A pandemia da Covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, coloca em alerta as autoridades e a população. Orientações epidemiológicas informam acerca da importância de dar atenção redobrada aos hábitos de higiene e orientam sobre a necessidade de isolamento social, para conter a contaminação.    

Todavia, num país marcado por desigualdades estruturais, no qual os acessos à água, à alimentação, à moradia, ao trabalho formal e ao saneamento são restritos a determinados grupos, os desafios tornam-se ainda maiores, conforme aponta a professora do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Fernanda Thomaz.  

Fernanda Thomaz: ” É triste e revoltante o quanto a pobreza e o racismo são institucionalizados”. Foto: Alice Coêlho/UFJF

Em entrevista ao Portal da UFJF, a pesquisadora, doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), fala sobre a atual conjuntura e a situação dos grupos sociais mais vulneráveis; a ação das autoridades públicas e o biopoder.

Confira a entrevista na íntegra:

Portal da UFJF – Comente, por favor, sobre como situações de excepcionalidade, a exemplo da que vivemos hoje com a pandemia da Covid-19, colocam em risco, especialmente, os grupos mais vulneráveis da população.   

“É a lógica do biopoder, onde pessoas específicas estão inseridas no ‘fazer viver’, enquanto outras são direcionadas para o ‘deixar morrer’ ” – Fernanda Thomaz

Fernanda Thomaz – Curiosamente, há pouco mais de uma semana, nós não estávamos tão preocupados assim com a disseminação da COVID-19 no nosso país. Lembro que, em uma conversa com um colega da universidade, ele me disse que esta era uma doença de ricos. A minha resposta foi “pode chegar com os ricos e classe média, mas sua propagação será mais rapidamente entre as pessoas pobres. Afinal, quem trabalha nas casas dessas pessoas ricas?”. Por ser uma sociedade pautada na desigualdade social, os grupos mais vulneráveis possuem precários acessos ao sistema de saúde de qualidade; passam horas em transportes públicos lotados a caminho de seus trabalhos (sobretudo em cidades grandes); não possuem emprego formal de modo que precisam trabalhar constantemente para o sustento de suas famílias; vivem com péssimas condições de saneamento básico, e daí por diante. Isso dita quem vai ser mais afetado, ainda mais em um governo que negligencia qualquer investimento na assistência social e que tampouco está preocupado com a propagação da COVID-19 entre a população. É triste porque é a lógica do biopoder, onde pessoas específicas estão inseridas no “fazer viver”, enquanto outras são direcionadas para o “deixar morrer”. É isso classe social, raça, gênero, habilidade física, etc.

Portal da UFJF – Podemos afirmar que a pandemia da Covid-19 expõe ainda mais as desigualdades brasileiras, expõe o racismo estrutural? Algumas figuras públicas postaram, por exemplo, conteúdos sobre isolamento social, mas não dispensaram do trabalho as empregadas domésticas…

“A sociedade é estruturada na desigualdade social com o crivo da divisão de classe e de raça” – Fernanda Thomaz

Fernanda Thomaz – Na verdade, a sociedade é estruturada na desigualdade social com o crivo da divisão de classe e de raça. No Brasil, quem é mais prejudicado sempre é a população negra. Penso que a COVID-19, assim como qualquer outra condição que se apresente à nossa realidade, explicitará essas contradições. Digo isso porque temos desigualdades estruturais e tudo que acontece na nossa sociedade será movido por essas diferenciações. Eu não estou naturalizando esta situação, apenas mostro o quanto tudo isso está enraizado.  Muitas vezes, naturalizamos algo que constantemente grita aos nossos ouvidos. Fui ao mercado comprar alguns alimentos. Vi pessoas desesperadas comprando como se tudo fosse acabar amanhã, eu me senti na história do livro “Ensaio sobre a cegueira”. Bateu medo, um medo que não era somente em torno da consequência da pandemia, mas o quanto somos individualistas.

‘Eu me assustei quando vi uma ascensorista trabalhando no elevador que ligava o mercado ao estacionamento. Isso é desumanização!” – Fernanda Thomaz

Dificilmente aquelas pessoas estavam preocupadas com as caixas, faxineiras, gerentes e demais trabalhadores do mercado. O discurso de isolamento serve até não afetar o seu abastecimento e a proteção individual. Eu me assustei quando vi uma ascensorista trabalhando no elevador que ligava o mercado ao estacionamento. Isso é desumanização! Curiosamente era uma mulher negra. Quanto à questão de não dispensar as trabalhadoras domésticas é muito grave. Mas há também aquelas pessoas que usam um discurso hipócrita de benevolente/consciente ao dispensar a empregada, mas não mantém o pagamento pelo serviço mesmo com o tal do afastamento. Digo isso não somente em relação às empregadas domésticas. Isso é a reprodução das desigualdades de classe e de raça porque estamos falando de trabalhos com baixa remuneração e status social. Desumaniza-se o “outro” diante da busca feroz de humanização de “si”. Desumanizamos o “outro” até o ponto de não nos preocuparmos como ele.

Portal da UFJF – Há inúmeros municípios brasileiros com grande concentração de moradias sem saneamento básico e sem acesso à água tratada adequadamente. Por outro lado, as autoridades sanitárias recomendam que os cuidados com a higiene sejam intensificados…

 “O mais constrangedor é ver autoridades públicas exigindo cuidados individuais, sendo que pouco oferecem para que as pessoas possam se cuidar” – Fernanda Thomaz

Fernanda Thomaz – O mais constrangedor de tudo isso é ver autoridades públicas exigindo cuidados individuais sendo que pouco oferecem condições básicas para que as pessoas possam se cuidar. Em plena cidade do Rio de Janeiro, há inúmeras pessoas que não têm água potável para lavar as mãos. Por falar em água, a cidade não tem água tratada nem mesmo para se consumir. Isso é um absurdo. É triste e revoltante o quanto a pobreza e o racismo são institucionalizados, porque o próprio Estado age de forma classista e racista o tempo todo, porque é estranho que as piores condições sociais são realidade, majoritariamente, de um grupo racial em específico. Essa institucionalização passou a ser reforçada com a COVID-19, uma vez que não há investimento em oferecer gratuitamente itens básicos para a manutenção de uma higiene adequada para conter o vírus, ou possibilidade de realização de exames de forma generalizada à população, entre outras questões. O descaso com a condição social das pessoas e com a disseminação dessa pandemia é a evidência institucionalizada da sociedade de classe e racista, até porque a elite branca, mesmo com todos os riscos, continua sendo a mais protegida.

Saiba mais:

“Promoção da saúde e de condições dignas de vida devem ser projeto de nação”

“A vulnerabilidade atinge especialmente negros e pobres”

“Tragédias evidenciam necessidade de existência e atuação do Estado” 

Outras informaçõesimprensa@comunicacao.ufjf.br