ELES NÃO USAM BLACK-TIE (1981), de Leon Hirszman + A AGENDA (L’emploi du temps, 2002), de Laurent Cantet + SORRY TO BOTHER YOU (2018), de Boots Riley
Os mundos do trabalho
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Tempos de greve
Eles não usam black-tie (1981), de Leon Hirszman, representa um momento de transição crucial na história política brasileira, relativo ao período final da ditadura que se iniciara em 1964 e aos primeiros eventos indicadores da reabertura política e do processo de redemocratização, que só se consolidaria efetivamente na segunda metade da década de 1980. Em 1979, enquanto Hirszman preparava o roteiro do filme ao lado do ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri (autor da peça em que o roteiro se baseou, escrita em 1956 e encenada pelo Teatro de Arena em 1958), despontaram as greves dos metalúrgicos da região do ABC paulista. Enfrentando a lei militar que proibia o direito de greve, os operários paralisaram suas atividades e reivindicaram, entre outras coisas, reajustes salariais e melhorias das condições de trabalho. Hirszman, então, interrompeu a escrita do roteiro de Eles não usam black-tie e se deslocou com uma pequena equipe para a cidade de São Bernardo do Campo, onde registrou os acontecimentos que mais tarde resultariam no documentário ABC da greve.
Após as filmagens de ABC da greve, ainda sob o impacto do que testemunhara durante a realização do documentário, Hirszman retomou a elaboração do roteiro de Eles não usam black-tie e incorporou na trama a disputa – que viera à tona nas greves de 1979 – entre as diferentes alas da militância operária no país. Duas forças, basicamente, disputavam a hegemonia da esquerda brasileira naquele momento: um grupo mais ligado a um revisionismo marxista de extração “clássica” (na falta de palavra melhor) e outro grupo oriundo do novo sindicalismo, que tinha em Lula sua liderança mais carismática. Eles não usam black-tie encena, de forma até didática, essa divisão entre a vertente comunista que defende uma práxis política mais tradicional (organização do proletariado segundo o modelo marxista da luta de classes), representada por Otávio (Guarnieri) e Bráulio (Milton Gonçalves), e um grupo um pouco mais jovem, que representa o novo sindicalismo, disposto a aproveitar as energias coletivas desprendidas pelo momento de revolta e começar a greve independentemente de uma ação coordenada com o antigo sindicato. No meio de tudo isso, há Tião (Carlos Alberto Riccelli), filho mais velho de Otávio e operário da mesma fábrica. Movido por interesses pessoais, Tião decide furar a greve, para profundo desgosto e decepção do pai.
A primeira desavença entre pai e filho já aparece antes mesmo de a greve eclodir. Trata-se de uma das cenas mais conhecidas do filme, aquela em que, com a família reunida à mesa de jantar, Otávio e Tião têm uma discussão acalorada. O filho acusa o pai de lutar por causas perdidas, ao passo que o pai lamenta a covardia do filho. A mãe, interpretada por Fernanda Montenegro, serve a sopa e tenta acalmar os nervos dos demais – ela é a única personagem que não se senta à mesa, permanece de pé, com o avental que é o seu uniforme de trabalho, o equivalente do macacão de operário que Otávio e Tião usam na fábrica. Mas há uma diferença: o trabalho dela não é assalariado e não dá direito a greve – o filme ilumina, em silêncio, esse ponto cego do marxismo clássico: o trabalho (pois é disso que se trata) das mulheres que cuidam da casa, sem jornada fixa e sem descanso.
A cena é filmada por meio de planos relativamente longos, alguns com câmera imóvel no tripé, outros com lentos travellings que se afastam de uma personagem ou se aproximam de outra. O cenário e a iluminação guardam as medidas de um realismo objetivo, sem efeitos expressionistas, sem acréscimos decorativos aos significantes concretos mais indispensáveis à consistência material do mundo representado. O interesse de Hirszman é a cena no sentido clássico: a disposição da ação no espaço e seu desenvolvimento no tempo.
Curiosamente, em se tratando de um cineasta egresso do plantel principal do Cinema Novo, o estilo de encenação de Hirszman, em Eles não usam black-tie, se coloca nos antípodas do que é possivelmente a grande linhagem do cinema brasileiro moderno: o barroco. Barroco épico em Glauber Rocha: monumentalidade, teatralização expansiva, êxtase, exasperação catártica, condensações alegóricas, tensões estilísticas, contraste entre a agilidade impetuosa da câmera e o hieratismo escultórico dos corpos em cena. Barroco expressionista em Paulo César Saraceni: espelhos, sombras, escadas, poética das ruínas, conflito interior, psicologia atormentada, personagens com traços faustianos e nosferáticos. Barroco pop em Rogério Sganzerla: colagem, citação, repetição, acúmulo de signos, mescla de estilos, reprodução serial de iconografia de ídolos – Orson Welles, Jimi Hendrix, Noel Rosa –, assimilação da linguagem dos meios de comunicação de massa e dos resíduos e dejetos da lata de lixo da cultura. Barroco melodramático em Arnaldo Jabor: intensidade patética dos corpos, performatividade histérica da mise en scène, sexualidade neurótica, tragédia romântica, sentimentalismo kitsch à beira do grotesco. Barroco surrealista em Ana Carolina: irrupção do inconsciente patriarcal, transbordamento do desejo reprimido, verborragia corrosiva, dramaturgia da crueldade. Barroco tropicalista em Joaquim Pedro de Andrade: curto-circuito de “modernismos” (o dos anos 1920 e o dos anos 1960), cenografia de programa de auditório, cultura urbana e mentalidade de província, metrópole e colônia, Macunaíma e Tiradentes, século XX e século XVIII. Barroco tardo-modernista em Júlio Bressane: erudição estética, reflexividade metafílmica, radicalidade formal, miríade de referências (pictóricas, musicais, cinéfilas, literárias), bipolaridade entre energia dionisíaca e rigor apolíneo. Barroco gótico-escatológico em José Mojica Marins: orgia das matérias, pathos carnal e violento, rostos transfigurados pelo medo, anticlericalismo profanatório, psicanálise da tortura, olhos injetados, furados, exorbitados. Barroco maneirista no cinema pós-moderno dos anos 1980 (Chico Botelho, Guilherme de Almeida Prado, Wilson Barros): pastiche nostálgico, virtuosismo técnico, néon-realismo, melancolia posada, noites urbanas povoadas por anjos caídos, recombinação lúdica dos enredos do film noir.
Em Eles não usam black-tie, Hirszman se distancia de todas essas tendências barrocas do cinema brasileiro moderno e faz um filme, por assim dizer, clássico, ou pelo menos antibarroco – o que o coloca num lugar de exceção quando nos debruçamos sobre a produção daquele período.
Não farei aqui uma análise do filme, que já recebeu excelentes trabalhos de pesquisa, interpretação e contextualização histórica (recomendo, em especial, a tese de doutorado de Reinaldo Cardenuto, O cinema político de Leon Hirszman (1976-1981): engajamento e resistência durante o regime militar brasileiro, que em breve se tornará livro). Apenas destacarei que, hoje, vendo-o em retrospecto, constatamos duas coisas, cuja obviedade não me exime de mencioná-las: 1) o grupo capitaneado pelo novo sindicalismo triunfaria na batalha pela liderança dos movimentos de esquerda no país, sobretudo após a criação do Partido dos Trabalhadores; 2) com a consolidação e expansão desenfreada do capitalismo global na década seguinte, quem realmente “venceria” seria o individualismo, o desencantamento político, o desprezo pelas ideologias, o agente dissolvente da união dos trabalhadores – em outras palavras, todos aqueles aspectos encarnados em Tião. Ele não é exatamente o vilão do filme, mas o representante de uma prole de filhos tardios da era industrial. Ao renunciar à luta por seus direitos sindicais e políticos, ele dá boas-vindas ao mundo pós-utópico em que o trabalhador deixaria de ser um motor de transformação social, em ininterruptos conflitos e negociações com os detentores dos meios de produção, para se tornar um ponto a-subjetivo na rede transnacional de serviços, cujo alcance é ilimitado e cujas regras se desconhece.
Depressão e psicopatia
Em A agenda (L’emploi du temps, 2002), de Laurent Cantet, já temos um mundo diferente daquele de Eles não usam black-tie. Nos vinte anos que separam os dois filmes, a esquerda internacional se fragmentou e o capitalismo aproveitou a oportunidade para adotar práticas ainda mais selvagens: flexibilização das leis trabalhistas, precarização dos empregos, eliminação de garantias conquistadas ao longo de mais de um século de história do movimento operário. A queda do muro de Berlim em 1989 e a dissolução da União Soviética em 1991 deram o aval para a expansão desvairada da economia neoliberal, agora sob o pretexto de que não adianta lutar contra o capitalismo, não há alternativa, não há adversário à altura: ele é o que existe, resta tentar achar um espaço dentro dele. Os discursos de contraposição ao capital foram paulatinamente descreditados pelo senso comum ao longo da década de 1990, ora mediante argumentos de pseudociência econômica – que faziam do capitalismo uma criação natural espontânea, e não uma construção histórica –, ora com o mais puro cinismo. O individualismo competitivo se tornou a regra de conduta não só nos ambientes profissionais, mas também nos círculos de sociabilidade, na escola, nas universidades. A ambição de produtividade e sucesso se impôs como a única bússola do sujeito contemporâneo, cuja meta passou a ser a conquista de um espaço no mercado globalizado, seja para vender produtos, serviços ou ideias.
A agenda é um filme totalmente imerso nesse mundo pós-utópico e hipermercantil, que a narrativa não analisa esquematicamente, não submete a nenhuma tese – o que temos é tão somente um exame clínico dos sintomas de um colapso do corpo social desintegrado pela radicalização do individualismo, com suas etapas de depressão e psicopatia. O setup estabelece um cenário de dissimulação e estranhamento: Vincent dirige a esmo pelas estradas invernais do centro-oeste da França, perto da fronteira com a Suíça. Transita por lugares anônimos, pouco acolhedores, às vezes estaciona em paradas de beira de estrada e dorme dentro do carro. Nas conversas por telefone celular com sua esposa, Vincent mente para ela, diz que está em seu escritório em Genebra, trabalhando no novo emprego que conseguiu como gerente financeiro de um banco – mas o vemos dizer isso enquanto caminha por um estacionamento tétrico em um lugar qualquer. Desempregado há três meses, depois de ter sido despedido da empresa de consultoria onde trabalhava, Vincent esconde sua situação da família e dos amigos. Paralelamente, começa a pôr em prática um golpe arriscado, convencendo alguns conhecidos a lhe confiarem quantias significativas de suas reservas financeiras para que ele as invista no banco suíço em que supostamente trabalha. Em outras palavras, ele faz, de maneira informal e em escala diminuta, o que o capitalismo financeiro pratica em escala global e sob a chancela da economia oficial: um sistema de extorsão consentida, que ganha inúmeros adeptos com a promessa de multiplicações milagrosas dos investimentos.
Um indivíduo misterioso, Jean-Michel, se aproxima de Vincent após tê-lo observado a distância e entendido seu esquema fraudulento. Ele não chega para chantageá-lo, pelo menos não diretamente, mas para propor-lhe um trabalho transportando mercadorias falsificadas. Vincent reluta, mas acaba aceitando, e passa a cruzar a fronteira França/Suíça diversas vezes com o carro lotado de produtos ilegais, usando estradas de terra alternativas para escapar da polícia aduaneira.
As cores são frias e cianóticas, os planos são muitas vezes escuros e silenciosos. Um mundo gélido, sem humor, que só encontra vigor na competição (como no campeonato de judô de que o filho de Vincent participa). Tudo é mostrado pelo ponto de vista de Vincent, que esconde de todos – inclusive do espectador – o que realmente sente ou pensa. Até que sua esposa descobre seu envolvimento com as contrafações de Jean-Michel e o enfrenta. Mas Vincent não tem nada a dizer, nem para ela, nem para ninguém (o pai também tenta conversar com ele, sem êxito). As tentativas de diálogo não são em tom reprobatório: todos parecem dispostos a fingir que nada aconteceu e a ajudá-lo a se reerguer na vida profissional. O filme acaba num epílogo ambíguo, falso final feliz, com Vincent sendo aceito num ótimo emprego arranjado pelo pai. Não se trata de perdão, mas de um esquecimento voluntário, de um apagamento. Vincent, primeiramente, havia sucumbido à competitividade do universo corporativo; depois, tentou ser contraventor e fracassou igualmente. Agora retorna ao mundo empresarial, mas por iniciativa do pai, que utilizou seus contatos para lhe conseguir o emprego. Para se adaptar à nova vida, Vincent terá de aceitar sua inanidade, a impossibilidade de deixar uma marca no mundo, seja pelo sucesso profissional, seja pela via do crime. A soma de suas ações é igual a zero.
A história de A agenda se inscreve num vazio: vazio de empatia da personagem principal, vazio de sentido real para suas ações, vazio de consequências para essas mesmas ações, vazio dos espaços (estradas no meio do nada, montanhas desabitadas), vazio do tempo preenchido com trajetos repetitivos. Vincent é um sociopata “brando”: não mata a família, como aconteceu na história real em que o filme se baseou (o chamado “caso Romand”, que inspirou o romance L’Adversaire, de Emmanuel Carrère). Ele se limita a se trancar numa carapaça neutra. Não tem motivação ideológica, não demonstra arrependimento ou má consciência. Age por automatismo. Ele é o sujeito-zero da era de transição do mundo analógico para a rede digital de trocas impalpáveis. O humano se apaga enquanto força de pensamento ou de criação: tudo que se exige dele, doravante, é que possa manter em circulação os valores, que consiga funcionar na grande máquina letárgica (um oxímoro) em que o capitalismo pós-industrial se transformou.
Performance e revolução
Mas aí veio a crise econômica de 2008 e suas repercussões no mundo inteiro. Uma dupla evidência se impôs, determinando o tom de muitos debates nos anos 2010. De um lado, ficou claro, mais uma vez, que o neoliberalismo sem rédeas não só continuaria provocando as crises cíclicas que fazem parte da história do capitalismo desde sempre, como ainda haveria o agravante de que essas crises pegariam a população totalmente desguarnecida, já que a agenda neoliberal colocada em prática desde o final do século XX incluíra o enfraquecimento das garantias de dignidade mínima do trabalho assalariado e das políticas de bem-estar social.
Do outro lado, apesar dessa enésima demonstração cabal de que o capitalismo não tem como assegurar estabilidade, a presença do capital (como prática e como valor) e das dinâmicas globais de trocas mercadológicas havia aumentado de tal forma seu poder de infiltração no tecido social – um processo exponencialmente intensificado pela expansão das redes digitais – que a construção de uma experiência (subjetiva, social, política) fora da infraestrutura técnica atrelada ao capitalismo se tornou impensável. Ficou mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, e não por acaso as visões pós-apocalípticas e disfóricas são um dos topoi da produção artística e intelectual contemporânea. Chegamos a um impasse: é preciso urgentemente vislumbrar uma alternativa ao presente, mas esse mesmo presente é tão saturado e imediatista, suas demandas de comunicação, produtividade e consumo são tão sufocantes que mal sobra tempo para imaginar o futuro. Gastamos toda nossa energia psíquica respondendo a estímulos pontuais, sem margem para a distância crítica que nos permitiria perspectivar historicamente o mundo social e, consequentemente, projetar formas de mudança. O imaginário político se esvaziou ou, mesmo quando aparentemente resistiu, confiou suas condições de possibilidade à mobilização dos sujeitos imersos na malha digital e, portanto, já cooptados pelo agenciamento infotécnico da hiperconexão generalizada, que alui o sentimento do futuro, ou melhor, troca-o pela extensão infinita de um presente que, apesar de uniforme, consegue se fazer passar por produção contínua de novidades, enquanto as estruturas de poder e de controle permanecem as mesmas. A própria ideia de revolução foi capitalizada: não soa absurdo, hoje, abrir uma empresa com CNPJ para financiar uma práxis revolucionária de forma sustentável. Revolução S.A. O novo realismo engajado é um capitalismo de inclusão.
É claro que extrapolo. Há toda uma gama de matizes intermediários a se incluir nesse debate. Assim como o sistema capitalista na era digital se capilarizou e se tornou pervasivo, alojando-se nas profundezas do psiquismo coletivo, assim também as brechas e interstícios se multiplicaram e deram origem a novas formas de subversão. As inúmeras produções culturais contemporâneas de conteúdo contra-hegemônico, mas que conseguem espaço nos principais canais de circulação, são o melhor exemplo: trata-se de um fenômeno pareado com a lógica neoliberal de segmentação dos mercados e, ao mesmo tempo, de uma inversão – potencialmente transgressiva? – de seus significados.
Se a revolução à moda antiga “saiu de pauta”, ou distanciou-se do horizonte real dos possíveis oferecidos pelo mundo histórico, é natural que o imaginário político-revolucionário da última década tenha migrado em massa para o campo da alegoria, transformando-a numa das grandes linhas de força da ficção atual, seja no reduto das narrativas conservadoras (a exemplo dos filmes de super-heróis, incluindo aqueles que fingem ser progressistas), seja no da ficção mais francamente politizada, como é o caso de Sorry to bother you (2018), primeiro longa-metragem de Boots Riley, mais conhecido por seu trabalho como rapper e ativista de esquerda.
O filme apresenta uma situação parecida com a de Eles não usam black-tie, porém em contexto já totalmente diferente. A situação em questão é a greve dos trabalhadores de uma empresa de telemarketing, que a polícia reprime com violência. O protagonista, um jovem negro chamado Cassius Green, decide furar a greve por motivos individualistas – ele acaba de ser promovido no emprego, indo para o luxuoso andar de cima do prédio, onde operam os Power Callers, que, em vez de vender produtos baratos para a classe-média, fecham vendas milionárias com grandes conglomerados multinacionais. O que eles vendem? Mão de obra humana explorada a baixíssimo custo e altíssimo lucro, algo também conhecido como trabalho escravo disfarçado – uma realidade que, embora esteja propositalmente exagerada e alegorizada no filme, é um fato cada vez mais recorrente na nova ordem econômica global que sobreveio ao processo de desindustrialização dos países ricos e à condição “invisível” que a produção de bens materiais adquiriu nas periferias do capitalismo.
Cassius é mais conhecido entre seus amigos pelo apelido Cash, que significa “grana”, dinheiro vivo. Sua namorada, que se chama Detroit (e desta vez não é um apelido), é uma artista plástica que faz performances militantes com mensagens anticapitalistas. A relação dela com Cash fica abalada depois que ele fura a greve e mergulha de cabeça no novo cargo. Detroit, obviamente, é outro nome emblemático, que remete à cidade norte-americana que melhor representou o desastre social e econômico da desindustrialização: antigo polo da indústria automobilística, a periferia da cidade se transformou num cenário de ficção-científica distópica depois da saída das fábricas, que foram se realocar em lugares onde a mão de obra é infinitamente mais barata, deixando para trás bolsões de pobreza e desemprego.
O segredo do sucesso de Cash no ramo do telemarketing se deve, em grande parte, à adoção de uma “voz de branco”, por sugestão de Langston, um colega de trabalho interpretado pelo genial Danny Glover. A cena em que ele ensina a dica para Cash é das melhores do filme: o experiente Langston explica que não se trata apenas de emular caricaturalmente um som anasalado, tal como fazem os comediantes negros ao imitar uma voz tipicamente branca, mas de falar com a segurança de quem não precisa daquele emprego, de quem não tem grandes preocupações, de quem vai fechar aquela venda, entrar numa Ferrari e curtir a vida. Em outras palavras, para fazer dinheiro, é preciso soar como se você não precisasse dele – situação característica de um mundo em que as riquezas se reconcentraram e o dinheiro só pinga na conta de quem… já tem dinheiro. Cash entende o recado e se torna um gênio do telemarketing, sendo rapidamente promovido a Power Caller.
“Pele negra, vozes brancas”, poderíamos dizer, parafraseando o título do indispensável livro Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon, que descreve, no primeiro capítulo, a transformação da fala a que os antilhanos emigrados se impõem tão logo chegam à França, alterando o sotaque, a sintaxe, o timbre, o vocabulário. Eles rapidamente percebem que serão mais aceitos e respeitados caso falem como os franceses. Uma vez que todo idioma é também um modo de pensar, Fanon observa como essa mudança afeta a personalidade, o modo de ser dos antilhanos que se mudam para a França. A adoção de uma linguagem diferente daquela da coletividade em que nasceu representa, para o sujeito migrante, “um deslocamento, uma clivagem”. “Falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura. O antilhano que quer ser branco o será tanto mais na medida em que tiver assumido o instrumento cultural que é a linguagem. […] Historicamente é preciso compreender que o negro quer falar o francês porque é a chave susceptível de abrir as portas que, há apenas cinquenta anos, ainda lhes eram interditadas. Encontramos nos antilhanos que se enquadram na nossa descrição uma procura de sutilezas, de raridades de linguagem — outros tantos meios de provar a eles próprios que se ajustam à cultura dominante”.
Podemos ver um paralelo em Sorry to bother you, apesar de não se tratar de um contexto de migração de um país para outro, de uma cultura para outra, mas sim de uma classe social para outra: falar como um branco significa, para Cash, abrir as portas que antes estavam fechadas para ele. E, no processo, é todo seu modo de ser que se altera, como Detroit aponta no momento da briga em que decide se afastar temporariamente de Cash.
A “voz de branco” de Cash é dublada de maneira cômica, propositalmente bizarra. O humor, aliás, perpassa o filme (uma comédia, afinal). Há um declarado escárnio nessa dublagem – uma arte em desuso no cinema (a não ser no cinema de animação), que Riley recupera de modo provocador e criativo. Enquanto debocha do timbre irritante dos brancos de voz anasalada, a dublagem desmonta também um segundo clichê, pois, ao atender às expectativas empáticas de uma clientela branca, a voz fake de Cash quebra, por outro lado, uma outra expectativa incrustada nos estereótipos culturais dessa mesma audiência branca, que espera ouvir sair daquele corpo uma voz de cantor da Motown, naturalmente melodiosa, ou, outra possibilidade, uma fala cheia de gírias e com dois motherfuckers a cada frase (como faz, ironicamente, a personagem de Danny Glover). Esse assunto vem à tona, sobretudo, na cena da festa na casa do dono da Worryfree, megacorporação que terceiriza suas televendas para a empresa onde Cash trabalha. Um microfone é colocado na mão de Cash para que ele improvise um rap. Mas, contrariando o estereótipo de que um negro norte-americano crescido na periferia necessariamente saiba cantar rap, ele não consegue engatar rimas ou seguir o ritmo da batida. Apela, então, para um refrão genérico e autodepreciativo, causando delírio na plateia formada por brancos endinheirados. Riley espalha os clichês sobre a mesa e os retrabalha por meio de uma estratégia crítica desconcertante.
Nessa mesma festa, Cash é apresentado ao projeto secreto da Worryfree, que consiste em experiências de mutação genética para gerar trabalhadores-escravos mais fortes e eficientes: os Equisapiens, nascidos de uma hibridação entre humanos e equinos. Para se tornar um Equisapiens, basta inalar uma substância em pó, de aspecto similar ao da cocaína. O dono da Worryfree faz uma proposta para Cash: por cinco anos e cem milhões de dólares, ele seria um funcionário infiltrado no mundo dos Equisapiens. O jovem empresário, caricatura de empreendedor neo-yuppie, quer se antecipar à dialética da História: ele afirma que os Equisapiens, à medida que se proliferarem, formarão um grupo social à parte, com sua cultura própria. Eventualmente, se organizarão politicamente e até se sublevarão. Nada melhor, então, do que implantar no grupo um falso líder político, que administrará as revoltas sem colocar em risco os interesses econômicos da empresa. Mas, ao tentar anular a força dialética do movimento histórico, ele paradoxalmente a precipita. Pois Cash sai de lá chocado com o que viu e disposto a denunciar as práticas desumanas da Worryfree. Num primeiro momento, o tiro sai pela culatra: o vídeo que mostra os Equisapiens pedindo ajuda, que Cash expõe num programa de TV e depois viraliza na internet, em vez de manchar o nome da empresa, faz as ações da Worryfree se supervalorizarem – as barreiras éticas não foram um entrave ao projeto (o dinheiro é mais forte que elas). A única saída será libertar os Equisapiens mantidos em cativeiro: a cena catártica acontece quando eles se juntam aos grevistas e derrotam a tropa de choque da polícia. O filme dá a entender que não há saída dentro do capital, mas somente se opondo violentamente a ele.
Por um lado, segue-se um modelo marxista clássico, de materialismo dialético: no intuito de ampliar os lucros, o capitalismo produz uma nova força de trabalho, e é dessa mesma força que emerge o movimento contrário que irá derrubá-lo. Ou seja, por uma dinâmica interna inelutável, o capitalismo cria as condições de sua própria superação. Por outro lado, porém, a lógica imprevisível (em parte, pelo menos) da circulação de imagens na era da internet entretece relações polissêmicas entre os diversos significantes que se entrechocam permanentemente. Assim, a peruca com uma lata de refrigerante afixada a ela – inspirada no evento gravado num celular e popularizado no Youtube, com Cash levando uma latinha na testa enquanto fura o piquete dos grevistas – é primeiramente transformada em fantasia de Halloween, para ser depois ressignificada por Cash e se tornar o signo distintivo dos trabalhadores em luta. Uma imagem que rodou o mundo, no circuito dos vídeos de desmoralização alheia, retorna à sua fonte (Cash e o piquete da greve) para de lá se irradiar novamente, agora como símbolo de uma causa trabalhista justa. É o complexo curto-circuito dos dispositivos de entretenimento e de plataforma política da contemporaneidade. A única coisa irrefutável é que a defesa política dos trabalhadores e das massas desprivilegiadas terá de ocorrer em franca oposição à exploração capitalista, jamais em conluio com ela, como muitos querem cinicamente fazer acreditar.