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O carnaval está chegando!

O carnaval está chegando!

 

Bernardo Wilberg
Carla Ribeiro
Danielle Menezes
Maria Antonia

O carnaval está chegando? Nesse ano, que sucede um 2020 pandêmico, essa afirmação pode ser tão falsa quanto verdadeira, pois a festa em si, de trios elétricos, bloquinhos de rua, fantasias e aglomeração não acontecerá por motivos de segurança, mas sabemos que o espírito de carnaval se manifesta de outras maneiras e em diferentes lugares, inclusive em filmes. Já é antigo o hábito de serem exibidos ou lançados, durante essa época do ano, filmes carnavalescos, como as famosas comédias musicais, para aqueles que preferem assistir a farra na tela, em vez de sair por aí. Protegidos do suor e das serpentinas, o público desses filmes se coloca em uma posição diferente da do folião, mas sem deixar de lado o espírito festivo. Dessa vez, impedidos de pular carnaval, nós podemos, pelo menos, manter a tradição de assistir aos filmes.
Os filmes da sessão abre-alas, propositalmente, não se passam nas festas ou nos blocos, mas, sim, em seu contexto carnavalesco. Seja pelas fantasias ou por suas músicas características, a folia se manifesta e, de alguma forma, o Brasil todo se faz presente. Em Alfazema (2019), de Sabrina Fidalgo, a produção tenta gravar um filme durante o carnaval carioca, mas troca as ruas pelo banheiro de Flaviana, em um instante entre blocos. Já em Fim de Festa (2019), de Hilton Lacerda, acompanhamos o pós-carnaval, na cidade de Recife, de quatro jovens ainda no clima da festa, em oposição ao retorno prematuro de Breno, para o trabalho como policial, com o intuito de investigar um assassinato. Em ambos os filmes, o carnaval se faz presente, principalmente, por aquilo que ele deixa para trás, pelo que não deixamos ir embora ou por aquilo que simplesmente não sai de nós nem depois de muitos banhos.

 

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Alfazema (2019)

 

 

No curta Alfazema, de Sabrina Fidalgo, após um afterparty carnal, a personagem Flaviana, é confrontada com a culpa de suas escolhas e é no banheiro de sua casa que ela precisa se limpar, não da sujeira, do suor ou do glitter, mas de sua culpa. Em um processo de purificação pra lá de intenso, ela ainda se vê na obrigação de lidar com um boy que trouxe para sua casa e que, coberto de microplásticos, toma um banho em sua banheira ao mesmo tempo em que ela se arruma para sair. Por mais que Flaviana peça ao boy, que insiste em errar seu nome, que vá embora, ele teima em permanecer na sua casa e, assim como a culpa, começa a ocupar todo o espaço disponível. O curioso é que, apesar de o boy passar toda a duração do filme tomando banho, ele continua sujo e com glitter por toda parte. É como se, no filme, o personagem e a purpurina em seu corpo ocupassem esse mesmo lugar, da culpa que precisa ser escorrida para fora, da coisa que pesa e não sai facilmente, não desgruda por nada, nem pedindo ou se lavando. Se faz necessária uma purificação ou como o título sugere, uma desintoxicação (uma das propriedades da planta Alfazema).
Como que encarnando uma presença do além, a lâmpada do banheiro oscila, apresentando, a cada vez, uma nova personagem. El Diablo aparece primeiro. Estaria Flaviana alucinando? Ou como indaga o boy: estaria o doce que ela tomou ontem batendo somente naquele momento? Interpretado por Bruna Linzmeyer, El Diablo representa, como de praxe, aquela voz no seu ouvido, mas, em vez de sussurrar, ele grita (afinal, é carnaval!) e, com uma bela fantasia, tenta convencer Flaviana de que o passado é para ser deixado para trás. Não demora muito para que a luz volte a oscilar e a Anja apareça para gritar do outro lado do ouvido de Flaviana. Interpretada por Bianca Joy, ela impede que Flaviana cometa o mesmo erro duas vezes. Mas que erro é esse? E quem a julga? Seria essa culpa algum tipo de rebordose por ter tomado um doce e dormido com um homem chato à beça? O que vemos em toda essa situação é a internalização de um julgamento moral da sociedade brasileira que se manifesta, naquele momento, em Flaviana, como culpa. Esse julgamento, que parece intrínseco às festas de carnaval, também se faz presente no filme de Hilton Lacerda, em relação ao comportamento dos jovens, porém, aqui, ele aparece de uma forma externa aos ex-foliões. É no vizinho que diz que nenhum país desenvolvido tem carnaval, ou nos banhistas da praia que veem nos pares de seios das jovens um atentado ao pudor, tão caro à família tradicional. Ambos os filmes, nesse quesito, trazem como temática algo que se refere ao conservadorismo em relação ao corpo e sua expressão na festa de carnaval, principalmente, contra o corpo femenino. A culpa sempre existe e, mesmo que não tenha sido internalizada, pesa nas escolhas individuais, pela pressão de uma política de controle dos corpos. Enquanto Sabrina Fidalgo traz esse embate interno, temos, com Hilton Lacerda, um combate explícito entre os corpos que tentam ser livres e aqueles que cerceiam a liberdade deles.

 

 

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Alfazema (2019)

 

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Fim de Festa (2019)

 

 

 

 

Há no filme de Sabrina Fidalgo, uma outra questão relacionada ao corpo que vale a pena destacar. A segunda cena de seu curta é um nu frontal masculino, um pênis em close-up. O dono dele é o único homem presente no filme. Esse homem, que é o boy de Flaviana, disputa no filme a todo momento pelo espaço em cena. Em sua primeira aparição, é seu corpo que preenche todo o quadro, mas constantemente a sua voz invade a cena, sempre tentando chamar a atenção para si em um filme cuja presença feminina compõe a equipe e os papéis de maior relevância. É como se, nessa representação, a presença masculina estivesse, todo o tempo, tentando subjugar o corpo feminino e seu estar no mundo. Entretanto, essa tentativa de “imperativo fálico” é vista, pelas personagens, mais como um ruído, um zumbido inconveniente que às vezes incomoda e às vezes é ignorado.
Pode-se dizer que um dos elementos mais interessantes do filme Alfazema seja a linguagem. No desenrolar do curta, percebemos que ele trilha um caminho metalinguístico. O filme parece rir de si mesmo, satirizando sua própria construção, seja pelo excesso de clichês nas falas das personagens, na performance teatral dos atores e da própria diretora, ou na ênfase em se filmar um plano-sequência, visto, de modo debochado, como forma de engrandecimento do filme — “sofisticado em termos de linguagem”.

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Alfazema (2019)

 

 

 

 

Talvez seja o cinema se despindo de todas as suas fantasias, colocando em evidência a construção de um filme que não se constrói apenas, também se destrói. Uma dinâmica carnavalesca, sem regras ou um caminho específico, o bloco vai para onde ele vai independente de um percurso programado.
O diretor Hilton Lacerda trabalha com uma variação de registros visuais para compor o filme Fim de Festa. Em alguns momentos temos imagens caseiras que se supõe pertencerem a Penha, pois no filme é ela quem diz estar gravando imagens de corpos durante o carnaval. Essas imagens aparecem durante o filme às vezes como interlúdios despretensiosos. Mas, aliadas à narração, transformam-se em algo mais: somam-se à enunciação para criar uma espécie de poesia dentro do filme. Por meio dessa interferência na montagem, feita de dentro da ficção para fora, nos deparamos com um exercício de linguagem que transforma um filme inicialmente de gênero policial em um de gênero híbrido, ao flertar com o vídeo. Além das imagens caseiras, há ainda as imagens que acompanham o podcast Dracma, podcast este que parece saber mais sobre o crime do que a própria polícia. As imagens do podcast, diferente das imagens caseiras, invadem o quadro fílmico, têm uma abordagem mais violenta e sensacionalista, apesar de também informativa, ajudando a compor e a organizar os elementos presentes no filme. O que é interessante nesses dois casos é que o espectador do filme é colocado como espectador dessa imagens de forma direta, não há uma mediação nesses momentos dos personagens em relação ao que é visto. E não sabemos sequer se eles também veem essas imagens e, se veem, em qual momento elas foram vistas por eles. Há uma importante exceção, claro, quando Penha e os seus amigos vasculham as imagens e acabam descobrindo a prova que soluciona o crime. E, mesmo nessa cena, não os vemos assistindo ao que é visto por nós, espectadores, somente seus comentários enquanto a imagem roda diretamente no quadro do filme.

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Fim de festa (2019)

 

 

 

 

 

A vigilância também é um fator bastante presente nos dois filmes, seja pelo corpo social ou por dispositivos tecnológicos, o sentimento é o de que todos estão sendo observados e que se esquivar do olhar alheio é praticamente impossível. Em Alfazema (2019), quem exerce o papel de sentinela é a própria figura de Deus, uma mulher preta (interpretada pela maravilhosa Elisa Lucinda), que acusa saber de todas as péssimas escolhas de Flaviana, do sexo casual ao ácido de qualidade duvidosa. Além de Deus, a diretora (a própria Sabrina Fidalgo) também aparece em quadro, num vórtice de vigilância metaficcional, interferindo na narrativa do “primeiro” filme e repreendendo a atuação das personagens que atrasam seu carnaval. No filme Fim de Festa (2019), os dispositivos de vigilância são muitos: o drone, o podcast “contrainformativo”, o “cidadão de bem”, a polícia, a testemunha e até as imagens artesanais e poéticas de Penha sobre o carnaval, que foram decisivas na solução do assassinato. Nos primeiros minutos do filme, há um take externo do prédio que aponta para dentro da sala de jantar onde Breno, seu filho e amigos estão. Logo o dispositivo que captura a imagem sobe acompanhado de um ruído de hélices, invadindo com sua lente os apartamentos que estão acima. É somente depois que descobrimos que essas imagens são feitas pelo drone do vizinho de Breno. Outro caso é o da testemunha ocular do crime cometido contra a turista francesa. Sem a intenção de vigiar, é ela quem, acidentalmente, flagra o homicídio. Esse olhar, entretanto, não possui credibilidade para os policiais, por se tratar do olhar de um morador de rua usuário de drogas. Contrapondo a dúvida que paira sobre esse testemunho, há uma outra visão sobre a noite do crime capturada por uma câmera, uma imagem virtual, que funciona como prova concreta e confiável na solução do assassinato. Essas imagens, que ajudam a polícia, são do filme caseiro/conclusão de curso de Penha e, mesmo que busquem uma expressão poética e filosófica sobre os corpos no carnaval, as gravações ainda vigiam, ainda observam os indivíduos em festa. Há uma outra cena que deve ser retomada: os olhares dos banhistas na praia, que denunciam como impróprios o comportamento de Penha e de Indira, ao exporem seus seios naquele ambiente. Cabe ressaltar como essa dinâmica de vigilância é exercida por meio desses olhares e lentes, pois é ela que se encarrega de reprimir a liberdade de alguns corpos ao mesmo tempo que desempenha um papel central na solução do crime.