cena: ele está insuflado no espaço, assoprado em cada metro quadrado do universo familiar burguês. O halloween de Carpenter já é o apocalipse.