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Retrato de uma jovem em chamas de Céline Sciamma

 

retrato alta

 

Retrato de uma jovem em chamas (Portrait de la jeune fille en feu, 2019), de Céline Sciamma

 

Por Luiz Carlos de Oliveira Jr.

 

Na França do século XVIII, uma jovem pintora é levada a uma ilha isolada para pintar o retrato de outra jovem. O retrato será enviado ao pretendente da moça. O casamento depende de ele aprovar ou não a pessoa que verá no retrato. A pintura, portanto, em sua dupla qualidade de ausência concreta e de presença imaginária do sujeito retratado, será a mediadora do laço matrimonial. No decorrer das sessões de pose, contudo, a pintora e sua modelo desenvolvem uma relação de cumplicidade que, rapidamente, se desdobra em envolvimento erótico. Terminar o quadro significará, então, pôr fim a essa relação?

A diretora Céline Sciamma, autora dos aclamados Tomboy (2011) e Garotas (Bande de filles, 2014), revisita em seu filme mais recente uma tripla tradição representativa. Em primeiro lugar, a tradição iconográfica do gênero pictórico do retrato, cuja emergência no contexto do Renascimento e posterior desenvolvimento na era da razão clássica (pano de fundo histórico do filme) estão ligados à própria origem da noção moderna de sujeito e de expressão individual. Em segundo lugar, há uma tradição literária, vinculada à mística do retrato na literatura do século XIX: A obra-prima desconhecida (Balzac), O retrato oval (Edgar Allan Poe), O retrato (Gogol), Retrato de uma mulher (Henry James), O retrato de Dorian Gray (Oscar Wilder). Por último, há a tradição cinematográfica dos filmes de retrato, sobretudo no contexto da voga do film noir e do melodrama psicanalítico na Hollywood dos anos 1940/50: Laura (Otto Preminger, 1944), Gaslight (George Cukor, 1944), Um retrato de mulher (Fritz Lang, 1944), Strangers in the Night (Anthony Mann, 1944), Idílio perigoso (Jacques Tourneur, 1944), O solar de Dragonwyck (Makiewicz, 1946), Portrait of Jennie (William Dieterle, 1948), Vertigo (Hitchcock, 1958).

Mas Sciamma opera uma importante inversão dessa tradição: em vez de um retrato feminino pintado por um artista do sexo masculino, temos agora uma artista mulher pintando o retrato de outra mulher. Na esteira de Laura Mulvey, as teorias feministas enxergaram no dispositivo tradicional dos retratos de mulheres na pintura, na literatura e no cinema – com suas recorrentes relações de dominação entre pintor e modelo – uma típica materialização do imaginário patriarcal falocêntrico: o homem como dono do olhar, sujeito ativo da visão, submete a mulher (tomada aí como objeto passivo do prazer visual masculino) à imagem que ele constrói dela unilateralmente. Mas o que acontece quando ambos os polos, de artista e de modelo, são ocupados pelo sexo feminino?

Partindo dessa interrogação, Sciamma faz um filme que consegue unir delicadeza sentimental e sensualidade transbordante. Ao revisitar uma iconografia com imenso lastro na história da representação, ela desloca o tema e apresenta uma visão inteiramente nova, aquecida pela ênfase atual nos debates sobre gênero e sexualidade.

30/04