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Exumação de imagens

 

Prelúdio                    Pavor

 

PRELÚDIO PARA MATAR (Profondo Rosso, 1975), de Dario Argento + PAVOR NA CIDADE DOS ZUMBIS (City of the Living Dead, 1980), de Lucio Fulci

 

Exumação de imagens

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

A imagem escondida

Enquanto caminha por um parque de Londres em singela manhã de sábado, um fotógrafo capta com sua lente voyeurística o idílio romântico de um casal. Ao revelar as fotos, ele percebe que algo de estranho se passa: o olhar da mulher (interpretada por Vanessa Redgrave) indica alguma coisa escondida na imagem. Selecionando detalhes e ampliando-os, investigando as fotografias com o auxílio de uma lupa, o fotógrafo, doravante convertido em detetive de imagens, acaba percebendo uma “mancha”, um pormenor enigmático. Esse detalhe, correspondente ao que Roland Barthes chamaria de punctum – “pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte” que se destaca da imagem, “fere” o olhar, modifica o regime de atenção do observador e cria uma abertura, uma brecha, uma via de acesso a um extracampo, a alguma coisa que está na imagem sem necessariamente se mostrar –, esse detalhe, eu dizia, abre uma ferida hermenêutica na imagem, tragando o fotógrafo para uma vertigem interpretativa. De ampliação em ampliação, de análise em análise, ele acaba descobrindo que um crime se dissimulava na aparente banalidade da fotografia. O filme, evidentemente, é Blow-up (1966), de Michelangelo Antonioni.

Quase dez anos depois (e quase dez quilos a mais), o ator de Blow-up, David Hemmings, terá uma nova imagem para decifrar. A cidade agora é Turim, e o filme é Prelúdio para matar (1975), de Dario Argento. A personagem de Hemmings é Marc Daly, pianista de jazz que, ao ver uma mulher sendo assassinada, vai ao seu socorro, mas já a encontra sem vida. Na cena seguinte, enquanto relata o que viu para um policial, Marc afirma que o local do crime não está mais do mesmo jeito, há algo faltando. Após matutar, ele conclui que sumiu um quadro, uma das várias pinturas expostas no apartamento. Convencido de que esse quadro contém uma pista importante, Marc começa uma investigação por conta própria.

Para descobrir o mistério do quadro desaparecido, ele precisará imergir numa espécie de mundo-pintura, num universo em que tudo é forma, cor, estilo, composição. Sua investigação deverá se provar, acima de tudo, um aprendizado estético. A praça em que Marc encontra seu amigo Carlo, ainda no começo, já demonstra que ele está inserido num mundo transformado em cenário pictórico: espaço imponente obtido por uma mescla de Edward Hopper (o “Blue Bar” é uma explícita citação a Nighthawks) e De Chirico, como comprova a arquitetura da praça – suas arcadas e colunas em estilo clássico, suas esculturas monumentais dividindo espaço com signos modernos –, bem como as sombras proeminentes, a perspectiva esmagadora convergindo para um ponto de fuga situado no solo, o cenário semideserto, as incongruências espaciais, a atmosfera surrealista.

É nessa praça que Marc ouve o grito feminino que anuncia o crime. Ele olha para um prédio próximo à praça e, numa das janelas, vê a mulher sendo esfaqueada. Sobe afogueado a escadaria do prédio. Depois de atravessar o interior do apartamento, que mais se assemelha a uma galeria de arte, encontra o corpo da vítima cravado no vidro da janela, como uma espécie de escultura, de obra de arte que completa a coleção já constituída pelos quadros mórbidos espalhados pelo corredor.

Em Blow-up, o fotógrafo visitava e revisitava o parque em que ocorreu o suposto crime, como a se convencer da realidade do que só conseguira perceber tardiamente, com delay – o crime só apareceu para ele na imagem, na fotografia, na representação, já com toda a sombra de dúvida acarretada por esse adiamento da percepção e por essa transposição da realidade para a imagem. Em Prelúdio para matar, diferentemente, o lugar visitado por David Hemmings ao longo de sua investigação será uma mansão abandonada. A vítima do assassinato testemunhado por Marc, a renomada parapsicóloga Helga Hullman, havia mencionado essa mansão numa palestra no início do filme. Depois, num livro sobre um faits divers macabro, o protagonista descobre que lá viveu uma criança que sempre cantarolava uma mesma música infantil e, em seguida, chorava e gritava assustada – a tal música (o “prelúdio para matar” do cômico título que o filme recebeu no Brasil) é ouvida toda vez que o assassino entra em ação. Dentro da casa, Marc vasculha cada cômodo, cada detalhe da antiga mansão em estilo art nouveau, como quem redescobre a locação abandonada de um filme do ciclo de horror gótico de Riccardo Freda. A cena culmina com ele percebendo na parede de um dos cômodos um detalhe intrigante: duas pequenas falhas no reboco da parede dão a ver que há alguma coisa escondida, alguma imagem encoberta pelo cimento. Marc imediatamente se põe a raspar a parede.

Aos poucos, à medida que Marc esfarela o cimento, surge um desenho infantil aterrorizante: uma criança segura uma faca ensanguentada ao lado de um homem assassinado. O pianista pensa ter encontrado aí a imagem-chave da investigação. Mas, depois que ele se retira da casa, a câmera se aproxima em travelling do desenho na parede, como a pedir que olhemos mais de perto, ou como a se preparar para nos contar um segredo. Quando a câmera termina o movimento, um pedaço do reboco da parede cede e despenca, revelando uma parte do desenho não desobstruída por Marc: surge uma terceira personagem no desenho, uma mulher, a verdadeira autora do crime ali representado. Não tendo visto a imagem inteira, Marc se iludiu com uma falsa revelação. É o “efeito Blow-up”: uma imagem nunca mostra tudo de uma vez, há sempre algo por descobrir, algo que permaneceu nas bordas ou no fundo; é preciso desconfiar sempre das imagens, voltar a elas, arriscar um novo ponto de vista.

Na segunda vez em que vai à misteriosa mansão, Marc compara a fachada da casa com uma antiga foto dela. Ele nota que uma das janelas vistas na foto desapareceu. Munido de uma picareta, Marc arrebenta a parede e descobre que há um cômodo escondido na casa, murado de todos os lados. Ele ilumina o interior do cômodo com uma lanterna, encontrando lá um corpo – mais precisamente, o cadáver do homem que aparece sendo assassinado no desenho. Debaixo de teias de aranha e crostas de poeira, a cena do crime permaneceu de alguma forma preservada e mumificada dentro desse cômodo, como uma peça de museu de cera, ou como um dos quartos de O segredo da porta fechada (1947), de Fritz Lang, thriller psicanalítico sobre um arquiteto com o estranho hobby de colecionar cômodos que reproduzem em mínimos detalhes os cenários onde ocorreram crimes famosos (um dos quartos, porém, não pode ser mostrado: sua porta vive trancada…).

Se o protagonista de Blow-up esbarrava na bidimensionalidade da fotografia, na sua realidade chã, impenetrável, Marc, por sua vez, está diante de uma imagem que pode ser atravessada. Num primeiro momento, na verdade, a opacidade havia se tornado ainda maior: ele encontrara um desenho infantil na parede, sem volume ou profundidade, nem mesmo simulada (como era o caso na fotografia, com sua profundidade ilusória). Mas essa opacidade redobrada, em contrapartida, se prova uma superfície que recobre uma realidade tridimensional (a cena embalsamada do crime), bastando derrubá-la para ver a outra cena, o verso da imagem, o outro lado.

A empreitada da personagem de David Hemmings em Blow-up já era comparável à de um arqueólogo: o fotógrafo, de certo modo, escavava a imagem à procura dos seus significados soterrados. Em Prelúdio para matar, a comparação é ainda mais pertinente: Marc visita um sítio em ruínas e invade uma cripta que guarda a imagem residual de uma história anterior. As imagens se apresentam, nesse filme, como uma matéria arqueológica, uma crosta estratificada que é preciso escavar, raspar, desbridar. Argento faz uma arqueologia do visível, uma busca pelas formas remanescentes, pelas imagens mais antigas, que subjazem às atuais. As imagens, para Argento, são uma matéria como outra qualquer: uma vez em excesso – como é sempre o caso em seu cinema –, acumulam-se, estratificam-se, formam camadas sobrepostas, que impedem o olhar de atingir o que há na origem (a imagem primordial? o real? o trauma?). Como é possível, então, ver? Como reordenar a experiência visual, senão por meio de um trabalho de escavação, ou melhor, de exumação?

Há um plano em que a câmera, posicionada dentro do cômodo secreto, enquadra Marc de frente, a quebrar o muro como se transpassasse a própria tela do cinema, desobstruindo a visão do espectador para fazê-lo acessar o axioma central da obra de Argento: uma imagem sempre esconde outra imagem. A filmagem frontal, que mostra Marc quebrando o muro como se destruísse a própria superfície da tela, tem por efeito a interpelação direta e violenta do espectador, cuja pulsão escópica, na mesma medida em que é atendida, vira-se contra ele. É a contrapartida anti-retiniana de um cinema que, até então, parecia ter dado livre vazão à curiosidade de ver e de ver mais.

O cadáver encontrado por Marc no cômodo secreto depois que ele põe o muro abaixo remete imediatamente ao cadáver de Mrs. Bates em Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, filme-matriz de toda uma vertente do thriller de horror da qual o giallo é a variação italiana (com as devidas anamorfoses, hipérboles e deslocamentos). Esse cadáver é o antepassado artístico que Argento não conseguiu enterrar e que, portanto, tensionou seu filme internamente, devorou-o por dentro, até arrebentar a parede que o continha e vir à tona. Como afirma Jean-Baptiste Thoret em seu livro sobre Dario Argento, “[o] cadáver iluminado pela lanterna se imbui de múltiplas significações: cadáver de uma memória cinematográfica e pictórica asfixiante, cadáver de Blow-up, cadáver de Mrs. Bates, cadáver, enfim, de uma profundidade denegada”.

 

“Não é sangue, é vermelho”

Analisando o quadro Os embaixadores, pintado por Hans Holbein em 1533, Jacques Lacan se interroga, como outros tantos haviam se interrogado antes dele, sobre o “objeto estranho, suspenso, oblíquo”, situado no primeiro plano, à frente das duas personagens que são retratadas em meio a uma variedade de elementos que representam, na pintura da época, os símbolos da vanitas (relógio, livro, partitura, instrumento musical, ornamentos, signos de ostentação). O objeto enigmático invariavelmente cativa o olhar, mas não se deixa desvendar até que o espectador da pintura, tendo desistido dela, encaminhe-se para a saída e se vire para dar uma última olhada. É então que, desse ponto preciso – o quadro de Holbein é geralmente posicionado de modo que a porta de saída mantenha com ele um ângulo oblíquo, como é o caso na National Gallery de Londres, onde se encontra atualmente –, o objeto é visto de soslaio, de uma posição a partir da qual a anamorfose exerce seu efeito e o que, na visão frontal, não passava de um borrão incognoscível se revela a imagem nítida de um crânio de caveira, o último objeto que faltava (e o principal) para completar o repertório iconográfico da pintura de vanitas. O espectador é arrebatado por essa experiência, que o descentra e, no limite, expõe sua inanidade enquanto sujeito da visão – ele pensava estar no domínio do campo escópico, no centro privilegiado da geometria visual que mediava sua relação com a imagem, quando, na verdade, era o quadro que o mantinha cativo e aguardava por ele à maneira de uma armadilha óptica. Por intermédio do fantasma anamórfico, Holbein faz o olhar do espectador se exorbitar, emergir “em sua função pulsátil, explosiva e estendida”. Como ele pôde não ver isso antes? “Esse quadro”, conclui Lacan, “não é nada mais do que é todo quadro, uma armadilha de olhar”.

Prelúdio para matar reinventa cinematograficamente esse dispositivo de anamorfose e trompe-l’oeil, num enredo igualmente marcado pelos signos da vanitas. A resolução da intriga, não por acaso, repousa em uma charada óptica. Marc retorna ao apartamento em que Helga Hullman foi assassinada. Ele tenta se lembrar do que viu, refazer mentalmente o momento em que entrou no apartamento pela primeira vez e atravessou o corredor de quadros. Seu intuito é identificar o que, no cenário presente, diverge da configuração original. É como se ele efetuasse uma análise comparativa entre a imagem que tem diante dos olhos e a imagem anterior, mental (guardada na memória, mas sem boa resolução), tentando assinalar a diferença, o elemento que uma imagem possui e a outra, não. Quando seu olhar cruza com um espelho, cuja moldura tem o mesmo formato oblongo dos quadros pendurados pelo corredor, Marc começa a entender o que aconteceu. Vendo seu próprio rosto refletido no espelho, percebe o equívoco: ele havia visto o rosto da assassina naquele mesmo lugar, mas o confundira com as figuras perturbadoras de um quadro que o espelho também refletia (conforme elucidado por um flashback). A imagem especular, ao achatá-los numa mesma superfície reflexiva, tornara indiscerníveis os rostos pintados e o rosto real da assassina, cuja maquiagem exagerada contribuíra para aclimatá-la melhor no universo expressionista da pintura. Argento baseou o enigma desencadeador da trama nessa qualidade traiçoeira do espelho, que, multiplicando de maneira artificial as perspectivas do espaço interior, tornou-se cúmplice de uma intriga visual, de uma armadilha para o olho.

Tudo estava dado desde o início: se voltarmos o filme à cena em que Marc entra no apartamento pela primeira vez, veremos que o reflexo da assassina já estava lá, no espelho-pintura! Como pudemos não ver isso antes?

Argento faz algo que trai a lógica de quebra-cabeça do whodunnit (quem matou?), pedra angular da engrenagem narrativa do thriller de investigação: ele entrega a identidade do assassino nos primeiros minutos de filme. E, mesmo assim, não estraga o suspense, pois, tal como Marc, o espectador tampouco vê aquele rosto furtivo no espelho. É toda uma inflexão do olhar operada pelo cinema moderno o que aí se resume: de tanto querer ver, acabamos por não ver nada. A transparência representativa é trocada pela opacidade reflexiva.

Sob o pretexto de uma trama policialesca convencional, calcada na investigação de um crime misterioso, Prelúdio para matar constrói, na verdade, um sistema hermenêutico de interpretação de imagens. No centro e na origem, estava a imagem mental trancada no subconsciente de Marc. Para tirá-la de lá, foi preciso submetê-la a um trabalho de anamnese (rememoração gradativa, afloramento de conteúdos psíquicos latentes), de anamorfose (Marc teve de desmontar o esquema anamórfico, fazer o caminho inverso, sair da posição inicial, de onde via a pintura de esguelha, e se colocar diante do quadro) e, sobretudo, de montagem: foi preciso justapô-la a outras imagens de diferentes procedências (desenho, fotografia, pintura, reflexo especular, memória), para só então desvelar a imagem faltante e completar a cadeia narrativa.

O título original do filme, Profondo rosso, “vermelho profundo”, é bastante fiel à démarche artística de Argento: trata-se, no fim das contas, de atingir uma abstração, de transformar a tela em campo de cor, de dissolver a figura humana numa imagem que deve ser sentida como acontecimento puramente plástico, tal como se resume no plano que encerra o filme, em que todo o enquadramento em cinemascope é tomado por uma poça de sangue onde o rosto de Marc aparece refletido, reinvenção horrífica da fonte de Narciso, ou seja, de um dos mitos fundadores do imaginário artístico ocidental. Pode-se dizer desse plano o mesmo que Godard dizia do sangue em Pierrot le fou (1965): “c’est pas du sang, c’est du rouge”. Não é sangue, é vermelho – é a experiência da cor sem entraves, liberta dos limites da figura. Não há muita diferença entre esse plano final de Prelúdio para matar e um quadro de Rothko. De tanto esgarçar a matéria da imagem, de tanto se empenhar em conduzir a representação cinematográfica às suas últimas fronteiras estéticas (lá onde se flerta com a implosão do representável), Argento curiosamente encontrou, na extremidade do signo figurativo, o expressionismo abstrato ao qual a pintura modernista havia chegado por outro itinerário.

 

Descer ao túmulo das imagens

A trama de suspense como mero pretexto para um trabalho plástico com as imagens, chegando ao limiar da abstração, radicaliza-se em Pavor na cidade dos zumbis (1980), de Lucio Fulci. Se Prelúdio para matar ainda possuía uma trama envolvente, coerente, amarrada segundo uma lógica aristotélica-dedutiva, o filme de Fulci já dispensa qualquer construção narrativa rebuscada. O enredo é totalmente aleatório: um padre se enforca no cemitério de uma pequena cidade norte-americana; de acordo com um livro de demonologia escrito há quatro mil anos, isso abrirá as portas do inferno, os mortos retornarão da terra e tomarão o lugar dos vivos.

Em vez do enredo convencional de filme de zumbi, que mostra as pessoas se organizando para enfrentar os mortos-vivos, se dividindo em grupos, se armando e se isolando em locais seguros, tentando entender o motivo do apocalipse zumbi, brigando por conta das diferenças internas que surgem etc., o que se vê aqui é uma pura sucessão de cenas de horror intercaladas por diálogos mal dublados. Paranormalidade, bruxaria, psicanálise rasteira e enquete jornalística se embolam num enredo sem pé, nem cabeça. Não há roteiro propriamente dito, essa exigência supérflua que forjamos para atrelar o cinema às técnicas de narração herdadas do romance oitocentista. Tampouco há suspense, não se trata exatamente de um filme que dê medo ou provoque sustos. O que resta, então?

Resta a imagem. Mas a imagem em estado esclerótico, que desafia qualquer padrão de bom gosto e provoca uma intensidade estética patológica, capaz de agredir o olho – como acontece às personagens do filme, cujos olhos sangram quando veem a imagem repulsiva dos mortos-vivos. A representação escapa às premissas de coesão e unidade (Fulci não segue à risca a tradição formal do cinema clássico-narrativo), rompe com os expedientes figurativos do cinema “de qualidade” e transborda, expele sua massa pútrida. É mais que o gore já tornado trivial no cinema de horror: aqui há algo de experimental, quiçá de subversivo. A mise en scène não segue a cartilha da decupagem técnica: um campo-contracampo pode ser desenvolvido somente cortando dos olhos de um ator para os do outro, em planos curtos demais para uma cena de diálogo, mas longos demais para um enquadramento em primeiríssimo plano. A câmera frequentemente está mais perto do que deveria, transgredindo a boa distância, desfazendo o conforto do plano médio para expor o que comumente evitamos – o corpo decomposto, escarificado, carcomido por vermes. Todas as sequências descambam na visão dessa imagem irrefutável, imagem concreta, demasiado concreta do cadáver, do corpo putrefato – a imagem inescapável da morte, à qual todos se encaminham. O mundo cristão sempre tentou sublimar essa imagem-limite, a começar pela narrativa bíblica sobre o sumiço do corpo de Cristo e sua reaparição como imagem ressuscitada, imagem sem corpo, sem matéria, somente luz. O filme, porém, nega esse processo catártico e restitui à morte seu aspecto visível, tangível, orgânico, insuportavelmente presente.

É como se Fulci quisesse abrir a imagem e ver o que há dentro dela. O artista plástico Lucio Fontana rasgava, mutilava, esfaqueava as telas de seus monocromos. No filme de Fulci, é como se ele partisse desse mesmo princípio, com o acréscimo de que, desta vez, escorre sangue e vazam vísceras dos rasgos feitos na tela. Uma cena de um filme posterior de Fulci resume a proposta estética de todo seu cinema: em Aenigma, de 1987 (um filme ruim, fracassado, mas é nas obras fracassadas que os artistas mais se confessam), uma excursão escolar leva uma turma de adolescentes ao museu. Uma das meninas fica estagnada diante do quadro Massacre dos inocentes (1611), de Guido Reni, do qual começa a espirrar sangue, até cobrir o rosto horrorizado da menina. O páthos barroco da pintura extrapola os limites da representação e cai sobre o corpo de quem a contempla. A imagem afeta psíquica e fisicamente o espectador. Eis a única meta do cinema de Fulci.

Ao longo de Pavor na cidade dos zumbis, todas as hipóteses de agressão ou mutilação do campo visual são testadas: rachadura na parede (de onde vem a bruma que anuncia o retorno dos mortos), espelho estilhaçado, rosto perfurado, crânio esmagado. Na sequência-clímax, as personagens principais (dentre elas, um psicanalista) invadem uma cripta no cemitério, descem ao túmulo das imagens (ao inconsciente?), onde encontram – além da infinidade de ossos e cadáveres – as ruínas de Salem, sobre as quais foi construída a cidade em que o filme se passa. O passado desencavado está ligado, portanto, à histeria puritana de uma sociedade que sempre proscreveu os sujeitos considerados desviantes e os condenou à fogueira. Fulci devolve esse recalque na forma de uma violência plástico-icônica indigesta. São vários os momentos do filme em que uma massa asquerosa é regurgitada pelos corpos. Trata-se de deixar que o passado retorne em toda sua potência alucinatória. Um passado que inclui, obviamente, as imagens que o próprio cinema acumulou e estocou até o ponto da bulimia e do enjoo, quando não é mais possível armazenar esse conteúdo e ele é expulso por refluxo.

Não é mais questão de imaginar, de desejar ou de temer aquilo que ficou no campo cego, no fora de campo (essa reserva de suspense e medo com a qual o cinema de horror tradicionalmente joga), mas de testemunhar, no próprio centro do quadro, a irrupção da imagem abjeta, que desvia radicalmente o curso da representação. A imagem cede à pressão que agia sob sua superfície; as aparências visíveis transbordam, seu conteúdo desagradável é espremido. Resta-nos desviar o rosto, parar de olhar para a tela, num gesto instintivo de autodefesa do ego ameaçado de desintegração pela aparição inadvertida do abjeto, do informe. É isso ou continuar a ver.