A pandemia da Covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, tem exposto inúmeros dilemas da sociedade brasileira. Um dos debates urgentes é sobre o modelo de segurança pública e a iminência da morte em grande escala nos presídios e penitenciárias do país.

O Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 720 mil pessoas vivendo em péssimas condições de higiene e saúde, conforme aponta a professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Rogéria da Silva Martins.  

“Quase metade das pessoas encarceradas não foram julgadas nem em primeira instância”, afirma a professora Rogéria Martins.

A pesquisadora, doutora em Políticas Públicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pós-doutora pela Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (Portugal), salienta que 45% das pessoas encarceradas são presas provisoriamente, ou seja, foram privadas de liberdade em flagrante ou cumprem prisão preventiva, antes mesmo do julgamento em primeira instância. “O que em si já revela uma tendência significativa de uma política de segurança pública de características repressivas”, pontua.

As prisões do país têm uma taxa de ocupação de 200%. Em outros termos, teriam capacidade para receber apenas a metade do contingente atual. E há dentre os encarcerados um perfil preponderante: são majoritariamente negros e pobres. “Coadunando com a expressão da seletividade dos tribunais para contenção desses perfis”.

A defesa de condições dignas e de ressocialização para a população carcerária, destaca Martins,  é sobretudo a reivindicação da aplicação da Constituição Federal de 1988 e da vigência do Estado de Direito Democrático no Brasil.

“Quero deixar bem claro que não estou defendendo pessoas que cometeram crimes, estou defendo a responsabilização desses crimes, dentro de um cenário de garantia de direitos, de responsabilidade do Estado. A pena da privação de liberdade não pode se estender para outras penalidades, balizada pela arrogância moral dos que atribuem a justiça como uma vontade. O sistema prisional brasileiro atualmente é definido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como um ‘estado de coisas inconstitucional’ ”,  ressalta a professora, que integra o Núcleo de Estudos em Violência e Direitos Humanos (Nevidh/UFJF) e a Rede de Pesquisadores sobre Privação e Restrição de Liberdade.

Condições de higiene e saúde nos presídios brasileiros

“Imagine um universo populacional dessa grandeza [mais de 720 mil pessoas], exposto a doenças como tuberculose, HIV, pneumonia, entre outras” – Rogéria Martins

No que diz respeito às condições de saúde e higiene ofertadas, pelo Estado brasileiro, à população encarcerada, a precarização é extrema.  “Imagine um universo populacional dessa grandeza [mais de 720 mil pessoas], exposto a doenças como tuberculose, HIV, pneumonia, entre outras, chegando ao limite de surto de piodermite – doença derivada da sarna humana – que ‘comeu vivos’ os presos, em Roraima.”

Segundo Rogéria Martins, a excepcionalidade da pandemia da COVID-19, parece obrigar gestores públicos a agirem, destinando ações específicas para o sistema prisional, inclusive acionados por uma preocupação com os trabalhadores do setor: educadores, agentes de saúde, agentes penitenciários. 

“Em Minas Gerais, por exemplo, foram suspensas as visitas sociais, íntimas, entrada de itens de alimentação, remédios, vestuário, de higiene e de limpeza, encaminhados por familiares, dentre outras medidas. A situação seria louvável, se as condições de higiene e limpeza nesses espaços fossem razoáveis. Mas não sendo, como todos sabem, abrem um precedente preocupante ainda pior: a falta de acesso a materiais de higiene pessoal e remédios, advindos das famílias, torna essa população ainda mais desprovida desses itens básicos” , avalia.

Seletividade do sistema prisional

Lidiane Aquino: “O encarceramento retrata a exclusão social e a discriminação a qual muitas mulheres foram submetidas antes do ingresso na prisão”.

A realidade do sistema prisional brasileiro é verificada diariamente pela agente de segurança Lidiane Castro Duarte de Aquino, aprovada em concurso para o cargo em 2016.  Graduada em Nutrição, atualmente Lidiane dedica-se à pesquisa sobre a saúde de mulheres privadas de liberdade em Juiz de Fora,  no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UFJF, sob orientação da professora Danielle Teles da Cruz.  

 “Algumas questões relacionadas à minha vivência no ambiente prisional começaram a me chamar atenção, a me afetar de alguma forma. Eu nunca consegui naturalizar as condições precárias e, na maior parte dos casos, desumanas, em que os indivíduos privados de liberdade vivem. E foi essa inquietação da prática que me motivou a estudar sobre o tema”, conta a mestranda. 

A pesquisadora salienta as possíveis consequências, caso a população encarcerada seja negligenciada neste contexto de pandemia da Covid-19.

As prisões do país encontram-se, em sua grande maioria, superlotadas, o que aumenta a vulnerabilidade da população carcerária. É importante levar em consideração os outros agravos à saúde aos quais essa população já está exposta, seja pelas condições precárias das unidades prisionais ou pela deficiência na assistência. Se houver transmissão dentro das unidades prisionais, o grau será muito grande, não sendo possível que o sistema de saúde absorva essa grande demanda. Se isso acontecer, certamente viveremos um caos no sistema penitenciário.”

Ainda segundo Lidiane Aquino, é indispensável ressaltar a seletividade do sistema prisional. No município de Juiz de Fora, as mulheres privadas de liberdade são, predominantemente, negras, com idades entre 20 e 39 anos, com baixa escolaridade e com renda mensal entre meio e um salário mínimo.

“As mulheres privadas de liberdade são, predominantemente, negras, com idades entre 20 e 39 anos, com baixa escolaridade e com renda mensal entre meio e um salário mínimo” – Lidiane Aquino

 “A convergência dos marcadores de raça, gênero e classe coloca as mulheres negras e pobres em extrema desvantagem na hierarquia social. Podemos dizer que o encarceramento retrata a exclusão social e a discriminação a qual muitas mulheres foram submetidas antes do ingresso na prisão e que tende a se aprofundar com o aprisionamento”.

 

Violência desde o  “descobrimento”

Carla Procópio: “Parece ser um problema recente e restrito à dimensão da segurança pública, mas, em nossa leitura, não é”.

Para a mestra em Comunicação Social pela UFJF e doutoranda no Programa Mídia e Cotidiano da Universidade Federal Fluminense (UFF), Carla Ramalho Procópio, “muito ainda é silenciado sobre os contextos da violência no país e sobre como nosso sistema prisional pretende lidar com os problemas atuais do encarceramento em massa, do aumento da posse de armas de fogo e com o incentivo da letalidade policial”.  

Sob orientação da professora Iluska Coutinho,  Carla Procópio concluiu em fevereiro deste ano a dissertação ‘Um retrato do caos: a representação midiática dos presidiários brasileiros e a crise da segurança pública’.

“A pesquisa procurou abordar como a mídia, enquanto instituição inserida nos mecanismos de dominação que organizam e criam os papéis sociais, é capaz de construir representações dentro de um determinado contexto, atribuindo características a determinados indivíduos – no caso, aos presidiários – e, assim, definindo-os e colocando-os dentro de uma espécie de ‘forma’ pré-determinada”, explica.

A doutoranda enfatiza que, apesar de vivermos um momento de excepcionalidade com a pandemia da Covid-19, as diversas violências praticadas contra encarcerados, especialmente negros e pobres, não são incomuns no Brasil. Ao contrário, são reflexos de uma sociedade estruturada historicamente em torno de processos violentos, de extrema desigualdade social, escravização dos povos africanos e massacre dos povos indígenas. 

“O Brasil traz a violência bem marcada desde o seu ‘descobrimento’, e acabou silenciando essa violência com narrativas romantizadas, para criar uma ideia nacionalista de um país miscigenado e pacífico” –  Carla Procópio

“À primeira vista, parece ser um problema recente e restrito à dimensão da segurança pública, mas, em nossa leitura, não é. O Brasil traz a violência bem marcada desde o seu ‘descobrimento’, e acabou silenciando essa violência com narrativas romantizadas, para criar uma ideia nacionalista de um país miscigenado e pacífico. Para nós, essa relação que nosso país teve com a violência desde o início de sua formação, invisibilizando resistências e não discutindo o cenário de desigualdade social, que também é histórico por aqui, tem total relação com a criação de políticas focadas na criminalização das drogas e no endurecimento do sistema prisional que, ao longo dos anos, resultou nessa marca de terceira maior população carcerária do mundo”, conclui.

Saiba mais:

Covid-19: Célia Xakriabá alerta sobre risco de extermínio de indígenas

“Polarização cria falso dilema entre saúde econômica e preservação da vida”

“Atendimento à população em situação de rua evidencia desafio à Saúde Pública”

“Descaso com condição social é evidência da sociedade de classe e racista”

“Promoção da saúde e de condições dignas de vida devem ser projeto de nação”

“A vulnerabilidade atinge especialmente negros e pobres”

“Tragédias evidenciam necessidade de existência e atuação do Estado” 

Outras informações: imprensa@comunicacao.ufjf.br