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Ação!

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ZABRISKIE POINT (1970), de Michelangelo Antonioni + MOVIMENTOS NOTURNOS (Night Moves, 2013), de Kelly Reichardt

 

Ação!

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

Um drama plástico

Zabriskie Point (1970) começa com uma reunião entre estudantes universitários brancos e jovens negros engajados na militância política e na luta revolucionária. Eles discutem estratégias, divergem, expõem diferentes pontos de vista sobre a tática de enfrentamento ao inimigo comum: o fascismo sistêmico.

A filmagem é descontínua, fragmentária, em tom de reportagem improvisada. Dir-se-ia que estamos assistindo a um documentário da escola do cinema direto norte-americano, ou a uma versão em cores de alguma cena de Ice (1969), que Robert Kramer realizara no ano anterior.

“Muitas pessoas negras morrem neste país”, diz um rapaz negro. Um jovem branco ergue a voz do fundo da sala lotada de gente e afirma: “Eu estou disposto a morrer também”. Todos se viram em sua direção. “Mas não de tédio”, ele completa – e sai da reunião. A fala impertinente causa desconforto. Um amigo do rapaz tenta defendê-lo, mas os demais interpretam sua provocação como antipolítica e inútil.

O jovem que se levantou e foi embora é Mark, protagonista do filme. Numa sequência posterior, ele dirige pelas ruas de Los Angeles, atravessando um espaço colonizado por imagens, letreiros, outdoors, fachadas de estabelecimentos comerciais pintadas com técnica de trompe-l’oeil. Um espaço em que realidade e imagem, coisas e signos, significantes materiais e significados abstratos se confundem num mesmo processo de reificação e substituição do mundo social por sua representação hiper-real. A câmera, de dentro do carro em movimento, filma esses signos visuais com certa instabilidade, às vezes se atirando a eles impetuosamente com a lente teleobjetiva, em planos que desmaterializam o espaço e até causam vertigem. Essa estética da rapidez achata o espaço numa superfície sem profundidade, pura pista de velocidade para um olho motorizado realizar deslizamentos cinéticos em todas as direções.

O filme começa nesse mundo saturado de imagens e de sons urbanos, mas depois se despede dos outdoors e se desloca para o deserto, para a terra de ninguém – um campo vazio, sem imagens (ou que é, ele próprio, uma grande imagem imensurável), onde as personagens se inscrevem ora como manchas de cor numa tela abstrata, ora como corpos que deixam no solo arenoso sua marca, seu traço indicial. Michelangelo Antonioni realiza aqui seu filme mais experimental, que se erige como um marco, uma milestone no meio da fase internacional de sua obra, quando dirigiu uma série de filmes fora da Itália (Blow up, Zabriskie Point, China, Profissão: repórter).

Desde Deserto vermelho (o último filme antes do autoexílio artístico), o cinema de Antonioni havia convertido o drama psicológico em drama plástico, conforme Godard observou numa conversa com o diretor italiano em 1964. Zabriskie Point indica o que pode ser a forma mais extrema desse drama que não tem outra existência senão aquela fornecida pela substância plástica das imagens e dos sons.

A realidade elíptica

Ainda no início do filme, há um violento confronto entre os policiais e os estudantes e professores que ocupam a universidade (em greve). Mark está armado com um revólver e observa, escondido atrás de um muro, os policiais jogarem bombas de gás lacrimogênio dentro do prédio do instituto de artes, onde os últimos manifestantes (em sua maioria, negros) ainda resistem. Um estudante negro é atingido por um tiro disparado por um policial branco. Em seguida, é um policial quem recebe um tiro e cai no chão. A cena é ambígua, joga com as elipses do espaço, com o fora de campo. Antonioni faz uma montagem disruptiva, articula som e imagem de forma confusa. Quase tudo leva a crer que Mark não foi o autor do disparo que matou o policial, mas não dá para ter certeza.

Antonioni reelabora, evidentemente, o esquema da cena do duelo de O homem que matou o facínora (1962), de John Ford, em que um advogado desengonçado (James Stewart) consegue, contra todas as expectativas, derrotar o pistoleiro mais temido do Velho Oeste. Mas a cena do confronto havia ocultado no fora de campo o verdadeiro herói: o caubói interpretado por John Wayne, que, à margem da cena, de um lugar deliberadamente negligenciado pela câmera, havia efetuado o disparo de espingarda que pusera fim à vida do facínora. Só ficamos sabendo da verdade no final do filme, quando a elipse espacial, a lacuna que a decupagem criara no espaço fílmico na cena crucial do duelo é preenchida por meio de um flashback em que os fatos são recontados ao advogado pela personagem de Wayne. Um recurso de manipulação temporal da estrutura narrativa, portanto, é utilizado para revelar o acontecimento que um mascaramento parcial do espaço fílmico havia obstruído no campo cego da cena. Enquanto o advogado enfrentava o bandido, havia um terceiro elemento escondido no fora de campo, à sombra da História. O advogado seria celebrado pelo suposto ato heroico e construiria toda uma carreira política vitoriosa em cima da farsa, ao passo que o caubói morreria solitário no casebre em que morava no meio do deserto. E depois que o advogado contasse a verdadeira história ao editor de um jornal, este lhe responderia com aquela conhecida máxima, já replicada a torto e a direito: “Quando a lenda se torna fato, imprima-se a lenda” – profecia da era da pós-verdade (a era atual).

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John Ford, O homem que matou o facínora, 1962

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Michelangelo Antonioni, Zabriskie Point, 1970

 

Em Zabriskie Point, não há flashback elucidativo. Há, como no western de Ford, uma manipulação traiçoeira do sistema espacial da cena, mas não de modo a sonegar ao espectador informações que depois lhe serão reveladas em caráter surpreendente. Se as coisas não se apresentam de maneira legível, agora, é porque a própria realidade se tornou elíptica, incompreensível, incoerente. O mundo perdeu a unidade, já se apresenta intrinsicamente dotado de lacunas, elipses, falsos-raccords, falhas de continuidade. Podemos dizer que Antonioni respeita a “ambiguidade imanente do real”, não pela estratégia que André Bazin defendia (plano-sequência, profundidade de campo), mas justamente por uma mise en scène fragmentária e disjuntiva – em 1970, essa se mostra a forma mais fiel ao tecido do real, que não é mais um “robe sem costura” (Bazin novamente), e sim uma colagem de percepções desencontradas.

Independentemente de ter sido o responsável pela morte do policial, Mark é incriminado e passa o resto do filme como fugitivo. A mídia noticia a todo momento sua fuga a bordo de um avião que ele roubou no melhor estilo do cinema de aventura. Quanto ao estudante negro em que um policial branco atirou, ele não parece atrair a atenção das autoridades nem da imprensa: eis a verdadeira elipse do filme, essa falta de repercussão de mais uma morte de um negro pela ação da polícia. Os filmes de Antonioni falam através dos interstícios da realidade filmada, do que fica nas bordas do discurso. Aqui, essa ausência de comentário é a forma contundente pela qual o filme comenta o racismo estrutural.

Em O homem que matou o facínora, um homem ganhava crédito por matar alguém que, na verdade, fora morto por outro, o herói anônimo, pelo qual a imprensa não se interessou nem mesmo depois da verdade vir à tona. Em Zabriskie Point, a equação muda: um homem é acusado de matar alguém que provavelmente não matou – e quem fica à sombra da História, agora, é um jovem negro assassinado a sangue frio pela polícia. É como se Antonioni imaginasse a cena de O homem que matou o facínora do ponto de vista de Pompey (Woody Strode), o amigo negro de John Wayne, que está ao lado dele na hora do duelo e é quem lhe passa a espingarda. E se o autor do tiro que matou o facínora fosse Pompey? Haveria um fato (ou uma lenda) a imprimir? E se ele fosse assassinado pelo advogado?

Antonioni-Hitchcock

Uma das grandes referências de Antonioni é Hitchcock. Seus filmes, sobretudo a partir de Blow up, retomam e desdobram vários temas e motivos hitchcockianos.

Em Zabriskie Point, o filme de Hitchcock mais revisitado é Intriga internacional (1959). As cenas do deserto remetem à planície em que Carey Grant – em fuga por ter sido falsamente acusado de um assassinato – aguarda por um contato que nunca chega, enquanto um avião monomotor – igual ao que Mark rouba em Zabriskie Point – se aproxima em voos cada vez mais rasantes, na tentativa de matá-lo. Antonioni refaz essa cena, mas transforma a pulsão de morte em atração erótica. Mark voa rente ao carro de Daria, a jovem estudante que trabalha para uma firma responsável por um grande empreendimento imobiliário em Phoenix. Ela está a caminho do Arizona quando o avião de Mark a assedia. Ela sai do carro, deita no chão do deserto e Mark dá um rasante sobre seu corpo. Depois ele pousa o avião e eles exploram juntos o deserto, onde vivem um breve romance. É o velho boy meets girl hitchcockiano, mas com um toque de modernidade (dos costumes e do cinema).

Outro filme claramente citado em Zabriskie Point é Os pássaros (1963). O próprio Rod Taylor, par romântico de Tippi Hedren no filme de Hitchcock, aparece aqui no papel do chefe de Daria. Na sequência final, depois de saber pelo rádio da morte de Mark, Daria chega entristecida ao hotel em Phoenix, onde combinou de se encontrar com seu chefe. Ela entra e ouve parte da reunião do chefe com os possíveis financiadores do projeto imobiliário. Desce, volta para o carro. De lá, lança um olhar intenso e fixo para o hotel, que fica encravado no alto de uns rochedos. Como que por ordem dos pensamentos de Daria, o hotel explode.

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Michelangelo Antonioni, Zabriskie Point, 1970

Algo similar acontece no filme de Hitchcock: na cena do ataque dos pássaros a um posto de gasolina, um incêndio é desencadeado como se obedecesse às ordens do olhar de Melanie (Hedren). O clímax da cena consiste numa rápida sucessão de planos alternando entre o rosto de Melanie, que assiste a tudo da janela de um restaurante, e o fogo se propagando num filete de combustível que corre pelo chão do posto. A cada olhar de Melanie (sempre paralisada em pose propositalmente artificial, praticamente “empalhada” pela câmera de Hitchcock), corresponde um plano do fogo se intensificando e se espalhando, até atingir uma bomba de gasolina que explode.

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Alfred Hitchcock, Os pássaros, 1963

O olhar se investe de uma potência destruidora. O pensamento da personagem (ou seu desejo inconsciente) se concretiza por intermédio da ação do olhar e do corte, da ligação sistemática e violenta entre os planos do rosto da atriz e os planos do fogo à frente dela. Auxiliado pela montagem, inflamado pelo desejo, o olhar age à distância, transfere pensamentos, impulsos, projeta no espaço os imperativos da mente, como se Melanie tivesse poderes paranormais e os acionasse para se vingar do puritanismo hostil dos habitantes de Bodega Bay.

A diferença é que, em Zabriskie Point, não é só uma pequena cidade da Califórnia que Daria quer mandar pelos ares: é toda uma cultura, toda uma civilização. A opressão social não atinge só um indivíduo: Antonioni fala de uma destruição geral das estruturas. O raccord de olhar, como em Hitchcock, torna-se raccord mental, mas o contraplano já não pode mais ser visto como resposta verossímil ao plano. A estrutura do plano-ponto-de-vista não forma mais um sistema visual coeso. Entre o plano de quem vê e o plano do que é visto se interpôs uma ruptura, uma clivagem óptica e epistemológica. Agora o campo é a ideia e o contracampo, a revolução.

 

Um cineasta mergulhado na arte de seu tempo

Um aspecto central da obra de Antonioni dos anos 1960/70 – e que talvez só encontre paralelo no cinema de Godard da mesma época – consiste em sua profunda sensibilidade ao “ar do tempo”, isto é, em sua extraordinária capacidade de captar as energias artísticas, políticas e culturais que circulavam na atmosfera social daquele momento e de canalizá-las para dentro dos filmes, que se provam imensamente permeáveis ao mundo histórico e aos discursos que o atravessavam. Em Zabriskie Point, há um verdadeiro pot-pourri do ambiente cultural daquele período: rock psicodélico, revolta estudantil, elevação da voz política das minorias, revolução comportamental (liberação sexual, consumo de drogas), necrose do capitalismo de produção e triunfo cataclísmico do mercado especulativo.

Do ponto de vista do diálogo com as outras artes, Zabriskie Point é um verdadeiro catálogo da produção artística norte-americana da década de 1960. As referências se acumulam, das bandeiras de Jasper Johns à pop art e sua reciclagem crítica dos estereótipos visuais da sociedade de consumo (Tom Wesselmann, James Rosenquist, Audrey Flack), das esculturas hiper-realistas de Duane Hanson às pinturas e fotografias de Ed Ruscha.

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Jasper Johns, Flag (Moratorium), 1969      Michelangelo Antonioni, Zabriskie Point, 1970

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Tom Wesselmann, Still Life #35, 1963          Michelangelo Antonioni, Zabriskie Point, 1970

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Tom Wesselmann, Still Life #35, 1963          Michelangelo Antonioni, Zabriskie Point, 1970

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Duane Hanson, Tourists, 1970             Michelangelo Antonioni, Zabriskie Point, 1970

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Ed Ruscha, Norm’s, La Cienega, On Fire, 1964   Michelangelo Antonioni, Zabriskie Point, 1970

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Ed Ruscha, Pool #8, 1968                                 Michelangelo Antonioni, Zabriskie Point, 1970

 

Durante a preparação de seu filme anterior, Blow up (1966) – o drama óptico do fotógrafo-voyeur que registra um crime, mas só o descobre ao revelar as fotos –, Antonioni já havia mergulhado de cabeça na cena fashion e na cultura visual britânica que fervilhava nos “Swinging Sixties” de Londres. Além de conhecer de perto o universo de fotógrafos como David Bailey, John Cowan, David Hurn e Don McCullin, ele estabeleceu contato com as obras de artistas plásticos como Richard Hamilton e Ian Stephenson.

Hamilton vinha trabalhando, na primeira metade da década, justamente com processos de reprodução e ampliação fotográfica (à semelhança do protagonista de Blow up). Em Whitley Bay, de 1965, ele usa como suporte de sua pintura a cópia fotográfica de um detalhe destacado de um cartão postal e ampliado até que se obtivesse uma imagem em que – junto ao aparecimento dos grãos e cristais que são a própria matéria da imagem fotográfica – surgissem figuras residuais, aspectos do mundo que estavam silenciados no fundo da imagem, mas que agora emergem como num processo de desrecalcamento do inconsciente óptico daquela foto pertencente ao imaginário popular.

A “granulação visual” observada nesse trabalho de Hamilton também pode ser encontrada nas pinturas de Stephenson – a quem foram encomendadas as telas que aparecem no filme como sendo de autoria de um pintor que é vizinho e amigo do fotógrafo –, que consistem em imagens formadas basicamente por pontos e manchas, como se ele atingisse a escala micromolecular do universo visível. Ainda que extremamente abstratas, as telas de Stephenson usadas no filme conservam um fantasma de figuração, uma figura latente ou potencial, a exemplo de Still-Life-Abstraction-D1 (1957), que é o quadro destacado por Antonioni no começo do filme, na cena em que o fotógrafo encontra o amigo pintor.

 

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Ian Stephenson, Still-Life-Abstraction-D1, 1957

 

O pintor explica seu processo: “Não significa nada enquanto estou pintando, apenas uns borrões. Depois, consigo achar alguma coisa que serve de referência, como esta perna. Então tudo começa a se encaixar, a fazer sentido. É como achar uma pista num romance policial”. A cena é particularmente elucidativa, pois expõe e esclarece um percurso – da abstração à figuração – que o filme fará, primeiramente em sentido oposto, dinamitando a figura e reencontrando uma espécie de visibilidade anterior, originária, e depois naquele sentido sugerido pelo pintor, redescobrindo a figura a partir de uma “pista” encontrada em meio a uma caótica paisagem de pontos e manchas. O protagonista de Blow up vai selecionando partes das fotografias que fez num parque e ampliando, penetrando cada vez mais fundo tanto no acontecimento registrado quanto na matéria plástica da imagem. Dos planos abertos, onde o que ele tem diante dos olhos nada mais é que um motivo pictórico clássico – paisagem com figuras –, o fotógrafo vai passando aos planos fechados, onde as formas perdem os contornos legíveis e os grãos crescem devorando o conteúdo figurativo da imagem. A sequência demonstra que a própria fotografia comporta, em seu interior, uma tendência de desfiguração da representação: à medida que é ampliada e esticada, ela acelera um processo de desintegração figurativa.

As últimas ampliações do fotógrafo se assemelham ao expressionismo abstrato. É justamente aí, nesse limite, “espécie de visão abissal de um mundo constituído por pontos aglutinados numa ordem aleatória” (Thierry Roche), que os detalhes antes dissimulados no fundo da paisagem aparecem em primeiro plano e se impõem como a evidência da morte ocorrida no parque. Com a imagem esgarçada ao máximo, surgem a arma do assassino numa foto e o corpo da vítima em outra, o grau de nitidez da figura sendo bem maior no primeiro caso que no segundo – o cadáver, diferentemente da mão segurando a arma, surge menos como uma imagem acabada e inequívoca do que como uma mancha, menos uma figura do que uma potência de figura, ou ainda, menos uma reprodução mimética do que um traço, um vestígio.      

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Ian Stephenson, IONIC Painting, 1962          Michelangelo Antonioni, Blow up, 1966

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Ian Stephenson, Montage, 1963                     Michelangelo Antonioni, Blow up, 1966

 

A imagem feita pelo fotógrafo, agora, conecta-se com a pintura de seu amigo. Foi preciso mergulhar na matéria, implodir o espaço sistemático desenvolvido desde o Renascimento, para só então – estando em fase com um novo tipo de visão plástica – encontrar alguma pista, alguma nesga de sentido. Os corpos figurados na foto precisaram ser dissolvidos para que, já no limiar da abstração, naquele ponto em que a materialidade própria da imagem – sublinhada e fermentada – havia destruído a legibilidade, outros corpos, antes “invisíveis”, pudessem ser encontrados.

Em Zabriskie Point, a implosão da estrutura tectônica do espaço figurativo se dá de forma ainda mais acentuada, tendo o deserto como inspiração para uma destruição total da estabilidade da representação. Tal como em Blow up, os corpos também são engolidos pela matéria da imagem e se dissolvem numa paisagem, que não é mais um parque esverdeado de Londres, mas um deserto de borato e gesso na Califórnia, um vale arenoso e rochoso, de topografia irregular, sulcada pela erosão. Nessa paisagem árida, os corpos de Mark e Daria se enroscam e se misturam à terra. Ao som de Greatful Dead, outros corpos nus brotam do deserto, jovens que fazem sexo grupal, numa espécie de reescrita profana do milagre da multiplicação dos pães (aqui, dos corpos): a cena se torna um misto de performance de body art e de visão poética da utopia sexual e comunitária da juventude hippie. As figuras se integram à paisagem, formam com ela um continuum.

O deserto representa para Antonioni o que a tela de pintura havia se tornado para os artistas abstratos: uma praia virgem, tabula rasa, espaço originário, primitivo, em que se redescobre o silêncio eloquente da imagem. Esse deserto é também a amplificação cósmica de uma experiência do vazio que já se podia antever na ilha rochosa de A aventura (1960), nos terrenos vagos e inespecíficos pelos quais Jeanne Moreau deambulava sem rumo em A noite (1961), na abstração geométrica da periferia urbana moderna de O eclipse (1962). A metafísica da ausência, a tendência à desaparição da figura humana numa paisagem em que se testemunha o apagamento das referências espaciais – tradução visual da busca utópica por um espaço liberto dos parâmetros sociais e morais – atinge seu ápice no deserto de Zabriskie Point, cuja matéria monocromática alude à série de aquarelas que Antonioni começou a pintar no final dos anos 1950, sempre com o título de Montanha encantada (vários planos do filme retomam os aspectos plásticos dessas pinturas).

A apoteose abstrata culmina na magnífica sequência final, em que, embalado pela música etérea do Pink Floyd, Antonioni promove uma catástrofe generalizada do campo visual: após os restos do hotel dinamitado pelo olhar devastador de Daria se espalharem pelo ar, outros planos, sem qualquer referencialidade direta na diegese do filme, prolongam o processo de demolição do espaço plástico. Os ícones da cultura de consumo explodem e voam em nossa direção: roupas, livros, televisões, geladeiras. A revolta de Daria transborda num violento atentado contra a Forma. Em sua pulsão destrutiva mesma, esse olhar que desmantela – ou que desmancha no ar tudo o que é sólido – constrói um novo regime visual, a meio caminho entre uma convulsão lisérgica do imaginário pop e uma “estética da desaparição” (como diria Paul Virilio) que desorganiza as linhas plásticas em trajetos e vetores produzidos pela aceleração hiperbólica do olho. Desintegração das matérias e dos corpos, mas, antes de tudo, desintegração da própria visão, por uma erosão eólica do campo para o qual ela se abre. Decomposta em detritos, em estilhaços, em cores que se difratam em todas as direções, a tela se transforma em uma versão cinematográfica da action painting, cujo representante mais ilustre, Jackson Pollock, era bastante admirado por Antonioni.

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Jackson Pollock, Convergence, 1952         Michelangelo Antonioni, Zabriskie Point, 1970

 

O transe psicodélico é interrompido bruscamente, sendo substituído por um plano silencioso de Daria olhando para sua obra-prima imaginária com um sorriso singelo. O dia já se encaminha para o fim. Ela entra no carro e vai embora. O plano final se detém no sol poente, enquanto uma música country ameniza a atmosfera. A câmera ainda realiza um zoom na direção do horizonte, aumentando o efeito de telescopia do espaço e de dissolução das relações de distância. A tela agora é um mar de cores, um dégradé de tons entre o laranja e o amarelo claro. Não é mais a Pollock que Antonioni tira o chapéu, mas a outro de seus pintores favoritos: Mark Rothko, para quem chegou a mandar uma carta no começo da década de 1960, elogiando sua obra e agradecendo ao artista por ter se disposto a doar-lhe alguns quadros.

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Mark Rothko, Untitled, 1968       Michelangelo Antonioni, Zabriskie Point, 1970

 

Depois de ter dinamitado a imagem, Antonioni permite que ela renasça na chave do sublime (categoria estética que perpassa a arte norte-americana, tanto a clássica como a moderna – minimalismo e pintura color-field inclusos). O espaço se torna um puro gradiente de cor, uma transição suave entre nuances da atmosfera. É como se o mundo todo tivesse sido aspirado pelo sol, que o levará consigo para trás do horizonte, deixando aos humanos não mais que uma nuvem de poeira. Os signos da cultura de massa foram esfacelados e, do caldo informe que restou, ou dos escombros desse novo Big Bang, Antonioni extrai uma substância cromático-luminosa que restitui certa magnificência a esse mundo superficial em que tudo é questão de imagem e simulação – um mundo que parece lhe causar simultaneamente fascinação e repulsa.

Boom!

Em Movimentos noturnos (Night Moves, 2013), de Kelly Reichardt, dois jovens engajados na causa ecológica se juntam a um homem mais velho para detonar uma barragem num rio do noroeste dos Estados Unidos, perto de uma área de camping. Mas há uma coisa que eles não sabem: embora seja baixa temporada, um homem havia decidido acampar perto da barragem.

No começo do filme, um grupo de pessoas assiste à projeção de um documentário de temática ecológica, com linguagem didática e apelativa. Após a projeção, há um debate com a diretora. Lembra a cena de início de Zabriskie Point, mas as falas são mais moderadas, o espaço de discussão tende ao consenso. Um rapaz ao fundo, como no filme de Antonioni, parece deslocado. Mas aqui ele fica calado, discorda em silêncio. O rapaz é Josh (Jess Eisenberg), que, ao lado de Dena (Dakota Fanning), decidirá passar à ação e embarcar no plano de destruição da barragem. Isso mudará alguma coisa, estruturalmente falando? Para Josh, pouco importa: ele precisa agir. As utopias coletivas dos anos 1960 já se fracionaram em ilhas de revolta segmentada, com o político e o psicológico se misturando ao ponto da indistinção – não à toa, o filme começa com um quadro de engajamento político coletivo e vai cada vez mais se fechando na personagem de Jesse Eisenberg, até se transformar num thriller psicológico perturbador.

A obra é homônima de um filme de Arthur Penn, Um lance no escuro (Night Moves, 1975), com o qual partilha pouca coisa além do nome e de um forte clima paranoico. A verdadeira referência de Reichardt parece ter sido O diabo, provavelmente (1977), de Robert Bresson, que também mostra jovens frequentando reuniões de movimentos militantes e assistindo a documentários ecológicos, porém num tom mais cruel e sombrio do que o documentário com narração sentimental mostrado no início de Movimentos noturnos. A atmosfera apocalíptica, no filme de Reichardt, perde o fundo existencialista que tinha em O diabo, provavelmente e se torna o destino cínico de um mundo focado tão somente na expansão sem propósito das áreas de exploração do capital e do lucro financeiro. Na época em que o filme de Bresson foi rodado, o medo da aniquilação em massa se alimentava não só do perigo ecológico, mas, sobretudo, da ameaça nuclear. No século XXI, o que temos como realidade é um mundo que banalizou o ato de apertar o botão de destruir.

Talvez por isso a explosão não seja mais um acontecimento visual e musical grandiloquente como em Zabriskie Point, mas um estouro que acontece no fora de campo e só chega ao filme como um som distante e abafado. A sequência em que eles plantam a bomba na barragem é o ponto alto do filme. Reichardt demonstra enorme domínio do tempo e do ritmo. Desde a travessia do rio a bordo da lancha, com planos siderantes da paisagem ao redor – uma atmosfera insólita que afasta as personagens do peso e das implicações concretas da ação que estão prestes a cometer –, até a fuga noturna depois de acionar a bomba-relógio, com a tensão aumentado à medida que o cronômetro avança e surgem percalços inesperados, enfim, tudo nessa sequência é conduzido com elegância e precisão, comprovando que Reichardt é uma das cineastas mais interessantes surgidas nas últimas décadas.