Natureza morta-viva
Murilo Barbosa Simões
“Estranhos no Paraíso” (Stranger than Paradise, 1984) esconde algo em suas imagens não vistas e em suas palavras não faladas. Na forma, os insistentes blackouts isolam os planos uns dos outros, propiciando-lhes uma autonomia pouco usual e bastante curiosa, mas também os amarram em nós estreitos ao longo da frágil unidade fílmica. Na narrativa, a mesma chave desencontro-conexão impulsiona os personagens em suas trajetórias erráticas: ontologicamente sós, nunca se comunicam em seus desejos, mas teleologicamente juntos, enlaçam-se uns aos outros por alguma corda apertada (embora sempre ameaçada de se romper). A alegoria road-movie nos conduz a uma jornada de dispersão quase incontornável; e de fato, cada paisagem nova conquistada nestes saltos de um quadro a outro denuncia apenas uma nova experiência de não-lugar. Cada plano emoldurado (e recortado) por essas telas escuras apenas empacota os personagens em sua própria solidão. Mas algo os move: à Nova York, Cleveland, Flórida – e finalmente, Hungria. Algo move além da imagem.
Jim Jarmusch, Estranhos no paraíso, 1984
Pois é precisamente na imagem negada – mas presente, porque impressa – entre cada um destes não-lugares (e não apenas na Hungria, a paisagem mais viva porque nunca vista) que se dá a convergência entre as viagens não comunicadas de cada um destes seres condenados a vagar. Ainda que haja uma inércia deliberada (e talvez até presunçosa) em seus movimentos sem direção, ainda que se reconheça um maneirismo estranhamente blasé na persistente retração de suas intenções, ainda assim a vontade neles pulsa e não se disfarça. O não-visto revela o não-dito, e cada elipse entre-planos revela mais em suas possibilidades não calculadas que as promessas mortas destes quadros que Jim Jarmusch e Tom DiCillo compõem e iluminam com tão insólita coerência.
Jim Jarmusch, Estranhos no paraíso, 1984
O que fica, ao contrário do que talvez se espere, não é um culto do vazio. Não se romantiza nesta obra a incompletude, pois as lacunas comunicam – elas sim, comunicam – e nunca nos abandonam. Na forma, preenchem o quadro e o extra-quadro, pontuam cada corte com a incorpórea escuridão da imagem. Na narrativa, adicionam uma vírgula a cada ação ostensivamente esvaziada de sentido. E uma brisa fresca sopra ao fim do filme, de uma direção também desconhecida, quando o desencontro tão temido e conjurado é enfim inevitável. É nele que se anuncia a próxima lacuna, o blackout pós-fílmico à nossa espreita e todas as possibilidades que ele carrega.
Afinal a Hungria, ainda que persista fora do quadro, é mais real ao fim do filme do que o foi em seu início: o avião que antes veio agora vai – e tudo é movimento, pois é, tudo é movimento. Todas as andanças sem rumo foram séries humanas de erros necessários, buscas inacabadas, tentativas; apenas tentativas. Os personagens de “Estranhos no Paraíso” se comportam como natureza morta, mas estão vivos, e assim também é a própria imagem. Dentro e fora desta tela não abandonaremos a viagem (sabemos dessa verdade); então continuemos, prontamente, o nosso itinerário. Mesmo se estivermos fugindo – para a Nova York-Novo Mundo ou a Flórida-Paraíso: errando pelos não-lugares chegaremos sempre a algum-lugar.
Vestígios
Clara Couto Anido
Em Pai e filhos (Fu yu zi, 2014), de Wang Bing, as lacunas e o fora de campo também são dimensões fundamentais. O som incessante da televisão, o mundo virtual da tela do celular, e o próprio mundo exterior permanecem praticamente inacessíveis; o quadro se limita à casa entulhada da família de Cai Shunhua, composta por um único cômodo. Com 90 minutos de duração, o filme consiste, em sua quase totalidade, em planos imóveis de um de seus filhos deitado na cama enquanto mexe no celular. Por vezes seu olhar se desvia para a televisão sempre ligada, enquanto a iluminação do quarto muda, marcando a passagem do tempo ao longo do dia.
Wang Bing, Pai e filhos, 2014
Movimentos insignificantes ganham destaque, seja o menino se reposicionando, o vai e vem dos cachorros no canto da tela, a entrada e saída eventual dos membros da família. Nessa inércia do quadro e seus elementos, o espectador é convidado a vagar seu olhar pela composição, pelos objetos que ocupam o quarto. No artigo “Slow Time, Visible Cinema: Duration, Experience and Spectatorship” (2016), Tiago de Luca discute sobre como as propriedades (temporais e estéticas) dos filmes longos têm o potencial de tornar o espectador mais consciente dos modos de visionamento do filme. No caso de “Pai e Filhos”, também somos levados a refletir sobre nosso papel de consumidores de mídia, pois observamos, através de uma tela, o menino interagir com outras duas telas ao longo de todo o tempo.
Em seu texto, De Luca analisa mais especificamente as condições de espectatorialidade em uma sala de cinema. Ele argumenta que os filmes lentos têm a capacidade de reforçar e renovar a experiência coletiva do cinema, em tempos em que esse já não é mais o lugar privilegiado de exibição: “o cinema de lentidão solicita um envolvimento do espectador baseado em uma consciência da situação de visualização coletiva”. É diferente do que acontece em galerias de arte, por exemplo, onde muitas vezes filmes lentos e de longa duração são expostos devido à dificuldade de conseguirem espaço em salas de cinema convencionais. Nestas galerias eles competem com outras obras de arte, e o espectador, agora individualizado, transita livremente, sem vivenciar completamente a duração e a lentidão das exibições. Tais condições de visionamento se situam dentro das práticas hegemônicas de espectatorialidade, distanciando-se das propostas estéticas originais do slow cinema.
Apesar de ser um dos filmes mais curtos do diretor, “Pai e Filhos” tem a lentidão como uma questão central em sua narrativa. Parece, de certo modo, uma continuação do longa-metragem “À Oeste dos Trilhos” (Tie Xi Qu, 2003), realizado cerca de dez anos antes. Dividido em três partes (“Ferrugem”, “Vestígios” e “Trilhos”), com duração total de aproximadamente nove horas, o filme acompanha a vida de operários do distrito industrial Tiexi, na cidade de Shenyang, ao norte da China. Detalha o desmonte das históricas e monumentais fábricas estatais que foram utilizadas para a fabricação de armamentos para o exército japonês durante a invasão e ocupação de 1931 a 1945 no nordeste do país. Com o fim da guerra e o início da Revolução Cultural, o distrito tornou-se um dos maiores polos industriais da China, marcando assim o fim de um período histórico da região.
Wang Bing, À Oeste dos Trilhos, 2003
A segunda parte do filme, Vestígios, retrata a vida mais íntima e o processo de despejo dos funcionários das fábricas e suas famílias. Wang Bing segue um grupo de adolescentes e suas aventuras amorosas, momentos de descontração e tédio. Eles se encontram, conversam, brigam, jogam, bebem. Diferente do jovem inerte e isolado de “Pai e Filhos”, eles estão sempre em movimento, ainda que não tenham perspectivas concretas de futuro. Sua mobilidade dá a dimensão de toda a vida social que se perderá com o desmonte das fábricas. Pai e Filhos seria uma continuação dura e sufocante do primeiro filme.
Enquanto “À Oeste dos Trilhos” retrata o desmonte da China antiga, “Pai e Filhos” descreve a realidade opressiva da China atual, já prenunciada e palpável no filme anterior. Wang Bing apresenta com maestria as margens ocultas do seu país. O filme “Pai e filhos” termina com uma cartela informando que a equipe foi ameaçada pelo chefe de Cai e as filmagens tiveram que ser interrompidas. O quadro fechado e restrito que prepondera denuncia toda a potência de opressão daquilo que ocorre fora das telas.