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O efeito marmota

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FEITIÇO DO TEMPO (Groundhog Day, 1993), de Harold Ramis

 

O efeito marmota

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

O loop temporal

O primeiro semestre acabou e continuamos em casa. Os dias têm sido mais ou menos iguais, mais ou menos os mesmos. E não sabemos ao certo como e quando esse loop temporal terminará. Há quem diga que nossa rotina na quarentena se transformou num eterno “dia da marmota”, em alusão à inesquecível comédia Feitiço do tempo (Groundhog Day, 1993), de Harold Ramis, em que Bill Murray é um repórter televisivo que, por algum fenômeno inexplicável, fica revivendo o mesmo dia ad nauseam, sem entender como e quando poderá finalmente aceder ao dia seguinte, virar a página do calendário, move on.

Tudo o que Phil Connors (Murray) queria era passar o mais rápido possível por aquela data e por aquela cidade, Punxsutawney (pela qual tem enorme desprezo, conforme deixa claro para todo mundo), onde foi gravar uma matéria sobre a principal festividade local, o feriado da marmota. Mas uma nevasca o impede de sair e o obriga a pernoitar na cidade novamente. Ao acordar, percebe que o dia anterior está se reproduzindo nos mínimos detalhes, desde a música do despertador – “I Got You Babe”, da Cher, que, a partir de então, pontuará os incontáveis reinícios de sua angustiante prisão temporal – até as pessoas que encontra na rua e os acontecimentos que se repetem. O filme havia começado com Phil apresentando a previsão do tempo no telejornal da pequena emissora da Pensilvânia para a qual trabalha. Ironicamente, o repórter meteorológico, que descreve as condições climáticas para os dias seguintes e explica como se dá a mudança de tempo, a mobilidade dos fenômenos atmosféricos que conferem ao universo seu caráter sempre transitório, mutante, volúvel, em suma, é justamente esse “homem do tempo” quem agora sofre de uma disfunção temporal.

Diferentemente da personagem de Bill Murray em Feitiço do tempo, nós sabemos por que estamos há quatro meses parados no mesmo dia: as atividades presenciais foram suspensas e respeitamos o distanciamento social e a quarentena – e assim continuaremos. Sabemos, portanto, a causa do “efeito marmota” que aterrissou sobre nossas vidas, embora continuemos sem saber o quanto ele vai durar.

É possível refazer a história dos últimos quatro meses através dos filmes ou dos gêneros cinematográficos recorrentemente usados como metáforas para descrever as sensações despertadas pela pandemia. O começo foi a fase do cinema-catástrofe, das ficções apocalípticas e distópicas, especialmente aquelas mais diretamente relacionadas a um cenário de calamidade sanitária: Epidemia (Outbreak, Wolfgang Petersen, 1995), Contágio (Contagion, Steven Soderbergh, 2011) e outros filmes sobre mundos assolados por pandemias ou já devastados por elas (como o interessante Ao cair da noite [It Comes at Night, 2017], de Trey Edward Shults). Era um primeiro impulso: recorrer aos filmes que, de alguma forma, prefiguravam situações similares àquela que vivíamos. Naquele momento, de impacto inicial, predominava o tom alarmista da peste de proporções bíblicas. Infelizmente, o vulto da tragédia não desmentiu o pânico – pelo contrário, só o confirmou (no Brasil, com vários agravantes: negligência e incompetência de muitas autoridades, negacionismo amplamente difundido, desamparo das camadas da população mais vulneráveis).

A segunda fase foi a da assimilação gradativa do dia a dia limitado pelos protocolos de isolamento social. Saímos da narrativa épica, da trama de ação planetária, do filme-painel com dezenas de personagens espalhadas pelo globo (à procura da vacina ou só fugindo da morte) e entramos no cinema de enclausuramento e misantropia de Chantal Akerman: uma narrativa minimalista, de dilatação das horas, de ocupação do tempo com tarefas da casa (cozinhar, lavar louça, limpar o banheiro) e com outras atividades (profissionais ou não) encerradas no espaço doméstico, sem interação social imediata com ninguém que não habite sob o mesmo teto (para quem mora sozinho, nem isso), enquanto o mundo lá fora envia um ou outro sinal de vida pelas janelas – situações parecidas, enfim, com as das personagens de Jeanne Dielman (1975), L’homme à la valise (1983) e Là-bas (2006).

Mas havia a necessidade de continuar se sentindo produtivo, ativo, participando do mundo. E isso, em tempos de confinamento social e de expansão do virtual, significa ir para a frente do computador (se a porta para o mundo virtual já estava aberta, a pandemia a escancarou de vez). Textos, lives, vídeos, postagens, reuniões via Zoom, Jitsi, Google Meet. A vida virou um desktop movie permanente. Trocamos o sol pela luz invariável da tela do computador, que não faz distinção entre o dia e a noite. Outros ciclos circadianos se produziram, outros regimes de sono e vigília. Consolidamos um estado de indiferenciação temporal, próximo do “regime 24/7” já descrito há alguns anos por Jonathan Crary: “um tempo alinhado com as coisas inanimadas, inertes ou atemporais”, que estimula um novo cronotipo, convenientemente mais adaptado à realidade virtual – doravante convertida, para muitos, na única realidade vivida ou vivível.

Depois, na medida em que as semanas se esvaíam, notou-se que, para quem estava em quarentena, a percepção do tempo havia se alterado profundamente. “Que dia da semana é hoje?” tornou-se uma das perguntas mais frequentes. O sábado e a terça-feira nunca foram tão parecidos. Sem os marcos da rotina normal, sem o “arco dramático” das semanas, dos meses, do semestre, e sem muita variação dos acontecimentos, o tempo se transformou numa grande massa homogênea, com um estranho sentimento diário de déjà-vu se misturando a uma perda da noção de amplitude temporal. O passado se embolou (“foi há uma semana ou há um mês que vi aquele tal filme?”), enquanto o futuro ficou adiado por tempo indeterminado. Só restou a repetição alucinatória do presente, ou a experiência de um tempo tão contínuo quanto imóvel, tão fluido quanto monótono, sem dimensão retrospectiva nem prospectiva.

Foi em meio a essa perda parcial dos parâmetros habituais de duração e de organização da vida em trajetórias evolutivas que a referência a Feitiço do tempo começou a pipocar na imprensa, nas redes sociais, nos memes. E se o filme tem, de fato, alguma coisa a ver com a situação imposta pela pandemia, não é somente por conta do caráter repetitivo dos dias, mas também pela progressão psicológica dos sujeitos confinados, que ecoa as diferentes etapas vividas pelo protagonista de Feitiço do tempo: perplexidade (isso está mesmo acontecendo?), estranhamento, negação, euforia (finamente terei tempo para fazer tudo o que a rotina da vida normal impedia!), inconsequência (se o amanhã não existe, posso fazer do hoje o que bem entender), depressão, resignação etc. Até mesmo o enredo moral de Feitiço do tempo possui ressonância na realidade pandêmica: da mesma forma que o filme é uma parábola de regeneração – o protagonista, a princípio, é um sujeito cínico, arrogante e desagradável, mas ao longo do filme se torna gentil, altruísta e amável –, os mais otimistas esperam que a pandemia possa funcionar como um momento de reflexão para nos tornarmos seres humanos melhores.

 

O eterno retorno da marmota

Para além da comparação entre sua premissa narrativa e o tempo indiferenciado do atual confinamento, Feitiço do tempo é um filme que, realizado há quase trinta anos, não parece ter saído de moda: observa-se na produção audiovisual das últimas três décadas uma quantidade significativa de obras que reciclam a ideia central do filme de Harold Ramis, seja em alguns aspectos pontuais (como em Corra Lola, corra [Lola rennt, 1998], de Tom Tykwer, ou na série Westworld [2016], da HBO), seja na lógica de funcionamento total da narrativa (como em A morte te dá parabéns [Happy Death Day, 2017], de Christopher Landon, ou na série Boneca russa [Russian Doll, 2019], da Netflix).

Grosso modo, o que podemos chamar de efeito marmota é uma síndrome de encarceramento temporal ou de serialização repetitiva, que instila formas de complexidade narrativa curiosamente afeitas a um mundo que – mesmo com as realidades (atuais e virtuais) constantemente se bifurcando e se emaranhando em ritmo frenético, exponenciadas pelos padrões de velocidade e ubiquidade da era da hiperconexão – tende cada vez mais à estagnação, à repetição, ao eterno retorno do mesmo.

À guisa de entender melhor no que consiste o efeito marmota, e qual o seu legado para o cinema contemporâneo, é preciso se deter um pouco mais em Feitiço do tempo e analisar em que medida sua contribuição para as técnicas de narração foi original. Pois filmes com estruturas temporais calcadas na ideia de iteração e repetição – ou que retornam sub-repticiamente às mesmas situações, extraindo da própria insistência em repisar cenas repetidas uma possibilidade de variação e evolução narrativa – existem aos montes, sem necessariamente ter a mesma lógica de Feitiço do tempo. Assim, o que elenco a seguir são oito proposições que ajudam a definir o efeito marmota e a contextualizá-lo historicamente.

 

  1. O tempo se repete sem explicação.

Não há justificativa plausível nem pretexto científico ou pseudocientífico para os paradoxos temporais do efeito marmota. Não há os argumentos “aceitáveis” (máquina do tempo, conquista tecnológica) empregados nos filmes de viagem no tempo (De volta para o futuro, O exterminador do futuro). A razão pela qual Phil Connors fica preso no mesmo lugar (a cidade de Punxsutawney) e na mesma data (2 de fevereiro, o dia da marmota) é desconhecida. Ao final do filme, com a fábula moral já devidamente desenvolvida, podemos justificar o aspecto sobrenatural da trama à luz da lição de vida que a personagem precisava receber, um pouco na linha de filmes como A felicidade não se compra (It’s a Wonderful Life, Frank Capra, 1946), Click (Frank Coraci, 2006) e Os fantasmas contra-atacam (Scrooged, Richard Donner, 1988), este último estrelado pelo próprio Bill Murray. Mas o fato é que o efeito marmota, em última análise, é uma arbitrariedade narrativa.

Eis por que filmes que trazem uma explicação lógica para a prisão temporal – por mais fajuta que seja – só podem fazer parte da linhagem da marmota se considerados em termos relativos. É o caso de Como se fosse a primeira vez (50 First Dates, 2004), de Peter Segal, que apresenta uma justificativa médica para desenvolver sua história romântica sui generis: um homem (Adam Sandler) se apaixona por uma mulher (Drew Barrymore) que perdeu a memória de curto prazo devido a um acidente. Sempre que acorda, ela esquece de tudo o que ocorreu no dia anterior e sua mente restaura a configuração que existia até o dia do acidente, como se ainda estivesse parada naquele ponto preciso da linha temporal de sua existência, agora transformada num círculo vicioso. O efeito marmota em que ela vive é uma sequela psíquica de um traumatismo craniano. Há uma inversão interessante, que pode ter sido a fagulha ativadora da ideia do roteiro: em Feitiço do tempo, somente Bill Murray sabe que aquele dia está se repetindo, todas as demais personagens acham que o estão vivendo pela primeira vez; em Como se fosse a primeira vez, somente Drew Barrymore acha que está vivendo um dia inédito, todas as demais personagens sabem que ela está aprisionada numa estrutura de repetição.

Já o neo-slasher de Christopher Landon, A morte te dá parabéns, é um herdeiro legítimo da marmota: a jovem universitária que acorda todo dia na mesma data fatídica – o dia do seu aniversário, em que alguém está tentando matá-la – não encontra nenhuma explicação razoável para o seu distúrbio do tempo, tampouco para a perseguição insistente do assassino (e a explicação final é o ponto mais fraco do filme). Apesar da tola reviravolta do clímax, o filme é uma releitura divertida do slasher movie, o mais previsível subgênero do horror, no qual todo mundo sempre sabe o que vai acontecer (um serial killer colecionará vítimas), o suspense consistindo tão somente em descobrir como as mortes ocorrerão (em que circunstâncias, com que requintes de crueldade) e, principalmente, como serão filmadas. Em A morte te dá parabéns, a vítima é sempre a mesma, não há a famosa brincadeira macabra de body count típica dos slashers no estilo Sexta-feira 13. Não se trata mais de contar quantas pessoas morrem, mas quantas vezes uma mesma personagem é capaz de morrer dentro de um filme.

 

  1. O efeito marmota não é uma ruptura com a tradição narrativa clássica.

A narrativa de Feitiço do tempo é uma reinvenção, mas não uma negação da estrutura de relato do cinema clássico. O filme não só mantém, mas explicita, no fim das contas, aquilo que constitui a pedra de toque da narrativa clássica, isto é, o princípio de unidade: eleger uma ideia de partida e voltar sistematicamente a ela, explorar todas as suas possibilidades, como quem tenta enxergar todas as faces de um poliedro.

Uma narrativa clássica eficaz não é uma soma de várias ideias, mas a exploração sistemática de uma única ideia vista de diferentes ângulos. Em vez de acumular premissas narrativas que representem ideias distintas, é preferível se concentrar numa só premissa e buscar esgotar suas possibilidades de significação.

Mas, ao contrário do teatro classicista francês do século XVII (Corneille, Racine), que radicalizou o dogma aristotélico das três unidades (de tempo, espaço e ação), o cinema – arte da montagem, da possibilidade de variação contínua do ponto de vista, da “livre” mobilidade da instância narradora no tempo e no espaço – não costuma aplicar rigorosamente a lei da unidade espaço-temporal (exceto em experiências extremas, como Festim diabólico, de Hitchcock, concentrado num só cenário e narrado de maneira a fazer coincidir o tempo da película com o tempo da ação diegética). Em geral, o cinema prefere espalhar a ação por diversos lugares e proceder por elipses que lhe permitam avançar constantemente no tempo. Um filme de 120 minutos pode contar uma história que se passa em dias, semanas, anos ou décadas, basta manter uma ação dramática contínua conectando os diferentes lugares e épocas. Além disso, o agenciamento temporal da narrativa não obedece a uma fórmula fixa, constituindo-se por modulações que atendem às demandas internas de cada história ou estilo de narração. Daí que, num mesmo filme, um ano inteiro pode ser condensado numa montagem-sequência de dois minutos, ao passo que um único dia pode preencher todo o resto da narrativa.

O Dia da Marmota é uma espécie de paródia da regra aristotélica de unidade da fábula: só há uma coisa do que se ocupar no decorrer da narrativa, mas essa única coisa é filmada de todas perspectivas imagináveis, de modo que um dia se torna vários dias, uma personagem se desdobra em várias facetas, um mesmo acontecimento ganha inúmeras repercussões distintas, e assim por diante.

Em Storytelling in the New Hollywood, Kristin Thompson sublinha a estruturação clássica do filme, mas aponta um aspecto curioso: Feitiço do tempo “é um interessante caso de um filme clássico sem antagonista. […] Com efeito, para os propósitos da causalidade narrativa, Phil é literalmente seu pior inimigo – protagonista e antagonista num só pacote”. À medida que o novo Phil (bondoso, generoso) começa a vencer o velho Phil (ranzinza, egoísta), o horizonte da narrativa se esclarece: o inicial objetivo profissional de autopromoção (ele queria ser contratado por uma emissora maior) se troca pelo objetivo romântico de conquistar Rita (Andie MacDowell), a produtora que o acompanha a Punxsutawney. O conflito nasce do fato de que, para ele, aquele dia, na verdade, são vários dias, permitindo o tempo de crescimento natural de uma paixão – ao passo que, para ela, trata-se de um único dia, o que faz com que, na prática, Phil tenha apenas 24 horas para fazer Rita também se apaixonar por ele.

 

  1. O efeito marmota é um virtuosismo de roteiro.

Cada dia vivido por Phil – igual ao anterior, mas totalmente diferente – é como um novo tratamento de um mesmo roteiro. Numa versão, o final é feliz; na outra, trágico. Num dia, o protagonista age de forma egoísta e desencantada; no outro, revela-se benevolente e simpático.

Feitiço do tempo pertence a um momento da história do cinema repleto de filmes que brincam com a estrutura narrativa tradicional e contam com a cumplicidade do público – também ele à procura de novas fórmulas – para desafiar as leis da verossimilhança e até flertar deliberadamente com o inverossímil, mas tudo dentro de uma lógica interna irrefutável, que estabelece suas regras próprias e resulta em narrativas amiúde comparáveis a teoremas matemáticos, como alguns títulos já parecem anunciar: Seven (David Fincher, 1995), Os doze macacos (Twelve Monkeys, Terry Gillian, 1995), Amor em cinco tempos (5 x 2, François Ozon, 2004). Boa parte desses filmes marcou época, como Os suspeitos (The Usual Suspects, Bryan Singer, 1995) e o próprio Feitiço do tempo. São filmes escritos por uma geração de roteiristas surgida depois da publicação das dezenas de manuais de roteiro (Robert McKee, Syd Field) que invadiram o mercado editorial. Cientes das regras, dos clichês, das padronizações estilísticas, das leis que regem o mundo ficcional, esses roteiristas decidiram jogar com as variações possíveis, propondo histórias que partem de uma consciência reflexiva a respeito das principais ações do narrador (mostrar, sugerir, esconder, adiar).

Michel Chion chama atenção para o fato de que esses filmes que expõem a plasticidade da narrativa e do tempo, ou que brincam com as possibilidades oferecidas por um roteiro de opções múltiplas, não eram exatamente uma novidade – ele cita o exemplo de La Fête à Henriette (1952), de Julien Duvivier, que já utilizava procedimentos que reapareceriam em Adaptação (Adaptation, 2003), de Spike Jonze. As décadas de 1990 e 2000 apenas popularizaram essas narrativas assumidamente lúdicas, com o aval de uma nova cultura espectatorial que não mais exigia que se dissimulasse o aspecto formalista da experiência, naturalizando esses “roteiros interativos” (Chion) até mesmo nos gêneros mais populares e despretensiosos, como demonstram as comédias românticas De caso com o acaso (Sliding Doors, Peter Howitt, 1998) e Amores possíveis (Sandra Werneck, 2001).

 

  1. O efeito marmota é um reflexo da era do videotape.

Há um conto de Sérgio Sant’Anna em que um goleiro de futebol, depois de engolir um frango no clássico de domingo, fica assistindo ao replay do lance na televisão inúmeras vezes, na esperança ilusória de que, em alguma das repetições, ele consiga agarrar aquela bola. O mundo do vídeo e do computador criou esse desejo irrealizável de rebobinar a fita da vida em alguns momentos, ou de dar Ctrl + Z em algumas ações das quais depois nos arrependemos. Mas isso não existe na vida real.

O vídeo afetou também a forma como consumimos os filmes. Uma grande revolução nos hábitos espectatoriais se produziu nos anos 1980 com a popularização do videocassete e do consumo caseiro de filmes alugados nas videolocadoras ou gravados na TV. Nesse paradigma, um espectador pode não somente rever o filme quantas vezes quiser e na hora em que desejar (ou seja, emancipado dos horários programados nas salas de cinema e na grade televisiva), mas também selecionar uma parte, examinar uma cena em detalhe, saborear um momento isolado da narrativa, adiantar a fita para a sequência que lhe interessa, voltar e ver de novo uma parte mal compreendida (as tecnologias seguintes – DVD, Blu-Ray, streaming etc. – prolongariam esse paradigma, tornando essas operações cada vez mais cômodas e instantâneas). Esse novo espectador pode, segundo Chion, “navegar pelo tempo do filme” como quem trafega por um espaço. Ele não é mais dependente do tempo linear e contínuo ao qual antes estava subordinado pela projeção na sala de cinema ou pela transmissão num canal televisivo.

Mais ainda: no suporte do VHS, era comum que se reaproveitasse uma mesma fita durante anos, substituindo seu conteúdo esporadicamente, gravando um filme por cima do outro, trocando o registro de uma festa de família por um filme exibido na TV ou vice-versa. Os videocassetes permitiam ainda que se regulasse a velocidade de gravação da fita para que ela armazenasse duas, quatro, seis ou até oito horas de material (a qualidade da imagem, evidentemente, decaía à medida que se esticava o tempo). Com tudo isso, a matéria do tempo cinematográfico ficou mais à mão, parcialmente disponível à manipulação de quem assiste ao filme. O arranjo temporal de um filme anteriormente não passava por decisões do espectador: o tempo já vinha esculpido pelo filme (montado de uma forma que não podíamos refazer no momento do visionamento) e a duração de sua fruição era intrinsecamente controlada pela projeção/transmissão. Com o videocassete e as mídias que lhe sucederam, o espectador ganhou a possibilidade de reeditar o filme (caso quisesse), de tornar-se seu segundo montador, alterando a ordem das sequências, pausando, quebrando a continuidade, dividindo a experiência em duas ou mais sessões e transformando o longa-metragem em uma espécie de minissérie. Nascia uma nova gestão temporal da experiência espectatorial, que não tardou a afetar as formas como os próprios filmes eram pensados e realizados.

Feitiço do tempo é claramente um produto dessa desconstrução pós-moderna do tempo fílmico – e um dos mais interessantes, precisamente porque não coloca o assunto de forma óbvia, mas o internaliza como uma lógica já entranhada na nova sensibilidade temporal do espectador pós-VHS. Há apenas uma cena em que a fenomenologia da repetição propiciada pelo vídeo é mostrada diretamente: trata-se da cena em que Rita, através de monitores localizados na van do canal de TV, checa a gravação da cobertura de Phil para a festa da marmota (àquela altura do filme, já se trata, para Phil e para o espectador, da enésima gravação do mesmo evento). É a única vez em que o filme mostra a gravação da matéria jornalística, mas é o suficiente para incluir esse aspecto técnico do videotape – sua capacidade de reprisar a ação – como um dos elementos que constituem o estofo conceitual da narrativa de repetições cíclicas.

 

  1. O efeito marmota evoca o videogame.

Punxsutawney é como aquelas cidades que o usuário de jogos eletrônicos explora virtualmente, por meio de um avatar ou de um duplo digital. O filme é estruturado como as fases progressivas de um videogame. Phil perde algumas vidas, mas tem o direito de recomeçar o jogo do zero e tentar vencê-lo novamente. Na primeira vez, ele é pego de surpresa por algumas armadilhas do espaço. Quanto mais se familiariza com o jogo, porém, aprende a desviar dos obstáculos. Após dominar todas as regras e saber se deslocar com desenvoltura pelo espaço, chega à fase final e ganha o jogo. (Esse aspecto ainda poderia ser desenvolvido mais a fundo, caso eu entendesse melhor de videogames.)

 

  1. O efeito marmota é metacinematográfico.

Feitiço do tempo promove uma discussão metalinguística sobre a técnica cinematográfica. Sua premissa absurda abre espaço para toda uma reflexão indireta sobre os esquemas de repetição e diferença que marcam o processo de realização de um filme: várias diárias para uma mesma cena, várias tomadas para um mesmo plano, vários tratamentos para um mesmo roteiro. Kristin Thompson também o notou: “A repetição do Dia da Marmota chama a atenção da plateia para a prática comum de fazer múltiplos takes durante a gravação de um filme. Em Feitiço do tempo, nenhum plano é realmente repetido, mas vários planos são tão parecidos entre si que alguns espectadores podem inicialmente cogitar se o mesmo take está sendo reutilizado. Como resultado, o filme chama atenção para sua própria montagem e decupagem num grau inusual para um filme clássico”.

Esse elemento metacinematográfico produz efeitos cômicos, sobretudo nas sequências em que Phil, determinado a conquistar o coração de Rita, aprende qual é seu drink predileto, seu livro de cabeceira etc. Nas cenas que mostram seus esforços para impressioná-la, a montagem fica pulando diretamente de uma tentativa à outra: a gafe cometida numa noite é evitada na seguinte, a nova informação adquirida num dia é utilizada no seguinte e por aí vai. A série de planos em que ele tenta beijá-la pela primeira vez, sendo rechaçado sucessivamente, é o melhor exemplo de como a prática de refilmagem do mesmo plano em diferentes pontos de vista alternativos é satirizada pelo filme.

Vivendo no abandono (Living in Oblivion, 1995), de Tom DiCillo, que foi um dos primeiros filmes a seguir o legado de Feitiço do tempo, é justamente o que mais explicita o aspecto metafílmico do efeito marmota, situando sua narrativa no contexto de uma filmagem e criando um dispositivo de mise en abyme. Assistimos a três versões diferentes de uma diária caótica no set de um filme independente, de baixo orçamento. As duas primeiras correspondem a pesadelos do diretor e da atriz principal, respectivamente. A terceira é como se fosse a filmagem “real”, que, ironicamente, consiste na gravação de uma sequência de sonho do filme dentro do filme.

No cinema de Hong Sang-soo, o jogo é mais complexo. Ele sempre gostou de operar por estruturas repetitivas, repondo a mesma situação duas ou mais vezes num mesmo filme, a fim de que as variações se sintam como expressões manifestas do pensamento que preside à construção formal da obra. Turning Gate (2002), Conto de cinema (2005), Mulher na praia (2007), Like You Know It All (2009), Hahaha (2010), The Day He Arrives (2011), A visitante francesa (2012), Você e os seus (2016), Na praia à noite sozinha (2017): em todos esses filmes há momentos em que uma sequência parece repetir outra já ocorrida, mas com alterações que mudam tudo.

Em Certo agora, errado antes (Jigeumeun Matgo Geuttaeneun Teullida, 2015), o espelhamento criado por Hong entre as duas metades do filme é tão calculado que, num primeiro momento, hesitamos diante da hipótese de o filme ter recomeçado inadvertidamente. Somente depois surgem as mudanças sutis – desde o ponto de vista da câmera até objetos de cena mudados de lugar, desde palavras suprimidas ou acrescentadas no diálogo até ações inteiras que se modificam – que nos informam que o filme se repete, sim, mas somente para encontrar a diferença. O que vemos em Certo agora, errado antes é um mesmo dia reprisado duas vezes, com desdobramentos bem diferentes em cada uma delas. O que Hong cria a partir do efeito marmota é muito mais do que um virtuosismo narrativo: é uma reflexão sobre a lógica profunda das escolhas na vida – que decisão tomar, que atitude assumir, por que trilhar esse caminho se aquele também parece justo – e no cinema – qual take escolher, qual descartar, por que filmar assim e não daquele outro jeito, por que essa atriz e não aquela, por que o plano-sequência e não a montagem.

 

  1. O efeito marmota é um fenômeno de high concept.

O high concept é um traço característico da era do pitching, que, por sua vez, é um sintoma da volatilidade do mercado global.

O pitching é uma estratégia de venda de ideias. Você tem alguns minutos, às vezes alguns segundos, para convencer um produtor ou patrocinador a investir em seu filme. É melhor que a ideia caiba em uma única frase concisa, cativante e original. O produtor que ouvirá sua ideia provavelmente já fez cinquenta e cinco reuniões com outros roteiristas antes de você chegar (situação debochadamente representada no início de The Player, de Robert Altman). É recomendável que seu projeto tenha um apelo de impacto imediato. Você precisa acertar o alvo numa tacada certeira, sem segunda chance. O pitching aproxima o cinema da publicidade. Não é de espantar que o high concept, projeto de perfil essencialmente publicitário, seja parceiro do pitching. Qual a forma mais eficaz de despertar o interesse de investidores impacientes que concedem trinta segundos de sua atenção para que alguém lhes traga uma ideia original, com real potencial de mercado? “O filme começa mostrando a vida de um homem de meia-idade em crise existencial depois de ter…”. Próximo! “Um rapaz tem como melhor amigo um urso de pelúcia que fala, canta em karaokê e fuma maconha”. Aí sim!

O pitching fez com que proliferassem filmes que partem de ideias extravagantes e absurdas, ou que simplesmente podem ser explicados por um slogan de impacto. Na edição de dezembro de 2012 dos Cahiers du Cinéma, Stéphane Delorme, lamentando o fato de o pitching ter extrapolado o reduto mercadológico para invadir também o cinema autoral, dizia o seguinte: “O pitching, simplista por essência, só serve para reduzir um projeto a uma fórmula-choque encarregada de seduzir de imediato qualquer investidor em potencial. […] Nos festivais de Cannes ou de Rotterdam, o financiamento do cinema de autor funciona à base de encontros-relâmpago entre financiadores, produtores e realizadores: o pitch-dating está para o cinema assim como o speed-dating está para o amor. […] O drama do cinema de autor hoje são todos esses filmes de uma só marcha. Ora, um filme só se sustenta se ele troca de marcha sucessivamente”.

Kristin Thompson, que também trata a “pitch idea” e o high concept como fenômenos cúmplices, afirma, no entanto, que essa tendência tem pouco a ver com o declínio do cinema de autor ou com a superação do cinema clássico. Ela acredita que o high concept seja, em parte, uma transposição para as produções de grande orçamento das fórmulas extravagantes que antes só se viam nos filmes de série B. E essa elevação dos gêneros B para o patamar do filme de alto orçamento foi um dos legados da geração mais autoral de Hollywood (aquela de Spielberg, Scorsese, De Palma, Friedkin etc.). O high concept, segundo Thompson, apenas comprova que, se aplicado com habilidade e eficiência, o sistema clássico pode justificar até mesmo as premissas narrativas mais insanas. Para ela, trata-se de uma “intensificação de certos elementos do antigo sistema, resultante do crescimento exponencial dos custos de produção dos filmes e da imprevisibilidade do mercado exibidor. […] a simplicidade e clareza oferecidas pelas narrativas de high concept, mais do que propor alternativas, conformam-se aos princípios clássicos. Tais narrativas podem ser condensadas num simples sumário precisamente porque qualquer um que leia ou ouça esse sumário pressupõe que ele será desenvolvido usando os princípios tradicionais de causalidade linear, dupla linha narrativa [double plotlines], motivos unificadores e todo o restante do sistema clássico”. A prova seria justamente Feitiço do tempo: o high concept apenas lhe serve para intensificar os elementos que fazem de sua narrativa um exemplo bem sucedido de renovação (mas não de abandono) da estrutura clássica.

No manifesto anti-pitching de Delorme, lê-se que: “Seria necessário restituir todo seu sentido à ideia de narração: a narração não é o desdobramento de uma narrativa única e pitchável: que tédio! Ela é uma máquina de pensamento que monta conjuntamente os tempos, os possíveis e as vidas”. Esta última frase poderia muito bem ser usada para comentar a narrativa (em várias marchas) de Feitiço do tempo: filme de high concept, se assim quisermos, mas certamente um filme que não se reduz à pobreza publicitária da pitch idea.

 

  1. O efeito marmota é uma compulsão de repetição.

Dentre as situações em que Freud observou a compulsão de repetição (Wiederholungszwang), figuravam os casos de pesadelos recorrentes, vinculados a traumas psíquicos. A tendência repetitiva, que impede o sujeito de sair da experiência traumática e seguir adiante, acusa a angústia de não poder voltar no tempo e restabelecer a situação anterior ao trauma. Na impossibilidade de retornar ao momento pré-traumatismo, o indivíduo fica paradoxalmente preso na vivência reincidente do que lhe causa dor. A cura só é possível a partir do momento em que se modificam as condições internas das quais se origina a tensão excessiva, produtora da repetição.

Em Feitiço do tempo, Phil, em certa medida, está revivendo o mesmo pesadelo sucessivamente. As diversas cenas em que ele acorda com o despertador e a música da Cher são versões cômicas da típica cena de filme de terror em que a personagem acorda após ter o mesmo sonho ruim pela quinquagésima vez. A cena em que Phil engole uma guloseima atrás da outra, sob o olhar reprovador de Rita, que não compreende a motivação daquele comportamento autodestrutivo, também configura um autêntico ato compulsivo. Phil só conseguirá escapar do ciclo repetitivo quando resolver internamente as tensões e conflitos que constituem sua personalidade amargurada. Por um lado, Phil quer voltar à vida normal, antes de chegar a Punxsutawney e ficar indefinidamente preso na repetição do mesmo dia. Por outro, quer saltar para um futuro em que já esteja empregado numa emissora de maior prestígio. Ou seja, ele quer tudo, menos o presente. E é por rejeitar o presente que ele fica condenado a revivê-lo exaustivamente.

Nós também gostaríamos de ainda estar no mundo de outrora, ou de já ter pulado para o futuro, para o momento posterior ao fim da pandemia. Não por acaso, há muitos relatos de pessoas que desenvolveram compulsões de repetição durante a quarentena. Uns se empenharam em aprender uma receita nova por dia, cozinhando pratos cada vez mais elaborados, fazendo mais comida do que são capazes de consumir. Outros adquiriram paranoia higiênica, repetindo hoje a faxina já realizada ontem, tornando-se psicologicamente alérgicos a qualquer miligrama de sujeira. Outros não param de comprar coisas pela internet para recebê-las em casa. Outros acompanham avidamente dezenas de podcasts e cursos on-line. Outros se aprimoram obsessivamente nas técnicas de ioga. Outros remanejam os móveis da casa de dois em dois dias. Outros, incluindo quem vos escreve, veem filmes e séries em looping.

Ainda que estejam inextricavelmente ligados à realidade derivada da pandemia, e que reforcem essa realidade a cada nova repetição, esses comportamentos são sintomas de uma tentativa de se reconectar com uma realidade anterior – como todo sintoma, eles possuem um nexo cindido entre a manifestação sensível do efeito e sua causa. Recalcado nesses atos, jaz o desejo de restaurar o mundo pré-pandemia. Mas, como tantos já disseram, esse mundo não existe mais, e a verdade é que precisaremos superar essa fase e reinventar nossas vidas.