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Made in Hong Kong

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O MATADOR (1989), de John Woo + AMOR À FLOR DA PELE (2000), de Wong Kar-wai

 

Made in Hong Kong

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

O tanatoscópio de John Woo

Nos anos 1960 e 1970, o estúdio Shaw Brothers se tornou uma indústria imparável de filmes de espada e kung-fu, revelando mestres como King Hu, Chang Cheh e Liu Chia-liang. Nas duas décadas seguintes, seria a vez de Tsui Hark, Johnnie To e Ringo Lam, que adaptariam os códigos do wu xia pian (o filme histórico de artes marciais) para o ambiente urbano contemporâneo, com as lutas entre as facções da máfia e a polícia se substituindo às antigas guerras entre clãs.

John Woo é o elo entre as duas gerações: trabalhou como assistente de Chang Cheh, começou a dirigir seus próprios filmes já na primeira metade dos anos 1970, mas sua carreira só decolou de verdade após o sucesso de Alvo duplo, de 1986, cuja fórmula é basicamente a mesma que O matador (1989) reempregaria, porém atingindo um grau de incandescência onírica, no limiar do desvario.

O cinema popular de Hong Kong é o reino da extravagância. Quando Hong Kong se separou da China continental, carregou a parcela mais circense e acrobática das tradições cênicas chinesas, preferindo a opereta e a comédia bufona às formas mais sóbrias e elegantes de espetáculo. Muita coisa que pode chocar o espectador ocidental – pela selvageria das cenas de violência, pela vulgaridade de muitas situações, pelo sentimentalismo acima do tom – faz parte de um sistema de representação com tradição milenar, embora já modernizado e hibridizado com os signos da cultura de massa do século XX (cinema hollywoodiano incluso).

Um filme como O matador nos obriga a repensar a noção de excesso no cinema. Nenhuma sequência é saturada o suficiente que não possa comportar mais um efeito maneirista de hipérbole figurativa. O inventário caleidoscópico de técnicas é infindável: slow motion, freeze-frame, edição rápida, fusão, raccords visuais e mentais de todos os tipos, insaciáveis transferências de elementos expressivos entre personagens e entre planos. A maneira como a montagem estabelece paralelismos inusitados, insere flashbacks gratuitamente e cria metáforas visuais em profusão só é comparável ao que se fazia no cinema silencioso. Assim como Sergei Eisenstein e Fritz Lang, John Woo não monta somente imagens (e sons), mas principalmente ideias. A imagem cinematográfica, para ele, está longe de ser apenas um veículo de comunicação ou um meio pelo qual as informações narrativas trafegam e são levadas de um ponto a outro: ela é, antes de tudo, uma matéria plástica e expressiva. Woo lida diretamente com as velocidades da imagem, com as durações, com as intensidades. Ele testa a hipótese de uma onipotência da imagem, de uma possibilidade de toda e qualquer ideia fílmica se realizar de forma visível, demasiado visível, na exterioridade plástica do signo icônico. É o contrário de um cinema da sugestão, da elisão, do fora de campo: a tela é um campo centrípeto para o qual todos os segmentos do fora de campo tendem a convergir. As coisas devem se manifestar preferencialmente no centro do quadro.

Na sequência final na igreja, o cenário repleto de velas e símbolos religiosos realça despudoradamente a teatralidade performática do tiroteio épico e transforma a violência em liturgia. O cinema ocidental, àquela altura, já dosava com cuidado o heroísmo sacrificial de seus protagonistas. John Woo, inversamente, baseia a jornada do herói nos valores cristãos de sacrifício e redenção sem a menor preocupação de disfarçar o simbolismo. E se a estátua de uma santa é espatifada em meio ao tiroteio, é porque a tentação secreta de todo iconófilo, paradoxalmente, consiste em destruir os ícones, em revelar que, dentro da imagem, há somente o vazio, como o interior oco da estátua.

A imagem só tem valor, portanto, como superfície e aparência. Eis por que a construção psicológica das personagens, sua interioridade, é desenvolvida de forma deliberadamente chapada e simplória: a iconicidade dos atores importa mais que seus subtextos. Uma vez transposto para a imagem, o ator se torna um foco de energia figural como outro qualquer.

Ninguém encarna isso melhor do que Chow Yun-fat. Desde que acendeu um cigarro com uma nota de cem dólares em Alvo duplo, ele se tornou o ícone do cinema de ação de Hong Kong. Em O matador, paralelamente à trama policial, Chow vive um enredo romântico inspirado em Luzes da cidade (1931), de Charles Chaplin. Chow é um matador profissional que se apaixona pela jovem cantora que ele deixou cega acidentalmente durante um tiroteio. Ele passa a ajudar a moça e promete pagar pela cirurgia de transplante de córnea. A cantora, a princípio, não sabe que seu benfeitor é o próprio homem que a fez perder a visão. Em Luzes da cidade, Carlitos se apaixonava por uma florista cega e inventava de tudo para ajudá-la a pagar o aluguel e cuidar da avó. A moça achava que ele era um milionário caridoso, e não um morador de rua. Depois que recupera a visão, tem um choque ao saber que seu herói é o pobre Carlitos. A cegueira, no filme de Chaplin, tinha um significado moral: é preciso saber enxergar com os olhos interiores, que não julgam pelas aparências, mas distinguem as almas boas das malsãs. Podemos pensar também em Sublime obsessão (1954), de Douglas Sirk, que narra a história de um homem – não um matador, mas um playboy inconsequente – que provoca a cegueira de uma mulher e começa um processo de regeneração que culminará com a restauração quase milagrosa da visão de sua amada. No filme de Woo, perder a visão física – como ocorrerá à própria personagem de Chow Yun-fat no final – não necessariamente implica uma ode à visão espiritual, mas, antes, indica um processo de exaustão do olho enquanto órgão que dá acesso à experiência estética. A visão é hipertrofiada a tal ponto que descamba na cegueira, na perda da sensibilidade aos estímulos visuais. O olho é chamuscado pela fervura excessiva das imagens.

Os corpos tombando em câmera lenta, em planos que a montagem retalha e intercala com outros, lembram o cinema de Sam Peckinpah, certamente uma das grandes referências de Woo. O amigo mais velho e mentor profissional do protagonista chega a repetir uma frase de Meu ódio será sua herança (The Wild Bunch, 1969): “o mundo está mudando rápido demais”. Tal como o faroeste crepuscular de Peckinpah, O matador é atravessado pela nostalgia, pela consciência da passagem irremediável do tempo, por um sentimento de perda, de não fazer mais parte do mundo. Esse mal-estar repercute nas imagens: na câmera lenta que busca inutilmente desacelerar o tempo, no fotograma congelado que John Woo utiliza no meio das sequências (e não na imagem de encerramento do filme, como é de costume), provocando uma pausa artificial da duração. Ao estancar o fluxo do movimento, ele devolve o cinema à sua verdade de base, que é mascarada durante a projeção: a imagem estática, a fotografia fixa. Coagulada em plena ação, a imagem adquire o mesmo rigor mortis dos cadáveres que se proliferam a cada cena.

Se John Woo tivesse inventado o cinema, não lhe daria o nome de bioscópio, como fizeram os irmãos Skladanowsky (pioneiros da cinematografia, ao lado de Thomas Alva Edison e dos irmãos Lumière), mas o batizaria de tanatoscópio. O cinema, para Woo, é a morte a 24 quadros por segundo; a morte na era de sua reprodutibilidade técnica. Dá para contar nos dedos de uma mão os planos de O matador em que ninguém morre ou leva um tiro. Os atiradores aparecem de todos os lados, multiplicam-se como gremlins – a cada atirador abatido, surgem mais dois, mais três, mais quatro… Aparecem das janelas, das portas, do teto, de trás dos objetos; ora irrompem de supetão, ora chegam sorrateiramente, ora se refletem no ray-ban de Chow Yun-fat. Surgem somente para morrer. Trata-se de um projeto maníaco de reencenar a morte vinte mil vezes, até que ela deixe de ser um acontecimento dramático, a tragédia inevitável da finitude dos seres, e se torne um evento que afeta tão somente as figuras e as formas, um acontecimento da imagem.

 

Amor ao fora de campo

Amor à flor da pele (2000) inverte a situação: agora é o campo que tem uma atração irresistível pelo fora de campo, o exato contrário do que ocorria em O matador. O filme de Wong Kar-wai narra a história de um romance, ou melhor, de dois romances: um que é consumado, mas no fora de campo; outro que nunca é consumado, mas espalha pelo campo a tensão desse desejo inconcluso.

A história se passa em Hong Kong, no começo dos anos 1960. Sra. Chan (Maggie Cheung) e Sr. Chow (Tony Leung) se mudam para quartos alugados em apartamentos vizinhos. Eles descobrem que seus respectivos cônjuges se tornaram amantes e fazem viagens ao Japão de tempos em tempos, dando a desculpa de que são viagens de negócios. Os presentes trazidos de lá (uma bolsa, uma gravata) delatam o adultério. Mas Sr. Chow e Sra. Chan não se separam de seus cônjuges. Enquanto lidam com a dor de se saberem traídos, eles se aproximam, passam a se encontrar com frequência. É evidente que uma paixão cresce, mas eles não cedem a ela. Tudo fica no “talvez”, como repete a voz de Nat King Cole no bolero “Quizás, quizás, quizás”, tocado algumas vezes no filme.

A construção do tempo em Amor à flor da pele é confusa, tomamos nota de sua passagem através das trocas de figurinos (os vestidos exuberantes de Maggie Cheung, que quase nunca se repetem) e de parcas informações de diálogos. Estamos diante de um filme que, durante seu demorado processo de criação, foi inteiramente reconstruído na montagem, que suprimiu várias cenas de ligação que permitiriam uma compreensão mais nítida da estrutura temporal. Muita coisa foi engolida pelas elipses. Sabe-se que Wong Kar-wai chegou a filmar uma cena em que o par romântico Cheung/Leung transava, mas acabou excluindo-a da montagem final.

O que poderia ser uma história de amor banal se reconfigura como uma experiência cinematográfica das mais complexas, um pouco como Kiarostami fez em Cópia fiel (2010). Sra. Chan e Sr. Chow começam a interpretar os cônjuges um do outro, a assumir seus papéis e a simular, no campo, o romance extraconjugal que o filme, todavia, relega ao fora de campo. Wong transforma em estilo de narração aquilo que, no fundo, constitui um aspecto estrutural do dispositivo cinematográfico, a saber, o fato de que todo e qualquer campo fílmico sempre ecoa um campo ausente – a câmera opera tanto por inclusão quanto por exclusão: todo plano de cinema sempre instaura necessariamente um fora de campo. As escolhas de enquadramento de Wong reforçam essa evidência: em vez de abarcar as cenas de modo totalizante, ele enfatiza os limites parciais do quadro, obstrui a visão, problematiza a compreensão da cena, impõe obstáculos cenográficos, fragmenta os espaços, sempre sublinhando a constatação de que eles se continuam para além dos limites do enquadramento, e de que não vemos senão uma parcela de um mundo que se constrói majoritariamente fora do alcance da visão.

O marido da Sra. Chan e a esposa do Sr. Chow só são vistos de relance, como vultos que atravessam furtivamente o quadro, aparecem de costas em breves momentos, se refletem como imagens nebulosas em superfícies espelhadas. Suas vozes são ouvidas, mas em conversas telefônicas ou em diálogos presenciais que os mantêm no fora de campo, que é o lugar deles por excelência. No campo traçado pela câmera, eles só podem existir como vestígios imprecisos.

Mais do que um amor impossível de ser concretizado, trata-se de um amor impossível de ser filmado. Resta à imagem se dispor como um campo de tensões latentes, de sensualidade exalante. A energia erótica é transferida para os objetos em plano-detalhe (Wong é o maior fetichista da história do cinema depois de Josef von Sternberg), para os pontos de tangência que os corpos criam entre si à medida que se encostam e se repelem imediatamente. A fumaça dos cigarros se evola em ritmo lânguido, disseminando pelo ar o clima de tesão reprimido. Tudo é libido nesse filme: até mesmo a forma como a duração se dilata ou se comprime nas cenas é uma ressonância do magnetismo sexual que aumenta a cada minuto, sendo sucessivamente abafado. A mise en scène é posada e estilizada, flertando com a afetação publicitária, mas se desvencilhando dela através de uma mágica que, dentre os cineastas fashionistas, Wong é um dos poucos a possuir. Quando não posam, os corpos “dançam” de forma afrodisíaca, ainda que raramente se toquem – como nos momentos em que Sra. Chan e Sr. Chow se cruzam entrando e saindo em câmera lenta do lugar onde compram noodles.

O filme quer ralentar o tempo, prolongar alguns momentos desse encontro provisório entre dois seres que se amam em segredo. Mas o tempo escorre em fluxo irrefreável. No epílogo, Chow recorre às ruínas de Angkor, no Camboja, e confia seu segredo a uma pedra, onde ficará protegido pelo silêncio inviolável do reino mineral. Talvez ali, na duração resiliente daquele sítio arqueológico, o amor possa enfim se libertar da elipse e do fora de campo.