Cachorros contaminados pelo mal
Por Matheus Zenom e Paula Mermelstein
1982. Em The Thing (O Enigma de Outro Mundo) de John Carpenter, um cachorro foge dos tiros de um helicóptero que o persegue numa vastidão de neve. Em White Dog (Cão Branco) de Samuel Fuller, um carro atropela um cachorro branco numa estrada à noite. O cachorro, em ambos os filmes, funciona como uma espécie de página em branco, tabula rasa, pronta para ser manchada de violência, seja pelo horror tanto visceral quanto invisível de The Thing ou humano e social de White Dog.
Ambos são filmes de ação no sentido mais puro da palavra, filmes físicos e materiais. O filme de Fuller, ainda que por vezes hiperbólico e mesmo alegórico, funciona dentro de um registro realista tanto em seu âmbito temático, tratando diretamente de conflitos sociais determinantes da sociedade americana, quanto em seus meios de produção, em um cinema absolutamente físico, de confrontos corpo a corpo. E ainda que o filme de Carpenter seja absolutamente parte de um cinema fantástico, lidando diretamente com o sobrenatural, seu monstro ainda foi construído a partir de uma tradição “artesanal” de efeitos especiais, de maquiagem e trucagem, e exala matéria orgânica.
The Thing (O Enigma de Outro Mundo)
The Thing, dirigido por John Carpenter, é uma espécie de remake do filme The Thing From Another World (O Monstro do Ártico), de 1951, do qual a verdadeira “autoria” é disputada entre o diretor creditado, Christian Nyby, ou o produtor, Howard Hawks – visto que o filme claramente carrega uma forte “assinatura estilística” de Hawks. Talvez não seja adequado designar o filme de Carpenter como um remake do filme de 1951, que serve mais como uma inspiração, um ponto de partida, para uma adaptação do mesmo conto “Who Goes There?” de John W. Campbell. O filme “original”, entretanto, pode iluminar alguns aspectos do filme de 1982, assim como, de maneira mais ampla, o cinema de Hawks ilumina alguns aspectos do cinema de Carpenter.
Assim, há dois momentos, ou imagens, em The Thing From Another World que parecem essenciais não apenas para The Thing, mas para toda uma filosofia por trás dos filmes de Carpenter. No filme de Hawks-Cyby, uma equipe de militares, cientistas e jornalistas baseada no Polo Norte (o filme de Carpenter acontece no Polo Sul) se dispõe sobre o gelo para delinear a dimensão e o formato da espaçonave que percebem estar abaixo (Fig.1); ao formar um círculo percebem que se trata de um OVNI, numa associação direta do formato com o “disco voador”, sem mostrar a nave diretamente. Logo ao lado, encontram uma figura presa no gelo, que levam em um bloco de gelo até sua base, onde ele lentamente derrete, revelando e revivendo o monstro lá dentro.
A cena do círculo de homens sobre o gelo já estava prescrita na filmografia de Carpenter em seu filme Halloween (1978), quando crianças assistem The Thing From Another World na televisão, e é reproduzida novamente em The Thing (Fig.2), novamente através de uma televisão que os personagens assistem, como se para reforçar seu aspecto de citação. A cena em The Thing está em um vídeo que os personagens encontram em uma base de cientistas exploradores noruegueses, que parece ter passado pelo mesmo que eles irão passar ao longo do filme. A história vivenciada pelos noruegueses, apresentada por alguns vestígios que os personagens encontram ao vasculhar sua base, é ainda mais próxima de The Thing From Another World. Na base encontram, além do vídeo, um bloco de gelo com um buraco em formato de uma silhueta e descobrirão a seguir a espaçonave no mesmo local onde os homens noruegueses formaram um círculo sobre o gelo no vídeo, indicando que a “coisa” chegou ali da mesma forma que chegou no filme de 1951, antes de ser transmitida para o cachorro fugitivo que inaugura o filme, como se o próprio filme original fosse uma base arqueológica de onde Carpenter irá partir para sua interpretação.
Fig. 1 Fig 2
Em The Thing From Another World, assim como em outros filmes de Hawks, mesmo em exemplos tão distintos como His Girl Friday (1940) e Rio Bravo (1959), os personagens são reduzidos a tipos em um cinema regido absolutamente pela ação, seja esta ação disposta no falatório sobreposto dos atores ou na própria sequência ininterrupta de eventos, que é concentrada espacialmente. Não apenas a ação dos atores transborda nesses espaços restritos, mas – e este talvez este seja o principal apelo de The Thing From Another World – o próprio ambiente transborda gelo, neve, fogo, e mesmo descargas elétricas, em um cinema absolutamente elementar e material. Carpenter também lida com suas histórias de maneira simplificada e ordenada, frequentemente dispondo uma mesma situação de um mal desconhecido que aborda um conjunto de personagens enclausuradas em um mesmo ambiente, mal contra o qual elas devem lutar sem ter a possibilidade de escapar destes espaços. Em The Thing, como no filme de 1951, são as condições climáticas extremas que impõem esta impossibilidade de fuga, em ambientes também totalmente regidos por suas manifestações abundantes de gelo, neve, fogo e explosões. O horror de Carpenter, afinal, como aquele que os homens tentam delinear no gelo em The Thing From Another World, é invisível: a “coisa” em si, é invisível, pois o que vemos são suas consequências materiais, manifestadas no próprio ambiente ou nos corpos e comportamentos humanos (e caninos).
Mas quando vemos esse círculo de homens em The Thing, diferente de em The Thing From Another World, não temos ainda nenhuma explicação, apenas esta formação estranha, à qual não temos ainda uma contextualização desta atitude, tal como nada sabemos do cachorro que foge dos tiros do helicóptero que o persegue. Em realidade, toda a narrativa em The Thing se desenvolve como em um estado de suspensão, pode-se dizer, entre um antes e um depois que estão sugeridos por elipses. Tanto a elipse das imagens que começam o filme, com o disco voador caindo na terra, como da elipse para aquilo que vem depois, ao não sabermos se “a coisa” morreu ou se ela sobrevive em algum destes dois personagens. Neste sentido, o título brasileiro de “O Enigma de Outro Mundo” parece se adequar perfeitamente a estas imagens que, a priori, também são enigmas. É aí que o filme de Carpenter se diferencia absolutamente do de Hawks-Cyby, pois o original parece justamente lidar com um excesso explicativo em forma do falatório sobreposto dos personagens típico de Hawks.
Se o cinema de Carpenter é tão material quanto o de Hawks será justamente através do uso bloco de gelo em The Thing From Another World que irá determinar seu tratamento narrativo em The Thing. O gelo não apenas esconde o horror, ele o adia. Se em The Thing existe, tal como em Hawks, uma velocidade na exposição narrativa, ela se distingue do ritmo e do falatório frenético dos filmes de Hawks, isto se dá porque, em sua concentração narrativa, de maneira aparentemente contraditória, Carpenter toma o tempo suficiente para desenvolver as expectativas sem as abafar por uma aceleração exagerada e nem mesmo fazendo com que os planos e a decupagem das cenas se retardem demais, o que faria também perder o interesse de uma maneira geral. Em seu tratamento, Carpenter busca apreender o tempo da cena de uma maneira regrada, permitindo com que os desdobramentos dos seus efeitos dramáticos sejam, aos poucos, revelados, em um movimento crescente no interior de uma mesma imagem que é capaz de suspender absolutamente as expectativas do seu espectador, em uma relação muito estrita da dramaturgia e dos atores com a abordagem da câmera. Se em Carpenter, assim, o horror não vem em forma de bloco de gelo, mas de cachorro, ele ainda vai derretendo lentamente, instaurando uma paranóia crescente nos personagens e em nós, até eclodir em rupturas violentas em pura matéria agônica, desesperada por mais carne.
Há poucos cenários tão aterrorizantes quanto o de The Thing, que balanceia perfeitamente a paisagem inóspita da Antártica com a vida exorbitante e mortal da “coisa”. Pois é isto que aterroriza em The Thing, a vida em sua forma mais crua e cruel, em sua matéria pura, como uma célula monstruosa fagocitando tudo que há de vivo em seu caminho. Também como uma célula este monstro é invisível ao olho humano, e só se manifesta através dos organismos que incorpora, copiando-os. O filme oscila assim, entre a tensão gélida e a erupção visceral; este monstro, afinal, como indicado no filme, aproximando-o explicitamente de H. P. Lovrecraft, devia estar preso no gelo há milhares de anos, esperando.
White Dog (Cão Branco)
Se o monstro de The Thing está pronto para matar todos a sua volta, o monstro de White Dog é circunscrito e terrivelmente humano. Assim como em The Thing, o cachorro é apenas seu veículo, mas aqui, o verdadeiro assassino é o homem que lhe treinou ou ainda o racismo como ideia. O filme adota em grande medida uma perspectiva simbólica que parece servir a fins didáticos e o “cão branco” do título, afinal, se refere tanto a uma característica anedótica e natural do animal, como a uma prática racista, imposta através da violência, de condicionar um cachorro a atacar pessoas negras.
A primeira pessoa que vemos o cachorro atacar, antes de sabermos que ele é um “cão branco”, é um homem branco que tenta estuprar sua dona. O ataque, bem visto nos olhos da dona e do espectador, acaba selando uma cumplicidade entre o cão e a mulher. O cachorro também rosna para seu namorado branco quando este a segura de maneira um pouco autoritária. Mas suas verdadeiras vítimas, quem o cachorro ataca para matar, são pessoas negras que não lhe fizeram absolutamente nada: um motorista de um carro que limpa a rua, uma colega atriz da dona do cachorro e um homem que simplesmente caminhava em uma calçada.
Nesta última cena, a violência da criação deste cão branco, de sua deformação psicológica a partir do tratamento de um dono racista, para incutir-lhe este ódio, se torna ainda mais evidente quando contraposta de maneira absolutamente decisiva na cena em que ele mata um homem justo frente ao painel que retrata São Francisco de Assis, o santo padroeiro dos animais, representado junto de um cão como este, apontando assim também uma inocência original do animal, aqui, absolutamente desvirtuada. Esta imagem, então, pela simultaneidade entre a imagem idealizada do cão como animal inocente e a violência do assassinato cometido, apresentará um senso de crueldade ainda maior, justamente pela contradição entre as duas expectativas que sobre ele se lançam. Sendo o cão, enfim, um animal inocente, a sua corrupção pelo ódio e o preconceito do homem adquire um sentido ainda mais grave, quando se pensa que a partir disto o cachorro passa a ser a própria personificação deste preconceito e deste ódio, a manifestação física deste problema histórico do qual o cachorro não pode ter consciência, mas ao qual é direcionado a reproduzi-lo deliberadamente pela violência com que o seu dono racista o criou.
Fuller aponta assim todo o procedimento desta crueldade pela síntese em uma única imagem, tal como em outros momentos do filme será capaz também de apresentar este tensionamento dramático de uma maneira concisa, em planos como o do homem que estende a sua mão frente aos dentes do cão sem focinheira (Fig.3) ou quando, no que talvez seja o momento de maior brilhantismo de mise-en-scène de todo este filme, quando a câmera postada em uma esquina mostra horizontalmente o cão a revirar latas de lixo em uma rua, enquanto verticalmente se dispõe um menino a brincar na calçada (Fig.4). A ameaça ao menino então se torna evidente, e a grande expectativa que se constrói nesta cena, a partir de um medo de que também esta criança seja atacada, se desenvolve precisamente por vermos, ao mesmo tempo, a ameaça e o ameaçado, na mesma continuidade de registro. É a “montagem proibida” teorizada por André Bazin que Fuller leva à maestria da confluência das movimentações internas de seus personagens, quando a mãe do menino vêm buscá-lo na calçada precisamente momentos antes do cachorro também se mover, evitando que este visse o menino.
Fig. 3 Fig. 4
Este apuro da mise-en-scéne é o que mais imediatamente confirma ali um cineasta de outra geração, formado em outro momento histórico de Hollywood, que pelo seu próprio trabalho de produtor de seus filmes teve de aprender a lidar com as limitações materiais para poder construir os seus efeitos dramáticos sem embaraço. Neste sentido, em outros momentos do filme se manifestará um realizador sem constrangimentos ao utilizar os zooms ou os movimentos de grua e a filmar planos ponto-de-vista do cão, por soluções práticas que, longe de parecem descaso estilístico, se estabelecem de maneira coerente dentro da unidade do filme, sendo parte de suas soluções estruturais. Em White Dog não existem efeitos que não os mais práticos e necessários, aqueles que dizem respeito diretamente ao direcionamento do cão e da simulação deste seu comportamento agressivo, absolutamente construído através dos procedimentos de montagem, de representação.
Em decorrência dos ataques de seu cão, sua dona o leva para um local de adestramento de animais, onde o treinador Keys, um homem negro, irá se dedicar integralmente a seu treinamento, ou des-treinamento. Se em uma determinada cena o sócio de Keys, Carruthers, se volta contra a figura de um dos robôs de Star Wars, é porque não apenas a adoção do fantástico pelo cinema ameaça o seu próprio trabalho de treinador de animais, como também para o próprio Fuller isto representa uma mudança de interesse dos espectadores para um cinema que se dissocia destes problemas sociais e históricos, de um senso material dos conflitos humanos a partir do qual se constrói grande parte de sua filmografia, e que aqui se encontra de uma maneira cristalizada, como um manifesto de suas preocupações humanistas. Assim o filme aos poucos se dissocia da história de uma jovem atriz que, buscando por afirmação dentro da indústria cinematográfica, encontra um cão assassino, à luta simbólica contra o racismo, trabalhando em uma dimensão extremamente física, de um cinema propriamente de ação, mas sugerindo também uma batalha épica entre um homem (Keys) e sua “baleia branca” – como um Moby Dick racial. Uma vez que o filme assume esta batalha há uma concisão narrativa, as banalidades da história inicial são mesmo esquecidas e a própria dona do cachorro torna-se uma personagem secundária, embora de extrema importância, uma vez que o seu olhar se apresenta como de uma testemunha deste processo que lhe é revelado, desta luta em que não se via envolvida e da qual toma assim consciência.
Quando corre em direção às suas vítimas, e à câmera, em diferentes momentos do filme, com seus dentes à mostra, pronto para atacar, o cachorro se torna um borrão branco e violento, uma mancha quase abstrata, que o aproxima ainda mais de uma percepção simbólica do racismo, como se o cão representasse ali mesmo um conceito. Além disto, o filme começa e termina em preto e branco, ainda que todos o seu desenvolvimento dramático se passe a cores, pois para o cachorro, que vê enxerga somente estes tons, o racismo é também uma pura questão de cor. Há uma cena em que Keys levanta e abaixa sua camiseta branca, revelando e escondendo sua pele negra, atiçando o cachorro, acostumando-o, cansando-o. Pela maneira que este chega tão perto de sua pele, confundindo-se com estas mudanças, se revela o quanto a questão é reduzida ainda mais ao absurdo: o ódio do cachorro por um simples tom de pele parece algo como as neuroses induzidas no personagem de Spellbound (1945), de Alfred Hitchcock, ao ver uma certa configuração de linhas.
Como no filme de Hitchcock, afinal, este cachorro sofreu um trauma na infância que associa a esse padrão, mas diferente da vítima de Spellbound, a cura para o racismo presente no cachorro não pode se dar simplesmente pela psicanálise. Pois apesar de toda a abstração, o racismo em White Dog é histórico, estrutural. A própria raça do cachorro, um pastor alemão, e a sua cor branca, não parecem meras coincidências, mas apontam para outras manifestações históricas do racismo, como nas crenças de uma “supremacia branca” enraizadas pelo nazismo, já trabalhado anteriormente por Samuel Fuller em Verboten! (1959) e aqui evocado também na cena em que a dona do cachorro vai procurá-lo no canil e assiste um cachorro sendo sacrificado em uma espécie de câmara de gás.
Como Keys explica, as origens da prática de treinar cachorros para atacar negros no Estados Unidos datam desde o período da escravidão e, como este insiste, recondicionar o cão não é uma questão pontual e particular; se ele consegue condicionar este cachorro, a prática racista tem solução, se não, pode matar este cão, mas virão outros, o que parece se confirmar no final do filme com o zoom out se distanciando do cachorro morto, daquele cachorro em particular para a questão ampla que ele representa. Final absolutamente trágico e anti-idealista, pois a sua resolução aponta a maneira como este racismo perdura, não se dispondo ali simplesmente qualquer solução ficcional para iludir uma conclusão sobre esta questão, evitando também qualquer tipo de conformismo de seu espectador.