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MILLENNIUM MAMBO, 2001, Hou Hsiao-hsien

 

imagem Milleniun Mambo

MILLENNIUM MAMBO, 2001, Hou Hsiao-hsien

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

Hou Hsiao-hsien, ao lado de Edward Yang, pode ser considerado o pioneiro da chamada “nouvelle vague taiwanesa”, movimento que reinventou o cinema de Taiwan no começo dos anos 1980.

Millennium Mambo, de 2001, já pertence a uma fase madura do diretor, mas é um filme atravessado por uma sensação de frescor e juventude. Primeiro, porque é um filme não só sobre a juventude, mas na juventude, imerso no regime sensório da juventude do começo dos anos 2000, mergulhado em seus espaços, em sua música, em suas luzes, em suma, um filme plantado na experiência do que é ser jovem (e não saber o que fazer da vida) na passagem para o terceiro milênio. O segundo motivo pelo qual o filme exala juventude consiste na disposição de Hou Hsiao-hsien de não simplesmente requentar um repertório estilístico consolidado em duas décadas de trabalho como cineasta, mas, pelo contrário, de sair em busca de novas técnicas, de novas abordagens da imagem e do som.

O filme é um dos melhores exemplares de uma vertente do cinema que, na passagem dos anos 1990 para os anos 2000, dispensou a mise en scène tradicional, calcada na decupagem analítica – isto é, na divisão da cena em planos individuais que a montagem rejunta seguindo certa ordem e hierarquia, num processo de organização da ação dramática e dos significados de acordo com regras de continuidade e encadeamento sequencial –, para explorar o que alguns críticos (Stéphane Bouquet, Jean-Marc Lalanne) viriam a denominar “uma estética do fluxo”, voltada menos para a construção narrativa do que para a criação de ritmos e ambiências. De Hou a Naomi Kawase, de Philippe Grandrieux a Gus Van Sant, passando por Lucrecia Martel e Wong Kar-wai, diferentes cineastas decidiram dar as costas à trama bem urdida e concentrar suas energias criativas na utilização da câmera de cinema como instrumento de intensificação da percepção e de investimento afetivo no mundo. A despeito das enormes diferenças entre os filmes desses realizadores agrupados em torno da noção de cinema de fluxo, eles pareciam partilhar, naquele momento, uma mesma vontade de abandonar os jogos maneiristas de reciclagem/desconstrução dos códigos figurativos e narrativos do passado do cinema – que saturaram as décadas de 1980 e 1990 com filmes cheios de citações e tramas rebuscadas – para retornar a uma experimentação com o plano cinematográfico como puro exercício do olhar, como tomada de vista e apreensão sensível de um espaço-tempo e dos corpos que o ocupam.

A maior parte de Millennium Mambo mostra as idas e vindas de Vicky (Shu Qi, em interpretação magnífica), ex-funcionária de uma casa de massagens, com seu namorado Hao-hao, um DJ de música eletrônica que, nas horas vagas, pratica pequenas infrações e se mete em confusão. É conhecida a influência de Maurice Pialat na obra de Hou Hsiao-Hsien, e aqui o diretor taiwanês parece filtrar para um registro minimalista o drama central de Nós não envelheceremos juntos (Nous ne vieillirons pas ensemble, 1972), filme que também aborda os momentos críticos de um casal afogado em brigas, em desentendimento, em ciúme, sempre à beira de uma ruptura iminente. O comportamento abusivo do rapaz gera uma tensão permanente no casal, enquanto Vicky tenta escapar àquele círculo vicioso com a ajuda de um amigo mais velho, Jack, que a abriga em sua casa quando ela não tem para onde ir. O delicado fio narrativo compõe-se basicamente das desventuras amorosas de Vicky e de suas errâncias noturnas em bares e em boates, com duas viagens ao Japão pontuando o meio e o final do filme. O enredo se desenvolve à semelhança de uma música tecno, com pequenas células narrativas/musicais se acumulando num transe hipnótico de repetições e variações.

Se, a partir de Adeus ao sul (1996), o grande assunto da obra de Hou se torna tão somente a luz, ou uma poética da luz captada em diferentes estados pela película cinematográfica, em Millennium Mambo, o trabalho se concentra nas luzes artificiais das casas noturnas e do apartamento em que a protagonista vive com o namorado. Ambientes inundados por néon ou entregues à meia-luz de abajures se sucedem numa inesgotável pesquisa de texturas e qualidades luminosas que se renovam indefinidamente.

As personagens de Hou demonstram amiúde uma propriedade de se misturar ao cenário, de se fundir à luz, aos objetos e às superfícies decorativas, como as figuras dos quadros de Édouard Vuillard, que se mesclam ao fundo e se tornam consubstanciais à mobília, ao papel de parede, às luminárias – sem privilégio visual da figura humana sobre os demais elementos plásticos da composição. O uso sistemático da lente teleobjetiva em cenários amontoados ou exíguos promove, em Millennium Mambo, não apenas uma sensação de contiguidade entre figura e fundo, entre primeiro plano e profundidade do campo, mas, sobretudo, um transbordamento do espaço cinemático para além dos limites do quadro: a cena se prolonga pelas imediações do campo, flutua pelo espaço, rumina uma porção do mundo visível por vez – um mesmo cenário já exaustivamente mostrado pode ressurgir na cena seguinte como uma nova terra incógnita, ainda repleta de possibilidades cênicas a desbravar.

Os planos de Millennium Mambo, particularmente sensíveis à atmosfera de interiores (seja em boates noturnas ou em espaços domésticos), criam estados oscilatórios, em que os corpos ora se diluem na ambiência, se afundam numa espécie de aquário luminoso, em situação de tédio, melancolia ou torpor, ora interrompem esse estado vegetativo, se desprendem do fundo, onde acumulavam energia de repouso, e vêm à superfície em movimentos lânguidos ou, com mais frequência, em arroubos de violência. A câmera, tal qual um sismógrafo que registra os níveis de instabilidade dos corpos, capta essas oscilações imprevisíveis em tomadas contínuas, em lentos planos-sequência que transcrevem as modulações do tempo na matéria plástica da imagem, por meio de uma série de reenquadramentos, de alterações de foco, de variações luminosas, de subidas e descidas de eventos sonoros que sempre abrem o espaço da cena para um fora de campo de dimensões indefiníveis. Nunca uma câmera de cinema se comportou de modo tão distanciado e, ao mesmo tempo, tão próximo daquilo que filma.

Assim como Claire Denis e Philippe Garrel, Hou está interessado não somente nas ações e nas personagens, mas em tudo o que circula entre os corpos, em toda a galáxia dos pequenos eventos visuais e sonoros que preenchem os espaços entre as coisas. Não há vazio para esse cinema: o ar não é simplesmente um intervalo entre os sólidos, mas um campo saturado de percepções, de gases cromáticos, de partículas luminosas suspensas na atmosfera; o silêncio não é uma pausa entre os sons, mas uma reserva infinita de fenômenos acústicos no limiar do audível; o repouso não é uma negação do movimento, mas sua continuação na forma de vibrações ínfimas, de moções incalculáveis de energia latente. Os “tempos mortos” de Hou talvez concretizem, mais do que os de Antonioni e Wim Wenders, a extremidade da imagem-tempo deleuziana: se, no paradigma da imagem-movimento, o tempo estava subordinado à cadeia narrativa dos eventos – e era construído abstratamente pelo sistema retórico da montagem –, agora ele é percebido diretamente, confunde-se à própria imagem, que fornece a experiência imediata do tempo. Sendo que, em Hou, não se trata do tempo pesado e extenuante de Tarkovski ou de Béla Tarr, mas de um tempo efêmero, vaporoso, esvoaçante – o tempo da juventude que passa e não volta, deixando para trás um rastro de nostalgia.

Há uma cena em que Vicky, na paisagem invernal de uma cidade do Japão, enterra o rosto na neve no intuito de lá deixar sua marca, sua fisionomia, que depois irá derreter ou ser encoberta pela próxima nevasca. Nesse filme em que tudo é transitório, e a única verdade é o tempo que foge, parece haver um impulso subjacente de produzir uma marca, um traço, um vestígio indicial de nossa presença fenomenológica no mundo. Não à toa, o filme se passa em 2000, mas é acompanhado por narrações em off de Vicky deslocadas temporalmente: a personagem situa tudo aquilo numa época anterior, “há dez anos”, ou seja, é como se ela estivesse se lembrando, em 2010, de fatos ocorridos na transição para o novo milênio. A narração transforma o presente em passado. Hoje, em 2020, não apenas o ano de 2000 como também o de 2010 já são um passado distante, separado de nós por estranhos anos em que tanta coisa mudou drasticamente. Restam-nos alguns vestígios do que foi aquela época – como essa obra-prima de Hou Hsiao-hsien, que o tempo dificilmente conseguirá apagar.

14/05