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Memória e história

 

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ANGÚSTIA (The Locket, 1946), de John Brahm + VIOLAÇÃO DE CONDUTA (Basic, 2003), de John McTiernan

 

Memória e história

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

O retorno do reprimido

O flashback, ou o retorno a eventos situados no passado da ação diegética, é um dispositivo narrativo bastante conhecido de qualquer pessoa que tenha uma mínima familiaridade com a linguagem cinematográfica. Há, inclusive, dentre os filmes mais marcantes da história do cinema, uma enorme quantidade de narrativas inteiramente articuladas através de eventos passados, trazidos ao presente da narração por meio de flashbacks. É o caso de Cidadão Kane (Orson Welles, 1941), de O bígamo (Ida Lupino, 1953), de Carta de uma desconhecida (Max Ophüls, 1948), de Era uma vez na América (Sergio Leone, 1984), de Fedora (Billy Wilder, 1978), de O diabo disse não (Ernst Lubitsch, 1943), sem falar de praticamente toda a filmografia de Joseph L. Mankiewicz. O procedimento narrativo em si não exatamente nasceu com o cinema, pois a literatura e o teatro já usavam técnicas similares. Mas a etimologia do termo parece derivada da velocidade instantânea (flash) com que a montagem cinematográfica consegue cortar de um espaço-tempo para outro e transportar o espectador de volta (back) para o passado.

Maureen Turim, em sua obra de referência sobre o flashback no cinema (Flashbacks in film: memory and history), define-o, em linhas gerais, como “uma imagem ou um segmento de filme entendidos como representações de ocorrências temporais anteriores àquelas contidas nas imagens que os precederam. O flashback diz respeito a uma representação do passado que intervém no fluxo presente da narrativa fílmica”.

Cunhado na virada entre os séculos XIX e XX, o termo evoca noções modernas de velocidade, movimento, energia e relatividade das posições de espaço e tempo, bem como as teorizações dos processos mentais pela nova psicologia da época. Ao longo do século passado, a expressão ganhou o léxico popular. Fala-se de flashback para se referir a uma lembrança súbita desencadeada por algum acontecimento presente (“ouvindo você falar disso acabei de ter um flashback da minha infância…”). Ou para descrever o retorno tardio dos efeitos de uma experiência com LSD ou outra droga (o próprio vocabulário médico já incorporou a expressão “drug flashback”). E por aí vai. De acordo com Turim, o uso coloquial do termo indica uma das formas pelas quais a cultura popular do cinema afetou a maneira como as pessoas pensam e descrevem suas próprias experiências.

O flashback cinematográfico corresponde, em certa medida, ao que as teorias estruturalistas e semiolinguísticas chamam de “analepse”, isto é, um movimento que vai do presente para o passado narrativo, podendo ser interno (quando a narrativa retorna a um passado que permanece dentro do arco temporal abarcado pelo resto da história – repetição de eventos já narrados previamente ou representação de algo que havia sido pulado por uma elipse) ou externo (quando volta a um passado situado num período anterior àquele em que o filme começou). Os filmes muitas vezes utilizam o flashback como forma de ilustrar processos psíquicos (memória, trauma, retorno do reprimido) ou circuitos hermenêuticos (alguns flashbacks envolvem diretamente a procura pela resposta a um enigma colocado no começo da narrativa).

Nos melodramas psicológicos, sobretudo aqueles realizados em Hollywood nos anos 1940, o flashback é comumente associado à estrutura psíquica de personagens femininas com um trauma e à espera de uma cura, ou seja, de uma libertação desse passado perturbador. Eis um enredo típico do que se convencionou designar como woman’s film, um filão do cinema clássico hollywoodiano nascido do cruzamento entre o romance gótico (com suas heroínas aprisionadas na torre do castelo ou no calabouço, reprimidas por maridos ciumentos e psicóticos), alguns motivos herdados do expressionismo alemão (iluminação contrastada, cenários repletos de sombras, radiografias de almas atormentadas) e certa vulgata freudiana (os escritos de Freud haviam se popularizado e se tornado a bíblia de muitos roteiristas).

Angústia (The Locket, 1946), de John Brahm, é um curioso espécime dessa voga de melodramas psicológicos da década de 1940. O filme empreende uma descida gradativa ao passado, percorrendo diferentes camadas de tempo, puxadas por flashbacks que se esgalham a partir de outros flashbacks. Em determinado momento, há três níveis de passado sobrepostos: dentro do primeiro flashback, começa um segundo, e dentro deste, um terceiro. É como se a estrutura do filme se inspirasse numa boneca russa. No centro de tudo, um objeto simbólico: o medalhão (locket) que a protagonista feminina do filme, Nancy, ganhou de sua melhor amiga na infância, mas lhe foi tirado traumaticamente, com o agravante de uma subsequente acusação infundada de que ela o havia roubado. O flashback da infância de Nancy é a mais profunda camada de passado do filme, que depois refaz o caminho de volta ao presente, subindo cada degrau de tempo de uma vez, até retornar ao ponto de partida. A estrutura narrativa se articula como uma transposição fílmica da tópica psíquica e de alguns dos processos mentais estudados por Freud (fetiche, fantasia, recalque, neurose), mas sem qualquer rigor científico.

No começo do filme, Nancy está prestes a se casar com um homem rico, que recebe a visita de um psicanalista que alega ser o antigo marido dela. O psicanalista conta uma história sobre o passado da moça, na tentativa de dissuadir o homem de cair na mesma armadilha que ele e outros caíram, a exemplo de Norman, artista temperamental que também tivera um relacionamento com Nancy – e que, no flashback narrado do ponto de vista do psicanalista, introduz um outro flashback, relacionado à sua história pessoal com Nancy. A mulher é vista, portanto, pelo prisma negativo da mentira e da dissimulação. Ela é um ser doente, que esconde sua perturbação psicológica por trás de uma sedutora superfície decorativa exterior. Se olharmos de perto, a verdade é que Nancy está aprisionada numa rede de misoginia e de preconceito de classe, que o filme reproduz com alguma dimensão crítica, mas muito implícita – a ideologia patriarcal sai ilesa, no fim das contas.

Depois do trauma da infância, Nancy se tornou cleptomaníaca, roubando joias valiosas não pelo dinheiro, mas para fazê-las desempenhar o papel de substituto simbólico do objeto perdido. E o que esse objeto – um colar com um diamante protegido dentro de um pequeno estojo em forma de coração – realmente representa? O que ele tranca (lock) dentro de si, e que não pode ser aberto? Ora, dois grandes fantasmas da sociedade patriarcal: o outro de classe (Nancy era filha da empregada da casa em que sua melhor amiga de infância morava) e o desejo sexual feminino. O que as demais personagens do filme lutam para abafar e conter a todo momento é o desejo de ascensão social de Nancy, o desejo de ser igual à amiga – ou talvez até o desejo de desejá-la. O flashback da infância evidencia ainda a semelhança física entre Nancy e a menina rica, quase idêntica a ela. Possuir o medalhão é ocupar outra posição social e tornar-se um duplo da amiga, o que o filme reforça no final ao nos revelar que a amiga morreu e que o homem com que Nancy está para se casar é o irmão da morta, sugerindo, nesse encaixe de duplos (Nancy vai desposar o irmão da menina de quem ela era sósia na infância), uma espécie de incesto por procuração. Quando a mãe da menina rica obrigou Nancy – na cena traumática da infância – a devolver o colar e a expulsou de sua casa, ela estava reprimindo o desejo de ascensão social da menina, além de bloquear o aprofundamento do seu envolvimento com a filha, que ela possivelmente temia possuir um fundo sexual. Maureen Turim assinala que “a mãe má, a barreira definitiva de diferença de classe e a interrupção da homossexualidade infantil são os elementos que envolvem o colar e sua perda. O colar opera no código simbólico da narrativa para inscrever os paradigmas de troca, barreiras, sexualidade e oposição de classe social”.

Mas o filme distorce suas premissas psicanalíticas e mantém a mulher como figura mistificada, como fica evidente no quadro de Norman para o qual Nancy posa como modelo: uma representação pictórica da personagem mitológica Cassandra, profeta da destruição e tachada de louca. Submetida aos estereótipos do imaginário patriarcal, Nancy encarna o “mistério feminino” e o medo do homem de ver sua posição na sociedade ser ameaçada pela ascensão da mulher – um medo que permeava o mundo ocidental nos anos seguintes à Segunda Guerra, já que, na ausência dos homens recrutados para a batalha, as mulheres tinham assumido posição de liderança na família e em alguns ambientes de trabalho. Ao estigmatizar a personagem feminina no papel de louca ou adoecida (há toda uma galeria de woman’s films que giram em torno de mulheres acamadas, física e/ou psicologicamente debilitadas, sendo curadas por médicos ou psicanalistas que se apaixonam por elas), o melodrama psicológico dos anos 1940 muitas vezes revela – nem que seja na chave do sintoma, das contradições internas do texto fílmico – a ansiedade masculina de reconstruir a pirâmide do patriarcado (relativamente abalada pelos anos da guerra).

Analisando o “discurso médico” dos melodramas femininos dessa época, Mary Ann Doane afirma que “a vertigem textual de Angústia não decorre apenas de sua estruturação como uma série de flashbacks, mas também do considerável questionamento da autoridade dos narradores masculinos e da incapacidade do filme de decidir se a mulher é louca ou enlouquecedora. Pois Nancy é aparentemente uma tabula rasa: os homens inscrevem nela o que querem, com base em suas fantasias e desejos. […] Mas a autoridade ou credibilidade dessas narrativas é severamente comprometida pelo fato de que cada um desses homens é conduzido à loucura, tornando-se neuróticos ou psicóticos” (cf. The desire to desire: the woman’s film of the 1940s, p. 58). Mais adiante, Doane conclui: “o que é chocante em Angústia, depois que o engavetamento de flashbacks faz aflorar o processo de narração como uma construção, é que a imagem [de Nancy como Cassandra] permanece verdadeira, e somente em aparência servira como suporte de uma subjetividade masculina distorcida” (p. 59, grifo meu). Cumpre notar que, no lugar dos olhos da figura de Cassandra/Nancy, Norman pintou dois globos opacos: a personagem à qual a mitologia atribui o dom da presciência é figurada por ele como cega – não devemos acreditar no que ela afirma ver. “Angústia oferece uma demonstração textual da ideia obsessiva de que a loucura de uma mulher é contagiosa e ameaça desestabilizar o próprio processo de narratividade” (Doane). Mas o que o melodrama noir da década de 1940 involuntariamente acusa, no fim das contas, como Doane e outras críticas feministas (E. Ann Kaplan, Julianne Pidduck) demonstraram, é a instabilidade do sujeito masculino, que expurga sua ansiedade por meio de intrigas repletas de flashbacks e torções labirínticas, como que para desvendar o segredo feminino que o atormenta, e que não é nenhum segredo, apenas mistificação.

 

O efeito Rashomon

No filme Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, uma mesma história (que envolve o ataque de um bandido a um samurai e sua esposa) é contada pelos participantes do acontecimento e por diferentes testemunhas externas, sempre de um ponto de vista conflitante com o anterior e mostrado por meio de flashback. A cada variação da história, os acontecimentos mudam de estatuto: o que um narra como estupro se torna sexo consentido na versão do outro, e depois volta a ser estupro na versão seguinte; o que uma primeira testemunha descreve como assassinato reaparece como suicídio na descrição de outra testemunha, e assim por diante. Rashomon constitui, nas palavras de Maureen Turim, “uma investigação paradigmática sobre a verdade e suas representações”, incluindo momentos de diálogo filosófico sobre os limites da compreensão humana.

Ao lado de Cidadão Kane, Rashomon é o filme cuja estrutura de flashbacks mais rendeu comentários críticos e teóricos. Criou-se até a expressão “efeito Rashomon”, usada não apenas nas teorias narratológicas do cinema, mas também no vocabulário jurídico. Grosso modo, trata-se da relativização do ponto de vista sobre um evento, devido à proliferação de versões divergentes, que ressaltam o papel da subjetividade na percepção do mundo e apontam uma crise da noção de verdade tipicamente moderna (ainda que Rashomon seja ambientado no fim do período Heian da história medieval japonesa). Além disso, como Turim destacou, o filme de Kurosawa pode ser visto como um jogo desconstrucionista que expõe e problematiza os próprios mecanismos da ficção cinematográfica e de seu espetáculo ilusionista.

O impacto de Rashomon na história do cinema é facilmente rastreável através de um sem-número de filmes que retomam sua estrutura narrativa. Se nos ativermos à produção recente (ou relativamente recente), encontraremos um dos empregos mais interessantes do “efeito Rashomon” em Violação de conduta (Basic, 2003), último filme realizado por John McTiernan antes da hibernação forçada por seu imbróglio com o FBI – ele foi acusado de realizar escutas ilegais durante a preparação de seu filme anterior, Rollerball, e chegou a cumprir um ano de prisão.

Violação de conduta, ironicamente, gira em torno de uma investigação. No começo do filme, o temido sargento West (Samuel L. Jackson) leva sua tropa para um exercício de treinamento numa floresta tropical perto do Canal do Panamá. Uma forte tempestade cai, prometendo se transformar em furacão, mas West considera o obstáculo climático uma motivação a mais para o treinamento. O sargento divide a tropa em duplas, explica as regras do jogo, avisa que estará monitorando cada passo do procedimento e promete sadicamente que se vir alguém fazendo “corpo mole” fará essa pessoa nadar pelo canal. Antes que o exercício comece, no entanto, há um fade-out e a introdução da cartela com o título do filme. Em seguida, vem uma tomada aérea da floresta e, sobreposta à imagem, a informação: “17 horas depois”. Informa-se também a data emblemática: “2 de novembro, dia de finados”.

A trama investigativa que se segue consiste na busca pela elucidação do que aconteceu naquelas dezessete horas engolidas pelo filme numa elipse arbitrária, com claro efeito retórico. O que se sabe de início é que, nesse ínterim, quase toda a equipe de treinamento morreu, incluindo o sargento West. Os dois únicos sobreviventes se recusam a prestar depoimento. O chefe da investigação aciona, então, Tom Hardy (John Travolta), ex-militar que agora trabalha como policial na divisão de narcóticos. Apesar da má reputação (alcoólatra, indisciplinado e possivelmente corrupto, suspeito de receber propina de traficantes locais), Hardy é reconhecido por sua rara habilidade como interrogador, sobretudo em circunstâncias extraordinárias, como a que se configura. Ele terá de conduzir os interrogatórios em companhia de Julia Osborne (Connie Nielsen), jovem oficial do exército com perfil oposto ao dele: militar regrada, metódica, adepta da disciplina profissional e da transparência de conduta.

Os eventos fatídicos serão narrados sempre de forma retrospectiva e pelo ponto de vista subjetivo de quem os relata para Osborne e Hardy. Terá início um jogo de mentiras, disfarces e reviravoltas (um carnaval de peripécias, de plot points), com o flashback constituindo a principal ferramenta narrativa do filme.

Os vivos e os mortos

John McTiernan teve um início de carreira meteórico, tornando-se rapidamente – após o sucesso de Predador (Predator, 1987), que era apenas seu segundo longa-metragem – um dos mais prestigiados diretores de ação de Hollywood. Com Duro de matar (Die Hard, 1988), veio a consagração geral, que, entretanto, seria precocemente abalada com o fracasso retumbante de O último grande herói, lançado com pompa em 1993 (a expectativa era de que fosse o maior blockbuster daquele ano), mas terrível e injustamente massacrado tanto pelo público quanto pela crítica. O retorno à franquia Duro de matar em 1995, quando dirigiu o terceiro filme da série, ainda o reabilitaria parcialmente. Mas a desconfiança dos produtores já fora irreversivelmente conquistada (história recorrente em Hollywood, que exila seus prodígios com a mesma facilidade com que os torna milionários).

Em Violação de conduta, McT se dedica a um trabalho de desconstrução do paradigma de action movie contemporâneo que ele próprio ajudou a consolidar no final dos anos 1980. A ação na selva lembra momentos de Predador, mas as diferenças já começam pela substituição do inimigo externo (um alienígena, mais precisamente) por uma cadeia de revelações relacionadas a assuntos internos: rivalidades entre os membros da tropa, disputa de hierarquia e ego, diferenças pessoais, conflitos éticos e étnicos, descoberta de esquemas de corrupção no alto escalão militar. A estrutura em flashbacks e a enorme elipse que ocultou nada menos que o acontecimento capital da narrativa, por sua vez, parecem propor um esquema de ação diametralmente inverso ao de Duro de matar. O diretor se mostra não só consciente do seu legado, mas disposto a contrariá-lo provocativamente.

Duro de matar lapidou a fórmula por excelência dos filmes de ação de sucesso dos anos 1990 (a exemplo de Velocidade máxima [Speed, 1994], dirigido por Jan de Bont, que assina a fotografia de Duro de matar), antecipando também a dinâmica de ação transcorrida “em tempo real” que a série 24 horas – no auge de sua popularidade na época em que Violação de conduta foi realizado – levaria à exaustão.

Um aspecto marcante de Duro de matar – já salientado por Michel Chion e outros teóricos interessados na história do diálogo telefônico no cinema – é seu uso constante de ferramentas de telecomunicação (telefone, walkie-talkie, rádio de polícia), que compensam a restrição espacial da ação através da articulação de localidades estanques, intercaladas pela montagem sob o pretexto da mediação tecnológica da conversa. Em sua brincadeira de recusa dos artifícios de Duro de matar, Violação de conduta sabota a comunicação a distância já desde o início: assim que os soldados descem do helicóptero e se embrenham na selva, seus rádios param de funcionar. Os diálogos ficam limitados às situações de encontros presenciais, de tête-à-tête, principalmente na casamata que havia sido estabelecida como local de reagrupamento da tropa ao final do exercício, e que se torna o palco dos confrontos dramáticos que se produzem em diferentes versões e combinações, à medida que os relatos das testemunhas se altercam ou se contradizem (A e B contra C; B e C contra A, D e E; D, A e C contra E e B etc.). Se o telefone e seus pares (walkie-talkie, interfone, troca de mensagens por celular) criaram uma forma dialógica praticamente talhada para o cinema – a conversa telefônica é uma espécie de montagem paralela: uma ação espacialmente dividida, mas temporalmente simultânea –, McTiernan os rejeita para devolver os diálogos de Violação de conduta ao teatro, ao jogo cênico travado no corpo a corpo entre os atores, nas trocas de olhares, na leitura facial, na performance postural.

Na narrativa vertical de Duro de matar, materializada no arranha-céu em que praticamente todo o filme se passa, a unidade espaço-temporal da ação era fundamental. Quase tudo acontecia no mesmo espaço e, principalmente, no mesmo tempo presente. Nada de elipse e, muito menos, de flashback – as duas molas-mestras de Violação de conduta. De certa forma, o filme de 2003 desmembra o monolito narrativo de Duro de matar: o vaivém entre presente e passado – e entre o refeitório (onde uma das testemunhas é interrogada) e o hospital (onde a outra testemunha sobrevivente está internada em estado grave) – desfaz a unidade espaço-temporal da ação, que a maliciosa elipse imposta no começo, na verdade, já havia impossibilitado.

No Dicionário teórico e crítico de cinema de Jacques Aumont e Michel Marie, lê-se que uma elipse ocorre “cada vez que uma narrativa omite certos acontecimentos pertences à história contada, ‘saltando’ assim de um acontecimento a outro, exigindo do espectador que ele preencha mentalmente o intervalo entre os dois e restitua os elos que faltam”. Michel Chion, em Écrire un scénario, fala de “omissões voluntárias de um fragmento da história, de um momento ou de um detalhe particular – omissões que o espectador pode completar mentalmente ou não”. Ele divide as elipses entre uma função apenas rítmica ou seletiva – eliminando momentos de transição, tempos mortos ou sobras de ação que não acrescentam muito ao enredo, de modo a tornar a narrativa mais ágil e menos enfadonha ou cansativa – e elipses que trabalham mais incisivamente sobre um agenciamento de informações importantes, que muitas vezes são temporariamente negadas ao espectador para gerar lacunas especulativas, reservas de suspense e surpresa, possibilidades de iluminações reveladoras. André Gaudreault e François Jost afirmam que “a elipse corresponde a um silêncio textual (e, portanto, narrativo) sobre certos eventos que, na diegese, supõem-se que tenham, todavia, ocorrido”. Esse evento pode, no menor dos casos, consistir num simples escoamento do tempo diegético (suprime-se uma parte da estrutura temporal da narrativa sem importância para a compreensão do filme), mas, no outro extremo, pode se tratar de uma ação essencial ao desenvolvimento da intriga. O film noir dos anos 1940 jogou frequentemente com esse segundo tipo de elipse: preencher a lacuna deixada em branco pela narrativa em determinado momento crucial se tornava o equivalente a desvendar o mistério da trama.

Geralmente, fala-se de elipse em referência a eventos temporais, mas há também as elipses espaciais, que Jacques Gerstenkorn prefere chamar de “elipses mostrativas” (restrição do campo visual operada pelo enquadramento, que impede que se veja o que se produz no fora de campo), diferenciando-as das “elipses narrativas” (de ordem mais temporal que espacial).

Na retórica verbal, segundo Pierre Fontanier, a elipse se encontra no rol das figuras de construção que usam a estratégia do “subentendido”: a elipse consiste na supressão de palavras que seriam necessárias à plenitude da construção, mas que podem ser excluídas sem prejuízo para o entendimento geral da frase. No cinema, em se tratando de narrativa e não de discurso, a questão da elipse adquire uma pertinência narratológica que já era familiar aos teóricos da literatura (Gérard Genette lhe dedicou um estudo detalhado em Figures III).

Em suma, podemos dizer que a elipse cinematográfica omite do relato um certo número de elementos, tais como planos e cenas, que fazem parte do desenvolvimento lógico da ficção, mas são pulados, seja porque julgados prescindíveis à sua compreensão, seja para criar suspense ou jogar com a dúvida, ou ainda para tornar a narrativa descontínua e disjuntiva (como nos filmes de Alain Robbe-Grillet e Jean-Luc Godard, em que as elipses não requerem que o espectador as preencha mentalmente, mas estão lá para serem sentidas como faltas, quebras da transitividade narrativa). Nem toda elipse constitui efetivamente uma ausência: a elipse ordinária, que existe tão somente para fazer a narrativa andar e evitar demoras inúteis ou hiatos insignificantes, não é sentida como privação de algo especial. Somente a figura elíptica marcada por uma intencionalidade – uma vontade expressa de dissimulação por parte do narrador – pode ser alvo de inquietação ou dúvida, dando ao espectador o sentimento de frustração ou, mais comumente, preparando-lhe uma surpresa. É desta segunda modalidade de elipse que John McTiernan se serve em Violação de conduta.

A questão da elipse, evidentemente, é inseparável da noção de ponto de vista no cinema, sobretudo em seu aspecto de focalização narrativa (quem é o foco da narração? Um narrador onisciente? Uma das personagens? Várias personagens?). Em Violação de conduta, com base nas categorias narratológicas definidas por Genette, teríamos um caso de “focalização interna múltipla”: os mesmos eventos – portanto, uma mesma temporalidade retomada várias vezes – são contados por diversas personagens.

Jean-Claude Carrière (roteirista, entre outros, de Luis Buñuel) propõe uma divisão das histórias de acordo não com os gêneros dramáticos estabelecidos, mas com as relações entre narrador (quem conta a história) e narratário (a quem ela é contada). Ele postula, assim, existirem três formas principais de narrativa: a que é contada por alguém que a conhece a pessoas que também a conhecem; a que é contada por pessoas que a conhecem a pessoas que não a conhecem; e, por fim, aquela que alguém conta sem a conhecer a pessoas que também não a conhecem.

Podemos dizer que Violação de conduta estabelece uma dinâmica derivada da segunda categoria descrita por Carrière, mas subdivide-a em duas camadas distintas, uma vinculada ao real diegético (o que se passa no mundo ficcional vivido pelas personagens) e outra, ao real cinematográfico (as relações de tempo, espaço e ação que o filme cria por meio da decupagem, da mise en scène, da montagem etc.). No plano da diegese, os soldados interrogados contam uma história que conhecem a duas pessoas (Hardy e Osborne) que não a conhecem. No plano da experiência do filme no conjunto, a instância narradora conta uma história que conhece a um espectador que a desconhece. São dois níveis de manipulação da “verdade” e de reelaboração abjurante da realidade diegética; juntos, eles constituem o quebra-cabeça narrativo. Osborne, nesse sentido, é quem melhor nos representa dentro do filme: ela é a pessoa que sabe de menos, pois está por fora das maquinações das demais personagens. A avalanche de twists que preenche o ato final de Violação de conduta, portanto, só pode se dar do ponto de vista dela, que vai aos poucos desvelando a trama em que foi enredada. Sua “ingenuidade” – justificada dramaturgicamente pela pouca experiência na carreira militar e pela correção de caráter (que a deixam vulnerável às manobras por baixo do pano e aos truques de Hardy) – é também a nossa, presas que somos das armadilhas do roteiro. O filme termina com uma piscada de olho de John Travolta para a câmera, como quem diz ao espectador: você acaba de cair numa pegadinha.

Ou, melhor dizendo, trata-se de ratificar uma cumplicidade: desde o início, McT nos convidou a partilhar o prazer do jogo ficcional, a desfrutar das artimanhas da narração, a apreciar a arquitetura, a construção, mais do que a história propriamente dita. A própria abundância de flashbacks de endentação intrincada aponta para isso. Como observa Maureen Turim, “estruturas de flashback mais complicadas tendem a enfatizar as formas pelas quais um filme apresenta sua ficção. […] Os flashbacks múltiplos, os flashbacks embutidos e os flashbacks abruptos do cinema moderno podem tornar os espectadores mais conscientes das modalidades da ficção cinematográfica e dos processos narrativos em si mesmos. Essas manipulações da temporalidade narrativa servem para expor propositalmente os mecanismos da narração fílmica, o artifício através do qual o tempo se torna um elemento expressivo da forma narrativa”. Nos filmes que utilizam o flashback como dispositivo metanarrativo, como Violação de conduta, a impressão de realidade (elemento crucial no processo de absorção diegética e de transporte imaginário do espectador para o universo ficcional) é até parcialmente sacrificada em benefício do reconhecimento intelectual da estrutura narrativa, do processo que consiste basicamente em contar histórias situadas no passado, mas trazidas ao presente pela capacidade de reatualização tão característica da máquina do tempo cinematográfica. Violação de conduta não quer que simplesmente identifiquemos a figura desenhada, mas que olhemos com atenção para as linhas e curvas que perfazem o desenho.

O triunfo de Duro de matar repousava, entre outras coisas, no equilíbrio que o filme encontrara entre a aplicação perfeccionista das regras da narrativa clássica (David Bordwell o considera um filme “hiperclássico”, que joga conscientemente com as regras de construção clássica de forma afiada e calculada, numa “febre de virtuosismo”) e o desfile bem humorado de comentários reflexivos sobre os clichês e estereótipos do cinema policial de ação. O filme conseguia trafegar com destreza pelos itinerários de uma tradição narrativa/iconográfica e ainda temperá-los com uma autoconsciência irônica trabalhada na dose aceita pelo grande público, isto é, sem minar o prazer do espetáculo mediante uma reflexividade excessiva, que sempre ameaça descambar na quebra do contrato ilusionista pelo abuso de inverossimilhanças (O último grande herói seria justamente sobre isso).

Violação de conduta, ao contrário de Duro de matar, força a mão além do ponto, e o faz de forma proposital, não só pelas contorções narrativas que beiram o escárnio (o twist, o clímax com reviravolta brusca, estava na moda na época do filme, e McT parece empregá-lo numa chave quase paródica), mas também pelo distanciamento criado pelo aspecto deliberadamente excessivo dos artifícios de encenação (movimentos de câmera amaneirados, iluminação de estúdio mesmo nas cenas em locações reais, sistema de cores pensado em termos majoritariamente plásticos e não necessariamente naturalistas) e de atuação – não dá para levar a sério John Travolta bancando o machão para cima de Connie Nielsen enquanto encolhe a barriga para caber na camiseta preta (da grife Armani, por exigência do ator) colada ao corpo, um verdadeiro autopastiche (inconsciente?) para quem se notabilizou pela perfeição da silhueta e pela habilidade como dançarino desenvolto em Os embalos de sábado à noite e Grease.

Mas a brincadeira tem um fundo de seriedade: o simulacro de guerra comandado pelo autoritário sargento West é uma alegoria crítica calcada no absurdo e despropósito das intervenções militares que os Estados Unidos da era George W. Bush promoviam no Afeganistão e no Iraque. McTiernan começava ali um discurso de alerta sobre o que ele vê como um processo de hipermilitarização da sociedade norte-americana, comparável, conforme ele já declarou em entrevistas, ao que a Alemanha viveu nos anos 1930. O predomínio de uma mentalidade belicista na vida política norte-americana é um assunto que o diretor encara com extrema preocupação.

O filme começa com um plano geral do Canal do Panamá e uma pequena lição de História narrada em off pela personagem de Connie Nielsen: “Os franceses tentaram fazer um canal aqui antes dos americanos. No auge dos seus esforços, 500 operários morriam por semana de malária e febre amarela. Não havia lugar para todos no cemitério, sem contar os entraves morais que tantas cruzes [signos das mortes] acarretariam. Então, compravam barris de vinagre em Cuba, acomodavam um cadáver em cada barril e os vendiam para estudo anatômico em toda a Europa. Por um tempo, essa foi a principal fonte de recursos [dos colonizadores naquela região]. Como podem ver, esse lugar sempre teve uma maneira muito especial de lidar simultaneamente com o lucro e a morte”. Essa espécie de epígrafe está lá para nos asseverar que os flashbacks do filme não são somente o produto das memórias individuais, mas, sobretudo, o retorno inapelável de uma história coletiva – uma história genocida, como de praxe em se tratando de um lugar marcado por um passado colonial. O desfile de máscaras que Osborne atravessa no final do filme, ritual carnavalesco do dia de finados, não é uma simples festa à fantasia. É o retorno dos mortos – não à toa, na cena seguinte, ela encontra West e outros membros da tropa supostamente mortos, que se reúnem à mesa e se preparam para jantar como se nada tivesse acontecido. Era tudo um plano para desmontar um esquema de tráfico e corrupção. Ou melhor: era tudo uma brincadeira. Mas será que Osborne acha graça?