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Tudo que o cinema permite

 

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Tudo que o céu permite (All that Heaven Allows, Douglas Sirk, 1955) + O medo devora a alma (Angst essen Seele auf, Rainer Werner Fassbinder, 1974)

 

Tudo que o cinema permite

 Luiz Carlos de Oliveira Jr.

Tudo que o céu permite é um dos pontos mais altos do glorioso ciclo de melodramas que Douglas Sirk realizou para a Universal Pictures na década de 1950. Assim como outros cineastas que migraram da Europa para os Estados Unidos, o diretor alemão aportou em Hollywood nos anos 1940 levando na bagagem uma cultura europeia ainda repleta de sombras expressionistas e de reminiscências do melodrama gótico.

O lar burguês, a casa, o ambiente familiar – marcado pela presença mais constante da mulher do que do homem – é o principal campo de forças do melodrama, daí o papel determinante atribuído à casa e às situações domésticas polarizadas em torno da protagonista feminina. É nesse ambiente familiar e privado – com suas rivalidades, brigas por herança, conflitos geracionais, personagens reprimidas, divisões de classe e de sexo – que se passam os melhores melodramas do cinema hollywoodiano dos anos 1950 (os de Douglas Sirk, Vincente Minnelli, Joshua Logan, Nicholas Ray).

Mais do que qualquer outro especialista do gênero melodramático, Sirk mobiliza uma estratégia de dramatização e de estilização formal hiperbólica – às vezes, delirante – a fim de expor uma visão crítica da sociedade norte-americana daquele período. A vida doméstica nos subúrbios aparece em seus filmes como uma concentração de forças desencontradas, de repressões e acomodações que constituem uma realidade asfixiante, em contraste com a “ideologia da felicidade” propagandeada na época. É próprio do melodrama, desde suas origens teatrais e romanescas, amplificar a realidade cotidiana por meio de uma dramaturgia do excesso, cuja tarefa é “pressionar a superfície do texto” (como diz Peter Brooks, um dos grandes exegetas da imaginação melodramática), de modo a espremer das situações do dia a dia o conteúdo (psíquico e social) reprimido.

O enredo de Tudo que o céu permite é simples: uma viúva se apaixona por seu jardineiro (interpretado por Rock Hudson, galã hollywoodiano que teve a vida pessoal constantemente assediada pela imprensa pelo fato de ser homossexual – o que cria, por si só, uma interessante camada metatextual no filme). Mas as barreiras sociais, a diferença flagrante de idades, a desaprovação dos filhos, o preconceito dos amigos, as divergências de visão de mundo entre uma rica dona de casa e um jardineiro romântico e idealista, em suma, tudo isso os afasta.

Sirk filma o horror do conformismo social subjacente ao “conforto” da vida média. Seus cenários repletos de espelhos, biombos, objetos decorativos e sistemas de iluminação rebuscados – concebidos em parceria com o diretor de fotografia Russell Metty, braço direito do cineasta na criação de um estilo visual inconfundível – expõem uma realidade artificial, até mesmo simulacral (a “imitação da vida”, para usar o título de outro filme famoso do diretor): um mundo regido pelas aparências e realçado pelo uso paroxístico do Technicolor, que beira a psicodelia em alguns momentos. Os enquadramentos, por sua própria exuberância plástica, arquitetam uma espécie de prisão para as personagens, frequentemente filmadas em contraluz. O título do filme possui um misto de sinceridade – de crença no poder do desejo, do amor, das forças volitivas – e de ironia – tudo que o céu permite ou tudo que o dinheiro e as convenções sociais permitem? –, que ganha destaque pelo flerte com certo imaginário da publicidade, do bem-estar e da visão pretensamente paradisíaca de uma vida condicionada pelo signo-mercadoria.

Quase vinte anos depois, o também alemão Rainer Werner Fassbinder, fascinado pelos melodramas de Sirk, revisita o conflito narrativo central de Tudo que o céu permite em O medo devora a alma, substituindo o subúrbio norte-americano por um bairro de classe-média em Munique. Desta vez, o romance proscrito se dá entre uma senhora alemã e um imigrante marroquino muito mais jovem. Um novo obstáculo social se acrescenta: a diferença étnica, que agrava os preconceitos enfrentados pelo casal. Mais uma vez, a família e a vizinhança se mostram menos uma estrutura acolhedora do que uma máquina carcerária que produz solidão e aniquila o desejo.

O colorismo flamejante e a sobre-estilização barroca de Douglas Sirk cedem lugar a um estilo mais seco e distanciado em Fassbinder, cuja mise en scène adota maior frontalidade. As próprias imagens do filme parecem encarar o espectador – há um efeito de facialidade em cada plano do filme, como se as imagens olhassem para nós da mesma forma que temos o mau hábito de olhar para o outro e julgá-lo. Fassbinder internaliza na própria estrutura da decupagem o efeito nefasto do olhar que reduz o outro a um objeto – seja um objeto de julgamento moral ou de gozo voyeurístico. Não se pode mais bancar o inocente: a contrapartida do prazer de olhar para o outro será, doravante, aceitar que a imagem nos olhe de volta.

Sirk podia observar “de fora”, investigar de uma posição extrínseca aquele mundo que descrevia. Fassbinder, diferentemente, inclui-se nesse mundo que ele submete a uma descrição sociológica implacável, e ainda obriga o espectador a também ocupar um lugar na trama escópica que aprisiona sua protagonista. O universo melodramático ressurge filtrado por um procedimento brechtiano de desfamiliarização com os códigos característicos do gênero. Há uma maior sobriedade formal em relação aos demais filmes de Fassbinder (mais maneiristas na fatura). Mesmo assim, toda uma gama de efeitos de enquadramento e iluminação ainda confere sua dose de excesso a esse filme marcado por uma dramaturgia da crueldade.

Rever esses filmes agora, isto é, revisitar o imaginário do melodrama sirkiano e sua indispensável releitura feita por Fassbinder, comprova a extrema atualidade desse universo. Basta constatar que alguns dos mais importantes realizadores das últimas décadas, a exemplo de Todd Haynes (Longe do paraíso, Carol, A salvo) e David Lynch (Twin Peaks, Veludo azul, Cidades dos sonhos etc.), retornam sub-repticiamente à iconografia e à temática dos melodramas de Douglas Sirk. Sem esquecer, é claro, da série Mad Men, a melhor ficção televisiva de que se teve notícia nas primeiras duas décadas do século XXI, e para a qual o melodrama sirkiano foi referência central.

 07/05