Em tempos de pandemia da Covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, autoridades epidemiológicas mundiais recomendam o isolamento social e o reforço dos hábitos de higiene como alternativas principais para conter o avanço do vírus. 

O temor do adoecimento é semelhante nos mais diversos países. Por outro lado, as possibilidades de contaminação e de perdas variam conforme a realidade de cada local e, principalmente, em função das medidas de segurança e suporte adotadas pelos agentes públicos. 

No Brasil, movimentos sociais e pesquisadores alertam acerca dos riscos, especialmente, para os grupos mais vulneráveis, dentre os quais a população em situação de rua. O portal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) conversou sobre o assunto com a doutoranda em Psicologia,  Kissila Teixeira Mendes

Em sua pesquisa de mestrado, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFJF, com bolsa de estudos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes),  sob orientação do professor Telmo Mota Ronzani,  a pesquisadora estudou a percepção sobre o processo de estigmatização em usuários de álcool e outras drogas em situação de rua em Juiz de Fora (MG). 

Segundo a doutoranda, o Brasil não dispõe de dados nacionais oficiais sobre o quantitativo de pessoas forçadas a utilizar a rua como espaço de moradia e sustento, o que dificulta a formulação de políticas públicas. Já as informações regionais evidenciam o crescimento, entre os anos de 2015 e 2019,  de brasileiros nessa situação de pobreza absoluta.

Em São Paulo, por exemplo, há dados de que, somente nos últimos quatro anos, houve um crescimento de 53% da população de rua, totalizando mais de 24 mil pessoas”, alerta.

Confira a entrevista na íntegra:

Kissila Mendes: “A falta de dados brasileiros oficiais sobre a população em situação de rua dificulta a construção de políticas públicas” (Foto: arquivo pessoal)

Portal da UFJF – Conforme informações disponíveis no portal do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), o Brasil não dispõe de dados oficiais sobre o quantitativo de pessoas em situação de rua no país. Existem apenas poucas informações disponibilizadas por alguns municípios. A população em situação de rua é composta por homens e mulheres, jovens e crianças com diferentes realidades, mas que têm em comum a condição de pobreza absoluta, vínculos interrompidos ou fragilizados e a falta de habitação convencional regular. Em outros termos, são pessoas forçadas a utilizar a rua como espaço de moradia e sustento, por caráter temporário ou de forma permanente. Na situação de excepcionalidade a qual vivemos em virtude da pandemia da Covid-19 (novo coronavírus), as autoridades sanitárias orientam o isolamento social. Todavia, ainda não foi apresentada alternativa que permita ao referido grupo populacional cumprir as determinações epidemiológicas. Comente, por favor.

Kissila Teixeira Mendes – A falta de dados brasileiros oficiais sobre a população em situação de rua (PSR) dificulta a construção de políticas públicas voltadas para tal população e se refere, principalmente, à territorialização precarizada da PSR em contraponto ao fato de que grande parte das pesquisas de perfil censitário são feitas em domicílio. Entre 2007 e 2008, foi feita, pelo extinto Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário, a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua. Grandes municípios foram excluídos por conterem censos próprios. Isso gera uma enorme subnotificação: em São Paulo, por exemplo, há dados de que, somente entre 2015 e 2019 houve um crescimento de 53% dessa população, totalizando em mais de 24 mil pessoas. Os dados dessa pesquisa foram divulgados em 2012 pelo I Censo e Pesquisa Nacional sobre População de Rua e estimou 31.922 pessoas nessa situação. Entre os dados, chama a atenção o fato de serem maioritariamente homens, com idades entre 25 e 54 anos. Os problemas de saúde mais relatados são: hipertensão (10,1%), problema psiquiátrico (6,1%), HIV/Aids (5,1%) e problemas de visão (4,6%). Problemas respiratórios também são recorrentes. Todas essas comorbidades alertam ainda mais para os riscos em relação ao coronavírus. Apesar das limitações metodológicas, esta foi a maior pesquisa desse perfil realizada no país. Porém, tanto tempo depois e com tantas variações conjunturais, importantes mudanças ocorreram no perfil da PSR. De acordo com o Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo SUAS)  de 2019, estima-se 119 mil famílias em situação de rua no Cadastro Único.

“A análise histórico-social do Brasil, país onde o racismo estrutural fornece explicações sociológicas fundamentais, indica a reprodução de um Estado punitivo para as classes excluídas dos meios de produção”  – Kissila Mendes

É importante ressaltar que a Política Nacional para a População em Situação de Rua (Decreto 7.053/09) define enquanto população em situação de rua “o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.  Dessa forma, pela própria condição de precariedade, essa população é a que mais sente os períodos ditos de crise, inclusive com o aumento de seu contingente. A análise histórico-social do Brasil, país onde o racismo estrutural fornece explicações sociológicas fundamentais, indica a reprodução de um Estado punitivo que visa o encarceramento, o controle e o extermínio das classes excluídas dos meios de produção. Historicamente, vários discursos subsidiam essa reprodução, como o de Guerra às Drogas e de criminalização da pobreza. A pandemia do coronavírus, nesse sentido, evidencia essa lógica perversa. O que quero dizer é que, mesmo estando “à margem” nesse momento de isolamento, a PSR, enquanto exército industrial de reserva, é necessária e útil à reprodução do capitalismo e, agora, está exposta a mais uma forma de extermínio por conta das consequências do nosso modelo societário. As medidas para contenção do vírus, que incluem basicamente isolamento social e higiene básica, são inviáveis para o cotidiano da população de rua. Antagônicas, eu diria. E redes de apoio mais sólidas a essa população foram desfeitas no período de isolamento.

 “A pandemia do coronavírus, nesse sentido, evidencia essa lógica perversa” – Kissila Mendes

Em Juiz de Fora, os serviços voltados para a PSR estão em funcionamento e há campanhas pautadas em doações. Em São Paulo, abrigos emergenciais estão sendo criados. É óbvio que se trata de um momento de exceção, onde a solidariedade social é essencial a todos. No entanto, para além disso, é fundamental lutar contra a desresponsabilização do Estado e a extrema precarização e desmonte dos serviços que atendem a essa população.

Portal da UFJF – Podemos afirmar que os riscos de proliferação do novo coronavírus nos alertam sobre a importância da existência e atuação do Estado e, além disso, nos mostram o fracasso de práticas e modos de vida sem solidariedade social?

“O coronavírus escancara ainda mais os efeitos das políticas de cunho neoliberal, sobretudo na área da saúde, assistência e previdência social” – Kissila Mendes

Kissila Teixeira Mendes – Sem dúvida! O contexto neoliberal – sobretudo em sua faceta ultraconservadora, como no Brasil atual – traz como pressupostos a intervenção estatal minimizada, focalizada, e financiada, basicamente, pela perda de direitos dos trabalhadores, como por meio das tão atuais reformas previdenciárias e trabalhistas, além da privatização do setor público. Não por acaso, há um aumento expressivo da população em situação de rua na década de 1990, concomitante à elevação das taxas de desemprego gerado pela implementação da agenda neoliberal pós redemocratização e pelos resquícios ditatoriais. É o que vemos se repetir. Basta sair nas ruas dos grandes centros para comprovar esse aumento. Nesse contexto, voltam à cena as figuras da filantropia, além do debate do terceiro setor, da filantropia empresarial e do voluntariado. Apesar de termos tido avanços relativos em relação às políticas públicas nos anos 2000, sobretudo nas de assistência social, ainda é uma população pouco assistida e muito estigmatizada. 

“O Brasil, até agora, parece estar indo na contramão das medidas apresentadas por outros países – até mesmo os mais liberais economicamente” – Kissila Mendes

O coronavírus escancara ainda mais os efeitos das políticas de cunho neoliberal, sobretudo na área da saúde, assistência e previdência social, e coloca em urgência medidas concretas, como por exemplo: afastamento do trabalho sem perda dos direitos – o contrário do que tentou ser feito pelo artigo 18 da medida provisória 927, já revogada; anistia nas contas de serviços essenciais; revogação imediata da Emenda Constitucional do Teto dos Gastos da saúde; estabelecimento de renda mínima para população desamparada e impossibilitada de trabalhar; regulação de preços de itens básicos; distribuição de itens de proteção à saúde; estatização de serviços de saúde; entre outros. O Brasil, até agora, parece estar indo na contramão das medidas apresentadas por outros países – até mesmo os mais liberais economicamente – , o que pode levar mais pessoas, que já estão no limiar da pobreza, para a situação de rua a curto, médio e longo prazos.  Para finalizar, acredito ser necessário cuidado em um discurso de solidariedade enquanto caridade para não cairmos na lógica de terceirização e filantropia da qual falei anteriormente.

“Acredito na necessidade de uma solidariedade política, da possibilidade de compreendermos nossa interdependência coletiva” – Kissila Mendes

Acredito na necessidade de uma solidariedade política, da possibilidade de compreendermos nossa interdependência coletiva. Sem dúvidas, é momento de refletir criticamente sobre nossa realidade e sociedade, de olhar para o outro… Além disso, a chegada do vírus em um país de extrema desigualdade apontará também para novas urgências. Nossa geração nunca passou por nada parecido e, com certeza, esse momento afetará as formas de viver daqui para frente. Para qual sentido é o que está em disputa.

Portal da UFJF – Conforme o Ministério da Saúde, não teremos no país como testar todas as pessoas que apresentarem sintomas da Covid-19, ou seja, não saberemos o quantitativo de vítimas da doença, bem como não sabemos quantas são as pessoas em situação de rua…Em sua avaliação, quais lições já podemos aprender com a situação de emergência a qual vivemos com a pandemia? Fale-nos também, por favor, sobre a importância da produção de dados em ambas as áreas e da relevância das políticas públicas. 

Kissila Teixeira Mendes – A PSR, assim, expõe os próprios limites societários do capital, a necessidade de mudanças estruturais, bem como um debate sério sobre as políticas públicas e sociais que influem direta e indiretamente sobre essa população. Historicamente, no âmbito das políticas públicas, a PSR foi assumida primeiramente como responsabilidade da assistência social, a partir de um caráter assistencialista e, ao chegar à área saúde, o olhar adquire viés clínico, higienista e sanitarista, que tende a reduzir essa questão complexa a um enfoque individualista e patologizante. O atendimento à PSR evidencia, assim, um desafio à Saúde Pública, sobretudo articulada aos debates sobre as desigualdades de classe, gênero, raça e etnia.

“O atendimento à população em situação de rua evidencia um desafio à Saúde Pública, sobretudo articulada aos debates sobre as desigualdades de classe, gênero, raça e etnia” – Kissila Mendes

Além disso, oriundo de um forte processo de estigmatização, maus tratos e de dificuldade objetiva de acesso, a PSR pouco procura a rede de saúde, resultando na acumulação de doenças e na prática de dependência de encaminhamento pelas instituições de assistência. Porém, é inegável que a emergência de demandas imediatas exigem debates pragmáticos. Nesse sentido, torna-se fundamental debater sobre as políticas públicas e sociais. Primeiramente, é evidente a necessidade de articulação entre os dispositivos próprios para população em situação de rua e os demais da rede de saúde, assistência social e saúde mental. Também aqui, os desafios próprios das políticas públicas se fazem presentes: visões individualistas, poucos recursos e estrutura e, acima de tudo, concepções estigmatizantes e não emancipatórias. No caso da população em situação de rua, ainda, há uma barreira de acesso aos serviços, visto que estes são conformados nos moldes normativos de moradia, consumo, família, entre outras categorias, que não correspondem à realidade concreta desses sujeitos. Por isso, a reestruturação dos serviços e também as capacitações com os profissionais que atuam na linha de frente com a população se fazem fundamentais. Pesquisas longitudinais acerca dessa população e das políticas a ela voltadas, bem como agregar as visões dos usuários, por meio de metodologias participativas também são possibilidades de aperfeiçoamento. Pensando em relação às políticas sobre drogas e saúde mental no Brasil, área onde atuo, vale ressaltar que o reconhecimento de seus limites não as deslegitimam. Esta afirmação se faz particularmente importante neste momento, em que desmantelamentos na política de saúde mental, em modelos antagônicos ao preconizado pela Reforma Psiquiátrica, estão colocados.

“É inegável que a emergência de demandas imediatas exigem debates pragmáticos. Nesse sentido, torna-se fundamental debater sobre as políticas públicas e sociais” – Kissila Mendes

O cenário atual de desmonte das políticas públicas acarretam no aumento da pobreza e da população em situação de rua. Tais retrocessos, mais do que nos deixar alertas, têm o papel de nos mostrar que a realidade não é natural ou apática, e que demanda luta e resistências. Vale ressaltar, novamente, que a materialização das políticas sociais não soluciona problemas, e sim é produto deles. Por isso, devem ser encaradas enquanto meio para construção de lutas mais amplas e não como fim em si mesmas. Nesse sentido, o fortalecimento de saídas coletivas via, por exemplo, movimentos sociais, também se faz importante, visto que a desmobilização social conduz ao desmantelamento das próprias políticas. É importante que se mude as relações das pessoas com o seu mundo como forma de transformações pessoais e sociais, e isso, talvez, o coronavírus no ensine.

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