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Paixão Invisível: a mulher sob a narrativa cinematográfica

“Paixão Invisível: a mulher sob a narrativa cinematográfica”

Guilherme Monteiro
Maria Eduarda Macário

A arte cinematográfica nos proporciona olhares, discussões, sensações e reflexões de várias formas diferentes através dos seus mais de 120 anos de existência. Ao longo desse período tantas histórias foram contadas sob diversas perspectivas. Nisso, os filmes que serão debatidos a seguir representam dois pontos distantes pelo tempo na história do cinema, mas que ao mesmo tempo em que se distanciam por diferentes épocas, contextos e suas formas narrativas, eles se aproximam por contarem histórias de mulheres que sofreram ao longo de suas vidas e se demonstraram fortes e onipotentes em suas jornadas. O primeiro, “O Martírio de Joana D’arc” (1928), do dinamarquês Carl Theodor Dreyer, um filme mudo, no final da era silenciosa do cinema, que demonstra um raro poder narrativo sensorial sobre a fé, retratando os últimos momentos da vida de um dos maiores símbolos da França: Joana D’arc. E o segundo, “A Vida Invisível” (2019), do brasileiro Karim Aïnouz, um filme que investe em uma sensibilidade profunda e reflexiva, através da história de duas irmãs que são separadas por seguirem rumos opostos e precisam lidar com o vazio que foi deixado em suas vidas com a falta que uma sente da outra e a forma como ambas lidam com seus problemas, e como elas se relacionam com outras mulheres, bem como o papel da fotografia e da montagem na narrativa do filme. Entre o silencioso e o falado, e os quase 100 anos que os separam, esses filmes se provam como bons exemplos de que a narrativa cinematográfica está em constante mudança e seu impacto é um retrato de uma época, ou melhor, de pessoas, que o cinema nos convida para sentir as suas mais íntimas emoções.

O Martírio de Joana D’arc (1928)

No ensaio “A evolução da linguagem cinematográfica”, André Bazin disserta sobre a transição do cinema mudo para o cinema falado, e os questionamentos em torno da relevância da imagem e do som. Em um momento do ensaio, Bazin cita o filme “O Martírio de Joana D’arc” (La Passion de Jeanne D’arc, 1928) de Carl Theodor Dreyer, da qual ele diz já ser um filme falado, e tal afirmativa é um tanto curiosa por ser claramente um filme mudo. E com isso, pretendo analisar o filme de Dreyer e tal afirmativa que Bazin propôs em seu ensaio, relacionando os aspectos do longa com sua forma sensorial, pois é um filme em que eu acredito ser algo que transcende a própria imagem e o som.

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Cenas do filme “O Martírio de Joana D’arc” (1928)

 

 Logo de início, o filme já apresenta sua proposta e sua trama, que é o caminho entre o julgamento de Joana D’arc até sua morte na fogueira. Dreyer reforça um impacto realista e metódico ao mostrar que os diálogos entre os juízes e Joana foram retirados do registro original do julgamento, que se encontra na Biblioteca da Câmara dos Deputados de Paris. Esse compromisso determinado com a exatidão abre uma encenação para composições mais teatrais, que é expressa por toda a duração, mas que nunca condena a forma cinematográfica. Pelo o contrário, a decupagem naquela época ficava no limiar da decupagem teatral, com o passar dos anos o cinema foi ganhando uma identidade mais própria e pessoal. E talvez, “O Martírio de Joana D’arc” seja o exemplo perfeito do formalismo cinematográfico em união com a decupagem teatral, e isso também estará descrito ao longo do texto. Voltando para o início do filme, ainda nos textos de apresentação, o diretor já pressupõe que o espectador saiba quem foi Joana D’arc, não que isso seja obrigatório para que o filme seja visto, pois ele não se importa com quem ela foi de fato, mas com quem ela é durante o julgamento, e isso que é desmistificado na obra, uma mulher sem armadura e espada, uma mulher como qualquer outra, que está integralmente exposta em sua natureza, sem defesas e fragilizada por um ambiente hostil e opressor, da qual sua única forma de se manter segura está no imaterial, na sua devoção divina. Eis que começa o julgamento.

Em um travelling lateral, Dreyer apresenta o espaço geográfico em que grande parte do filme acontece, fazendo isso pela perspectiva do público espectador presente no julgamento. E é importante esse ponto de vista do espectador pois é com ele que Dreyer trabalha, não como se fossemos o público que assiste por uma tela, mas que assiste exatamente no local da trama, seremos postos cara a cara com o réu, e iremos acompanhar sua sentença. Em tão pouco tempo a atmosfera está estabelecida, com figuras masculinas encobertas por sombras, sacerdotes e soldados conversando, um fundo plano e branco (que salienta a encenação teatral) e a presença dos juízes e dos teólogos ortodoxos, esses que serão os principais antagonistas. Logo em seguida, surge Joana.

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Cenas do filme “O Martírio de Joana D’arc” (1928)

 

É preciso comentar sobre a atuação de Renée Falconetti (também conhecida como Maria Falconetti), afinal, é uma das interpretações mais emblemáticas e inspiradoras da história do cinema. Dreyer reconheceu em seu rosto uma possibilidade de estudar a face humana, ou melhor, a face de uma mulher que está prestes a ser condenada injustamente. Sua forma de enquadrar os rostos de seus atores é uma das marcas mais interessantes do filme, com close up que tomam conta de todo o espaço do quadro (1:33 fullscreen) e detalham cada imperfeição desses rostos para fazer uma proximidade muito mais humanizada e intima. E o rosto de Falconetti é o principal elemento da obra, a apoteose de emoções trazidas e expressas em sua face é um deslumbre à parte, com cada olhar transmitindo uma sensação diferente, da admiração ao medo, da esperança à dor. É um processo psicológico em que Dreyer faz com que estejamos imersos além de sua face, e agora, como espectadores, compartilhamos a posição de Joana, estamos bem de frentes à ela, acompanhamos seus olhos, tão expressivos que sua boca é incapaz de descrever suas emoções, suas palavras se tornam as lágrimas que estão caindo pelo seu rosto, e elas dizem o necessário, uma mulher que demonstra todas as suas fraquezas e ainda sim se mantêm com sua cabeça erguida, seus olhos ascendem para o céu em busca de libertação espiritual e divina, suas lágrimas descendem para que sua condição humana seja exposta, assim, formalizando um ser que se encontra entre duas diretrizes.

Estamos no julgamento, enclausurados em rostos e expressões. Uma outra coisa que Dreyer faz com maestria é a representação dos elementos religiosos, especificamente com o formato de cruz na janela da cela de Joana, em que se torna o único plano de fundo no momento em que ela ora antes de queimada, há um aspecto nesse momento em que a fé da personagem dialoga com uma expressão material, como se consolidasse naquele momento a sua libertação. O religioso é bastante presente no longa, e é usado como a única forma de salvação da personagem, tanto como o sacerdote que tenta ajudar Joana a não ser condenada, quanto em objetos que rementem uma áurea santificada, como a representação da coroa de Cristo em que os soldados colocam em Joana como uma forma de zombaria de ela ser uma escolhida por Deus. Tais elementos são bastante precisos e minuciosamente selecionados, são detalhes que compõe a encenação em um espetáculo sensorial, que fazem as emoções serem verdadeiras e impactantes.
O controle de Dreyer sobre cada cena e plano é fascinante, é uma aula de cinema formal e um estudo sobre a condição humana, de etapas que caminham sob a amedrontadora psiquê humana e destrincham a mentalidade opressora e tóxica da figura masculina no séc XV. E como consequência disso, a representação feminina não poderia ser mais real, pois a identidade de Joana se torna um símbolo universal das atrocidades que as mulheres daquela época sofriam, sendo injustiçadas por questões sociais e dogmas religiosos que condenavam as mulheres a serem submissas à vontade masculina.

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Cenas do filme “O Martírio de Joana D’arc” (1928)

 

Por fim, a linguagem de “O Martírio de Joana D’arc” não é apenas visual, mas cinematográfica como um todo. O som está interligado ao imagético das expressões faciais, dos lábios se movimento em primeiro plano exatamente o que está no texto escrito nas falas, das pessoas caminhando em passos lentos, dos movimentos sugestivos em que a câmera aproxima e afasta. É como se pressupomos de que o som está integrado ali de forma subconsciente, nossa mente complementa a voz dos personagens e os sons diegéticos. E retomando a afirmativa de Bazin, é cabível denominar como um filme já falado, mas na minha opinião é mais ainda do que isso. Nessa transição do cinema mudo para o falado, vejo “O Martírio de Joana D’arc” como uma realização de identidade visual e sensorial única, e com isso, o filme cria um cinema próprio, a obra de Carl Theodor Dreyer se eleva de tais definições, ele inaugura um novo cinema que se inicia e termina aqui.

 

A Vida Invisível (2019)

“A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” conta a história de duas irmãs que são extremamente unidas que acabam por ter destinos cheios de desencontros e lutas não escolhidas. Através de Eurídice e Guilda, o filme traz diversas possibilidades de análises de representação feminina, fato que justifica a escolha do longa no nosso trabalho. Acompanhamos duas irmãs próximas em um processo de perda de autonomia e também como outras mulheres se relacionam com isso e são enxergadas por elas através por exemplo da mãe delas, de Filomena e de Zélia. Além das irmãs serem separadas com o tempo, ambas se veem em relacionamentos abusivos e buscando forças para se libertarem da invisibilidade e indiferença em seu casamento e também dentro de sua própria família.  Enquanto Eurídice sonha em entrar para o conservatório de Viena, Guilda sonha em ser feliz com seu namorado. 

A primeira coisa a ser analisada, é o letreiro do filme mostrado enquanto ambas tentam se encontrar em uma trilha na floresta. Com letreiros em vermelho e aparecendo entre nuvens, ele se encaixa perfeitamente com toda temática da história. A névoa faz referência aos desencontros das duas irmãs.  E o vermelho, carrega o simbolismo de luta. Da cor de um batom ao sangue de menstruação e pós parto que é normalizado e mostrado no filme sem qualquer censura, deixando-o ainda mais realista.

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Cenas do filme “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”(2019)

 

As cenas de tensão do filme são quase sempre inseridas no contexto em que as mulheres precisam aumentar a voz para serem ouvidas.

Quando Guilda volta para o Rio de Janeiro, ela é expulsa de casa pelo pai (Antônio Fonseca) por estar grávida e sem um marido. A cena acontece durante um surto de ira, que é normalizado pelo patriarcado e pela ideia de que “não é normal”, uma mulher grávida e solteira. Guilda é castigada com uma mentira do próprio pai em relação a irmã, que mente ao dizer que ela está em Viena. Esse surto de ira e a intensidade da cena é simbolizado pelo pai, que esfrega as mãos sujas de peixe no rosto da filha grávida. Essa cena também nos mostra a impotência da mãe, que durante todo excesso de fúria do pai – que também é descarregado no peixe – até o momento em que expulsa a filha de casa. Dona Ana não o impede, e não se pronuncia, mas o questiona de forma passiva após o ocorrido.

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Cenas do filme “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”(2019)

 

Ao mesmo tempo que o filme traz características de um cinema clássico e moderno, ele nos possibilita investigar uma série de elementos novos. Por exemplo, a forma como a solidão ou perda é sempre refletida nas cenas em planos mais abertos. A fotografia com tons escurecidos e a nebulosidade também ilustram o sentimento de solidão e perda de Eurídice em relação à irmã e vice-versa.

 

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Cenas do filme “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”(2019)

 

Cenas de reação de indignação e tristeza quase sempre são mostradas com as mulheres em uma posição quase de escanteio dentro dos planos, normalmente são colocadas de forma quase escondidas, como se fizessem parte do cenário, onde quase a metade da tela é ocupada com paredes ou algum personagem masculino.

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Cenas do filme “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”(2019)

 

Quando o marido de Eurídice chega em casa, ele anuncia que o médico o avisou sobre a gravidez dela justificando que estava preocupado por ela não ter ficado feliz com a notícia. Ela recebe a notícia com tensão, enrolando para responder o que realmente achava sobre a gravidez enquanto escovava os dentes. Enquanto isso, vemos Guilda ter o visto para Viena negado por não conseguir uma autorização do pai de seu filho, mesmo declarando ser mãe solteira e que ele não estava no Brasil na ocasião.

 

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Cenas do filme “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”(2019)

 

Eurídice faz a prova de Vienna, alguns anos depois. Com o brinco em cima do piano, a música guia o espectador através de flashbacks e memórias que ela desejaria ter passado com a irmã. Eurídice vestida de noiva, dançando com ela. Mesmo passando em primeiro lugar, sua felicidade é reprimida e retrucada pelo marido, que fica com raiva de Guilda.

E então, temos a cena do funeral. O pai então conta que Guilda voltou da Grécia logo após o casamento de Eurídice, e o Antenor parece guia-lo numa mentira para fazer Eurídice acreditar que a irmã foi pedir dinheiro, e desapareceu novamente.

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Cenas do filme “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”(2019)

 

O Drama da cena inteira é intensificado pelo cenário, e pelas câmeras que seguem o movimento dos personagens, em contraste com boa parte das cenas estáticas do filme – que aparecem inclusive durante as cenas de caminhada e transição das personagens. O filme respeita todas as idas e vindas, mostrando cada lugar em que elas estão chegando apenas para nos lembrar constantemente de que ambas estão na mesma cidade. Diante da ira de Eurídice, o pai explica que não contou que Guilda estava na mesma cidade que ela por sentir vergonha da filha, insistindo (em vão) na história de que ela só queria o dinheiro. A trilha sonora do filme não se faz apenas pelas teclas do piano de Eurídice, mas também pelas cartas narradas por Guilda.

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Cenas do filme “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”(2019)

 

A Paixão Invisível

Comparando e relacionando os dois filmes, temos em “O Martírio de Joana D’arc” o uso bastante excessivo dos closes, como mencionado no texto acima sobre o longa. Esses closes conseguem expressar uma sensação de claustrofobia inerente, sempre bem fechado pelas verticais com um aspecto de aprisionamento nos rostos dos personagens. Em “A Vida Invisível” temos uma sensação diferente, mas complementar ao mesmo tempo. A direção aqui explora a amplitude das paisagens e dos espaços urbanos, com um aspecto de tela widescreen que entrega uma visibilidade mais concentrada nas horizontais. E disso, temos a sensação do vazio, como se as personagens fossem pequenas em meio ao espaço em que se encontram, desolador e com um tom até meio nebuloso (mérito da excelente fotografia). Essas sensações que ambos os filmes apresentam se relacionam nessa proporcionalidade dos espaços. No mundo de Joana D’arc, Carl T. Dreyer faz com que o espaço seja comprimido pela câmera, fechando seus planos em faces humanas e explorando as feições de alguém que está sendo injustiçada. Já no mundo de Eurídice e Guida, Karim Aïnouz faz com que o espaço seja comprimido pelo próprio espaço, como se a angústia claustrofóbica viesse dessa noção de espaços não preenchidos, de um lado humano que é quebrado e embaçado pelo homem. Ademais, cenas como o julgamento de Joana D’arc e Guida sendo expulsa pelo pai reforçam a opressão masculina que as mulheres sofriam em suas épocas, mesmo com séculos de distância entre essas histórias, e é assustador observar que algumas coisas ainda continuam sendo as mesmas.

Conclusão

Nessas obras, “O Martírio de Joana D’arc” e “A Vida Invisível”, se encontram forças da natureza do íntimo feminino, em mulheres que tem suas vidas e condições expostas a situações de opressão levadas à seu limite. São guerreiras, de certa forma, mas não possuem proteções ou armas, nelas estão condicionadas o alcance do intangível, algo que está presente em suas vidas mas que não é material. Joana se arma com sua fé, sua devoção divina que a faz erguer sua cabeça aos céus, sua defesa está no martírio que a faz chorar em uma forma de purificar sua alma para que a dor não seja a sua ruína. As irmãs Eurídice e Guida demonstram suas forças em seus laços afetivos, a separação de seus destinos nunca mais se cruzarem, da vida à esperança diária que é constituída pelo amor que uma sente pela outra. Essa conexão acaba sendo intangível, como a de Joana, no sentido material, elas não se alcançam mais, a tragédia é premeditada. A fé e a esperança são afiadas, o martírio e os laços são inquebráveis. Essas personagens são condenadas, e o alívio para que possam finalmente ter seu êxtase se encontra em um sofrimento derradeiro, da qual elas não tiveram escolhas e foram julgadas por uma única culpa: a de serem mulheres.