Animação, Identidade Cultural e Pertencimento
Enrico Mancini
Julia Abritta
Maria Clara Brigatto
Rafael Jacinto
O cinema narrativo pode ser, simultaneamente, contação de histórias, expressão poética e registro sociocultural. A partir destes três componentes, sobretudo este último, ocorre uma relação de troca entre os responsáveis pela criação do filme e o público que o assiste: por um lado, muitas vezes transparecerá na obra em questão os ideais e costumes que compõem a origem cultural de seus criadores, enquanto os espectadores, por sua vez, trarão suas perspectivas analíticas a partir de seu próprio repertório.
Este processo ocorre também nos desenhos animados. Persépolis e O Menino e o Mundo são duas obras que contam histórias de origens muito diferentes (Irã e Brasil – ou ainda – Oriente Médio e América Latina), mas que possuem muitos pontos em comum no que diz respeito às críticas e análises políticas que buscam evocar.
Lançado em 2007, Persépolis é uma animação franco-iraniana dirigida por Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud. O filme foi baseado em uma novela gráfica autobiográfica escrita pela própria Marjane, na qual ela narra sua experiência ao crescer no Irã em meio à Revolução Iraniana. A obra audiovisual aborda a trajetória de Marjane entre Irã e Europa, transpassando por questões sócio-políticas como liberdade, cultura, religião, extremismo e guerra.
Persépolis (2007) – Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud
Criada numa família liberal e, de certa forma, ocidentalizada, Marjane demonstra desde cedo uma consciência política que vai além do que se espera de uma menina de sua idade. Sua terra natal é tomada pela guerra e pela repressão, fundamentada na religião e na rejeição aos valores dos países ocidentais. À medida que adentra a adolescência, Marjane torna-se progressivamente mais obstinada, e não hesita em expressar sua revolta com a violência e o autoritarismo que presencia em seu país. Preocupados com as punições que este comportamento poderia acarretar para a filha, os pais de Marjane decidem mandá-la para a Áustria, onde ela poderia usufruir da liberdade que desejava. Ao chegar na Europa, porém, a menina logo é confrontada com novos desafios: a solidão, a xenofobia e o afastamento de sua identidade cultural. Na Europa, Marjane é sempre vista como estrangeira, e constantemente se sente deslocada. Por outro lado, o contato cada vez menos frequente com a família e a culpa por ter deixado o Irã num momento tão penoso para o seu povo fazem com que a menina se sinta cada vez mais apartada de suas raízes persas.
Quando Marjane retorna ao Irã, quatro anos depois, acaba por cair numa depressão severa, constantemente assombrada pela sensação de não pertencer a lugar algum. Sua vivência na Europa transformou sua maneira de pensar, e ela já não se identifica com seus conterrâneos. Por outro lado, retornar à Europa significaria deixar para trás, mais uma vez, sua família e seu lar.
Persépolis (2007) – Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud
O Menino e o Mundo (2013) conta, por sua vez, a história de Menino, que vai à cidade grande em busca de seu pai, que partira à procura de trabalho. Para sua surpresa, no decorrer de sua jornada, a criança encontra uma sociedade marcada pela pobreza, exploração de trabalhadores e falta de perspectivas. Escrito e dirigido por Alê Abreu, o filme foi inicialmente concebido como um documentário animado, cujo objetivo seria narrar a história da América Latina. Posteriormente, porém, o projeto se transformou num longa-metragem narrativo, embora as raízes culturais latino-americanas que fundamentavam a história tenham sido conservadas.
A princípio, a premissa não possui nada de revolucionário, entretanto, a forma criativa como Abreu decide transmitir sua estória, mesmo com o empecilho do orçamento baixo, é o diferencial da obra. Nesse sentido, pode-se afirmar que o filme possui diálogos universais: não se entende as palavras ditas, mas sim as ideias gerais e os sentimentos expressos por elas. Dessa maneira, o que faz a plateia se conectar e criar empatia com as personagens são as situações retratadas, seja a partir de uma brincadeira em família na mesa de jantar ou com a existência de uma criança vagando sozinha pelo mundo sem medo do que pode acontecer. Engana-se quem pensa que um filme sem falas não tem nada a dizer.
Em sua jornada, o menino conhece de perto a injustiça que recai sobre os trabalhadores pertencentes às classes menos favorecidas e presencia a opressão causada por um governo militar autoritário. Ambos os cenários se assemelham àqueles presentes na história do Brasil, país marcado por seu passado colonial, quando foi fornecedor de matéria-prima barata obtida a partir de mão de obra escrava, e pelo período repressivo e violento da Ditadura Militar – questões que ainda hoje revelam cicatrizes na sociedade brasileira. Em meio às cenas lastimáveis que o Menino presencia, porém, há sempre um lampejo de esperança, representado por um grupo de músicos que aparece no decorrer do filme, preenchendo a tela de cores e personificando a arte como ferramenta de resistência política.
O Menino e o Mundo (2013) – Alê Abreu
Do ponto de vista estético, há um contraste cromático entre os dois filmes. Enquanto o filme franco-iraniano constrói uma mise-en-scène essencialmente monocromática, o filme nacional faz fundamentalmente o oposto: abraça a policromia no figurino e no cenário, enquanto seus personagens são principalmente constituídos por riscos unicoloridos.
Outra discrepância entre os citados é o traçado: o filme brasileiro adota um traço infantilizado (o que agrega à narrativa, uma vez que vemos o mundo a partir da visão de Menino, uma criança), enquanto o filme europeu possui uma estética mais cartunesca (até por conta do filme ser baseado num livro de quadrinhos).
Os diretores maestram seus filmes com uma autoridade invejável. Em O Menino e o Mundo, a câmera faz zoom-in e zoom-out com uma rapidez fluida que seria inatingível nas câmeras “reais” – ou físicas, melhor dizendo. Esse controle na encenação fílmica é sem dúvida um convite tentador na imersão da fantasia aqui concebida.
O território pelo qual a criança percorre é extremamente palpável e, ao mesmo tempo, surreal pela maneira com a qual o menino interage. No campo, há extensas planícies e o céu chama a atenção por suas nuances de cores, principalmente no entardecer. Nas florestas, o fator tropical ganha espaço através dos tucanos, dos micos e da cor verde. Nos territórios mais urbanizados, há, dentre outros elementos, a festa carnavalesca, as favelas, a enorme quantidade de publicidade, trabalhadores em tarefas mecânicas, órgãos governamentais autoritários, indústrias e lixões. Todo esse universo diegético é circundado pela trilha sonora, que se relaciona com o espetáculo visual onírico de maneira leve e eficiente. Vale ressaltar a canção de Emicida “Aos olhos de uma criança” que, mesmo presente apenas nos créditos finais, contribui para a profundidade temática do filme.
O Menino e o Mundo (2013) – Alê Abreu
O Menino e o Mundo (2013) – Alê Abreu
Em síntese, estes elementos destacados compõem uma das animações nacionais mais interessantes dos últimos anos, que funciona como uma semente – fazendo alusão ao fim do filme – cujos frutos decorrentes dela serão colhidos pelas futuras gerações que se propuserem a produzir mais animações em território nacional.
Quanto à Persépolis, é perceptível a influência do quadrinho na decupagem do filme – isso provavelmente se dá pelo fato da autora da obra originária estar envolvida na direção. Essa transmidialidade oferece novas propostas estéticas para a sétima arte, quebrando (mesmo que pouco) com a muito ecoada decupagem clássica.
A animação predominantemente em preto e branco traz um peso bem maior a todo o enredo, principalmente quando se mostra o resultado da guerra: a ausência de cores evoca, de forma mais crua para o espectador, o drama e os horrores da violência presenciada pelos personagens. Além disso, o desenho toma certas liberdades nos traços, como na marcante cena em que Marjane está andando pela rua com uma jaqueta punk e duas mulheres que a censuram, crescem de tamanho, intimidando-a. No entanto, mesmo com o preto e branco predominante, o filme não perde a leveza e humor, como na sequência em que há um cover da música “Eye of the tiger”.
Persépolis (2007) – Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud
Ainda que as duas animações narrem histórias diferentes entre si, alguns temas essenciais estão presentes nos dois filmes: a denúncia das desigualdades – com ênfase em gênero e etnia, no caso de Persépolis, e em classe social, no caso de O Menino e o Mundo -, a crítica à ditadura e à opressão e a reprovação da manipulação ideológica, seja esta através da mídia ou figuras de autoridade.
Ao mesmo tempo, os dois filmes também evocam a inocência da infância, e o processo de quebra desta ingenuidade à medida que cada um dos protagonistas são expostos às realidades mais duras do mundo que os cerca.
Tratando-se de animações, os diretores têm controle absoluto da mise-en-scène, uma vez que toda articulação audiovisual que é criada, é gerada do zero, a partir do desenho. Isso acaba por proporcionar uma imersão ímpar na narrativa, de forma a impulsionar a experiência e a mensagem que o filme tenta transmitir.
Tanto Persépolis quanto O Menino e o Mundo demonstram, portanto, o potencial do cinema de animação de comunicar, simultaneamente, o lúdico e o complexo. Ambos os filmes acabam gerando uma quebra de uma ideia errônea que frequentemente prepondera sobre o público (ou até sobre especialistas) – a de que animações são voltadas exclusivamente para um público infantil. O desenho animado pode trazer – e pode-se dizer, inclusive, que na maioria das produções traz – duros ensinamentos, não só sobre questões específicas a cada sociedade, mas sobre experiências universais da vida, sejam estas relativas à infância ou à idade adulta.