Fechar menu lateral

DRAGGED ACROSS CONCRETE (2018), de S. Craig Zahler e NO CORAÇÃO DO MUNDO (2019), de Gabriel Matins e Murílio Martins

 

dragged                         no coração do mundo

DRAGGED ACROSS CONCRETE (2018), de S. Craig Zahler

NO CORAÇÃO DO MUNDO (2019), de Gabriel Matins e Murílio Martins

 Luiz Carlos Oliveira Jr.

Assistimos, nos últimos tempos, a um retorno do imaginário do cinema de gênero em obras autorais com ambição artística proeminente. O filme de horror, e o cinema fantástico em sentido mais amplo, é o universo mais requisitado, mas há também a busca por trasladar alguns dos expedientes do cinema policial e de ação para contextos em que esses códigos se aclimatam em narrativas de caráter autoral ou de conteúdo politicamente engajado. Não que sejam universos necessariamente estanques: colocar em lados opostos o cinema de gênero e o de autor nunca foi uma ideia muito frutífera, e a própria “política dos autores” nasceu quando a ala jovem da redação dos Cahiers du Cinéma saiu em defesa de cineastas (Hitchcock, Hawks, Cukor, Wilder, Fuller) que trabalhavam, majoritariamente, no registro dos gêneros populares estabelecidos (western, policial, noir, suspense, musical, comédia). Mas o fato é que o mercado do cinema mundial, em sintonia com a lógica da economia neoliberal, endossa a segmentação do público em nichos específicos, daí dividir os filmes entre blockbuster e cult, enlatado e artístico etc.

Embaralhar as fronteiras entre esses universos, como fazem tantos cineastas talentosos atualmente em atividade, é só o menor dos seus méritos. O interessante é observar como eles deslocam os protocolos do cinema de gênero e exploram os pontos cegos desse imaginário, como fazem Dragged Across Concrete (2018), de S. Craig Zahler, e No coração do mundo (2019), de Gabriel Martins e Murílio Martins. Filmes bem diferentes, não obstante partilharem referências – Michael Mann, em especial – e aspectos em comum, como a dilatação das cenas de espera e antecipação (que se tornam tão importantes quanto a ação em si), a descrição quase documental do quadro existencial das personagens (que ancora a violência no mundo concreto, na estrutura da realidade social, evitando qualquer gratuidade), o mesmo gosto pela narração prolixa, que se perde na degustação de longos diálogos elaborados com enorme cuidado. Acima de tudo, paira sobre ambos os filmes um sentimento de fatalidade, um peso do destino que, de modo algum, provém de uma ordem transcendental, de uma escrita divina das sentenças individuais – não há sinal de Deus nesses filmes, a despeito da religiosidade patente de várias personagens. Pelo contrário: esse empuxo da fatalidade do destino se encarna nas forças físicas geradas pelas condições materiais de existência.

Em Dragged Across Concrete, dois policiais – afastados temporariamente do ofício devido a sucessivos episódios de abuso de violência e autoridade – embarcam em um plano que tem tudo para dar errado: interceptar clandestinamente um roubo de barras de ouro e ficar com os espólios. É a grande chance de mudar de vida, de não depender exclusivamente da profissão, que já se encontra sem horizonte de promoção para um cargo mais alto. Paralelamente, acompanhamos a trajetória de um jovem negro recém saído da prisão, que participa do roubo compondo a equipe de apoio aos assaltantes. Esses últimos personificam o mal puro, abstrato – dois deles passam o filme inteiro mascarados, sem rosto, não sabemos nada de sua psicologia: são meras máquinas de matar, sintomas vestigiais de uma cultura (a norte-americana) em que o bem e o mal sempre puderam ganhar formas categóricas e absolutas. A morte em circunstâncias estúpidas, de todo jeito, parece constituir a única regra possível após a vida ter se reduzido a um único valor, o do dinheiro. A família está lá como álibi moral para todas as decisões, mesmo as que ferem a ética. Mas, no fundo, esse pretexto também já caducou. Até a dedicação estoica ao trabalho, lugar-comum das ficções policiais, já se transformou em outra coisa: amargura resignada, labor despregado de qualquer causa nobre. A presença de Mel Gibson, que se notabilizou como o parceiro porra louca da dupla protagonista de Máquina mortífera, demonstra uma arte do casting à maneira de Tarantino, que também resgata certas figuras anacrônicas para jogar com a aura de suas personae dramáticas do passado e, ao mesmo tempo, expô-las a situações que escancaram seu ostracismo justamente para extrair disso uma força dramática inaudita.

A fotografia tem aquela frieza mortificante que muitos cineastas contemporâneos acentuam por meio do suporte digital. Mas é uma luz desenhada, construída, às vezes no limite do virtuosismo formal. As cenas internas, além da iluminação artificial extremamente estilizada, são perpassadas por um inquietante silêncio de fundo: não há muitos ruídos de ambiência, não há uma massa sonora a preencher o espaço e dar vida ao mundo visível. Há apenas o silêncio fúnebre de uma sociedade em permanente ritual de aniquilação, seja pela morte lenta e midiatizada (os vídeos feitos com celular são um elemento-chave da trama) de um mundo-fantasma que virtualizou as trocas econômicas, afetivas e comunicativas, seja pela morte física, demasiadamente física das cenas violentas, que o título do filme já deixa evidente: “arrastado pelo concreto”. Há uma atenção acurada e até agoniante com os detalhes físicos dos fatos violentos (mas sem recair na caricatura como no filme anterior de Zahler, Brawl in Cell Block 99): o corpo pesado que precisa ser arrastado pelo chão, o impacto das balas que atravessam os corpos, os sons que saem desses corpos e fazem deles não mais que organismos a perder sangue e outros fluidos (sem nenhuma transcendência espiritual), a posição que um corpo assume para atirar sem ser atingido pelo oponente, as distâncias que as personagens percorrem sem corte, sem elipse. Tudo isso se potencializa na longuíssima sequência-clímax, em que o diretor cria um complexo dispositivo espacial para multiplicar as variáveis e revitalizar a fórmula do tradicional tiroteio final dos filmes de ação.

No coração do mundo não investe tanto na estilização do ato violento. É mais contido, embora não abdique de uma série de efeitos de iconicidade (as motocicletas empinadas em câmera lenta e ao som de rap já são peça de antologia) e de uma depuração estilística que inclui momentos de elã virtuoso, ou do que os franceses chamam de morceau de bravoure – a cena do roubo, por exemplo, é filmada em um exuberante plano-sequência às escuras, com a comédia de erros se associando à dinâmica tensa da ação.

Há quem veja um descompasso entre a primeira parte do filme – dedicada ao estudo de personagens e à apresentação gradativa de um quadro social específico, o de um bairro pobre e violento de Contagem, na periferia de Belo Horizonte – e a segunda parte, mais focada no roubo e em seus desdobramentos. Mas encaro tudo como um mecanismo coerente e orgânico. O filme equilibra com maestria um estilo observacional que se tornou recorrente no cinema brasileiro contemporâneo – e que ele magnifica através de um ritmo de mise en scène mais tônico e incisivo, mais propositivo e autoconfiante, em nada apático ou afásico como se vê na maioria dos casos semelhantes – e a infiltração progressiva de uma trama de ação em moldes mais clássicos. Em parte, os diretores estão trabalhando com um regime de representação que não conta com os atalhos fornecidos por uma tradição; há numerosos exemplos de ficções sobre crimes violentos no Brasil, mas não há o repertório de códigos e a produção continuada que configurariam um reservatório de formas tradicionais e um sistema estético constituído por modelos engastados no imaginário da ficção popular nacional. É preciso achar as brechas, produzi-las no decorrer do próprio filme. E isso às vezes requer caminhos indiretos, tangenciais. Quando a lógica subjacente às articulações entre o retrato coletivo e o filme de ação finalmente se expõe, tudo se encaixa com a implacável precisão de um universo dramático sem evasão, sem saída fácil, sem “porta da esperança”. Dragged Across Concrete, no fim das contas, ainda recicla a ideologia do self-made man, mesmo que por vias tortuosas, com reflexão crítica, e elegendo novos vencedores, que antes ficavam do lado dos que eram sacrificados em favor da salvação do herói convencional. No coração do mundo, porém, é mais aterrador – a utopia de felicidade, que o título do filme evoca mediante essa ideia de um coração do mundo onde tudo se realiza plenamente, é enunciada pela personagem de Grace Passô num plano em que ela aparece enquadrada pelo monitor de uma câmera e com uma paisagem em fundo falso atrás dela. Projeção, não realização.

Os planos noturnos em que as personagens olham sem esperança para o mar de luzes da cidade (que lembram momentos de Fogo contra fogo, de Michael Mann) já estão entre as imagens mais potentes da produção brasileira das últimas décadas. As personagens (encarnadas de forma iluminada por Grace Passô, Leo Pyrata, MC Carol, Kelly Crifer e todos os demais) trazem no corpo, na voz, no olhar, tudo de que personagens cinematográficas precisam para existir em estado de plenitude. E aquela escapada noturna com a balada do Yahoo (uma dessas bandas dos anos 1980 que traduziam para o português as canções românticas do hard rock internacional) começando no rádio do carro para depois ganhar a trilha sonora extradiegética e embalar a jornada etérea da fuga, que será estancada bruscamente pelo retorno traumático do real, enfim, desde a série Miami Vice não se filmava algo assim com tamanha sinceridade (sem distanciamento cool ou irônico). É um filme de quem viu e assimilou muito cinema – mas não esqueceu de olhar, com igual ou maior intensidade, para a realidade à sua volta.

 21/05