ALEMANHA, ANO ZERO (Germania anno zero, 1948), de Roberto Rossellini + A CHEGADA DO OUTONO (Aki tachinu, 1960), de Mikio Naruse + INCOMPREENDIDA (Incompresa, 2014), de Asia Argento
Infâncias acidentadas
Luiz Carlos Oliveira Jr.
O mundo da infância, ou melhor, os mundos – pois, em se tratando de infância, há sempre uma pluralidade de mundos possíveis, reais e imaginários – tornaram-se um tema cada vez mais recorrente no cinema a partir de meados do século passado, quando veio à tona uma galeria de abandonados e perdidos, distribuída por uma penca de grandes filmes, de Os incompreendidos (François Truffaut, 1959) a Infância nua (Maurice Pialat, 1968), de Rio, 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955) a Couro de gato (Joaquim Pedro de Andrade, 1962), de O silêncio (Ingmar Bergman, 1963) a O garoto selvagem (Truffaut, 1969), passando pelo dilacerante Quando o amor é cruel (Incompreso, 1967), de Luigi Comencini.
Roberto Rossellini, como sempre, foi um dos pioneiros. Em Alemanha, ano zero (Germania anno zero, 1948), ele acompanha o tormento diário de Edmund, menino de treze anos que, na inóspita Berlim do pós-guerra, se esforça para correr atrás de dinheiro e comida para seus familiares. O pai está doente e constantemente de cama, o irmão é um ex-soldado nazista que fica escondido em casa sem trabalhar, a irmã tenta se virar sem aderir à prostituição, que as amigas já aceitaram como alternativa à pobreza absoluta. Edmund, em outras palavras, é um pré-adolescente jogado em uma época de penúria existencial, numa sociedade submetida a um doloroso processo de reconstrução econômica e sociopolítica.
Em um minucioso artigo que aborda as estratégias de atuação no filme de Rossellini, Nicole Brenez afirma que “[Edmund] é ao mesmo tempo a possibilidade da inocência e a origem do mal, o próprio sujeito do Unde hoc malum de Agostinho de Hipona. Edmund representa todas as contradições da História (humana, inumana)”. O menino de Alemanha, ano zero é um corpo mergulhado no abismo da História, na cratera aberta pela guerra e pelo nazismo, que impôs a aceitação do inumano como o novo “normal”. Quando a experiência histórica atinge a dimensão do inumano, não há mais nada separando a vida e a morte, a civilização e a barbárie, o ser e o não-ser. É a negação de tudo.
Edmund começa o filme ajudando a cavar uma cova num cemitério, até que alguém percebe que ele tem menos de quinze anos e o expulsa dali agressivamente, pois estabeleceu-se que só pode ganhar dinheiro enterrando os mortos quem estiver acima dessa idade. Com seu corpo franzino e suas pernas longas, salientadas pelos shorts curtos, Edmund parece um corpo talhado para a deambulação. E é o que ele faz na maior parte do tempo: anda pelas ruas devastadas de Berlim. No caminho, pega o que vier: alguns pedaços de carvão que caem de um caminhão, algumas batatas que um rapaz mais velho lhe passa. Às vezes, topa com um conhecido, como o antigo professor (um nazista pedófilo) da escola que não frequenta mais, e que lhe inculca a ideia de que “é preciso ter coragem de exterminar os mais fracos” (um dos motivos pelos quais decide envenenar o pai inválido). Para onde quer que olhe, Edmund testemunha sordidez e desamparo. Ele se corrompe, perde a inocência precocemente.
E como filmar esse estado de coisas sem recair no sentimentalismo enfadonho ou na exploração obscena da miséria? Como filmar os alemães no imediato pós-guerra? Com culpabilização, indiferença, desprezo, sadismo? Rossellini sabe que a questão é complexa e sem resposta. Ele recusa a depuração de estilo em benefício de uma brutalidade descritiva: a expressão dramática se retrai para que a realidade possa confessar seu sentido – ou ausência de sentido – a partir de suas próprias aparências. Se Roma, cidade aberta (1945) ainda conservava algo de um arco dramático clássico – a despeito das transições bruscas, das quebras de cadência narrativa, da coletivização do drama (rejeitando a narrativa centrada em um protagonista e em seu conflito individual), das descontinuidades de luz e som –, e se Paisà (1946), em seu formato episódico, ainda mantinha uma estrutura análoga a uma coletânea de contos, Alemanha, ano zero, por sua vez, já não possui um arcabouço sobre o qual consiga se manter de pé apesar dos desequilíbrios: o filme se rompe na nossa frente, desmorona como as ruínas de um prédio bombardeado, que, com a estrutura condenada, já não sustenta o próprio peso.
A situação de privação das personagens encontra ressonância na própria pobreza material do filme: luz “incorreta”, aspereza das imagens, precariedade do som, técnica de focalização simplificada ao máximo. Não existe espaço para estilização plástica, para lirismos, para esquemas formais capazes de simbolizar a realidade retratada pelo filme. Buscar uma iluminação construída e corrigida, que conferiria à realidade sensível uma forma e um sentido, seria atentar contra a obtusidade opaca de um mundo que desarticulou as ferramentas clássicas do entendimento humano. A única atitude plausível para Rossellini é assumir um grau zero da linguagem cinematográfica, registrar as cenas como blocos de eventos desvinculados de motivações psicológicas, aceitar os acidentes luminosos, a realidade imanente, apreendida em sua assignificância desoladora.
Muito já se escreveu sobre a sequência final do filme, e não sem razão. Rossellini estira o tempo, multiplica os signos de antecipação da morte, flagra esse raro momento em que um ser está reduzido ao vazio da pura existência concreta – um corpo confrontado ao espaço (em ruínas) e à duração do presente (sem perspectiva, sem esperança, sem futuro). Ele olha para os prédios vizinhos (igualmente destruídos), para a rua. A montagem alterna entre seu rosto e o espaço à volta, provê o campo de um contracampo – mas a costura já foi desfeita, o divórcio entre o sujeito e o mundo já se consumou. Um pouco antes, Edmund tinha ido à casa do ex-professor e confessado o parricídio, sendo violentamente reprimido. Depois, havia encontrado um grupo de crianças menores jogando bola em um beco rodeado de escombros da guerra; tentou se enturmar, mas foi repelido. Já não pertence à infância e tampouco é adulto. Perdeu seu lugar no mundo. Kaputt.
Outra criança perdida é Hideo, protagonista de A chegada do outono (Aki tachinu, 1960), de Mikio Naruse. Depois que o pai morre de tuberculose, ele e a mãe se mudam para Tóquio. A mãe vai trabalhar em uma hospedaria (leia-se prostíbulo) e ele fica morando com os tios, em cuja mercearia passa a ajudar como entregador. Faz amizade com o primo mais velho e, sobretudo, com Junko, uma menina de cinco anos, filha da mulher que administra a hospedaria. Num dos momentos mais belos do filme, a menina leva Hideo para conhecer o mar, numa dessas cenas do cinema de Naruse em que a crueldade cessa temporariamente, apenas para voltar redobrada em seguida.
Há poucas cenas no filme em que Hideo não aparece. Curiosamente, uma delas é talvez o momento mais magistralmente encenado de A chegada do outono. Trata-se da cena em que a mãe de Junko a leva para visitar o pai. A menina chega acompanhada da mãe ao hotel em que o pai as aguarda. Ela corre animada na direção dele. A câmera, a princípio, filma apenas metade do cenário. Junko lança um olhar surpreso para o fora de campo: corta para um plano mais aberto, filmado do lado de fora, que mostra duas outras crianças sentadas na varanda, de costas para o quarto, com expressões nitidamente contrariadas. São os dois outros filhos do pai de Junko, da outra família dele – a oficial. O homem fala da situação com certa normalidade, afirma que é uma chance de as crianças se conhecerem. A mãe de Junko pergunta como vai a esposa, o homem responde que ela está bem e que agradeceu pelo presente enviado. Entendemos que há uma espécie de acordo tácito entre o homem, a amante e a esposa. A amante aceita sua condição não prioritária na vida dele, ao passo que a esposa tolera que o marido tenha uma segunda família. As crianças se retiram para brincar no jardim. Junko tenta se aproximar dos irmãos do casamento legítimo do pai, mas é rejeitada. Os adultos aproveitam para tratar de assunto sérios: o pai de Junko sugere que a amante se mude para um apartamento e deixe a hospedaria. Ela não entende o porquê dessa proposta. Ele esclarece que há alguém interessado em comprar a hospedaria por um bom preço. A base econômica dessa confusa estrutura familiar fica elucidada: o homem é o dono da hospedaria, que se envolveu com uma de suas funcionárias e a promoveu a sua amante, fazendo-a deixar de se prostituir para se tornar administradora do estabelecimento. Agora, quer descartá-la dos negócios, para deixá-la somente como amante ou, quem sabe, abandoná-la de vez. Ao longo do diálogo, Naruse mantém a mise en scène no mesmo ritmo, no mesmo prumo. É preciso ler o drama nos rostos das personagens, no sorriso tranquilo e inabalável do homem, na expressão resignada e concernida da mulher. Sem alarde, sem efeito de dramatização excessiva, a cena expõe a forma como uma desigualdade de direitos é transformada em convenção social, numa cultura que parece ter naturalizado uma situação em que o homem pode aparentemente tudo, a mulher quase nada e a “segunda” mulher, a do adultério, pode menos ainda. A cena prossegue numa sucessão de planos médios e planos de conjunto, com as divisões de classe e de hierarquia familiar sendo demarcadas de modo tão sutil quanto evidente. O enquadramento, no cinema de Naruse, nunca é só uma composição visual a estabelecer o lugar de um corpo em determinado espaço, mas, antes, a descrição precisa de uma posição social.
Dos quatro ases do cinema clássico japonês, Naruse é o mais atento às dificuldades materiais da vida, às constrições econômicas subjacentes ao destino das personagens. É também o de estilo mais difícil de classificar: tão singelo e reiterativo quanto Ozu, mas sem o esquadrinhamento obsessivo do plano e as composições à Mondrian; tão forte no melodrama feminino quanto Mizoguchi, mas sem o apelo cósmico e sensual da natureza (seu realismo é mais prosaico); tão mestre no uso da montagem quanto Kurosawa, mas sem o gosto pelas sagas grandiosas e pelo puzzle narrativo. No cinema de Naruse, mais até do que no de Ozu, as transformações da vida acontecem à mercê da passagem invisível do tempo, de seu escoamento quase imperceptível. Quando temos uma inscrição material do tempo na imagem – uma loja que não está mais lá, um objeto que sumiu do cenário, uma árvore que floresceu – é porque, na verdade, ele já passou, e não vimos sua passagem, somente o resultado tardio (como a flor de um crisântemo). Trata-se de um cinema tão próximo da corrente inefável do tempo que mal identificamos as formas que o constroem. A decupagem de Naruse é a mais transparente possível, ainda que suas escolhas de mise en scène intervenham decisivamente a cada mudança de plano ou movimento de câmera.
Perto do final de A chegada do outono, Hideo consegue encontrar o que procurava há muito tempo: um besouro-rinoceronte (ele tinha um quando chegou a Tóquio, mas o perdeu). Ele corre até a hospedaria para entregar o inseto à sua amiguinha, a quem prometera emprestá-lo para que ela o mostrasse ao professor de ciências na escola. Hideo corre afobado pelas ruas movimentadas de Tóquio, com um dos pés ainda mancando por conta de uma queda acidental na cena anterior. Tememos por ele, pois já sabemos que o menino do interior tem dificuldade para atravessar as ruas cheias de carros da metrópole. Mas, diferentemente do final aterrador de Alemanha, ano zero, em A chegada do outono, a morte de Hideo seria um desfecho fácil, talvez até banal, e Naruse o descarta. O menino sobrevive ao trânsito de Tóquio e chega à hospedaria, onde encontra um cenário vazio: a dona acaba de fechar o estabelecimento e se mudar, levando embora Junko, a única pessoa que restava na vida de Hideo (a mãe já o havia abandonado para fugir com um dos clientes, e o primo se desligara dele para ficar em companhia de outros jovens). Agora seu único amigo é o besouro-rinoceronte, que ele leva para o alto do prédio de onde outrora vira o oceano pela primeira vez. Ele olha para o mar no longínquo horizonte. É infinitamente triste. Para Naruse, mais cruel que a morte é a vida fadada à solidão já desde a infância.
Uma criança sozinha com seu animal de estimação, agora um gato e não um besouro, é também a imagem que encerra Incompreendida (Incompresa, 2014), de Asia Argento, ambientado em Roma nos anos 1980. A protagonista é uma menina de nove anos que se chama Aria: a semelhança com o nome da realizadora é um dos indícios dos evidentes traços autobiográficos do filme. Ao contrário de Alemanha, ano zero e A chegada do outono, mais compactos, Incompreendida trabalha com uma mescla de estilos e referências visuais e musicais que certamente marcaram a infância de Asia Argento na década de 1980. Os cenários de cores saturadas, as personagens histriônicas (com destaque para a mãe de Aria, interpretada brilhantemente por Charlotte Gainsburg), os enquadramentos amiúde extravagantes, o universo ficcional entre realidade e imaginação, inocência e perversão, ceticismo e superstição, cristianismo e magia negra: tudo isso remete ao cinema do pai da diretora, Dario Argento (em cujos filmes Asia autuou recorrentemente a partir de Trauma, de 1993), mas também se sentem ecos de Almodóvar, de Nani Moretti (de quem ela foi atriz em Palombella Rossa, quando tinha apenas quatorze anos) e da tradição melodramática do cinema italiano.
O título original, Incompresa, é uma transposição para o feminino do título do já citado Incompreso, de 1967 – o melodrama a que Aria, já na penúltima cena de Incompreendida, assiste na televisão, um pouco antes de se jogar da varanda. Asia Argento refaz a triste trajetória da criança desamparada e negligenciada do filme de Comencini, mas dá um toque mais pessoal ao relato, substituindo o menino por uma menina (seu alter-ego), incluindo cenas que provavelmente são reminiscências da sua infância e tornando a atmosfera geral do filme bastante subjetiva e, não raro, fantasiosa. A cena em que Aria lê sua redação, vencedora de um concurso municipal, para uma plateia de adultos é um bom exemplo: no meio da leitura, a iluminação muda, o ambiente fica mais claro e reluzente, e Aria vê seus pais chegarem e se instalarem nas duas cadeiras vazias à frente dela. Terminada a leitura, o ambiente se escurece novamente, ela percebe que as cadeiras continuam vazias, o registro subjetivo se interrompe e a realidade volta à insipidez.
Aria é filha do segundo casamento tanto do pai quanto da mãe. Ambos já possuem filhas de seus respectivos matrimônios anteriores, e claramente dão preferência a elas. A cena mais recorrente de Incompreendida é Aria andando pela calçada com sua mala de roupas e a casinha de Dac, o gato preto que ela encontrou na rua e adotou (para desespero do pai, que é patologicamente supersticioso e acredita que isso lhe trará azar). Depois que os pais se separam, Aria fica sendo jogada de uma casa para outra. Embora se esforce para agradar os pais, ela nunca é bem-vinda, sempre é tratada como um estorvo. A situação piora quando a melhor amiga de Aria, sua parceira nas traquinagens e pequenas aventuras com que colore a vida, começa a trocá-la pela turma popular da escola e por uma amiga mais “normal”, isto é, menos descolada e criativa que Aria. O único namorado da mãe com que simpatiza, um rapaz punk que rapidamente a acolhe e enche de afeto, é dispensado sem dar tempo de uma relação mais próxima se configurar. Aria vai ficando cada vez mais sozinha.
Incompreendida equaliza de maneira exemplar o relato autobiográfico e a descrição crítica dos costumes de uma sociedade em dada época, a fabulação subjetiva e o comentário sociológico sobre a forma como uma criança que, no fundo, não é exatamente problemática – apenas mais sensível e inteligente que a maioria, e oriunda de um ambiente familiar excêntrico – sofre rejeição e é escrachada pela normopatia dominante (como na cena da festa). Que vá tudo para o inferno: nosso coração já é de Aria e de Dac. E de Asia, obviamente.